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UM AMIGO DA
HUMANIDADE

Autor
WILLIAM VOLTZ

Tradução
S. PEREIRA MAGALHÃES

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Os que foram desterrados chegam e o solitário do
planeta Ufgar não tem tempo nem para morrer.

Desde os dias gloriosos da Terceira Potência, Perry Rhodan e


seus seguidores tiveram uma longa e dura caminhada. Com o
inestimável auxílio da supertécnica dos arcônidas, assimilada em
tempo recorde, os terranos abriram ainda mais os caminhos para o
espaço — não obstante incompreensões e reveses internos e externos.
Mesmo nas piores situações, os homens de Rhodan não conheceram
as palavras “resignação” e “desistência”. Pelo contrário. A principal
característica desta nova mentalidade era procurar novos caminhos
para obtenção da vitória. E assim sendo, não apenas conseguiram
criar e conservar, mas também ampliar o Império Solar.
Mas, não é um desdouro para os terranos repetir que a
cooperação de estranhos lhes foi de suma valia.
Um dos cooperadores do espantoso progresso da Humanidade
foi Crest, o arcônida que fez da Terra sua nova pátria. Nas muitas
dezenas de anos em que se entregou de corpo e alma à luta pelos
ideais da Humanidade, jamais quis que seu nome sobressaísse... Sua
norma era trabalhar em silêncio e fazer com que sua grande
experiência fosse útil aos homens.
Naquele momento, início do ano 2.045, Crest já se sentia
cansado. Queria terminar seus derradeiros dias em paz, em
meditação. E Perry Rhodan satisfez sua vontade. No entanto Crest
não conseguiu a paz tão almejada, e assim não continuaria sendo “o
amigo dos homens”, como prometera ser.

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Crest — Um verdadeiro amigo dos terranos.
Golath, Liszog, Zerft — Degredados do planeta Unitro.
Perry Rhodan — Que perde mais um amigo.
Reginald Bell — Vice-administrador do Império Solar.
Tenente Davis Bowler — Que recebe a última mensagem de Crest.
PREFÁCIO

O homem chegou ao fim da Avenida Orion. Luxuosa artéria de muitos


quilômetros, que desemboca numa verdejante campina, salpicada de arbustos
e flores. Admirado, olhou para trás, pois ainda há poucos minutos,
encontrava-se preso no denso trânsito da grande cidade, à sombra de seus
supermodernos edifícios.
Terrânia, centro nevrálgico do Império Solar, é uma metrópole cheia de
contrastes. A quem procura repouso, ela oferece também a tranqüilidade e o
encanto de parques maravilhosos e instalações apropriadas para a
descontração do espírito.
O homem caminha agora à beira do prado. Mais para frente, à sombra
de três árvores, há um monumento inaugurado recentemente. Não é grande.
Uma pessoa apressada passaria por ali sem percebê-lo. Mas o homem se
detêm para olhá-lo. Sobre um pedestal talhado em pedra bruta,
aparentemente granito comum, ergueu-se uma figura humana, esculpida pela
mão abençoada de um artista. Um raio de sol, filtrado entre a folhagem da
árvore, destaca o rosto da figura.
O homem, espontaneamente, dá um passo para trás. Tem-se mesmo a
impressão de que a figura está viva. Representa um homem esbelto e de boa
estatura, cujo corpo visivelmente envelhecido está envolto num grande
manto. O braço direito está estendido, como num gesto de proteção.
O homem, de pé diante da estátua, esboça um sorriso, o sorriso triste da
saudade. O semblante de pedra expressa a franqueza e a inteligência, ornadas
por um suave sorriso nos seus traços rígidos.
No pedestal estão gravadas quatro palavras simples, nenhum nome nem
data. O desconhecido as lê silabando e depois as repete baixinho:
— UM AMIGO DOS HOMENS.
Apenas este modesto título. Nenhum relato dos feitos ou qualquer dado
de fácil identificação.
Mas todos sabem o que aquele homem fez pela Terra e todos sabem em
homenagem a quem é aquele monumento. O silencioso visitante, depois de
muitos segundos de meditação, vira-se e segue caminhando através do prado.
Um caminhão passa. Mas ele nem o olha. Seus pensamentos ainda estão
presos na estátua. Pensamentos de gratidão. Seus lábios pronunciam o nome
do homem esculturado, como que para deixá-lo indelével na memória.
— Crest!
1

Os sapatos de Rhodan deixaram fundas pegadas na areia úmida. Um vento brando


agitava a superfície do lago, formando espuma nas ondas miúdas. Conchas e pedras de
muitas cores davam vida à areia da praia.
Perpendicular e acima de Perry Rhodan, no ponto mais alto de uma ladeira,
repousava a poderosa espaçonave Solar System, sustentada por seus apoios telescópicos.
O pesado cruzador da classe Terra tinha um diâmetro de duzentos metros.
Mesmo para o Administrador do Império Solar, acostumado com a visão diária
destas naves, o cruzador visto desta posição parecia um monstro da pré-história, pairando
ameaçador lá no alto. Rhodan ficou parado, respirando profundamente o ar puro. A
escotilha da grande nave abrira-se naquele momento. Aos poucos foi surgindo um
guindaste de lança. Via-se nitidamente a figura rígida do Tenente Chad Tuncher, que
comandava a operação.
Pela primeira vez, Rhodan olhou para o homem que estava bem próximo a ele.
— Onde quer que a casa seja construída, Crest? — perguntou Rhodan.
Devia haver um tom especial em sua voz, pois o velho arcônida caminhou de
encontro ao administrador, para lhe colocar a mão sobre o ombro.
— É contra sua convicção construir esta morada para eu terminar os poucos dias de
vida que me restam, não é verdade, Perry?
— É contra minha convicção deixar um amigo sozinho — respondeu Rhodan
calmamente.
No seu rosto não se notava nada do que lhe ia na alma. Mas um observador mais
atento do que Crest teria reparado que os punhos de Rhodan estavam cerrados e bem
comprimidos.
— Sei muito bem o que a palavra amigo significa para você — disse Crest.
Sua voz tinha um timbre claro, fazendo esquecer seu corpo alquebrado pela velhice.
Ninguém se iludia sobre os poucos dias de vida que restavam ao grande arcônida. Crest e
Thora, a falecida esposa de Rhodan, não conseguiram o privilégio da ducha celular do
planeta Peregrino, ducha esta que mantinha por sessenta anos a disposição física e mental
de uma pessoa.
Apesar do elevado grau de perfeição da Medicina arcônida, capaz de prolongar a
vida, não se podia esperar por um milagre no campo biológico. Crest, suficientemente
inteligente e sensato para compreender o alcance das coisas, sentia que a morte estava
próxima. Foi por isso que procurou Rhodan, pedindo que o deixassem neste planeta.
Havia se afastado demais de Árcon, sua pátria verdadeira para poder sentir agora
qualquer saudade de lá. Por outro lado, não queria também morrer na Terra.
Num cúmulo de ironia, dissera mesmo a Perry Rhodan que não desejava morrer
deitado numa cama, rodeado pelas manifestações de pesar dos “selvagens” — nome com
que os arcônidas se referiam aos habitantes da Terra.
O velho arcônida fizera a Rhodan referência a um pequeno sistema solar, até então
desconhecido dos terranos, distante 6.381 anos-luz da Terra. O sol amarelo tinha cinco
planetas e fora descoberto já há muitos milênios pelo arcônida Ufgar, de quem recebera o
nome. O segundo destes planetas era um mundo com boa camada de oxigênio, de água
cristalina, um pouco maior do que Marte. A gravitação nele chegava a 0,84 gravos.
Florestas virgens e mares cobriam todo o planeta. Não possuía, porém, seres inteligentes.
Exatamente este mundo fora escolhido por Crest, para encerrar sua longa vida.
Rhodan não tinha como impedir o pedido final do grande cientista arcônida e partiu com
ele da Terra, na espaçonave Solar System.
Estavam agora no tal planeta, procurando um bom lugar para Crest.
— Cuidado aí embaixo! — gritou o Tenente Tuncher.
Mas, no mesmo instante, percebeu que quem estava lá embaixo, impedindo a
manobra de seu guindaste de descarga, era Rhodan.
— Desculpe, sir! — disse o tenente, acabrunhado.
Depois a lança do guindaste foi surgindo pela escotilha. Tuncher abanou com os
braços, quando a pequena casa começou a balançar no gancho.
— Vocês querem chegar lá embaixo com uma casa ou com escombros de uma casa?
— gritou ele um pouco nervoso.
Assustados, alguns homens apareceram à borda da escotilha para acompanharem o
resultado da manobra.
— É neste lugar mesmo, sir?
— Sim — confirmou Rhodan. — Podem deixar descer devagar.
Pendendo livremente num cabo de aço, a casa — pré-fabricada e já montada —
desceu lentamente para a margem do lago. Tuncher seguia os movimentos da casa com
ameaças e imprecações. Entretanto não houve acidentes.
— Qual é sua impressão? — perguntou Rhodan.
— Talvez confortável demais — disse Crest sorrindo. — Acho que vocês
capricharam em tudo.
Rhodan respondeu meio triste:
— Uma casinhola desta não é nada em vista do que você fez pelo nosso povo.
— Tudo que fiz, foi com prazer e espontaneamente.
Os olhos avermelhados de Crest pareciam ter um brilho diferente.
— Foi-me um raro privilégio poder cooperar para o desenvolvimento de uma grande
raça. Os homens sempre foram para mim como crianças, que a gente tem de proteger e
orientar. Mas isto já passou. A Humanidade já ultrapassou a fase do jardim de infância e
agora já discute de igual para igual com os mais velhos. Posso afirmar que esta raça tem
diante de si um grande futuro, se continuar com as mesmas boas diretrizes. E meu maior
desejo é que sempre haja homens como você, Perry.
— Vamos agora dar uma olhada em seu novo lar — disse Rhodan se esquivando do
elogio. — Já lhe disse que você vai ter aqui um moderno Space-Jet com supertração e
com hiper-rádio. Terá sempre e a qualquer momento a possibilidade de voltar à Terra, ou
chamar por auxílio. Por aqui não encontrará nenhum médico para ajudá-lo... De qualquer
maneira, vou lhe deixar também dois robôs de combate. É muito remota a possibilidade
de aparecerem neste planeta seres inteligentes estranhos, mas temos que estar prevenidos.
Num caso destes, você deve impedir que o Space-Jet lhes caia nas mãos, pois neste
pequeno aparelho estão montadas instalações eletrônicas e um novo tipo de motor de
tração, cujo segredo é vital para o Império Solar. Portanto, não deve passar para as mãos
de potências estranhas a nós.
— Eu lhe prometo que vou tratar do disco voador como se fosse a menina dos meus
olhos — disse Crest. — Não se preocupe quanto a isso.
Juntos, penetraram na nova moradia. Crest caminhava um pouco recurvado e
respirava com dificuldade. O semblante estava todo vincado de rugas. Mesmo o alto da
testa não fora poupado dos sinais da idade avançada. Os cabelos longos e brancos do
arcônida caíam-lhe pelos ombros. Não obstante o peso da idade, era ainda uma figura
impressionante.
A porta da entrada principal se abriu automaticamente, quando pisaram na soleira.
Sorrindo, Rhodan fez um gesto para que Crest entrasse primeiro. Dentro da casa, a
temperatura era agradável.
— Aqui vou ficar sentado olhando para o grande lago — disse Crest,
encaminhando-se para a janela. — Meus olhos ficarão por aqui, mas meus pensamentos
estarão em outro lugar.
— Será que existe algo que você ainda não tenha pensado, Crest?
O velho arcônida apoiou os braços no peitoril da janela. Embora os vidros das
janelas fossem anti-reflexo, Rhodan teve a impressão de ver seu rosto no vidro.
— Sou um homem velho — disse Crest. — A idade faz as coisas parecerem muito
diferentes. A gente se afasta um pouco de tudo que nos cerca.
— Você vai se sentir muito sozinho — tentou Rhodan novamente dissuadir seu
amigo. — Os robôs vão ajudá-lo em tudo. Prepararão suas refeições e vigiarão a casa.
Mas, quem sabe lhe virá a vontade de conversar um pouco com um outro homem.
Crest se virou e fitou Rhodan diretamente.
— Vou ter prazer em ficar sozinho — disse pausadamente. — Você continua a ver
em mim o cientista arcônida sempre em atividade.
Meneou a cabeça e seus longos cabelos formaram ondas sobre os ombros.
— Mas agora, olhe para mim apenas como realmente sou: um homem velho e
alquebrado.
Antes que Rhodan pudesse responder, o Tenente Tuncher surgiu. Seu rosto estava
vermelho.
— Perdão, sir! — disse o tenente, ofegante. — Estes rapazes incompetentes
colocaram a casa fora do lugar. Está um pouco inclinada.
— Inclinada? — repetiu Crest, admirado. — Sabe que não notei nada até agora?
— Acabei de medir neste instante — avisou Tuncher prontamente. — O soalho em
que estamos pisando apresenta a inclinação de um grau, em relação com o solo da praia.
— Um grau? — Rhodan estava admirado. — Realmente, é muito, tenente.
Nervoso, Tuncher moveu os lábios e olhou incerto para Rhodan.
— Qual é sua opinião, sir?
— Descarregue o Space-Jet e os dois robôs — ordenou Rhodan.
Tuncher tomou posição de sentido e já ia sair, quando a voz do administrador fez-se
ouvir.
— Tuncher!
— Pronto, sir.
— Preste atenção para que o disco seja descarregado corretamente. Não gostaria que
você depois descobrisse outro engano.
— Perfeitamente, sir — disse Tuncher nervoso.
Crest riu à vontade. O tenente desapareceu.
— Se, pelo cúmulo do azar, um besouro de chifre lhe cruzar o caminho, o pobre do
Tuncher vai ficar mais confuso ainda.
Ao ouvir a referência ao besouro, a testa de Rhodan se franziu em duas rugas
verticais.
— Este tipo de inseto parece ser muito perigoso. Seja muito cauteloso,
principalmente quando estiver passeando nas florestas.
— Naturalmente — disse o arcônida. — Vou prestar atenção a isto. Ufgar, no
relatório sobre o planeta por ele descoberto, descreve longamente as espécies de animais
que aqui existem, destacando os mais perigosos.
O homem alto e esbelto, de rosto quase magro, olhou demoradamente para seu
amigo.
— Vamos registrar este planeta em nossos mapas siderais com o nome de planeta
Crest.
E antes que o arcônida tivesse tempo de protestar, continuou falando:
— O Space-Jet que lhe deixamos está protegido por um envoltório energético.
Quando você quiser entrar na mini-espaçonave, terá de usar o código do transmissor, que
desliga o envoltório de proteção.
Com a maior naturalidade, Crest afirmou:
— Para um homem da minha idade, não se pode mais falar em risco, perigo e
proteção.
— Não é verdade — disse Rhodan. — Tuncher ainda vai descarregar um barco a
motor, para você passear e pescar no lago. E se você tiver qualquer desejo, por favor, não
tenha vergonha de expor.
Ambos deixaram a casa. Tuncher e seus auxiliares continuavam na operação de
descer o jato, com toda garantia. A pequena nave, em forma de disco, estava entre as
mais modernas da Frota Solar. No seu lado mais largo, media 35 metros. Uma cúpula
interrompia os dois lados quase planos. Abrigava facilmente todo o precioso
equipamento, como também oferecia bastante espaço para a tripulação. Sua construção
era tão bem idealizada, que permitia a pilotagem por uma só pessoa.
O próprio Crest, que conhecia de perto as maravilhas aeronáuticas do Império
Arcônida, não conseguiu ocultar sua admiração. Depois que a máquina pousou firme no
chão do planeta, Crest sorriu feliz.
— Mais uma prova evidente de que vocês não precisam mais de mim — disse ele.
— Homens que são capazes de construir estas coisas, já estão em condições de total
independência técnica. Perry, seu povo conseguiu muito, em tempo relativamente curto.
Considere-me o símbolo de uma época que termina. Forças novas vão tomar meu lugar e
não precisarão mais de auxílio de ninguém. Haverão de me esquecer em breve.
— A Humanidade jamais haverá de esquecê-lo, Crest. O seu afastamento vai deixar
uma lacuna que não se preencherá tão cedo. Neste sentido, você tem razão quando fala do
fim de uma época.
Nas horas seguintes, enquanto a tripulação da Solar System arranjava tudo para
fazer da residência de Crest uma moradia requintada, Rhodan passeava com o amigo na
beira do lago. Tornaram a reviver coisas já esquecidas há muito tempo. Por fim, Rhodan
tentou mais uma vez demover Crest de sua vida solitária naquele distante planeta. Mas a
resolução do arcônida era inabalável.
Finalmente apareceu o Tenente Tuncher para avisar que todos os trabalhos já
haviam sido concluídos. A Solar System estava pronta para retornar ao espaço.
— A tripulação vai se despedir de você, Crest — disse ele.
Achavam-se todos a mais ou menos uns seiscentos metros da grande nave. Crest fez
um leve movimento com a cabeça.
— Cumprimente os homens em meu nome. Meus melhores votos para eles.
Rhodan estava em frente ao velho arcônida. Sua mão segurou o braço do arcônida.
E Crest, conhecedor profundo da alma de Rhodan, sabia que o terrano não acharia
palavras para se despedir.
— Não diga nada, amigo!
Perry pegou a mão do velho companheiro de lutas. Olharam-se fixamente por alguns
instantes. As mãos se apertavam cada vez mais.
— Obrigado, amigo! — disse Rhodan, afastando-se no mesmo instante, caminhando
atrás do Tenente Tuncher.
Crest continuou imóvel, olhando para eles. Rhodan e Tuncher subiram a rampa.
Nenhum deles se virou para trás. Próximos da Solar System, os homens pareciam
formigas. A seguir, todos desapareceram.
Minutos depois, ergueu-se no ar a grande nave esférica, impulsionada por
gigantescas turbinas, movidas por energia atômica. O chão começou a tremer e os
ouvidos de Crest sentiram uma dor aguda.
A dois mil metros de altura, houve uma última homenagem ao encanecido e
devotado defensor da causa humana. Um raio luminoso saiu das torres de artilharia,
dando ao céu uma coloração avermelhada. Foi a última saudação ao grande amigo dos
homens.
— Famal Gosner — sussurrou Crest.
Era uma saudação arcônida, mais ou menos equivalente a “adeus, amigos”.
Logo depois, a Solar System desapareceu.
Em passos vagarosos, Crest retornou à sua nova casa. Não tinha pressa. Para quê?
Era apenas um ancião esperando pela morte.
Jamais poderia imaginar que sua solidão seria logo interrompida.
2

