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Os filhos de Maria

Pr. Eleazar Domini1

INTRODUÇÃO

A Bíblia tem se demonstrado um livro sempre atual e fonte inesgotável de investigação.


Ela tem ultrapassado os milênios com a mesma capacidade singular e marcante de
despertar o interesse constante dos estudiosos que se propuseram desvendar seu
conteúdo e, como uma mina rica em tesouros, sempre que se explora, mais se tem por
explorar.
Há pontos controversos para o entendimento, alguns de fácil e outros de difícil
compreensão; há temas universais e assuntos que dizem respeito a uma cultura local e
específica; há estilos e linguagens as mais variadas desde a poesia, estilo parabólico até
as profecias. O fato é que por ser um livro tão rico, seu conteúdo ainda continua por se
desvendar, desdobrando-se àquele que se debruça com o fito sincero de, como
verdadeiro aprendiz, libar de suas páginas as preciosas verdades que ali estão veladas.
Entre os assuntos corriqueiros que no meio cristão vez por outra se ventila, está a
questão dos filhos de Maria, mãe de Jesus. O tema é fomentado em decorrência dos
relatos evangélicos contidos em Mateus 13:55-56 e Marcos 6:3. Após a análise das
perícopes citadas, duas correntes de pensamento se destacam alvitrando a melhor
interpretação para as mesmas: aqueles que defendem a eterna virgindade de Maria
mesmo após o nascimento de Jesus – estes tratam os textos como figurativos e não
literais, empregando ao termo grego adelphói (irmãos) em Mateus ou adelphós (irmão)
em Marcos, o significado também de primos e outros parentes. Outros afirmam que
Jesus tinha sim irmãos, mas todos por parte de pai, tendo como premissa básica o fato
de José ser viúvo e que já possuísse filhos desse primeiro casamento.

A primeira corrente de pensamento (a que alega a eterna virgindade de Maria) é


defendida pela Igreja Católica, que baseia-se em alguns dos maiores expoentes da
teologia romanista, Santo Agostinho: “Maria concebeu Cristo, virgem; deu-O à luz
virgem; e virgem permaneceu”2, e Inácio de Antioquia: “a virgindade é a forma por meio
da qual Maria pertence a Cristo”3, entre outros teólogos.

1
Pastor Eleazar Domini é formado em Teologia pelo Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia
– IAENE, é mestre em Interpretação e Ensino da Bíblia também pelo Seminário Adventista Latino-
Americano de Teologia – IAENE, tendo como orientador o Dr. Elias Brasil de Souza.
2
SANTO AGOSTINHO. A Virgem Maria: cem textos marianos com comentários. São Paulo: Paulus, 1996,
p. 11.
3
GARCIA PAREDES, Jose Cristo Rey. Mariologia. 3ª ed. Madrid: BAC, 2009, Cf. Inácio de Antioquia, Ephs,
19,1: PG 5,660A; SC 10,88.
O presente ensaio, tem como objetivo clarear esta questão, fornecendo uma visão
alternativa, um terceiro caminho interpretativo, não desrespeitoso, mas coerente e
responsável, procurando fazer uma análise séria de maneira que o caro leitor poderá,
ao fim da leitura, ajuizar as assertivas aqui propostas e chegar às suas conclusões
pessoais.

