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Data: 25.03.2015
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um fator positivo na situação política e social do Império, que carecia, na época, de
qualquer esperança quanto ao seu futuro. Neste sentido, Auerbach notará que as
Metamorfoses de Ovídio, conhecidas desde o início do século I d.C., representam com
precocidade as mesmas tendências do estilo de Amiano.
2
Nos escritos de Amiano Marcelino, historiador e oficial romano do século IV
d.C., encontra-se o registro de uma sequência de tumultos da plebe romana que
resultaram na prisão de um homem apelidado Petrus Valvomeres. No primeiro desses
tumultos, a plebe raivosa, motivada por uma causa menor, se dirige ao prefeito
romano Leôncio, que aplaca a multidão através de chicoteadas e deportações. Já no
segundo levante, causado pela escassez de vinho, a ferocidade da plebe chega a tal
ponto que o prefeito é desencorajado, por seus conselheiros, a enfrentá-la. O prefeito,
contudo, não só se aproxima da multidão, como também nela identifica o mentor
plebeu das agitações, Petrus Valvomeres. Petrus é então amarrado e açoitado, e a
visão de sua impotência faz com que a multidão se disperse. O destino último de
Petrus Valvomeres ainda é mencionado por Amiano: condenado por estupro, recebe a
pena capital.
Se, como afirma Auerbach, na descrição da rebelião dos soldados, Tácito não se
preocupou em apresentar as causas que moviam a insatisfação, menor ainda é a
preocupação de Amiano em apontar, no trecho acima, as circunstâncias de formação
dos levantes da plebe. Ainda que a plebe constituísse, de fato, uma horda imprestável
– tal como era segundo o julgamento dos historiadores-moralistas -, um historiador
moderno se preocuparia em, pelo menos, procurar causas e uma possível explicação
para o estado corrompido desse estrato social. E mesmo Tácito foi capaz de delinear,
em seu relato, uma racionalidade nos protestos dos soldados romanos, de modo a
formar um conjunto de exigências compreensível, em certa medida, inclusive para
seus superiores. É a falta dessa “relação objetiva e racional” 2 entre a multidão descrita
por Amiano e as autoridades que elimina, nesse relato, a possibilidade de uma
“relação humana baseada em respeito mútuo” 3, acabando-a por delimitar a uma
esfera meramente física, “baseada em magia e violência” 4.
2
AUERBACH, p. 45.
3
Idem.
4
Idem.
3
5
mas deixa uma “forte impressão sensorial, talvez desagradavelmente realista” em
seu leitor. Dessa forma, Amiano constrói seu relato segundo um princípio que
Auerbach denomina sensível-gestual. Presente na escolha das palavras e das imagens,
o estilo sensível-gestual de Amiano, quando comparado ao texto de Tácito, servirá
para acentuar o enfraquecimento do humano e do objetivo-racional no mundo da
Antiguidade tardia e passagem do sensível e do mágico para o primeiro plano. Os
elementos gestuais e imagéticos da punição de Petrus ganham um aspecto grotesco
quando apresentados através do estilo pomposo de Amiano, aspecto este que acaba
por determinar todo o caráter de sua obra. Assim, Auerbach afirma 6:
4
de um estilo baixo. Essa tradição privilegia episódios e assuntos sombrios, para que
mais facilmente sejam contrastados ao “ideal de primordial simplicidade, pureza e
virtude que piram em suas mentes” 8. Entretanto, devido à forte carga grotesca e
sombria dos conteúdos presente nas narrativas dessa tradição, é possível notar uma
alteração no estilo elevado dos historiadores moralistas – e essa alteração se faz
notável sobretudo em Amiano, onde há uma “hipertrofia do sensorial e do
perceptível” 9
Porém, não basta que a linguagem de Amiano seja rebuscada para que sua
sensibilidade esteja de acordo com a sensibilidade clássica: sua sintaxe, seu
vocabulário e o seu mundo sensorial são exageradamente refinados, a ponto de
possuírem uma força que desfigura o realismo clássico - pois desfigurada é a realidade
que Amiano representa. Nessa realidade, o elemento mais opressivo se torna a
ausência de forças contrárias àquelas opressivas e sombrias, forças como o “amor e
auto-sacrifício, heroísmo professo e busca incessante de possibilidades de uma
existência mais pura”12, que são necessariamente geradas quando existem forças tão
aterradoras quanto aquelas descritas por Amiano. Assim, a Historiografia de Amiano é
carente de um elemento remissor, porque a própria cultura antiga encontrava-se
acuada, reduzida, decadente e sem perspectivas de melhora. Perspectivas que, para
8
Idem, p. 49.
9
Idem.
10
Idem.
11
Idem.