A preocupação de Golath era mais do que justificada. A instalação de purificação do


ar estava em péssimo estado. Embora houvesse a bordo da Kaszill alguns tanques de
oxigênio, nem Golath, nem Liszog, nem Zerft sabiam onde se localizavam.
A Kaszill já era um montão de escombros, quando a pegaram e a mandaram para o
espaço. Para Golath era algo muito difícil de se compreender por que razão aquele “baú
velho”, caindo aos pedaços, rangendo o tempo todo, carregando injustamente o pomposo
nome de espaçonave, ainda não havia rebentado de todo. O pobre do Zerft não parava de
calafetar os buracos que surgiam a todo momento.
A única coisa que funcionava a contento a bordo daquela nave era a máquina
automática de lavar as trombas. Assim, os três unitros podiam lavar suas trombas em
espaços de tempo normais. Depois de tal ação, mesmo o ar estragado parecia mais
suportável para Golath.
Liszog, sentado diante dos instrumentos de rastreamento, até então pensativo,
esticou sua tromba e sussurrou alguma coisa para Golath:
— Está na hora do revezamento.
Golath, que se sentia como o comandante, não gostou muito da idéia. Além de tudo,
estava convencido de que teriam de ficar ainda centenas de anos sentados diante dos
instrumentos, olhando inutilmente. Aliás, seria mesmo impossível que até lá ainda
estivessem vivos. Sem falar na velha Kaszill, cujo “tempo de vida” já devia ter acabado
há muito.
Os três unitros eram mais ou menos do tamanho de um ser humano. De corpos
brutos e pesadões. Além dos braços e das pernas, dispunham também de uma tromba,
pouco mais longa que um braço, servindo-lhes tanto de instrumento de defesa como para
lhes facilitar a alimentação. As cabeças eram semi-esféricas, com dois grandes olhos.
Tinham bastante dificuldade em se locomover. Seus corpos eram recobertos por uma pele
lisa e dura, de um marrom-claro.
Depois que Golath tomou o lugar de Liszog, este último sentou-se ao lado do
aparelho de lavar as trombas. Zerft, que depois de vedar o último rombo na fuselagem do
“escombro flutuante”, não se mexia mais, levantou-se pesadamente. Veio para trás de
Golath e ficou olhando os instrumentos por cima dos ombros do amigo.
— Você acha que vê mais do que eu? — perguntou Golath.
Zerft não respondeu no momento. Depois disse tranqüilamente:
— Acho que vejo a mesma coisa que você, isto é, nada!
Liszog, cuja tromba estava ocupada por uma das mãos, no contínuo afã de conservá-
la limpa, tinha por isso dificuldade em ser compreendido quando disse:
— Temos de nos acostumar com a idéia de que não podemos mais voltar para
Unitro, nossa terra. É-nos totalmente impossível realizar uma ação heróica, para nos
reabilitarmos, dispondo apenas desta nave que pode cair a qualquer momento. Temos que
arranjar um plano melhor. Acho que é melhor a gente se aproximar de um planeta e
procurar um lugar para aterrissagem. Ainda é tempo para isto.
— Liszog tem razão — concordou Zerft. — Em toda a nossa história não há
nenhum caso de um expatriado que tenha cumprido as condições, para poder ser admitido
de volta. Mesmo que encontremos uma espaçonave de alguma raça desconhecida, como
haveremos de tomá-la?
Golath estirou o braço por cima da tela panorâmica.
— Então vocês querem desistir? — perguntou ele.
— Sim — disse Zerft com firmeza. — Imediatamente.
Liszog acudiu também com o seu “sim” mudo.
Golath apontou para uma outra tela, onde se podiam ver vários pontos luminosos.
— Este é o próximo sistema solar — disse ele. — Lá poderemos tentar alguma
coisa.
— Tomara que encontremos um mundo onde haja oxigênio — interveio Zerft —
pois a maioria são planetas onde não podemos viver.
Golath virou sua poltrona para o lado. Era o maior dos três unitros, sendo, porém,
Zerft o mais “amplo”. Liszog era o mais moço e estava ainda na fase de crescimento.
— Que tipo de vida será esta? — perguntou Golath com o semblante carregado.
— Vamos vegetar por aí, passando fome e frio. Os juízes que nos condenaram
sabem perfeitamente que todo unitro sente uma necessidade congênita de vida em
sociedade e de ampla comunicação. Somos membros de uma grande comunidade. Este
isolamento é pior do que a morte.
Liszog terminara a limpeza. Levantou-se e se aproximou dos dois colegas.
— Isso você devia ter ponderado antes, Golath. Agora é tarde. Foi você quem nos
arrastou para esta loucura. Eu sabia desde o início que seria uma temeridade tentar um
roubo daquele...
Golath atirou sua tromba contra o peito de Liszog. O jovem cambaleou.
— O plano estava perfeito, ouviu? Mas como é que eu poderia suspeitar que atrás
do depósito havia um alarme eletrônico, para nos denunciar? — disse Golath.
O tom de voz de Liszog aumentou com sua irritação:
— Colocaram-nos neste cacareco e nos expulsaram. Agora, só poderemos voltar
para nossa terra se, durante nosso degredo, executarmos uma ação que seja útil a todo o
nosso povo. Sua idéia de seqüestrarmos uma espaçonave é tão doida como seu plano de
assalto ao depósito.
A velha Kaszill tentou também fazer uma das suas. Um estremeção muito forte
percorreu toda a nave, interrompendo a discussão. Golath rolou da poltrona, enquanto
Zerft teve que se apoiar firme na moldura do aparelho de rastreamento.
Depois que tudo terminou, ouviu-se a voz de Zerft:
— Foi o último sinal de alarme. Golath deu um galeio com a poltrona e voltou para
seu lugar em frente aos aparelhos de rastreamento, evitando olhar diretamente para
Liszog.
— Está certo — resolveu ele — vamos sobrevoar este planeta, ou melhor, todo o
sistema, e ver o que podemos fazer. Quem sabe descobrimos alguma coisa que nos seja
útil.
Como que para confirmar suas palavras, tremulou um risco vermelho no vidro fosco
da tela. Liszog, que estava para fazer um comentário irônico, emudeceu. Zerft bateu com
os pés no chão, fazendo grande barulho. Em algum lugar da velha nave, soou um
estrondo metálico que fez os unitros suarem por todos os poros.
Com voz sumida, como que com medo de que a nave se partisse ao meio se falasse
mais alto, Golath explicou:
— Acabamos de receber uma descarga energética superdimensional.
Nervoso, Liszog enrolou sua tromba. Zerft passou a mão ao longo da tela, como que
para evitar a repetição do estrondo.
— Que será que foi isto? — perguntou curioso.
Num caso destes, todos dependiam de Golath. Era o único dos degredados que
possuía certos conhecimentos técnicos, para conseguir alguma coisa com os instrumentos
de bordo.
— Uma instabilidade no contínuo espaço-tempo? — indagou Liszog.
Golath deu uma gargalhada. Levantou-se, dirigindo-se para a máquina de calcular.
Não era muito diferente dos cérebros eletrônicos terranos, destas mesmas dimensões.
O unitro programou o computador com diversos dados. Depois, ficou esperando o
resultado, que não demorou. Uma estreita tira metálica, com muitas perfurações, caiu-lhe
na mão. Mais uma gargalhada estrondosa.
— O que quer dizer isso? — perguntou Liszog impaciente.
Num ar de displicente superioridade, Golath jogou fora a tira do computador. Estava
gozando aqueles momentos. Os dois trouxas deviam entender o que ele valia. Estava
mais do que convencido de que, sem ele, os pobres coitados não poderiam fazer nada.
Esperou até ver a tromba de Zerft se levantar, denotando medo.
— Foi uma espaçonave — acentuou ele.
— E onde está ela agora? — perguntou Liszog assustado.
— E qual é seu tamanho? — indagou
Zerft, tentando esconder o medo que o devorava.
Por um momento, havia em Golath uma luta contra a sua vaidade, depois decidiu
dizer a verdade:
— Não sei mesmo. Localizamos a nave estranha durante uma transição. Temos a
sorte de possuirmos nesta velha carcaça, que se chama Kaszill, instrumentos que nos
permitem notar qualquer alteração no espaço. Em outras palavras, nós não localizamos
diretamente a nave estranha, mas tão-somente uma alteração estrutural no espaço. Mas
não podemos de forma alguma determinar o destino ou o tamanho da citada espaçonave.
— Quer dizer então que não precisamos nos preocupar — disse Liszog
decepcionado. — E também não podemos fazer nada com nossa descoberta, não é?
— Não é assim não — disse Golath. — Sei exatamente em que ponto do espaço
essa nave fez uma transição.
Zerft, apontando para o vidro fosco da tela, com os vários pontos luminosos, disse:
— Foi exatamente aqui.
Irritado por lhe terem roubado o efeito da explicação, Golath acrescentou
asperamente:
— Isso mesmo, a tal nave se encontrava, no momento do hipersalto, nas
proximidades do sistema que nós tencionamos atingir.
— Provavelmente era uma nave arcônida — disse Liszog irônico.
— Pertencendo a uma de suas colônias, em plena insurreição, é claro que os
arcônidas não nos podem receber de braços abertos.
— É uma coisa que ainda não podemos saber.
— Arcônidas! — murmurou Zerft.
Na sua voz vibrava o ódio. Seus olhos tinham um brilho diferente e os músculos
dorsais estavam retesados.
Nenhum dos três unitros podia supor que o que haviam registrado era uma nave
terrana, a Solar System.