ENTRANDO NO ASSUNTO

Lucas 2:7
O primeiro texto a ser analisado é Lucas 2:7. Ali é dito que Cristo foi o primeiro filho de
Maria: “E deu a luz a seu filho primogênito, e envolveu-o em panos, e deitou-o numa
manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem.” A palavra grega aqui
utilizada para primogênito é prostótokon, que deriva de protótokos, cujo significado
primário é primeiro nascido, primeiro filho. Quando se trata de um filho único a palavra
grega comumente empregada é monogegês, conforme aparece em Lucas 7:12 e 9:38.
Caso Jesus fosse o filho único de Maria, o mais coerente seria o uso do último termo e
não do primeiro, uma vez que não há uma necessidade informativa de que haja um
primeiro, caso não houvesse outros. O mais lógico, portanto, seria monogegês, assim
estaria enfatizado que Maria não teve outros filhos além de Jesus. Contudo, o uso do
termo prostótokon pressupõe o nascimento posterior de outro (s) filho (s).
Não há plena concórdia entre os comentaristas acerca desse texto, no que se refere ao
termo primogênito. O Word Biblical Commentary4 referindo-se a prostótokon afirma
que “a palavra não fornece nenhuma base para uma decisão concernente a possíveis
filhos mais tarde nascidos a Maria.” Em consonância com este pensamento, Champlim
afirma:5

O vocábulo primogênito não implica, necessariamente, que Maria tenha tido


outros filhos, embora alguns estudiosos tenham tentado forçar esse sentido.
Não obstante, parece perfeitamente claro, à base de outros trechos bíblicos,
que ela realmente teve outros filhos, e em bom número.

Outros comentários vão numa linha diferente. O Novo Comentário Bíblico do Novo
Testamento diz: “A expressão filho primogênito indica que Maria teve outros filhos (Mt.

4
NOLLAND, John. Word Biblical commentary: Luke 1 - 9:20. Texas: Word Books, 1989. 35A . 520 p.
5
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo. São Paulo: Candeia. v. 2.
2002.
1.25; 13.55; Mc. 3.31-35).6 Já o Comentário Bíblico Beacon7 apresenta uma visão em que
o termo primogênito necessariamente pressupõe que Maria teve mais filhos depois de
Jesus:

Os comentaristas que aceitam o ponto de vista romanista de que Maria não


teve outros filhos, negam que o termo primogênito indica outros nascimentos
posteriores; mas parece claro a este escritor que eles estão negando os fatos
para apoiar a sua doutrina. O termo dá a entender claramente que Maria teve
pelo menos um outro filho, e em outras passagens os irmãos de Jesus são
especificamente mencionados, e os seus nomes são citados (Mt 13.55; Mc 3.31-
35). Quando compreendermos que os filhos posteriores e naturais de Maria de
maneira alguma diminuem a sua dignidade ou santidade como a mãe do nosso
Senhor, já não sentiremos mais a necessidade de explicar - ou até mesmo de
negar - os fatos. Veremos que eles se harmonizam perfeitamente com a
natureza da Encarnação. A verdade desta doutrina exige que Maria seja
completamente humana, e nascimentos posteriores somente demonstram
este fato com maior clareza.

Além deste fato, Mateus 1:25 diz que José “não conheceu” Maria “até que deu à luz seu
filho, o primogênito; e pôs-lhe por nome Jesus.” Aqui novamente é dito que Cristo foi o
primogênito de Maria, mas o fato interessante é que a expressão “não conheceu” é uma
referência ao ato conjugal, i.e., José não manteve relações sexuais com Maria até o
nascimento de Jesus, ou seja, ela era virgem até Cristo nascer, deixando claro que após
o nascimento eles mantiveram as relações conjugais.
Conforme mencionado na parte introdutória, há dois textos que legitimam a hipótese
de que Maria teve outros filhos depois de ter Jesus. Em realidade, os textos de Mateus
e Marcos que logo mais serão analisados, apenas são o alicerce, a parte inicial de um
estudo mais amplo onde outras passagens serão cruzadas até o alcance do objetivo
pretendido por este artigo.