12
P. 51
5
Amiano, não eram oferecidas pelo Cristianismo. Logo, resta ao oficial viver em um
mundo
14
O “realismo sombrio e ultrapatético” de Amiano expressa uma modalidade
de representação que já se anunciava em obras mais antigas, como as de Sêneca,
Ovídio e, como já se sabe, Tácito. O destaque do horrivelmente sensorial que desfigura
a realidade pode ser encontrado, por exemplo, nas Metamorfoses. Nesta obra de
Ovídio, retórica e realismo se misturam, e a sensualidade, a tolice e o horripilante,
indissociáveis entre si, predominam. O seguinte episódio das Metamorfoses é utilizado
por Auerbach para exemplificar essa aproximação entre os autores: Lúcio, o narrador,
vai às compras em um mercado de uma cidade estrangeira e, após barganhar alguns
peixes com um vendedor, encontra um conhecido que agora exerce o cargo de fiscal
do mercado. Pítias, o fiscal, toma conhecimento da compra de Lúcio e acusa o
vendedor de cobrar um valor elevado pela mercadoria, censurando-o. Como medida
“punitiva”, Pítias ordena a um funcionário que pisoteie o jantar de Lúcio. O narrador,
então, é aconselhado por Pítias a deixar o mercado, e se vê privado tanto de sua
comida quanto de seu dinheiro.
6
a de Amiano. Para Auerbach, as ferramentas que Amiano utiliza para construir essa
realidade sombria – retórica rebuscada, estilo sensível-gestual - anunciam o
solapamento paulatino que a divisão clássica de estilos sofrerá. E serão também
utilizadas por autores cristãos, que, embora não separassem realismo e estilo elevado,
não faziam um uso ostensivo da retórica. Neste aspecto, São Jerônimo evidencia essa
apropriação da retórica por parte de autores cristãos, pois seu é estilo rebuscado, mas
ao mesmo tempo realista e pictórico. Como exemplo, Auerbach menciona um trecho
de uma epístola de Jerônimo, onde um recém-viúvo, Pamáquio, é louvado por seus
atos altruístas em relação aos pobres. Sobre Pamáquio, Jerônimo escreve que,
“acompanhado por esta comitiva [formada pelos miseráveis] ele avança; neles ele
reanima Cristo, nas suas imundícies, purifica-se” 16.
7
imersão no horripilante, naquilo que desfigura a vida e é
seu inimigo, chega também nele a ser amiúde quase
insuportável. Não é a última vez que se defronta na sua
obra, uma disposição ascética e assassina do mundo em
meio a um estilo pictórico extremamente rico 17.
E a força vital de Alípio, que antes era direcionada ao controle de suas paixões,
passa agora a ser exercida no sentido contrário, pois do espetáculo dos gladiadores
17
P. 56
18
Idem.
19
AGOSTINHO, in Mimesis, p. 58.
20
AGOSTINHO, P. 58
8
“levou consigo dali a loucura que o estimularia a voltar: não só com os outros, que o
tinham arrastado, mas antes deles e trazendo outros consigo”. Uma reviravolta
tipicamente cristã, onde o indivíduo se mostra impotente para lutar por si mesmo
contra forças externas e necessita reconhecer essa impotência perante Deus, que
então virá em seu auxílio. Como Auerbach explica 21
21
P. 59
22
P. 59
23
Idem.
24
P. 60
9
Agostinho emprega o estilo do período clássico e as suas
figuras de dicção [...], mas não se deixa dominar por ele. O
impulsivo, o penetrante da sua essência exclui uma
acomodação no processo comparativamente frio, sensato,
que ordena as coisas de cima, própria do estilo clássico e,
especialmente, do estilo romano25
25
Idem.
26
P. 61
27
P. 62
10
Assim, o método de figuração conecta e relaciona elementos distantes no
espaço-tempo, mas que somente ganham pleno significado histórico quando
sintetizados por um terceiro elemento, o intelecto espiritual. Atividade sintética que,
por sua, só é possível de se realizar com a providência divina, já que a quebra de uma
linearidade temporal torna irracionalizável a relação figural estabelecida entre
acontecimentos. “O agora e aqui não é mais elo de um corrente terrena”, como explica
Auerbach, “mas é, simultaneamente, algo que sempre foi e algo se consumará no
futuro”28. O aqui e agora, isto é, a realidade contemporânea, não era a preocupação
principal dos Pais da Igreja – com exceção de Santo Agostinho – que se valeram da
interpretação figural principalmente na atividade exegética das Escrituras e na
adequação da história romana à visão judaico-cristã; já na Idade Média, entretanto, o
método de figuração torna-se amplamente popular.
Cabe por fim mencionar que o estilo de Santo Agostinho muitas vezes deixa
entrever, através da tensão criada entre sua retórica de herança clássica e o latim
vulgar da Bíblia, a síntese que a literatura cristã efetuou entre os estilos baixo e
elevado. Sem essa síntese, o cerne da doutrina cristã, a Encarnação e a Paixão de
Cristo, seria contado de outro modo, ou, quem sabe, teria um conteúdo diferente.
Pois, como Auerbach aponta, narrar com uma linguagem popular a crucificação de um
homem sem nenhum status social, que passou a maior parte de sua vida em
companhia de pessoas tanto ou mais insignificantes, dando a essa narrativa peso e
profundidade sem precendentes, só foi possível quando o cotidiano passou a ser visto
de outra perspectiva. Uma perspectiva capaz de retratar o banal em toda sua
seriedade, problematicidade e dramaticidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
28
P. 63
11
WAIZBORT, Leopoldo. Erich Auerbach e a condição humana; in O Pensamento Alemão
no Século XX – Volume 2. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
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