***

Após 72 horas, tempo da Terra, a Kaszill penetrava no pequeno sistema de Ufgar. O


vôo não deixou de ser um verdadeiro pesadelo de medo e horror para os três unitros.
Quando estavam a meio do caminho, a desgraça se abateu sobre eles com toda violência.
A velha e alquebrada nave começou a largar pedaços de sua carcaça em pleno vôo. Na
parte posterior das turbinas já havia um enorme rombo. Zerft, o tapador de buracos, não
tinha mais meios de calafetá-lo. Na última hora, Liszog ainda conseguiu isolar a parte
afetada pelo rombo. A vida dos degredados estava literalmente por um fio, e este fio
estava representado por uma espaçonave, que, com exceção de alguns instrumentos de
bordo ainda em bom funcionamento, era pouco mais do que um aglomerado de ferro
velho.
Mas o destino ainda quis permitir que os três unitros expulsos de sua terra
atingissem seu objetivo. Liszog estava crente que a qualquer momento o aparelho fosse
se desintegrar no espaço. Porém a euforia de Golath, que se sentia um grande piloto,
levou-lhe o pessimismo.
— O segundo planeta é um mundo com oxigênio — explicava Golath, após amplas
investigações. — Vamos aterrissar nele.
Reparou no olhar incerto de Liszog.
— Vamos aterrissar — repetiu — mesmo que esta seja a última operação que eu
faça com este cacareco flutuante.
Estava bem certo do alcance de suas palavras, pois sabia muito bem que a palavra
“aterrissar” podia ser sinônimo de suicídio. Não tinha, porém, coragem de dizer
claramente o que pensava. Tinha receio de que Zerft e Liszog não lhe dessem
consentimento para descer.
O unitro também não tinha, nem podia ter, uma visão clara do que pretendia fazer.
Após uma aterrissagem mais ou menos bem-sucedida, poderiam sobrevir coisas com que
ainda não contavam. Além disso, Golath achava que não podia confiar muito no jovem
Liszog. Num momento de emergência teria que apelar mais para Zerft, embora este
último não lhe fosse muito simpático. Seria, porém, bem mais útil que o rapazola.
— Temos que apertar bastante os cinturões — ordenou ele. — Não posso me
confiar no piloto-robô. Assim que alcançarmos o chão firme, abandonaremos
imediatamente a Kaszill, pois não está excluído o perigo de uma explosão.
Nas horas que se seguiram, Golath dirigia com extremo cuidado. Poupava a
decrépita nave o mais que podia. Zerft estava diante dos aparelhos de rastreamento,
enquanto Liszog corria sem parar de um lado para outro.
— De que lado vamos descer? — perguntou Zerft. — Eu sugiro o lado da noite.
— Vamos fazer um barulhão tão grande na aterrissagem que é completamente
indiferente e lugar de nossa descida — explicou Golath. — Se este planeta estiver
ocupado por arcônidas, seremos localizados logo, logo. Quanto a isto, nada podemos
fazer...
O sensor energético da Kaszill resolveu o problema. Depois que entrou em ação o
campo gravitacional do planeta, o sensível instrumento declinou para o lado. Zerft, que
registrou o tremular do ponteiro, não sabendo o que isto significava, chamou por Golath.
— Há alguma coisa aqui embaixo — comentou o alto unitro.
— O quê? — queria saber logo Liszog, cujo nervosismo crescia sempre mais.
Golath agitava a tromba, sem saber o que dizer, mas não tirava os olhos do
instrumento.
— O desvio do ponteiro não é tão forte assim — disse ele. — É possível que neste
planeta haja uma estação energética. Pode ser até um transmissor direcional. Vamos
constatar de onde vêm os impulsos.
— Por quê? — veio logo a pergunta de Liszog.
— Muito simples — respondeu Golath — porque é lá que queremos descer.
Liszog olhou para ele desencantado. Pigarreou e se virou para Zerft, como que
pedindo socorro:
— Quer dizer que vamos cair diretamente nas mãos dos donos desta estação
energética? Eles vão nos destruir, antes de atingirmos o solo.
Via-se no rosto de Golath que as contínuas choramingas do jovem desterrado Liszog
lhe eram muito incômodas. Sua voz tinha um tom leve, mas perceptível, de escárnio,
quando respondeu:
— É o risco que temos de enfrentar. Se lá embaixo houver arcônidas, eles acabarão
nos descobrindo, seja onde for que descermos. Não podemos, pois, perder a vantagem da
surpresa. Caso se trate de uma estação controlada por robôs, então será uma loucura nos
arriscarmos a uma caminhada penosa através da mata virgem, geralmente muito perigosa.
Zerft decidiu a discussão de um modo mais simples. Por cima de seus ombros, seus
dois colegas viram como sua tromba apontava para o ponteiro oscilante.
— Lá — disse ele.
— Segurem-se — gritou Golath.
Sua voz estava perpassada de medo e sua tromba, agora toda enrolada, parecia doer
muito. Seu corpo pesado estava bem amarrado pelos cinturões presos na poltrona
estofada. Liszog, ao lado dele, tremia todo. Estava de olhos fechados e as mãos agarradas
no cinturão. Somente Zerft era quem se achava mais calmo. Dava a impressão de estar
ocupado na rotina de limpar a tromba.
Golath acionou os freios. Sob grandes solavancos, a Kaszill penetrou nas camadas
superiores da atmosfera do planeta. A fuselagem da nave trepidava sob a forte pressão.
Soldas se desfaziam, arrebites saltavam dos orifícios, tiras metálicas caíam no chão.
Mas a Kaszill ainda estava agüentando!
Os três unitros permaneciam entocados nas poltronas, meramente passivos. Só as
mãos firmes de Golath mantinham a direção. Às vezes, tinha a impressão de que a nave
não reagia mais. Num ângulo plano, quase tangencial com a superfície do planeta, Golath
conduzia a Kaszill. Quando pensou que podia respirar um pouco, falhou um dos
conjuntos de propulsão. A nave era levada de um lado para outro e, zunindo, descrevia
um parafuso quase horizontal. Gemendo com a pressão que, de repente, aumentara muito,
Golath tentou fazer a nave voltar ao equilíbrio. Zerft saiu um pouco de seu estado de
letargia e olhou preocupado para o piloto. Na tela panorâmica, bem acima das cabeças
dos unitros, desfilavam nuvens claras. Liszog gemia baixinho.
Golath se decidiu por uma manobra um tanto perigosa. Durante alguns segundos
desligou todos os motores de propulsão. A Kaszill ainda continuou deslizando. Quando
começou a trepidar, Golath ligou os três motores traseiros ainda intactos. Com a brusca
aceleração, a nave disparou rumo ao solo, ainda distante. Depois tentou movimentar os
freios. A Kaszill empinou a parte dianteira.
“É agora que ela vai rebentar”, pensava Golath desesperado.
Fechou os olhos. Quando os abriu, segundos depois, a Kaszill ainda existia. Porém
já era um pedaço de metal incandescente em louca disparada.
Golath soltou um grito estridente, ao olhar para o altímetro. O que viu, lhe fez brotar
suor no rosto. A apenas quatro mil metros acima do solo, a Kaszill mantinha uma
velocidade tal que invariavelmente iria despedaçar-se no ar. Restava uma única
alternativa a Golath: tentar ganhar altura. Não tinha mais meios de controlar se já
estavam no local planejado para descer ou não. A nave se contorcia com ruídos de pôr
medo. Golath não se sentia bem. Suas mãos tremiam nos movimentos que fazia. A
contragosto, a velha nave começou a obedecer. O unitro conseguiu levá-la até cinco mil
metros.
— Quanto tempo vai demorar ainda? — perguntou Zerft, com uma calma, como se
estivesse no Kallasto Hotel de Unitro esperando por um drinque.
Golath não respondeu. Aos poucos, a velocidade da nave foi declinando. O piloto
sabia que iria conseguir mantê-la naquela altura. Tinha que cuidar da aterrissagem. Com
uma única chave, ligou as três outras telas. Apenas nuvens apareceram.
Depois de algum tempo, surgiram pontos mais escuros, provavelmente grandes
florestas. Um risco azulado, que logo desapareceu, dava a impressão de um lago. Tentou
voar em espiral. As nuvens desapareceram da tela, como se a mão de um gigante as
tivesse removido. O chão lá embaixo era uma massa marrom-escura. De repente, tudo
virou silêncio.
— É agora! — disse simplesmente.
Então tudo desapareceu num raio de fumaça, poeira, chamas e terra revolvida.

***

A primeira coisa foi a perplexidade sobre o fato de estar ainda vivo. A segunda foi
uma sensação desagradável de ter muita sujeira na tromba.
Depois, Golath abriu os olhos.
Sobre seu peito estavam pedaços de tela. Poeira e sujeira. Só então lembrou-se dos
colegas. Zerft estava de pernas abertas diante dos instrumentos de rastreamento,
aparentemente tentando saber quais deles ainda funcionavam. Aborrecido com o fato de
que ninguém se preocupava com ele, Golath desatou os cinturões que o prendiam à
poltrona. Foi então que viu Liszog. O jovem estava sob a máquina de lavar trombas,
aparentemente intacta.
— Você está aí? — disse Zerft indiferente, quando Golath apareceu a seu lado,
também examinando os aparelhos. Olhou para ele zangado.
Seu ombro direito estava doendo muito e sentia na tromba uma dor penetrante.
Impaciente, olhou mais uma vez para Liszog, mas não disse nada, pois a limpeza da
tromba era uma espécie de ritual, que não podia ser interrompido. Não havia nenhum
unitro capaz de quebrar este tabu.
Só depois é que lhe dirigiu a palavra:
— As coisas não parecem tão ruins assim. A maioria dos aparelhos estão
funcionando. No entanto, temos que abandonar a Kaszill. Ainda persiste o perigo de uma
explosão.
Zerft deu uma gargalhada. Tinha os braços cruzados no peito, e a tromba pendente
entre eles.
— Você pode sair quando quiser — disse ele.
Golath, meio confuso, deu um passo para trás e perguntou:
— O que quer dizer isto?
Com a mesma calma de sempre, Zerft explicou:
— Significa que a partir deste momento, eu assumi a direção deste grupo. A Kaszill
está parcialmente destruída. Não precisamos mais de você, Golath. Já combinei tudo com
Liszog, enquanto você estava inconsciente. Ele está de pleno acordo com que eu dirija
nossos passos daqui para frente.
Os olhos de Golath cintilaram. Sentia irromper em seu interior a cólera. Somente a
grande musculatura do avantajado Zerft o impediu de atacar o colega. Aos poucos, foi se
dominando e voltou a pensar de modo frio.
— Está certo — disse com aparente indiferença. — O que você tenciona fazer?
Zerft, meio descontrolado pela vitória repentina, continuou mexendo nos aparelhos,
antes de responder.
— Vamos transformar a Kaszill em nossa base de operação. Partindo daqui,
começaremos nosso trabalho. Primeiro examinaremos a redondeza, caminhando no
sentido de onde deve estar a estação energética. Infelizmente, o rastreador está quebrado,
portanto, nossa sorte depende de uma busca intensa. Temos que nos armar, para termos o
mínimo de garantia. Neste meio tempo, já dei uma olhada em volta. Não longe daqui há
um grande lago. Acho que é melhor caminharmos um pouco ao longo dele.
Para Zerft, isto foi um longo discurso. Liszog já terminara a limpeza da tromba.
Golath, que queria tomar o lugar do mais jovem, foi afastado por Zerft.
— Acho que agora é a minha vez — disse Zerft com toda fleuma.
— E por que não? — respondeu Golath. — Vamos obedecer a esta ordem, também
para morrer.
Eram estas, exatamente, as palavras que os unitros usavam nos momentos decisivos
de uma declaração de guerra.