Mateus 13:55-56 e Marcos 6:3

Estas duas passagens apenas, não conseguem por si próprias serem contundentes
quanto ao fato de Maria ter outros filhos além de Jesus. Não obstante, elas trazem uma
informação clara de que Cristo possuía quatro irmãos além de outras irmãs:

6
RADMACHER, Earl D.; ALLEN, Ronald B.; HOUSE, H. Wayne (Ed.). O novo comentario biblico [do] Novo
Testamento. Tradução de Bruno Destefani. Rio de Janeiro: Central Gospel, 2010. 843 p.
7
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Comentário bíblico Beacon: Mateus a Lucas.
Tradução de Degmar Ribas Junior. 3. ed. Rio de Janeiro: CPAD, c2006. v. 6 . 509 p.
“Não é este o filho do carpinteiro? e não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos Tiago,
e José, e Simão, e Judas? E não estão entre nós todas as suas irmãs? De onde lhe veio,
pois, tudo isto?” Mat. 13:55-56
“Não é este o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago, e de José, e de Judas e de
Simão? e não estão aqui conosco suas irmãs? E escandalizavam-se nele.” Mar. 6:3
Nestas passagens, de maneira clara, percebe-se que Jesus possuía quatro irmãos.
Entretanto, há os que argumentam tratar-se de primos, sendo eles filhos de Maria,
esposa de Clopas ou Cléofas, supostamente irmã de Maria, conforme interpretam o que
está escrito em João 19:25.8 Esta é uma análise precipitada e notoriamente tendenciosa,
uma vez que uma análise evangélico-textual, apurando-se os textos correlatos dos
quatro evangelhos, desconstrói esta hipótese, como ver-se-á adiante.
É válido salientar que a língua grega, por sua riqueza de vocábulos, tem uma palavra
específica para primo: anepsiós, como evidenciado em Colossenses 4:10. Os termos
adelphói ou adelphós encontrados nos textos que ora se analisa (Mateus 13:55-56 e
Marcos 6:3) não foram uma escolha pessoal do evangelista, como possa sugerir alguém,
que não pretendia ser categórico quanto ao fato de Cristo ter irmãos de sangue ou não,
mas uma constatação feita pelos críticos de Jesus, i.e., tais termos partiram daqueles
que pretendiam que Cristo não fosse o Messias prometido, uma vez que – como criam
– Ele era apenas mais um entre eles, pois conheciam sua mãe, irmãos e irmãs. O
evangelista apenas retratou com precisão a fala dos presentes. Portanto, o
reconhecimento da irmandade de Jesus, parte de uma constatação feita pelos
evangelistas de um episódio onde críticos de Jesus querem desmerecê-lo trazendo à
tona tais evidências e não meramente uma particular escolha de termos por parte dos
evangelistas.
Ademais, também é sabido que a consolidação da hipótese da eterna virgindade de
Maria se deu em 649 a.D., no concílio de Latrão:9

Se alguém, segundo os Santos Padres, não confessa que própria e


verdadeiramente é Mãe de Deus a santa e sempre virgem e imaculada Maria,
já que concebeu nos últimos tempos sem sêmen, do Espírito Santo, o próprio
Deus-Verbo (…) e que deu à luz sem corrupção, permanecendo a sua virgindade
indissolúvel mesmo depois do parto, seja anátema.

Para solidificar tal crença, os que assim a defendem, recorrem a uma exegese
comprometedora de Ezequiel 44:2 que diz: “O Senhor disse-me: Esse pórtico ficará fechado.
Ninguém o abrirá, ninguém aí passará, porque o Senhor, Deus de Israel, aí passou; ele
permanecerá fechado.” Não é propósito desse artigo analisar exegeticamente o texto de
Ezequiel. O que se pode dizer, de maneira reduzida, acerca do texto de Ezequiel é que ele não
tem absolutamente nada que ver com Maria. Tal interpretação é alegórica, forçosa, infundada

8
SÃO JERÔNIMO. Contra Helvidium, 14. In SANTO TOMÁS DE AQUINIO. Catena Aurea.
9
Concílio de Latrão, Cânon 3. Denzinger, 255, 649.
e desrespeita o estilo literário do livro como também o pensamento primário pretendido pelo
autor do mesmo. Uma análise hermeneuticamente respeitosa, tendo em consideração o
contexto imediato da perícope, não permite qualquer alusão a Maria. Contudo, Ambrósio de
Milão concluiu:10

Que porta é esta senão Maria, que permanece fechada por ser virgem?
Portanto, esta porta foi Maria, através da qual Cristo veio a este mundo graças
a um parto virginal, sem romper os claustros fecundos da pureza. Permaneceu
íntegro em seu pudor e se conservaram intactos os selos da virgindade,
enquanto nascia Cristo de uma Virgem cuja grandeza não podia sustentar o
mundo inteiro. Esta porta – disse o Senhor – há de permanecer fechada e não
se abrirá. Bela porta: Maria, que sempre se manteve fechada e não a abriu!
Passou Cristo através dela, mas não abriu.

Análise e intersecção de textos: O evento da crucifixão sob a perspectiva de Mateus,


Marcos e João

O evento da crucifixão relatado nos evangelhos traz uma riqueza muito grande
concernente ao assunto em pauta, pois, uma análise comparativa permite identificar as
personagens que estavam ao pé da cruz, bem como certas nuances, para citar, a
identificação de alguns parentescos existentes ali. A exceção é o livro de Lucas, que não
se detém nos pormenores, ou peno menos neste pormenor em particular, que é a
informação das pessoas que estavam presentes ao pé da cruz.

1. Mateus 27:56

“Entre as quais estavam Maria Madalena, e Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos
filhos de Zebedeu.”

Apesar de o verso anterior salientar que havia muitas mulheres presentes ao longe
contemplando a cena da crucifixão, o autor destaca três delas mais próximas, ao pé da
cruz:

Maria Madalena Maria mãe de Tiago e José A mãe dos filhos de Zebedeu

10
Apud: Carlos Martins Nabeto. A Fé Cristã: Coletânea Citações Patrísticas. Vol. 3: Maria, os Anjos e os
Santos. 1 ed. São Vicente, 2007. Pág. 33.
2. Marcos 15:40

“E também ali estavam algumas mulheres, olhando de longe, entre as quais também
Maria Madalena, e Maria, mãe de Tiago, o menor, e de José, e Salomé.”
O texto de Marcos é sinótico ao de Mateus. Entretanto, há acréscimo nas informações,
o que vai enriquecendo o conhecimento e a compreensão da passagem.

Maria Madalena Maria mãe de Tiago, o menor, e José Salomé

Numa justaposição entre as passagens, já se apreende que a mãe dos apóstolos Tiago e
João, esposa de Zebedeu, chamava-se Salomé.

Mateus Maria Maria mãe de Tiago e A mãe dos filhos de


Madalena José Zebedeu
Marcos Maria Maria mãe de Tiago, o Salomé
Madalena menor, e José

3. João 19:25

João, pelo fato de ter estado ao pé da cruz nos momentos agonizantes de Cristo,
acrescenta ainda mais detalhes às descrições acima apresentadas.
“E junto à cruz de Jesus estava sua mãe, e a irmã de sua mãe, Maria mulher de Clopas,
e Maria Madalena.”
Aqui, encontra-se certa dificuldade interpretativa. A depender de onde esteja a vírgula,
tem-se três mulheres ou quatro. Grande parte dos comentaristas enxergam quatro
mulheres na cena da crucifixão.

Ex. 1: “E junto à cruz de Jesus estava sua mãe (1), e a irmã de sua mãe (2), Maria mulher
de Clopas (3), e Maria Madalena (4).”

As mulheres apresentadas são:


1: Maria mãe de Jesus
2: A irmã de Maria, mãe de Jesus
3: Maria mulher de Clopas
4: Maria Madalena

Ex. 2: “E junto à cruz de Jesus estava sua mãe (1), e a irmã de sua mãe, Maria mulher de
Clopas (2), e Maria Madalena (3).”