***

Antes de parar à beira de uma extensa floresta, a Kaszill deixou no chão um rastro
profundo de uns cem metros de comprimento. A nave se dividiu, sendo que a parte
traseira com as turbinas ficou totalmente calcinada.
Para os três desterrados, isto não significava no momento outra coisa do que um
exílio definitivo naquele planeta. Podiam se dar por felizes por ser um planeta com
oxigênio, mais ou menos de acordo com o que desejavam.
A Kaszill, isto é, o que dela sobrou, estava mais ou menos entre a floresta e o lago,
cuja margem oposta só se percebia no horizonte como um traço escuro.
Pela posição do sol, Golath calculou que devia ser pouco antes do meio-dia.
Ao saírem da Kaszill bateu-lhes na face uma brisa agradável. Golath esticou seu
corpo, de frente para o sol, e respirou profundamente. Enquanto repetia seu exercício de
respiração, lembrava-se com horror do ar viciado a bordo. Agora, com a fuselagem
partida, este ar fresco penetraria na nave, para onde haveriam de voltar. Pelo menos deste
ponto de vista, as providências tomadas até então por Zerft não eram nada ruins. Assim,
em intervalos regulares, o lavador de trombas estava-lhes sempre à disposição.
Golath estava até contente porque não se veriam obrigados a voltarem aos
primitivos costumes de seus antepassados, que limpavam as trombas usando varas com
folhas enroladas na ponta. Este modo de se proceder a higiene da tromba não tinha mais
boa aceitação na nova geração e era mesmo considerado pejorativo.
— Vamos descer para a margem do lago — a voz de Zerft interrompeu os
pensamentos de Golath. — É muito importante voltarmos antes de o dia findar.
Ajeitou a pistola de raios energéticos e fez um sinal aos dois outros. Liszog ergueu a
tromba em sinal de anuência. Golath apenas resmungou alguma coisa. E o esquisito
grupo se pôs a caminho.
Golath foi o primeiro a vencer o trecho de declive que os separava do lago. Já ia
continuando sua marcha, quando Liszog deu um grito. O jovem unitro apontava para
frente.
— Ali na frente o chão está calcinado — disse excitado.
Golath viu também a mancha escura no chão. Zerft concordou e todos começaram a
correr na direção da estranha marca.
Num círculo bem delimitado, capim, folhagem e arbustos estavam queimados e
parcialmente afundados no solo. Interessante foi o fato de que, dentro do círculo, havia
locais não atingidos pelo fogo.
— Com toda certeza, isto aqui não foi um fogo natural — ponderou Zerft.
Inclinou-se para frente e pegou do chão, com a tromba, pedaços de plantas
semicalcinadas.
— Qual é sua opinião, Golath?
Golath, cujos olhos penetrantes já haviam descoberto algo mais, respondeu
secamente:
— Foi uma nave espacial. Ainda se podem ver os sinais dos apoios telescópicos.
Provavelmente foi uma nave arcônida.
— Como é que você sabe disso? — perguntou Liszog inquieto.
— Pela disposição dos apoios telescópicos e pelo modo como as plantas foram
queimadas — explicou ele.
Queria provar ao jovem que era mais competente que Zerft para dirigir os destinos
dos três.
Zerft, de repente, gritou alguma coisa para eles. Sua voz parecia excitada, o que era
coisa rara com ele. Golath olhou para baixo e ouviu também o grito de Liszog.
— Uma casa — gritou Golath triunfante. — E também uma pequena espaçonave!
Todos olharam ao mesmo tempo para baixo.
— Parece que não há ninguém dentro — disse Liszog.
— Não é verdade! — atalhou Zerft. — Do outro lado da casa há dois robôs de
combate. Venha!
Caminharam um bom pedaço para frente.
— Daqui vocês podem ver melhor. Para Golath bastou só um olhar. Liszog ficou
olhando mais tempo, mas acabou ficando branco como giz.
— Se nos encontrarem, estaremos perdidos — choramingou ele.
— Isto é verdade — disse Golath. — Contra estas máquinas, nada podemos fazer.
Aparentemente, estes robôs estão aí como vigias. Talvez seja a moradia de um rico
caçador arcônida que vem para cá regularmente, a fim de controlar suas armadilhas.
Zerft atirou para longe o pedaço de graveto queimado que ainda apertava na mão.
— Lá embaixo está uma excelente oportunidade para nós. Não apenas pelo fato de
ganharmos uma espaçonave, não, teremos oportunidade de voltar com ela para Unitro.
Está fora de dúvida de que se trata de uma construção nova, cuja tecnologia não chegou
ainda ao nosso povo. Seríamos cumulados de honrarias se conseguíssemos raptar este
aparelho.
— Como é que você está tão certo assim de que se trata de uma espaçonave? —
perguntou Liszog. — Pode ser também uma espécie de barco que os arcônidas usam para
pescar.
Zerft não deu a menor importância à pergunta, e Golath indagou-se mentalmente:
“Por que eu escolhi para meu grupo um pateta como Liszog?”
Lá embaixo estava o que eles precisavam urgentemente. Bastava apenas descer e
apanhar o aparelho. Infelizmente os dois robôs não iam permitir uma coisa desta.
— Temos que destruir os dois robôs — concluiu Zerft.
Mas, da simples formulação da proposta até sua concretização, havia uma grande
distância. Zerft reconheceu mais uma vez o quanto dependiam de Golath. Sem seus
conhecimentos, não teria coragem de empreender nada neste domínio.
— Provavelmente, os robôs dispõem de um envoltório de proteção — aventou
Golath. — Ligam-no, porém, somente na hora de maior perigo, para economizar energia.
Se conseguirmos surpreender os dois robôs antes que alguém ligue o envoltório
magnético, não há dúvida de que os dominaremos.
— Tudo que fizemos até agora foi mais ou menos decorrência do fator sorte —
disse Zerft, sem olhar para Golath.
— Na vida de um unitro existem sempre estes dois fatores: ter ou não ter sorte —
disse Golath em tom filosófico. — Se concentrarmos nossos jatos energéticos e térmicos
nos dois robôs e mantivermos um fogo intenso, poderemos destruí-los.
— E o que acontecerá se eles resistirem ao nosso ataque? — a voz de Liszog estava
insegura, chegou até gaguejar.
— Você é capaz de correr mais do que nós — disse Golath com visível ironia. — O
resto, nós deixamos por conta da sua fantasia.
Em flagrante contraste com outros dons seus, a fantasia de Liszog parecia ser muito
desenvolvida, pois sua tromba se enrolou em sinal de um terror que não conseguia
ocultar. Mas Zerft não deu muita importância a seu companheiro mais moço.
— Vamos resolver isto agora — e, dizendo isto, sacou de sua arma.
Golath e Liszog seguiram seu exemplo. Três braços escuros e disformes se
levantaram. Três traves de segurança passaram para a posição de fogo automático.
— Fogo! — soou a voz clara de Zerft, na manhã de sol.
Da espessura de um lápis, os raios térmicos, que se abriam levemente em leque à
medida que aumentava a distância, sibilaram de encontro aos robôs. As máquinas não
tiveram tempo para reação. Na densa camada de fogo concentrado, os dois conjuntos
eletrônicos foram destruídos em poucos segundos.
— Basta! — ordenou Zerft.
Liszog olhou para o metal derretido no chão e suspirou baixinho. Seus nervos quase
não agüentaram aquele esforço todo. Zerft o tocou de leve no ombro, para o tranqüilizar.
— Não existem mais! — exclamou Golath. — Agora, nada mais nos pode impedir.
— A não ser que o dono destas lindas coisas aparecesse aqui inesperadamente —
interveio Zerft.
Golath tocou com os dedos na coronha da arma.
— Isto aqui e a nossa determinação haverão de nos proteger.
Ainda antes do escurecer, Golath teve de constatar que existia neste planeta um
velho arcônida, que, quanto ao espírito de determinação, em nada ficava devendo aos três
unitros.
3

De início, Crest julgou que fosse a Solar System que, por qualquer motivo, estivesse
regressando. Estava com seu barco mais ou menos no meio do lago, quando o silêncio
quase total em torno dele se quebrou. Um silvo agudo, que logo se converteu num ronco
ensurdecedor, encheu o ar ao longo do lago. Crest retirou o remo da água e ficou
olhando. Era as primeiras horas da manhã. O céu ainda estava meio encoberto. Naquele
planeta de água em abundância, não era comum um dia de céu aberto.
Crest percebeu uma sombra escura, do formato de um charuto, passar a toda
velocidade por cima do lago. A espaçonave — Crest não tinha dúvida de que só podia ser
uma espaçonave — descreveu uma curva de aterrissagem mais do que suicida, fazendo
com que o velho arcônida mentalmente chamasse seu piloto de doido. Umas centenas de
metros além da margem do lago, o objeto voador se chocou com o solo. Dali surgiu uma
enorme nuvem de fumaça, estendendo-se para bem longe.
O primeiro pensamento de Crest foi prestar socorro imediato aos acidentados.
Maldisse o momento em que teve de ordenar aos robôs que desmontassem de seu barco o
possante motor. Não tinha nenhum prazer em fazer corridas pelo lago, em altas
velocidades. Assim, diariamente, logo que o dia clareava, saía remando calmamente. O
silêncio lhe fazia bem, e seu maior prazer era apreciar a quantidade de peixes coloridos
brincando nas águas límpidas do lago.
Mas o segundo pensamento de Crest foi mais realista e lhe salvou a vida. Começou
a refletir que o tipo de construção daquela espaçonave levava a concluir não se tratar de
um aparelho nem terrano e nem arcônida. Deviam ser estrangeiros. Na mesma hora
tomou vulto em Crest uma grande preocupação, não por ele mesmo, mas pelo Space-Jet
que Rhodan lhe deixou. O cientista era um homem experimentado. Pelas normas da
probabilidade, seria grande leviandade tomar como simples acaso o fato de eles terem
descido exatamente ali. Mais do que isto, Crest supunha acertadamente que o que atraíra
os estrangeiros fora certamente a estação energética que abastecia sua casa.
Crest sabia que era necessário cautela. Sua constituição física não lhe permitia mais
se atrever em aventuras perigosas. Calculou a distância até sua casa. Mesmo que remasse
com toda força, levaria muito tempo até chegar à margem. Enquanto isto, os estranhos já
teriam chegado à sua residência. Olhou desanimado para a pequena pistola de raios
energéticos. Numa situação mais séria, não seria suficiente. Felizmente, o Space-Jet
estava garantido por um envoltório magnético que só podia ser desfeito por um
transmissor codificado que Crest carregava sempre no pulso.
Depois de muito refletir, o velho arcônida resolveu não se aproximar diretamente de
sua casa. Seria arriscado demais, se expor diretamente ao alcance dos “visitantes”. Devia
caminhar por dentro da mata e ficar a algumas centenas de metros de sua casa, em
cautelosa observação. Pegou nos remos e deu uma volta olhando para todos os lados.
Estava procurando por um lugar adequado.
Após haver percorrido a metade do trecho, fez uma pausa para descansar. Sua
consciência continuava atormentada pelo pensamento de que talvez não fossem
assaltantes, mas pobres acidentados, que precisavam dele. Havia em seu interior uma luta
pelo desejo de chegar o quanto antes ao local do acidente, a fim de cuidar das vítimas.
Por mais que este sentimento tivesse justificativa, tinha de ser adiado por algumas horas.
No momento, estava pensando com tristeza na desconfiança reinante entre as raças das
galáxias. Quando se encontravam, agiam como se quisessem se prejudicar mutuamente.
As controvérsias pela hegemonia eram uma lei da natureza, sabia ele. Raças novas, em
plena expansão e progresso, como era o caso da humanidade terrana, não podiam ser
cerceadas em seu impulso sadio de crescimento. Devia-se também compreender por que
os povos mais antigos se defendiam, tentando conservar alguma coisa de sua hegemonia.
Em geral, eram rivalidades comerciais que faziam com que duas frotas espaciais se
digladiassem. Mas até o desejo de exercer uma influência política ou militar, provocava
um aumento colossal das despesas de uma nação, principalmente com armamentos.
Quem não entrasse no círculo vicioso da proliferação das armas, corria o risco de ver seu
planeta ser um dia invadido por uma frota estrangeira e ser declarado território colonial.
Com estes pensamentos, Crest reiniciou sua viagem. Estava novamente com os
remos nas mãos e seus velhos braços ainda davam boas remadas.
“Não tenho relógio, um velho solitário não precisa de relógio”, pensava ele.
Quando sentiu que a quilha do barco tocou na areia da praia, já haviam passado
muitas horas.
Crest saltou na areia e ancorou o barco, para mais tarde vir apanhá-lo. A escarpa ali
não era tão grande. Assim mesmo, o arcônida quase perdeu o fôlego, até chegar no topo.
Caminhar ao longo da praia seria perigoso, não havia muita possibilidade para se
esconder, em caso de um ataque por cima. Crest apanhou seu capote e começou a
caminhada. Por um momento, o sol apareceu entre as nuvens, banhando tudo numa luz
amarelada e quente. Olhou mais uma vez para trás. De onde estava agora, o barco parecia
muito pequeno. Balançava docemente nas pequenas ondas. Examinou sua arma. Há
quantos decênios já se vira obrigado a portar uma arma, com a intenção de só usá-la em
caso de extrema necessidade?
O velho arcônida viajara por inúmeros planetas, sua vida toda estava cheia de
sofrimento e morte. Porém sentia-se espiritualmente maduro para ver na arma apenas um
mal necessário. A luta sempre existiu; desde o surgimento da vida, que se luta e se destrói
mutuamente. No correr da longa evolução, veio a vida inteligente. Mas, mesmo assim, a
luta e o extermínio mútuo não cessaram. Os meios se aperfeiçoaram, chegando-se mesmo
à sofisticação. E a destruição continuou...
Crest concentrou toda a sua atenção no ambiente que o cercava. Caminhava de tal
maneira que a qualquer momento poderia pular para dentro de uma depressão do terreno.
Não se iludia pensando que pudesse chegar até ao jato sem ser visto, para depois ligar seu
transmissor de hiper-rádio. A escarpa formava uma pequena curva, de maneira que Crest
perdeu de vista o barco lá embaixo. Mas a casa devia surgir logo diante dele. Andou mais
depressa.
Atingiu o local onde estivera a Solar System. Com muita hesitação, chegou até a
beira da pequena elevação. Dois metros depois, abaixou-se e foi se arrastando pelo chão.
Cinqüenta metros para baixo estava a estação. Havia no ar um cheiro de algo queimado.
O coração do velho começou a pulsar mais rápido. Lentamente foi avançando,
cuidando sempre de não permitir que alguma pedra ou coisa semelhante rolasse morro
abaixo. Finalmente chegou a uma boa distância. Levantou a cabeça para espiar. A cena
avistada deixou-o completamente horrorizado.
Os dois robôs de combate estavam destruídos ao lado da casa. Toda a parte
eletrônica e o metal da cabeça havia derretido. Mas isto não era o pior.
O pior mesmo eram os três vultos assustadores, monstros providos de trombas,
tentando chegar até o Space-Jet.
Crest cerrou os olhos por uns instantes. Suas previsões mais sombrias ficaram muito
aquém dos fatos. Os três seres, tão esquisitos, corriam em volta do disco voador, em
visível excitação. Naturalmente procuravam um meio de desfazer o envoltório de
proteção que cercava a mini-espaçonave. Uma das tentativas foi cavar com os raios
energéticos de suas pistolas um buraco no chão, para chegar ao aparelho através um
túnel. É claro que esta manobra não deu certo. Apesar de tudo, os portadores de tromba
não se arrefeceram com a primeira desilusão. Com verdadeira obsessão, atacaram o
envoltório de todos os meios e fizeram todas as experiências possíveis.
Por algum tempo, Crest os observou completamente impassível. Depois sacou da
arma.
Foi um movimento meramente automático, provocado pelo desejo subconsciente de
salvar o Space-Jet a todo custo. Acabou repondo a arma no cinturão.
“Seu maluco, você quer perder o jato e a sua vida também?”, pensou, usando a
razão.
Sua tensão nervosa diminuiu um pouco. Mais do que depressa, abandonou seu posto
de observação.
Na melhor das hipóteses, conseguiria eliminar um dos três monstros trombudos.
Depois ficaria infalivelmente entregue ao fogo de armas mais potentes.
“Você precisa de uma arma melhor”, pensou, usando a parte mais sensata de sua
mente. “Uma daquelas que todos os membros da elite técnico-científica de Árcon
possuem. Você sabe onde pode encontrá-la.”
Era isto!
Aqueles monstros esquisitos traziam armas pesadas. O estado em que ficaram os
dois robôs comprovava isto. Por sua vez, isto significava apenas que nos destroços da
nave dos “visitantes” ainda existiriam mais armas.
Tinha que chegar até a espaçonave acidentada o mais depressa possível.
Mais uma vez, o arcônida hesitou.
E se os indivíduos de tromba tivessem deixado algum vigia dentro de sua nave?
Crest olhou em volta. O lugar de descida da espaçonave dos estranhos devia ficar
mais ou menos na borda da floresta. Tentou divisar o tal local, mas não conseguiu ver
nada. E ele teria de resolver tudo em pouco tempo... Não podia tomar em consideração
seu estado de saúde. Prometera a Rhodan que o Space-Jet jamais cairia nas mãos de
estranhos. Jamais lhe passara pela cabeça que ele mesmo é quem teria que lutar por isso.
Enquanto corria, olhava sempre em volta. Os seres de tromba poderiam aparecer a
cada momento no alto da colina, a fim de apanharem ferramentas para seu trabalho de
seqüestrar o Space-Jet. Mais de uma vez teve o angustioso pressentimento de que uma
mortífera pistola térmica estivesse apontada para suas costas. Não tomou em
consideração o cansaço de suas pernas, pois não tinha tempo de dar atenção ao velho
trôpego que era. Era um velho alquebrado, mas tinha que agir como um jovem.
Viu a espaçonave dos estrangeiros, agora simplesmente seus agressores. Olhou mais
uma vez para trás. A planície às suas costas não apresentava nada de anormal. Ao
constatar que a espaçonave dos estrangeiros tornara-se um montão de escombros, seus
cuidados pelo Space-Jet aumentaram. Seus adversários achavam-se obrigados a raptar o
Space-Jet se não quisessem radicar-se naquele planeta. O cientista podia imaginar que os
três monstros tentariam tudo para destruir o envoltório de proteção.
Crest dedicou sua atenção mais para a parte menos danificada do aparelho. Poderia
entrar por vários lugares. Pela escotilha aberta e pelo lado onde havia um enorme rombo.
Além disso, havia na frente uma fenda regular, suficientemente larga para um homem
entrar.
Crest preferiu a entrada pela escotilha. Constantemente apalpava sua pistola
energética. Mas não apareceu ninguém para detê-lo. Subiu os degraus da escotilha. Havia
relativa claridade dentro, facilitando seu trabalho. O olhar inteligente e experimentado de
Crest reconheceu logo que se tratava de um aparelho por demais antiquado.
Acima da escotilha havia uma inscrição, cujo significado não pôde entender.
Continuou caminhando para frente. Uma parte dos corredores estava interrompida e
destruída. No chão, muitos pedaços de metal e de plástico. Passou por cima deles.
Chegou a um recinto cheio de instrumentos de todos os tipos. Não teve tempo de se
preocupar para que serviam. Seu único pensamento era encontrar armas. Subiu numa
espécie de cavalete, atrás do qual pendiam da parede cabos flexíveis em espiral.
Não pôde ir além!
Percebeu que fora seguro por trás e enlaçado no pescoço. Sua pistola energética
rolou pelo chão. Crest soltou um grito de quem está sendo sufocado e olhou para seu
inimigo. Seu agressor era de natureza mecânica.
Dois daqueles cabos espirais, de um formato singular, saíram da parede e enlaçaram
Crest como uma cobra gigante.
“Uma armadilha!”, pensou desesperado, “colocaram uma armadilha aqui.”
Usando de toda sua força, tentou se desvencilhar, mas teve de convir que era inútil.
A armadilha automática o segurava com laços acima de qualquer força humana. Foi
impelido de encontro ao chão, ali no meio do depósito, desistindo então de qualquer
reação. Dos dois lados da misteriosa armadilha, apareceram grossas tiras que passavam
por sobre o corpo de Crest, enfaixando-o todo, podendo agora só mover a cabeça.
Desesperado, Crest viu que uma espécie de grande almofada de carimbo se abaixava
sobre ele, empurrando sua testa para baixo. Maldisse sua falta de cautela. Mas já era tarde
para tais ponderações. Enrolado por aquelas faixas, estava totalmente entregue à maluca
máquina.
Antes de poder pensar em como livrar-se, surgiu uma espiral diante de seu rosto. Na
sua extremidade sobressaía uma haste envolvida por um material aparentemente poroso e
macio. Dali gotejava um líquido claro. Crest tinha impressão de estar sonhando. O
material gotejante girava em torno de seu nariz e o velho arcônida reparou que a haste
tinha um lento movimento de rotação. Além do mais, aquele mecanismo exótico produzia
um estranho ruído, como de um leve ronco de pessoa que dorme: bizz... bizz...