As mulheres apresentas neste segundo exemplo são:

1: Maria mãe de Jesus


2: A irmã de Maria que também se chama Maria, mulher de Clopas
3: Maria Madalena

O problema com esta última visão é o fato de ser pouco provável que duas irmãs
possuíssem o mesmo nome: Maria. Neste caso, a maioria dos comentaristas entendem
tratar-se de quatro mulheres e não três, com o acréscimo de Maria, mulher de Clopas
que não aparece nos textos de Mateus e Marcos.

O motivo desse artificio de tradução é que os revisores devem ter pensado que
seria extremamente difícil que numa única família, houvesse duas irmãs com o
mesmo nome — Maria. E, posto que nos manuscritos originais não foram
usados sinais de pontuação, bastaria ser posta uma vírgula (que no caso agiria
como substituta da conjunção “e”) antes de Maria, mulher de Clopas, para que
houvesse o mesmo efeito de distinção. Assim se poderia distinguir a irmã de
Maria de “Maria, mulher de Clopas”. A bem da verdade, é necessário que se
diga que a primitiva versão siríaca peshito também inseria a palavra “e” após a
palavra “irmã”, o que serve para mostrar-nos que desde bem cedo, na história
da interpretação do texto sagrado, essa passagem era aceita como a indicar a
presença de quatro mulheres, e não de três somente, ao pé da cruz. 11

Talvez a maior dificuldade entre boa parte dos teólogos e comentaristas é que eles só
conseguem enxergar Maria, a mãe de Jesus, no relato de João. Para eles, a Maria mãe
de Tiago e de José, é outra pessoa, não a mãe de Cristo. Quiçá porque a maior
preocupação dos mesmos seja fazer a análise comparativa apenas entre os relatos da
crucifixão: Mateus 27:56, Marcos 15:40 e João 19:25, deixando de lado os relatos de
Mateus 13:55-56 e Marcos 6:3.

11
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo. São Paulo: Candeia. v. 2.
2002.
Por que só essas quatro mulheres são mencionadas aqui em 19.25 não foi
revelado. Não é improvável que tivessem com ele um relacionamento mais
estreito do que as outras mulheres. Assim sendo, por exemplo, a mãe de Jesus
é mencionada, e também a mãe dos filhos de Zebedeu (que eram discípulos de
Jesus, pertencentes ao círculo dos três mais chegados). Uma comparação entre
a lista fornecida por Mateus e a de Marcos pareceria indicar que o nome da
mãe de Tiago e João era Salomé.
Não podem os aceitar a teoria de acordo com a qual João menciona somente
três mulheres. Se isso fosse verdade, as duas irmãs (a mãe de Jesus e sua irmã)
teriam o mesmo nome (Maria). Além disso, neste caso, João, embora
mencionando nominalmente a mãe de Jesus, iria não simplesmente mencionar
o nome de sua irmã, como também informaria aos leitores que ela m antinha
o mesmo relacionamento com Cléopas (sendo provavelmente sua esposa).
Isso não é de modo algum razoável. O mais provavelmente correto é a ideia de
que “a mãe dos filhos de Zebedeu” e “Salomé” e “a irmã de sua mãe” eram a
mesma pessoa.
Pode até ser que as três listas sejam idênticas com um a única exceção, ou seja,
que João acrescenta a mãe de Jesus (sem mencioná-la pelo nome). Se isso for
verdade, chegam os à seguinte harmonia;
A mãe de Jesus.
Sua irmã, que segundo Marcos era Salomé, mãe de Tiago e do autor do Quarto
Evangelho.
Maria, a mulher de Cléopas. Ela - se essa harmonia estiver correta - é a mãe de
Tiago, o Menor, e de José.
M aria Madalena.
Deve-se enfatizar, não obstante, que esta síntese, embora provável, não pode
ser provada. 12

João é o único evangelista que menciona a mãe de Jesus nesta ocasião; sua
narrativa é que está por trás do hino Stabat Mater (A mãe parada junto à cruz),
do século treze. Do modo como a frase está disposta é difícil saber se João
menciona três ou quatro mulheres; Maria, mulher de Clopas poderia ser a irmã
da mãe de Jesus ou outra pessoa. Se, porém, juntamos a informação de João
com a outra sobre as mulheres que estavam “observando ao longe”, em Marcos
15.40s. e Mateus 27.55s., podemos concluir que a irmã de Maria era Salomé
(mãe dos filhos de Zebedeu), e que Maria, a mulher de Clopas, era a mãe de
Tiago, o menor, e de José. Em nenhuma passagem João se refere à mãe de Jesus
pelo nome, talvez para evitar confusão com outras mulheres com o nome
Maria. De acordo com Egesipo, um escritor da Palestina do segundo século,
Clopas era irmão do carpinteiro José e pai do Simão que se tornou
líder da igreja de Jerusalém depois que Tiago, o justo, foi apedrejado. Maria
Madalena (Magdala era uma cidade no lado ocidental do Lago da Galiléia, cerca
de cinco quilômetros ao norte de Tiberfades) consta das narrativas da paixão
nos quatro evangelhos.13

Análise e intersecção dos textos: a justaposição entre os relatos evangélicos

Como proposto no início deste artigo, será apresentada abaixo uma terceira
interpretação, tendo em consideração não apenas os relatos da crucifixão, mas traçando

12
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: João. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. 956.
13
BRUCE, F. F. João: introdução e comentário: Série cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 1987.
uma linha comparativa entre os textos evangélicos de Mateus 13:55-56 e Marcos 6:3
com os relatos contidos Mateus 27:56, Marcos 15:40 e João 19:25, levando-se
principalmente em conta o fato de haver uma “Maria, mãe de Tiago e José” que estava
ao pé da cruz, coadunando com a informação de que Jesus era filho de Maria e que tinha
pelos menos dois irmãos com os nomes Tiago e José. Nos vários comentários e demais
literaturas pesquisadas para produção desse artigo, não foi encontrado um único livro
ou artigo que forneçam uma visão similar ou que se aproxime do pensamento aqui
defendido: de que a “Maria, mãe de Tiago e José”, que aparece na cena da cruz em
Marcos 15:40 e Mateus 27:56 é a mesma Maria que é citada em Marcos 6:3 e Mateus
13:55-56, i.e., a mãe de Jesus.

Livro Mulher 1 Mulher 2 Mulher 3 Mulher 4


Maria Maria mãe de Tiago A mãe dos
Mateus 27:56 Madalena e José filhos de
Zebedeu
Marcos 15:40 Maria Maria mãe de Tiago, Salomé
Madalena o menor, e José
Sua mãe (Maria). Maria, mulher
João 19:25 Maria Mãe de Tiago e Irmã de sua de Clopas
Madalena José, conforme mãe
Marcos 6:3

Nesta justaposição comparativa, identificando-se todas as mulheres ao pé da cruz, não