***

Esgotado, Golath saiu daquela depressão do terreno e se deixou cair no chão. Estava
tão enfurecido que nem quis olhar para a cara de Zerft. Sabia desde o início que o método
estava completamente errado. Não se podia romper um envoltório magnético daquele
jeito primitivo. E, apesar de tudo, Zerft exigia que se prosseguisse no trabalho estúpido.
— O que há? — perguntou Zerft zangado.
— Estou muito cansado — explicou Golath. — Deste jeito não chegaremos a
nenhum resultado. Talvez daremos um jeito com as ferramentas que temos na Kaszill.
— Nada disso! O negócio vai ser muito mais simples — continuou o cabeçudo do
Zerft. — O próprio dono deste aparelho também não poderá romper o envoltório. Terá
antes que desligá-lo, para entrar na pequena nave. E isto deve acontecer logo, portanto
tem que haver um meio seguro de romper esta barreira.
— Não há dúvida — concordou Golath. — Para ele é muito fácil mesmo.
Zerft parecia querer dominar o pequeno aparelho com a força de seus olhos. Não
parava de fitá-lo intensamente.
— Quais são nossas possibilidades? Golath estava refletindo.
— Vamos tentar desmontar alguns geradores da Kaszill. Quem sabe conseguimos
absorver a energia do envoltório, ou desviá-la de tal modo que surja uma brecha em outro
ponto.
— Isto é claríssimo como água — disse o pouco entendido Zerft. — Vamos esperar
um pouco pelo Liszog, para ver se ele descobre na casa alguma possibilidade de
entrarmos no aparelho.
A expressão de enfado de Golath era tanto para a ignorância técnica de Zerft, como
para as surpreendentes qualidades de pesquisador de Liszog. Golath sentia a necessidade
urgente de proceder a uma limpeza em sua tromba. Sabia também que, mais cedo ou mais
tarde, teria de ocorrer uma briga mais séria com Zerft. Já estava saturado de receber
ordens bobas do unitro espadaúdo. Zerft não era nem mais inteligente do que Liszog.
Para falar francamente: não passava de um ladrão primitivo, incompetente até para
roubar.
Resolveram ir até a solitária casa. Uma fumaça azulada saía lá de dentro. Golath já
estava tossindo e seus olhos perceberam a figura de Liszog, que vinha pulando com
movimentos desesperados, acompanhados de gritos de dor. Numa das mãos tinha a
pistola de raios térmicos, a outra estava escondida sob a tromba. Golath percebeu que ele
estava sangrando.
Zerft foi ao encontro de Liszog. A tromba de Golath estava enrolada devido à
irritação da forte fumaça do interior da casa.
— Contra o que você atirou? — perguntou Zerft, preocupado.
— Contra uma máquina — disse ele, em prantos.
Golath fez um gesto de surpresa.
— Atirou num robô?
— Não — respondeu Liszog, já mais calmo. — Atirei mesmo numa máquina.
— Por que motivo? — queria saber Zerft.
— Porque ela me machucou. Havia vários interruptores e eu pensei que tivessem
alguma coisa com a pequena espaçonave lá fora. Então apertei um destes botões.
— E o que aconteceu?
— Um negócio quadrado, cheio de buracos, começou a roncar — disse Liszog em
voz mais baixa. — Vi que alguma coisa se mexia nestes buracos. Botei a mão lá dentro e
ela foi puxada. Quando a consegui retirar, já estava toda ferida.
— Mas por que que você atirou? — perguntou Golath.
Liszog olhou para ele. Os olhos do jovem expressavam medo e Golath começou de
repente a ter dó do pobre coitado.
— Não sei por que usei da arma.
— Naturalmente ele se descontrolou e perdeu a cabeça — disse Zerft aborrecido. —
Ele é mais medroso do que uma mulher velha. Com esse negócio de atirar sem mais nem
menos, vai acabar nos causando muitos aborrecimentos.
— Vou dar uma olhada lá dentro para ver em que ele atirou — disse Golath.
Zerft concordou. Ele mesmo não agüentava mais entrar devido à fumaça. Saiu
caminhando com Liszog para fora da casa. Sentaram-se no chão e ficaram esperando.
Segundos depois, voltou Golath.
— Então? — perguntou Zerft, se levantando.
Golath olhou para ele pensativo:
— Foi de fato numa máquina — disse bem devagar. — Numa máquina até bem
especial...
Liszog ergueu a cabeça, mais feliz. Quem sabe teria conseguido com seu gesto
prestar um grande serviço aos seus colegas!
Zerft olhou para Golath com impaciência.
— Uma máquina especial para quê?
— Para moer alimentos mais duros.
Liszog quase teve um desmaio e Zerft o olhou com desprezo.
— Temos que regressar à Kaszill — continuou Golath com toda calma. —
Precisamos apanhar as ferramentas, e Liszog fazer um curativo na mão.
Agora, Zerft não teve nada para se opor. Sem dizer uma palavra, saiu na frente.
Cabisbaixo, Liszog caminhava atrás de seus dois companheiros.

***

Crest encontrava-se na situação nada invejável de um homem que vê desenrolar


diante de seus olhos um grandioso espetáculo no qual ele ocupa o papel principal, mas
não pode intervir em nenhuma fase dos acontecimentos. O arcônida já havia
compreendido que aquela máquina não era propriamente uma armadilha intencional. Fora
sua imprevidência que desencadeara todo aquele processo automático, que tinha
naturalmente um determinado fim. Inutilmente, o velho arcônida quebrava a cabeça,
querendo saber para que serviam as várias espirais e cabos de aço que, em constante
alternância, apareciam diante de seu rosto, procurando alguma coisa de que o velho
cientista não dispunha. Quando terminasse sua função, o robô haveria de desligar-se
sozinho. E Crest acabaria não sabendo que função era esta.
Havia uma outra possibilidade para terminar a função da máquina, que infelizmente
equivalia à morte de Crest: a chegada dos indivíduos de tromba.
Crest esperava para qualquer momento o aparecimento de um daqueles estranhos
seres com a pistola de raios térmicos na mão.
Com força física, o cientista não ia se livrar daquela situação. Suas forças
debilitadas não seriam suficientes para rebentar as tiras metálicas que o prendiam àquele
estrado. Uma salvação só seria possível se o robô reconhecesse que havia cometido um
engano. Num desespero mudo, Crest procurou ouvir alguma voz interna, mas seu lado
lógico também emudecera.
— Bizz... bizz... — era o que Crest ouvia continuamente, abalando ainda mais seu
sistema nervoso.
O braço em espiral, provido de uma haste com algo poroso na extremidade,
aparecia, fazia suas rotações lentas sobre o nariz, aspergindo sempre um certo líquido,
retirando-se depois. Então, era a vez dos finos cabos de aço, percorrendo o rosto de Crest
em constante oscilação, para depois desaparecerem.
Que estaria acontecendo entrementes com o Space-Jet? Será que os estranhos de
tromba já teriam conseguido penetrar no interior do aparelho?
Crest estava sendo esmagado por um grande peso na consciência. Lembrava-se do
que prometera a Rhodan. Mas como poderia sair daquela terrível situação?
Não tinha medo da morte. Era um homem experimentado e esclarecido, que sabia
medir bem suas possibilidades e agir com precisão. Quando foi para aquele planeta, só
tinha uma intenção: terminar seus dias na calma e na solidão. E agora, como tudo
indicava, a morte já estava ali, junto dele, mas não com a calma e a solidão que desejava.
O pensamento de que o Space-Jet podia ser roubado lhe deu forças fora do comum.
Crest iniciou uma batalha renhida contra a máquina. Retesou os braços e fez um grande
esforço, tentando romper as tiras metálicas.
Não deu certo.
“Pare com isso!”, ouviu a voz do seu cérebro lógico. “Poupe suas forças.”
Apesar de esgotado pelo grande esforço, Crest sorriu.
— Poupar? — perguntou em voz alta. — Para quê?
Não houve resposta. O braço espiralado volteava novamente diante de seus olhos.
Em pouco tempo ficaria noite e Crest se perguntava se os entes de tromba viriam ou não
antes do escurecer. Não era necessário ter grande poder imginativo para prever o que ia
acontecer quando eles chegassem.
— Bizz... bizz — fazia aquela coisa estranha, borrifando o arcônida com gotas de
um líquido malcheiroso que lhe cobriam o rosto.
Mas, com toda certeza, chegaria a hora em que a força da máquina acabaria. Será
que seria possível acelerar o funcionamento do automático, para que o ciclo todo
terminasse mais cedo?
Crest sondou seus conhecimentos de cibernética. O princípio básico de todo e
qualquer aparelho automático, mesmo o mais simples, repousa na programação que
recebeu de seu produtor inteligente. Todo robô recebe uma determinada tarefa, que ele
desempenha dentro de suas possibilidades. Um robô em serviço não é outra coisa do que
informação que se tornou móvel. Seu funcionamento está na dependência da informação
que recebeu.
Crest tinha que olhar para o singular mecanismo a partir deste ponto de vista. Suas
reações eram conseqüências das ordens que recebera. Não cabia à máquina distinguir se
realizava sua tarefa com ou sem o devido acerto. Com os robôs, só ocorriam duas
alternativas: parar ou funcionar. Entre estes dois pólos opostos, não havia escala
intermediária.
E não havia dúvida quanto ao pólo em que o robô estava, isto Crest estava sentindo
na própria carne. Funcionava de fato.
Existia, porém, um método infalível para se escapar desta máquina. Tinha apenas
que desligá-la. Mas não sabia como, nem estava em condições de saber como funcionava.
— Bizz... bizz — continuava o funcionamento do estranho aparelho.
Para o arcônida parecia até uma humilhação. Depois de algum tempo, Crest atingira
um estado tal de depressão que ansiava pela chegada dos três seres que destruíram os dois
robôs de combate. Rosto e cabelos estavam encharcados e os olhos lhe ardiam. As partes
de seu corpo com faixas metálicas para prendê-lo ao cavalete já lhe estavam muito
doloridas. Os pés pendentes fora do estrado pesavam-lhe mais do que chumbo.
“Você não pode desistir agora”, dizia-lhe a parte lógica do cérebro. “Você tem que
enfrentar os estrangeiros, em boas condições físicas e psíquicas.”
Por que não acolhera as sugestões de seu grande amigo Rhodan, que lhe tinha
proposto terminar tranqüilamente seus dias em lugares solitários nas montanhas da Terra?
Mesmo em Árcon encontraria um recanto sossegado. Atlan, que substituíra o governo do
cérebro positrônico, poderia ajudá-lo muito. Queria mover um pouco a cabeça, mas
aquela espécie de almofada de carimbo o impedia.
Árcon não era mais sua pátria, não iria se sentir bem lá, pois, com o correr dos anos,
se desligara inteiramente do Grande Império. Toda sua dedicação fora para os terranos.
Não sentia muita simpatia pelos degenerados arcônidas, nem mesmo um sentimento de
lealdade. Depois da morte de Thora, esposa de Rhodan, Crest perdeu as últimas ligações
com seu povo. E as situações criadas por Thomas Cardif, filho de Thora e de Perry
Rhodan, que tiveram repercussões negativas, foram também decisivas para a atitude de
Crest: o digno ancião se afastou completamente de sua pátria, Árcon.
Um barulho o assustou. Se virasse bem o rosto para o lado, podia enxergar até os
degraus da escotilha.
Será que os monstros estavam voltando? Por um momento, Crest se esqueceu do
automático que estava funcionando. Tudo dependia de aproveitar qualquer oportunidade.
Na mesma hora olhou para a direção de onde o inimigo devia vir. De uma coisa
estava certo: iria fazer tudo para salvar o precioso Space-Jet.
Passos e sussurros chegaram até seus ouvidos. Passos pesados, cada vez mais
nítidos. Um calafrio percorreu o corpo do velho arcônida. Provavelmente terminavam ali
seus longos anos de vida... e de uma maneira tão simples e... estúpida! Não estava
absolutamente com medo. Era importante que ele fosse corajoso? Ou era meramente uma
conseqüência da idade avançada, a quem a morte não assusta mais?
O barulho mais forte anunciava a aproximação dos monstros.
— Bizz... bizz... — continuava funcionando a exótica aparelhagem.
Sentia o líquido lhe escorrendo pelas faces. Teve vontade de espirrar e para isso
fechou os olhos.
Quando os abriu, já estavam diante dele.
Três figuras pesadonas, feias, com aquela horrenda tromba. Eram da mesma altura
que Crest, mas duas vezes mais “fortes”.
Parados, como que estatelados de surpresa, olhavam-no atônitos
— Alô! — tentou dizer Crest.