é necessário fazer arranjos para tentar identificar Maria, mulher de Clopas, com Salomé
– algo inviável, ou excluir Maria, mãe de Jesus dos relatos de Mateus e Marcos, se
houver o entendimento de que a mãe de Jesus é também a mãe de Tiago e de José.
Assim sendo, ao pé da cruz estão Maria Madalena, que é identificada nos três
evangelhos; Salomé, que é a mãe dos filhos de Zebedeu e é também a irmã de Maria,
mãe de Jesus; Maria, mulher de Clopas, que só aparece no relato joanino sem maiores
identificações de sua pessoa; e a mãe de Jesus – conforme apresenta o evangelho de
João – que em Mateus e Marcos foi identificada como “Maria, mãe de Tiago e José”.
É interessante ressaltar que Salomé e Maria, mãe de Jesus, eram irmãs. O parentesco
existente entre elas, naturalmente coloca Tiago e João (este é o Tiago filho de Salomé e
Zebedeu) na posição de primos de Jesus, o que facilita a compreensão do porquê Cristo
passa a João a responsabilidade dos cuidados de sua mãe. Talvez pelo fato de Tiago e
José (este é o Tiago filho José e Maria, mãe de Jesus) não estarem ao pé da cruz e João
ser o único parente mais próximo presente, Cristo não se sentiu desconfortável em
tomar tal atitude.
O parentesco existente entre Cristo e os filhos de Zebedeu, que foram chamados “os
filhos do trovão” por Jesus, também explica a atitude tão ousada de Salomé em fazer a
petição: “Então se aproximou dele a mãe dos filhos de Zebedeu, com seus filhos,
adorando-o, e fazendo-lhe um pedido. E ele diz-lhe: Que queres? Ela respondeu: Dize
que estes meus dois filhos se assentem, um à tua direita e outro à tua esquerda, no teu
reino.” Tal pedido, pode ter sido motivado pela aproximação que tinha com Jesus, bem
como pela posição de tia que possuía, o que pode ter dado a ela a liberdade de proceder
desta maneira.
Como dito acima, o parentesco de Jesus com João clarifica a razão de Ele passar os
cuidados de sua mãe a este. Fica também esclarecido a proximidade de Cristo tanto com
Tiago como com João, especialmente este, que é bastante visível nos relatos evangélicos
em diversas ocorrências onde parece haver uma afinidade maior de Jesus para com três
de seus discípulos, sendo dois deles Tiago e João e o terceiro, Pedro. Tal aproximação
de Jesus com João, por exemplo, torna-se aparente no relato contido em João 13:23-25:
“Ora, um de seus discípulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seio de
Jesus. Então Simão Pedro fez sinal a este, para que perguntasse quem era aquele de
quem ele falava. E, inclinando-se ele sobre o peito de Jesus, disse-lhe: Senhor, quem é?”
O fato de serem primos, é bastante revelador e traz luz especial a esta situação acima.
Também não se sabe que tipo de relação havia entre Cristo e seus primos, pois tudo que
se conhece acerca de Jesus, diz respeito aos seus últimos três anos e meio de vida na
terra, com raras aparições de sua infância contidas em Lucas. Portanto, até os trinta
anos de idade, sendo João mais novo que Cristo, não se sabe qual o grau de amizade
que tinham, mas é possível que Jesus possuísse uma boa relação com seus primos, o
que revela os comportamentos durante o Seu ministério. Mas isto são apenas
conjecturas.
É bastante louvável e provável, que os evangelistas citassem Maria, mãe de Jesus,
estando ao pé da cruz com as demais mulheres. Por que ela não foi identificada como a
mãe de Jesus e sim como a mãe de Tiago e José nos relatos de Mateus e Marcos? Essa
não é uma resposta simples. Não obstante, é interessante notar que João, seu sobrinho,
também não a cita pelo nome exato em seu evangelho. Do mesmo modo, nada impede
de ela ser citada em Mateus e Marcos como a mãe de Tiago e José. É possível que, como
os evangelhos de Mateus e Marcos foram escritos alguns anos depois da assunção de
Cristo e, seus irmãos já fossem conhecidos, não seria difícil de entender porque os
evangelistas preferiram a identificação de Maria, como mãe de conhecidos líderes da
igreja, como era Tiago, pelo menos. Em I Coríntios 9:5 diz: “Não temos nós direito de
levar conosco uma esposa crente, como também os demais apóstolos, e os irmãos do
Senhor, e Cefas?” Note-se que havia certo conhecimento e proeminência dos irmãos de
Jesus entre os líderes eclesiásticos da época. Veja que Tiago assume funções de
destaque dentro da igreja, sendo respeitado e tendo muita autoridade, como relatado
em Atos 15 nas demandas acerca da circuncisão:

Depois de Pedro, Paulo e Barnabé terem falado, o líder da igreja de Jerusalém


assume a tarefa de se dirigir ao plenário e formular uma decisão que conte com
a aprovação de toda assembleia. Essa pessoa é Tiago, o meio-irmão de Jesus,
que sucedera Pedro como líder da igreja (12.17) e era altamente respeitado por
sua autoridade (comparar com 21.17-19). Quando fala à assembleia, ele
literalmente tem a última palavra. [...] Tiago atua como o presidente do
concílio. [...] Sua frase de abertura é: “Homens e irmãos, ouçam-me”. É digna
de nota a semelhança entre essas palavras e as da Epístola de Tiago. Em sua
epístola, ele escreve: “Ouvi, meus amados irmãos” (2.5). A ordem ouçam-me
não ocorre em nenhum outro lugar em todo o Novo Testamento. Mostra que
Tiago conta com o respeito e exerce autoridade na igreja e que os apóstolos,
presbíteros e delegados ao concílio valorizam sua liderança.14

A essa altura, Tiago era o grande líder da igreja de Jerusalém (12.17), contado
até mesmo entre os apóstolos (G1 1.19). Era irmão de Jesus e, quando o Senhor
Jesus ressuscitou, apareceu-lhe pessoalmente (I Co 15.7). Tiago era uma coluna
da igreja (G1 1.19), tão constante na oração que seus joelhos eram duros como
os de um camelo, de tanto ajoelhar-se para orar. Tiago foi o moderador dessa
assembleia, por isso, logo após o relato dos missionários tomou a palavra e
pediu que os irmãos o ouvissem (15.13).
Como líder da igreja de Jerusalém e presidente do concílio, Tiago assume a
tarefa de se dirigir ao plenário e formular uma decisão que contasse com a
aprovação de toda a assembleia. Quando Tiago fala à assembleia, ele
literalmente tem a última palavra. 15

Não há dúvidas de que Tiago era irmão de Jesus: “E não vi a nenhum outro dos
apóstolos, senão a Tiago, irmão do Senhor.” Gal. 1:19

Assim, remata-se que Jesus era irmão de sangue de Tiago e de José por parte de mãe. É
possível que os demais irmãos citados em Marcos 6:3, i.e., Judas e Simão, fossem, de
fato, filhos de José de um outro casamento, tendo em vista a possibilidade de ele ser
viúvo antes de casar-se com Maria.

CONCLUSÃO

O assunto do parentesco fraternal de Jesus tem sido motivo de muitas discordâncias e


confrontos de ideias entre teólogos e ramos religiosos cristãos. O catolicismo ensina a
eterna virgindade de Maria, mesmo após o nascimento de Jesus. Outros grupos cristãos,
evangélicos em especial, defendem a possibilidade de Maria ter tido outros filhos após
o nascimento de Jesus. Tal crença tem apoio escriturístico, a saber, a correta leitura de
Marcos 6:3 e as correlações existentes entre os relatos da crucifixão contidas em
Mateus, Marcos e João, subsidiam perfeitamente a hipótese de Maria ser mãe, além de
Jesus, de Tiago e de José, sendo Jesus o filho primogênito, conforme Lucas 2:7.
Outro aspecto relevante que se destaca nas comparações textuais supracitadas é o
parentesco entre Salomé e Maria, mãe de Jesus: eram irmãs. Sendo Salomé esposa de

14
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: exposição de Atos dos Apóstolos. São
Paulo: Cultura Cristã, 2003. Vol. 2. 686.
15
LOPES, Hernandes D. Atos: A ação do Espírito Santo na vida da igreja. São Paulo: Hagnos, 2012. 511.
Zebedeu e mãe de Tiago e João, os discípulos chamados por Jesus de “filhos do trovão”,
a relação parental entre Cristo e eles era a de primos. Esta posição parental oferece luz
ao relato da cruz onde Cristo nomeia João, seu primo, como aquele que deveria cuidar
de sua mãe até a morte dela. Prevendo o futuro e sabendo que João (talvez o mais novo
dos apóstolos) viveria muitos anos, considerando o parentesco existente e a ausência
de um outro parente (filho) ali naquele momento, é que Cristo toma tal decisão.

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