***

Ao penetrarem na escotilha, Golath teve o estranho pressentimento de estar sendo


observado. Agitou com força a pesada tromba. Zerft ficou parado e Liszog deu um passo
para trás.
— O que está se passando? — perguntou Zerft.
Golath lhe ficou devendo a resposta. O tempo todo, e mesmo agora, tinha de seguir
obediente atrás do espadaúdo Zerft. Seu ódio já estava mais do que acumulado e podia
explodir a qualquer momento.
— Não é nada — disse com visível pouco-caso.
Zerft ergueu os braços e Golath viu como sua tromba estava retesada. Os olhares se
cruzaram, olhares de fogo. Liszog se aproximou, mostrando a mão ferida:
— Por que ficamos parados aqui? Estou sentindo dores muito fortes na mão e tenho
que tratar dela.
A excitação no semblante de Zerft pareceu abrandar-se um pouco, enquanto Golath,
em atitude de desafio, girava a tromba para cima. Mas, sem dizer uma palavra, Zerft
virou as costas. Passando pelo corredor principal, chegaram à semidestruída sala de
comando. Ao atingirem a escotilha aberta, Zerft parou de repente. Golath e Liszog foram
se aproximando dele.
De repente Golath estacou e ficou perplexo.
Um estranho, deitado ali no limpador de trombas...
A aparelhagem automática se esforçava inutilmente, procurando a inexistente
tromba do arcônida. O três unitros olhavam estarrecidos.
Com voz muito fraca, o velho soltou algumas palavras.
Para os degredados aquelas palavras valeram por um sinal. Golath deu um passo à
frente, na direção do limpador de trombas. Liszog dava mostras de nervosismo. Na
mesma hora, Golath foi empurrado para o lado.
Zerft avançou para o limpador, sacando a arma da cartucheira.
— Um arcônida! — exclamou ele, cheio de ódio.
Com os olhos arregalados apontava a pistola de raios térmicos contra o homem
indefeso a seus pés.
4

Terrânia vivia um de seus raros dias de chuva. A cidade estava envolta num véu
cinza. As praças e os parques estavam vazios. Toda a população ou estava em casa ou nos
centros fechados de diversão.
Com o pensamento distante, Perry Rhodan contemplava as curiosas figuras
desenhadas pelas gotas esparsas da chuva nos vidros das janelas. Finalmente, virou-se
para trás e voltou à sua mesa.
Muito bem acomodado numa poltrona, Reginald Bell sorriu para o amigo. Conhecia
aquele homem alto tão bem, que pelos seus traços fisionômicos e pelos menores detalhes
podia saber o que lhe ia na alma.
— Você se preocupa inutilmente, Perry — dizia ele. Era mais uma afirmação do que
uma pergunta, — E por quê? Não há no momento nenhum motivo de apreensão. Gucky
está ocupado em Marte em criar uma nova pátria para os irmãos de raça que conseguiu
salvar do planeta Vagabundo. Os demais executam, em geral, serviços de rotina, como
nós dois aqui, por exemplo.
— Você chama isto de rotina! — disse Rhodan censurando brandamente seu amigo.
— Eu o chamo de trabalho meticuloso e cansativo, mormente esta seleção de todo o
material acumulado. Em curto espaço de tempo temos que testar estes motores de
propulsão linear dos druufs, naturalmente no campo prático. Teremos então muito mais
trabalho do que você imagina.
Bell, numa desesperada tentativa, se esforçava para dar uma forma mais ajeitada no
seu cabelo à escovinha. Seria muito mais fácil pentear um cacto espinhoso.
— Teremos que esperar, pelo menos, uns cinqüenta anos até que a primeira
espaçonave esteja equipada com este tipo de motor linear. Até lá — passou a mão no
rosto para alisar uma barba imaginária — ...até lá já estarei aposentado.
— Quer dizer então que você vai desistir da próxima ducha celular? — perguntou
Rhodan um pouco irônico.
Bell olhou firme para ele.
— Temos ainda muita coisa importante para fazer — continuou o administrador. —
Primeiramente temos de confirmar nossa posição. Atlan está muito preocupado com seus
próprios problemas e não pode nos auxiliar, em caso de necessidade.
O gorducho sorriu.
— Sou de opinião de que o Almirante Atlan cortou uma fatia grande demais do
nosso belo bolo cósmico, muito maior do que ele pode digerir.
— Embora estime muito sua forma desinibida de falar, ser-lhe-ia grato se me
repetisse o pensamento de uma forma que um homem normal pudesse compreender.
Rhodan continuou olhando para seu interlocutor com muita curiosidade.
O Marechal Reginald Bell, administrador-substituto do Império Solar, levantou-se
de sua poltrona, não muito esportivamente, e se dirigiu para o atlas sideral na parede.
Seus braços se movimentavam em gestos amplos.
— O Grande Império de Atlan — disse ele — haverá de se esfacelar, se não nos der
oportunidade de ajudá-lo. Os arcônidas estão degenerados, não podendo contar com eles.
— Você se esquece da nave dos “adormecidos”. Estes não eram degenerados.
Bell mordeu a ponta do dedo:
— O que representa este punhado de gente para estas dimensões quase infinitas?
Não, nosso grande amigo não conseguirá nada sem nosso auxílio. É apenas uma questão
de tempo, porque depois ele aparece pedindo que os terranos corram para lá, para o
Grande Império, para tapar buraco.
Rhodan se dirigiu de novo para a janela.
— Gostaria de saber o que está acontecendo agora com Crest — disse, mudando de
assunto.
— Ah! É dessa direção que sopra o vento... Era isto que o estava atormentando o
tempo todo. Você está sempre preocupado com o pobre velho.
Rhodan concordou.
— Não deveríamos tê-lo deixado sozinho. Agimos sem muita responsabilidade.
— Você acha, Rhodan? Eu já penso diferente. Acho que um homem do tipo de
Crest, a gente deve deixar morrer do modo que ele escolheu. E o arcônida queria esperar
a morte sozinho.
— Estava fisicamente muito debilitado — disse Rhodan. — Se sofrer qualquer
abalo, este pode lhe ser fatal.
— Não se esqueça dos dois robôs — respondeu Bell. — Programamos um deles de
tal forma que, em qualquer caso mais sério, ele entra automaticamente em contato com a
Terra, mais exatamente com Terrânia. Nem o próprio Crest está a par dessa nossa medida
de segurança. Deixemo-lo em sua bem merecida paz.
Alguns dias mais tarde, Bell seria capaz de um suicídio só por causa destas palavras.
Neste dia não se falou mais de Crest.
Nem no dia seguinte.
5

A capacidade de reação de um unitro fica muito aquém da de um homem.


Paralelamente à sua estatura pesada, volumosa, os movimentos destes seres de tromba
também são vagarosos e, para nós homens, pesadões.
A agilidade com que Zerft sacou da arma parecia contradizer esta afirmação.
Mas Golath foi tão rápido quanto ele. Quase no mesmo instante, sua tromba
rodopiou no ar, enrolando-se no braço de Zerft, atirando a pistola para longe. Zerft
perdeu o equilíbrio e cambaleou. Começou a guinchar de ira e queria se atirar sobre ele.
— Você não tem o direito de matá-lo — gritou Golath.
Mas o enfurecido Zerft não ouviu mais nada. Com todo o peso e força bruta dos
seus cento e cinqüenta quilos, atirou-se contra Golath. Chocaram-se os dois monstros:
dois gigantes, donos de uma força incrível. Liszog, aos gritos, pedia para que parassem
com a luta. Calado, o prisioneiro observava os acontecimentos.
A pistola energética de Zerft estava próxima. Mas Golath com um pontapé colocou-
a fora de seu alcance. A tromba de Zerft se enroscou na cabeça de Golath e começou a
torcê-la. Golath cerrou os olhos, gemendo de dor. Suas mãos apertavam o tórax do
adversário. O estrépito da luta enchia a sala de comando. O chão tremia. Aos poucos,
Zerft ia comprimindo cada vez mais o crânio de Golath. Este sabia que seu adversário
dispunha de uma força tremenda. Em poucos segundos estaria inconsciente e incapaz de
respirar, caso não conseguisse escapar daquela tenaz mortífera.
Tentou escapar... largou uma “canelada” no joelho de Zerft. Mas o pesadão parecia
já estar contando com o golpe. Sua perna cedeu um pouco, mas continuou segurando
firme Golath. O espadaúdo Zerft parecia um rochedo, enquanto Golath entrava numa fase
de desespero. A tremenda compressão da tromba começou a prejudicar a circulação do
sangue. Veio-lhe um início de tontura, causada pela ausência do sangue no cérebro. Os
dois braços de Zerft mantinham Golath preso pelo tórax, enquanto a cabeça continuava
no torniquete de sua possante tromba.
Assustado, Golath percebeu que sua mente estava se tornando confusa. Num esforço
gigantesco, tentou livrar-se de Zerft, mas este se inclinou para frente frustrando a
tentativa.
Inesperadamente, Golath se atirou para trás, obrigando Zerft a dar um passo para
frente. Tropeçou e, quase sem refletir, Golath o puxou contra si, rolando os dois no chão.
Eram duas feras engalfinhadas no soalho. A luta estava no auge e a vantagem continuava
com Zerft.
Mas quem decidiu tudo foi Liszog. Temendo que Golath morresse, o subconsciente
do jovem foi mais rápido que seu medo. Sabia muito bem que Zerft jamais estaria em
condições de dirigir uma espaçonave e, assim, chegarem até Unitro. Foi então que o
jovem sacou a arma, olhou um pouco indeciso para os lutadores, rolando no chão.
— Parem com isso! — gritou ele. — Se não se separarem imediatamente, eu vou
atirar.
Os dois monstros, resfolegando, sujos, levantaram-se.
— Que significa isto? — gritou Zerft furioso. — Afaste esta arma da minha direção.
A mão de Liszog tremia. Porém permanecia de pistola em punho, apontada
principalmente para Zerft.
— Jogue-me esta arma, Golath — exigiu ele.
Golath sorriu zombeteiro. Arrancou sua arma da cartucheira e jogou-a próxima de
Liszog.
— Vamos ter um novo chefe — disse para Zerft, com uma ponta de desprezo.
E antes de concluir seu pensamento, afastou a arma para longe com o pé. Sua mão
não estava mais sangrando. O velho arcônida observava atento, sem dizer uma palavra.
— Vou transferir o comando novamente para Golath — disse Liszog com voz
autoritária.
A reação de Zerft só pôde ser um palavrão, pois a arma engatilhada na mão de
Liszog o impediu de se precipitar contra o mais jovem dos desterrados. Mas seus olhos
faiscavam de ódio.
— Muito bem! — disse Golath contente. — Dê-me agora sua arma, jovem.
Liszog agitou energicamente a tromba.
— Não! — respondeu.
Golath olhou admirado para ele e, neste olhar, havia algo de respeitoso.
— Sem arma não posso comandar. Que adianta dar ordens? Zerft só obedecerá às
instruções se forem sublinhadas pelo cano da pistola de raios térmicos.
— Sei disso — continuou Liszog. — Você vai conseguir o que deseja, mas antes
quero resolver uma coisa muito importante.
— O quê? — indagou Golath.
Liszog apontou com a tromba para o velho arcônida:
— Vou matá-lo.
Zerft deu um pulo e agarrou Golath pelas costas. Este sentiu a respiração quente do
espadaúdo unitro no dorso.
— Isso mesmo, Liszog. Atire, que Golath não vai poder impedir seu trabalho.
Liszog, de arma em punho, caminhou para o limpador de trombas. O pobre do
prisioneiro o observava com visível indiferença. Liszog desligou o automático e o
arcônida ficou livre das amarras.
A voz de Golath soou com toda calma:
— Se você o matar, nós nunca mais veremos Unitro.
Zerft aplicou-lhe um violento soco.
— Cale a boca! Deixe que Liszog faça o que é certo.
O solitário arcônida havia permanecido tanto tempo naquele suplício, que se sentia
demasiadamente fraco para se levantar sozinho. Liszog o olhava pensativo.
— Espere, Liszog! — disse Golath depressa. — Este velho é o dono da pequena
espaçonave. É o único que sabe e pode desativar a proteção magnética. Se você o matar,
não nos poderá transmitir seus conhecimentos.
Liszog olhava indeciso de um para o outro. Zerft murmurou qualquer coisa e soltou
Golath.
— Ele naturalmente não vai nos dizer seu segredo espontaneamente — disse Liszog
céptico. — Repare: é muito idoso e os homens idosos não têm medo da morte. Não
conseguiremos convencê-lo a nos ensinar como entrar no pequeno aparelho.
Embora não o tivesse dito claramente, podia-se perceber que Liszog já havia
desistido do plano de matar o velho. Golath se abaixou e apanhou a arma. Depois, pegou
também a arma de Zerft.
— Ele vai nos mostrar o caminho para seu aparelho particular — afirmou Golath.
Sua tromba pendia naturalmente para frente. Havia quase um brilho alegre no seu
olhar.
— Você está vendo — soou a voz de Zerft, comandada pelo ódio — ele ficou
completamente doido, Liszog.
Golath fez como se não tivesse ouvido.
— Vamos prender o arcônida — disse ele. — Mas, durante a noite, ele deve ter a
oportunidade de fugir.
— Como assim? — gritou Zerft fora de si. — Você o quer deixar escapar?
— Isso mesmo — confirmou Golath. — O prisioneiro deve ter a impressão de uma
fuga muito difícil. Nós não o vamos impedir, nem mesmo estaremos a bordo da Kaszill,
quando ele fugir.
Nervoso, Liszog piscou os olhos. Viam-se no seu rosto os primeiros indícios de
arrependimento por haver escolhido Golath para comandar as ações do grupo. Mas o
inteligente e experimentado unitro continuou falando.
— Vamos nos esconder bem perto do pequeno aparelho. Quando o velho chegar,
deverá estar com muita pressa, pois tem que contar com uma perseguição por nossa parte.
Não terá, pois, muito tempo para examinar tudo em volta. Sua maior e única preocupação
será penetrar na espaçonave e fugir deste planeta. Quando ele neutralizar o envoltório de
proteção, nós saltamos do esconderijo e nos apossamos da espaçonave. O arcônida vai
ficar tão perplexo, que será uma brincadeira nos livrarmos dele. Depois de penetrarmos
em seu aparelho, resolveremos todos os outros problemas.
— Não vai dar certo — disse Zerft com ressentimento. — E se ele desligar o
envoltório magnético por um tempo muito curto?
— Estaremos escondidos bem próximos da pequena espaçonave — explicou Golath.
— Não se esqueçam de que será noite e estará bem escuro. Nem mesmo os olhos
arcônidas conseguem penetrar na escuridão da noite.
— O plano é simples, mas parece muito inteligente — observou Liszog.
Golath acenou contente com a cabeça.
— Importante em tudo isto é que vocês dois não comecem a brigar durante a
operação — disse Liszog para Zerft e Golath. — Se vocês começarem a discutir,
perderemos tudo.
— Não é de mim que vai depender isto — disse Golath em tom de conciliação.
Esticou sua tromba na direção de Zerft, para o tradicional abraço de
confraternização.
— Estou de acordo — falou Zerft ainda hesitante, sem mover, porém, a tromba.
O rosto de Golath se enrubesceu. Isto representava uma grande ofensa.
— Por que razão você recusa a tromba a Golath? — perguntou Liszog, em tom de
censura.
Zerft olhou para ele de soslaio. O ódio não desaparecera ainda de seus olhos. Suas
mãos se encrespavam numa fúria reprimida. Golath retirou sua tromba, sem dizer mais
nada.
Liszog se encaminhou para o arcônida e o retirou do limpador de trombas,
deixando-o de pé. O velho prisioneiro estava muito fraco. Quase caiu, quando Liszog o
colocou de pé.
— Um plano muito bonito, maravilhoso mesmo — interveio Zerft. — Quer dizer
que este pobre velho tem que desaparecer de noite e correr até sua nave lá longe. Mas a
minha opinião é de que ele vai morrer antes... de fraqueza.
— Não o despreze tanto assim — aconselhou Liszog. — Embora não seja jovem e
forte, certamente não é covarde. Não demonstrou sombra de medo, quando nos viu.
Merece nosso respeito, pois é um homem de coragem.
— É um arcônida — disse Zerft, resumindo tudo.
Liszog conduziu o velho para uma poltrona, onde o coitado caiu extenuado. Zerft
observava tudo com cara de quem não estava gostando. Devia estar preocupado com
alguma coisa.
Golath notava que dentro de si crescia a autoconfiança. Pela atuação positiva de
Liszog, assumira novamente o comando e Zerft estava, momentaneamente, fora de
circulação. Golath era inteligente demais para perceber que seu verdadeiro inimigo não
era o velho arcônida, mas o mau elemento Zerft. Apesar de tudo, remavam os dois na
mesma canoa. O unitro valentão não tinha outro meio, senão ceder ao desejo de seus dois
colegas. O destino do velho arcônida não interessava a Golath. Haveriam de deixá-lo
tranqüilo no planeta, se não se opusesse a seu plano de fuga.
Uma sensação de ardência na tromba fez com que Golath voltasse à realidade, às
coisas concretas. Ligou o automático do limpador de trombas e se deitou ali com todo
conforto. As tiras metálicas o envolveram suavemente. O compressor, semelhante a uma
almofada de carimbo, abaixou delicadamente sua cabeça, colocando-a na altura certa para
que as espirais de limpeza penetrassem com jeito tromba adentro. Respirou mais aliviado.
Olhou depois para Liszog, que continuava pensativo de pé ali ao lado. Zerft mexia
impaciente em sua roupa toda rasgada.
— Fique de olho nele — avisou Golath.
Depois fechou os olhos e, descontraído, se entregou às benfazejas massagens do
braço espiralado, que lhe friccionava com líquidos apropriados o interior da tromba.

***

Era realmente uma sensação estranha viver constantemente no limiar da morte, mais
para lá do que para cá. Crest sabia que se estava vivo, o devia somente à falta de união
existente entre os unitros. Já por duas vezes tivera o cano da pistola energética a poucos
palmos de sua cabeça. Por duas vezes sentira o fim de sua vida e... de uma forma tão
simples e... estúpida! Exatamente nestes momentos extremos é que lhe ecoava na cabeça,
como um trovão, a promessa feita a Rhodan. Aceitava calmamente a morte, mas a perda
do Space-Jet não lhe permitia um momento de sossego.
Agora que o maior perigo havia passado, Crest acreditava que haveria de ter uma
chance de salvar aquele milagre da tecnologia terrana e não permitir que seus segredos
fossem descobertos por povos inimigos. O simples fato de os monstros de tromba terem
aparecido novamente nos escombros da nave já era uma prova de que não conseguiram
quebrar o envoltório de proteção. Certamente não iriam desistir. Teriam forçosamente de
se apoderar do jato para poderem sair do planeta.
Crest não ignorava o que um ser inteligente pode fazer, quando se encontra numa
situação de desespero. Seus adversários estavam dispostos a tudo. Eram fortes, jovens e,
além disso, possuíam armas muito poderosas.
Cansado e alquebrado, o velho arcônida começou a pensar no que um ancião como
ele poderia fazer, usando a inteligência. Seu corpo estava quase enrijecido, pois ficara por
longo tempo no suplício: o lavador de trombas. Graças a Deus que o colocaram naquela
poltrona. Aos poucos a circulação sangüínea começou a voltar ao normal. A dor de
cabeça desapareceu.
A suposta armadilha não era outra coisa senão uma aparelhagem automática para
lavagem e massagem das trombas daqueles seres estranhos. Quase não acreditando no
que via, presenciou como um deles se deitou naquele estrado. Compreendeu a finalidade
da instalação, e não conseguiu livrar-se de um sorriso. Os três seres trombudos fizeram
uso da aparelhagem, um após outro. Crest os ficou observando. Não se podia ainda
pensar numa possibilidade de fuga. Tinha que ponderar muito cada passo que desse. Não
iria mais cometer nenhum erro. Passou a mão pelo cabelo, que já estava quase seco.
O véu da noite começou a envolver o planeta, que seria chamado por Perry Rhodan
e por toda a civilização terrana de planeta Crest.
A claridade tornou-se rara na sala de comando da nave acidentada. Crest se sentia
muito cansado. Pela primeira vez em sua vida, lamentou ser tão velho assim. Que lhe
adiantavam suas armas espirituais, quando seus adversários eram fisicamente muito
superiores. A eterna discussão entre a inteligência e a força bruta parecia pender agora
para o lado desta última.
O ser de tromba, o mais alto deles, que por duas vezes salvara a vida de Crest,
chegou até o arcônida.
— Eu sou Golath — disse ele num pesado intercosmo.
Crest assentiu delicadamente.
— Meu nome é Crest — na cabeça do velho havia um turbilhão de pensamentos,
sobre se os três degredados eram de alguma longínqua colônia arcônida.
— Nós de Unitro — explicou Golath, enquanto apontava para si e para os dois
colegas.
Depois ergueu a tromba na direção de Crest.
— Você arcônida?
“Ele não tem nenhuma simpatia pelo meu povo”, pensou Crest. “Eu não o culpo por
isso.”
Golath continuou fitando o arcônida, muito pensativo. Crest gostaria de saber quais
os pensamentos existentes naquela cabeça disforme. Era muito difícil tentar medir os
sentimentos de um ser estranho pelos traços de sua fisionomia.
— Você nos dar objeto que voa pelo espaço das estrelas — exigiu Golath sem mais
rodeios.
Preocupado, Crest perguntava a si mesmo o que aconteceria se os monstros
descobrissem a significação daquele pequeno transmissor de pulso.
— Ele me pertence — disse Crest, com clareza. — Vocês não podem tocar nele.
Golath arrancou a arma, apontando-a para o peito de Crest. Os olhos avermelhados
do arcônida fitaram tranqüilos o estranho. No seu rosto enrugado, nenhum músculo se
mexeu.
— Você agora entregar aparelho? — perguntou Golath já com mais esperança.
A pistola continuava apontada para o velho arcônida.
A resposta de Crest foi mais uma vez concisa e clara:
— Não!
O unitro guardou novamente a arma. A tromba voltou à posição normal. Pelos seus
grandes olhos não se podia saber se estava irado ou não. Com um leve toque de mão no
ombro de Crest, disse brandamente:
— Você agora prisioneiro.
Crest dispensou qualquer resposta. Era mais do que lógico que os estranhos não
iriam soltá-lo sem mais nem menos. Certamente tentariam mais vezes, com métodos
menos suaves, fazê-lo mudar de opinião. Mas Crest não queria se preocupar com isto
agora. Tinha coisas mais importantes.
Estava de novo sozinho.
“Seu transmissor de pulso”, manifestou-se de novo a parte do seu setor lógico. “Não
chegaram a vê-lo.”
Crest se levantou depressa. A arma escorregara para debaixo da aparelhagem de
limpeza das trombas. Apanhou-a e a escondeu no seu manto; isso feito, voltou para sua
poltrona. O aposento, isto é, a sala de comando, tinha uma outra entrada, que também
estava fechada. Esta entrada devia levar para a parte traseira da nave. O arcônida
lembrou-se de que por lá havia uma fenda regular, dando passagem para um homem de
média estatura. Porém os unitros podiam ter conhecimento desta abertura e,
provavelmente, já a teriam fechado.
Já estava totalmente escuro. O silêncio em torno dele parecia ter vida. Tinha feito
um esforço para guardar na memória todo o ambiente e agora poderia sair em qualquer
direção, sem esbarrar em nenhum objeto, principalmente no aparelho de lavagem das
trombas.
Seus ouvidos pareciam ter sensores especiais na escuridão. Mas, além da sua
respiração, não ouvia mais nada. Levantou-se e caminhou para a segunda saída. De
repente pisou num caco de vidro. O ruído diferente e mais forte lhe penetrou até a medula
dos ossos. Parou assustado. Não o amarraram, portanto teria o direito de se locomover ali
dentro, para olhar qualquer coisa. Depois continuou com todo cuidado.
Levou algum tempo para atingir seu objetivo. Sentiu o frio do metal da porta nas
suas mãos. Na Kaszill tudo era silêncio. Passou a mão, apalpando pelo metal, até achar a
maçaneta. Dobrou-a para baixo com o máximo cuidado e temeroso encostou o ombro
para empurrar a porta. E ela abriu.
Não hesitou mais. Não podia perder sua oportunidade. Não abriu a porta de todo, só
o necessário para ele passar. O lugar em que estava agora lhe era desconhecido, mas
sabia a direção para onde devia fugir. Apressou mais o passo daí para frente. Como ponto
de orientação serviu-se de uma parede que dava para a parte traseira do aparelho.
Crest sorria, embora fosse um sorriso nervoso, quase vizinho do calafrio. Será que
seria tudo tão fácil assim? Será que seus adversários o julgavam tão fraco a ponto de
dispensarem qualquer vigilância sobre ele?
Mas isto não vinha ao caso agora. O importante era sair dali. Assim que alcançasse
o jato, estaria fora de perigo.
Logo em seguida, percebeu a grande fenda na fuselagem. Lá fora ainda não estava
completamente escuro. Através da fenda entrava um pouco da claridade. Sem hesitar,
pulou para a liberdade, já com a arma na mão. Mas ninguém o deteve.
“Os unitros devem estar dormindo em algum lugar da velha nave. Azar deles!”,
refletiu Crest, triunfante.
Disparou o mais depressa que lhe foi possível rumo ao seu precioso Space-Jet.
***

Zerft afastou um pouco a ramagem e se ajeitou melhor no seu esconderijo. Olhava


impaciente escarpa acima. Estava escuro demais para se enxergar alguma coisa.
— Ainda é muito cedo... — observou Golath. — Não nos esqueçamos de que ele é
velho e vagaroso e certamente deve ter esperado um pouco, para que todos dormissem.
Estavam agachados num buraco cavado sob a orientação de Golath, quase encostado
ao jatinho. Quando o arcônida aparecesse, e assim que neutralizasse o campo magnético
de proteção, seria atacado simultaneamente pelos três.
— Estou com um pressentimento horrível — declarou Zerft, muito abatido. —
Alguma coisa não vai dar certo, tenho certeza disso.
— Não fale tão alto — sussurrou Golath. — Ou você quer que ele nos ouça?
Zerft voltou novamente à carga.
— Por que que vocês não me dão nenhuma arma? Dei-lhes minha palavra que não
haverei de estragar esta operação.
Golath contemplava o “amplo vulto”, que estava sentado à sua frente. Hesitante,
balançava uma pistola de raios térmicos.
— Dê-lhe a arma, Golath, isto aumenta também a nossa garantia.
A contragosto, Golath cedeu ao pedido. Zerft apanhou a arma com a tromba,
soltando uma gargalhada esquisita que não agradou muito a Golath.
— Você só pode atirar, depois que ele desligar o envoltório magnético — repetiu-
lhe claramente Golath. — Se atirar antes, nosso plano irá por água abaixo.
— Não se preocupe — disse Zerft. — Que diferença faz se o desgraçado do
arcônida morrer uns momentos antes ou depois?
Liszog estremeceu ao ouvir esta frase estúpida. Para Golath foi simplesmente mais
uma prova evidente de que Zerft não passava de um grande tolo.
O chão em torno deles estava frio e úmido. Golath sentia demais aquela friagem.
Para esquecer o frio, deu rédeas à sua fantasia. E, instantes depois, ele se sentiu na sua
terra, Unitro, quando ainda não era ladrão, trabalhando decentemente. Foi quando
apareceu aquela mulher, com tromba esbelta e bem torneada, de olhos redondos,
transformando sua vida. A partir daí, a vida de Golath tornou-se um inferno. Perdeu a
noção de responsabilidade e começou a fazer coisas que nunca tinha imaginado.
Começou a roubar, com o intuito de aumentar seus rendimentos, para poder dar tudo que
a mulher lhe pedia. Ela não queria saber de onde vinha o dinheiro. Golath encontrou-se
com ladrões profissionais e começou a agir com eles.
No dia fatídico, estava com Zerft e Liszog. Foram presos e receberam o maior
castigo para um unitro: cassação da cidadania e expulsão da comunidade social.
Colocaram-lhe à disposição, para saírem para sempre da nação, uma velha espaçonave, a
Kaszill. Poderiam voltar somente quando conseguissem realizar um feito de utilidade
para seu povo. Só então receberiam de volta a cidadania e o respeito de sua nação.
Golath mostrou no rosto uma contração de dor.
Como fora possível perder a cabeça daquele jeito?
O que estava acontecendo agora era uma felicidade que ele não merecia. O destino
parecia conduzido por mãos de fada, dando-lhes a oportunidade de regressar à terra natal,
levando uma grande novidade: uma espaçonave tremendamente moderna. A única coisa
que o entristecia era a morte de um velho arcônida. Mas não havia como evitar esta
fatalidade. Por outro lado, as atrocidades dos arcônidas, cometidas em Unitro,
justificavam a morte do velho solitário.
Liszog movia-se um pouco inquieto, perturbando os sonhos de Golath.
— Que há de novo? — perguntou sussurrando, tentando inutilmente penetrar com
os olhos na escuridão.
Aguçou os ouvidos. Silêncio total em volta. Certamente ouviriam o arcônida antes
de vê-lo. E isto lhes seria favorável, pois o fugitivo não os haveria de ver.
— O velho está demorando demais — disse Zerft obstinado. — Talvez esteja
desmontando a Kaszill, enquanto nós esperamos feito bobos aqui, morrendo de frio.
— Mesmo que desmontasse a Kaszill toda, não perderíamos muita coisa com isto —
respondeu Golath.
Liszog acrescentou pessimista:
— E se ele não achar o caminho para a suposta liberdade?
— Não irá ficar sem fazer nada, sentado na sala de comando da nave em ruínas —
disse Golath com convicção. Fez um movimento com o corpo e um pequeno torrão de
terra úmida rolou até seus pés. — Acho que, em pouco tempo, ele encontrará a grande
fenda que leva para a parte traseira da nave. Irá então perceber que pode muito bem sair
por lá.
Ainda enquanto estava falando, começou a chover. De início o chuvisco, depois
apertou. Zerft abotoou a roupa.
— Está frio demais — disse Liszog, lamuriando-se.
— Tomara que não tenhamos de ficar a noite toda aqui, apanhando chuva fria.
Golath não tinha nada a reclamar, estava até gostando da chuva. A água lhe escorria
pelo rosto. Nas bordas do grande buraco escavado, formavam-se pequenos sulcos por
onde descia a água da chuva.
Durante toda a noite, os três unitros ficaram ali, naquela cova, já agora de barro
mole. Esperavam e esperavam, enquanto o fundo da cavidade se enchia de água. Estavam
completamente molhados e ninguém mais abria a boca para dizer coisa alguma. Liszog
chegou até a cochilar um pouco. Golath o acordou com um leve toque no ombro. Seus
ouvidos continuavam atentos à espera do arcônida. As trombas já estavam ficando rígidas
de frio, e até o próprio Golath estava quase sucumbindo de cansaço.
E o velho arcônida não chegava!
O plano de Golath havia dado alma nova ao grupo dos degredados, mas não dera
certo. Quando começou a clarear o dia, Zerft saiu da grande cova, tão cheia de barro, que
escorregou diversas vezes.
Golath estava cansado e abatido demais, por isso não saltou também para fora
daquela cova barrenta.
Zerft sacou a arma e começou a jogá-la de uma para outra mão como se fosse um
mero brinquedo. Seu semblante denunciava ódio e desespero.
— Há uma única maneira de se viver em paz com um arcônida — gritou ele
brandindo a arma. — É esta aqui!
E saiu correndo sob a chuva. Rapidamente, aquela figura parda ia sumindo de vista.
Golath ficou olhando para ele pela borda da cova.
— O que Zerft quer? — perguntou Liszog.
— Quer matar o velho. Odeia tudo que é arcônida.
Suas mãos se apoiaram na beira da cova toda enlameada, fazendo um grande
esforço para se levantar. Liszog o ajudou a sair. Golath estava agora de pé, todo sujo de
barro.
— Ajude-me a sair também daqui — pediu Liszog, esticando os braços.
Golath sacudiu a tromba.
— Não! — disse ele. — Um de nós tem que ficar aqui. Pode ser que o arcônida
ainda chegue. E você não deve de maneira alguma pegar no sono.
— Eu vou ficar gelado aqui dentro — disse Liszog.
— É melhor agüentar um pouco de frio, do que permanecer para sempre neste
planeta, meu jovem. Não se esqueça disso.
— Para onde você vai, Golath?
— Para a Kaszill. Vou tentar tirar os geradores. Não tenho dúvida de que vamos
precisar deles para entrarmos no pequeno aparelho do arcônida.
— Volte logo — pediu Liszog.
O grande unitro já desaparecera. Liszog ficou sozinho na chuva, cercado de água e
barro, sem ouvir o menor ruído. Seus olhos se esforçavam para ver alguma coisa no
lusco-fusco do dia chuvoso. A solidão era total e o coitado começou a sentir-se isolado.
De repente um pensamento tomou corpo em sua mente apavorada. Era uma idéia
fixa de que não se podia livrar: nos esforços malucos que estavam fazendo para
regressarem a Unitro, ele, Liszog, haveria de perder a vida.
E ninguém iria chorar por isto, ninguém se incomodaria se ele morresse. Nem Zerft,
nem Golath tinham sentimentos de amizade por ele. Estava de qualquer maneira sozinho,
ali naquele buraco cheio de barro, morrendo de frio. A milhares de anos-luz de sua pátria.
Se quisesse voltar para Unitro, teria realmente que matar um homem — um homem
velho. Quem lhe dava o direito de fazer isto?
Porém, apesar de todos os escrúpulos, sabia que mataria o prisioneiro, caso fosse
necessário.
Tinham que se apossar da pequena espaçonave.

***

Crest acreditava que se afastava do Space-Jet sempre com maior velocidade. Na


realidade, porém, sua fuga ia muito vagarosa. Constantemente tinha que parar, pois sua
respiração estava ofegante. Também suas pernas não agüentavam mais.
Quando caiu, não foi porque tropeçou. Seus joelhos é que cederam, de tão fracos
que estavam. Bateu duro no chão e ali ficou com a respiração descompassada, de rosto
colado na terra fria. Seu corpo estava tão extenuado que só com o empenho de todas
forças foi que conseguiu pôr-se de pé. Sua maior preocupação era morrer de cansaço,
antes de poder salvar o jatinho.
Foi se arrastando mais uns metros para frente, mancando, pois o tornozelo lhe doía
muito.
Será que já sabiam de sua fuga? Talvez até os perseguidores já estivessem em seu
encalço... ou então escondidos perto do local onde estava o Space-Jet, para depois que
desligasse o envoltório de proteção, atacá-lo e... matá-lo.
“É isto mesmo”, dizia seu setor lógico. “Sua fuga foi fácil demais. Você iria levar
seus inimigos exatamente para o lugar onde você não quer vê-los: isto é, para dentro do
jato.”
Crest parou por um instante.
— Será que estava cego? — perguntou a si mesmo.
Ou eles estavam escondidos bem perto dele, na escuridão, ou num bom esconderijo
ao lado do Space-Jet. Por um triz, não ia caindo na armadilha.
Algumas gotas de chuva lhe bateram na testa. Depois, os pingos engrossaram.
Crest se sentia em péssimo estado. Perguntava a si mesmo de onde tirava as energias
para continuar lutando, a fim de salvar a nave.
Lutar?
Ele mesmo achou engraçado a palavra lutar, pois até então não fizera outra coisa a
não ser fugir deles.
Que podia fazer agora? A região em torno do jato tomar-se-ia muito perigosa para
ele, seria melhor não ir para lá. Só havia uma possibilidade e, mesmo assim, pouco
promissora. Devia se embrenhar na floresta. Para um rapaz moço, isto não seria problema
algum. Mas para um velho arcônida, representava um esforço inaudito, lutar contra
plantas venenosas e principalmente contra animais perigosos. Se penetrasse pelas
florestas, talvez não voltasse mais.
Apesar de tudo, e mesmo mancando, continuou sua marcha, parando a toda hora,
por falta de força. Virou a cabeça para trás e abriu a boca. Por uns momentos deixou que
a água da chuva corresse por sua garganta ressecada. Isto lhe fez muito bem. Uma outra
coisa que o ajudava um pouco era também a menor gravidade. É verdade que a diferença
era bem pequena: um sexto menor que a da Terra. Mas esta pequena diferença já ajudava.
Quando chegou de volta aos escombros da nave dos unitros, a articulação do pé
doía-lhe demais. Tirou as sandálias e examinou o ferimento. O tornozelo estava muito
inchado e ao mesmo tempo muito quente. No posto, perto de sua casa, tinha toda espécie
de medicamento para o caso. Mas não pensava em ir para lá. Rasgou uma tira de tecido
do seu capote. Umedeceu o pano numa poça de água de chuva e envolveu com ele o pé,
apertando bem. Era tudo que podia fazer no momento.
Havia o maior silêncio em torno dos escombros da nave unitra. A chuva tamborilava
em seu exterior metálico. Crest estava certo de que os seres de trombas esperavam por ele
lá no Space-Jet de armas na mão. Mas haveria de dificultar ao máximo as ações dos
seqüestradores, até poder salvar o jatinho. Queria provar aos unitros que um arcônida era
um arcônida, mesmo velho e alquebrado.
6

Chegou até a margem da floresta sem ser molestado. Seu corpo estava mais pesado
do que chumbo, sua roupa totalmente encharcada, colando na pele. A dor no pé cedeu um
pouco. Pela chuva constante, o solo estava tão amolecido, que seus pés se afundavam no
barro, às vezes por muitos centímetros. Surgiram as primeiras árvores.
E Crest continuou cambaleando pela floresta adentro. Parou, se recostou grato no
tronco de uma árvore gigantesca. A densa copa, de ramagem intensa, servia de abrigo
contra a chuva. Crest sentia nas costas a superfície irregular da casca, que emanava um
cheiro desagradável. Mais para dentro da mata, ouviu um estranho sussurrar, que o
chamou à realidade.
Não devia esquecer que aquelas florestas eram muito perigosas. Os lançadores de
ácido, animais terríveis, só atacavam de dia. Mas os animais de longos chifres, que
viviam perto dos brejos ou junto dos lagos, eram muito abundantes e só agiam à noite.
Era na escuridão que estes monstros cilíndricos, com muitos metros de comprimento,
saíam de suas tocas para se alimentar. E o interessante era que com suas patas curtas estes
anfíbios pesadões desenvolviam grande velocidade. As duas patas dianteiras, mais
espalmadas, agiam como ventosas, dando-lhes melhor movimentação ou facilitando a
captura de suas vítimas. Revestidos de grandes e grossas escamas, podiam cavar tocas
com grande facilidade. Do focinho sobressaíam duas grandes presas, terror de todos os
demais animais da floresta e por que não, no momento, do pobre Crest?
O arcônida estava se lembrando do relatório de seu patrício Ufgar, descobridor e
primeiro explorador do planeta, que mais tarde recebeu seu nome. Dois dos
companheiros de Ufgar foram atacados por estes monstros. E os lançadores de ácido
chegaram a matar três exploradores. A pistola energética, usada a tempo, poderia salvar
Crest destes perigos.
O cientista sabia que precisava urgentemente dormir um pouco. Dormir ali no chão
equivaleria a um suicídio. Desprendeu-se da árvore onde estava encostado e penetrou
pela floresta adentro. Galhos e plantas rasteiras, principalmente uma infinidade de cipós,
lhe dificultavam os movimentos. Ficou muitas vezes emaranhado, quase sem se poder
mexer. Finalmente, descobriu uma árvore, cujos galhos eram suficientemente amplos
para abrigar seu corpo em posição tolerável. Levando em consideração sua idade e seu
grande esgotamento, Crest exibiu uma performance quase olímpica, quando trepou nos
galhos da árvore.
Ali estaria protegido contra os anfíbios chifrudos, cavadores de terra, cujos corpos
não eram feitos para galgarem árvores mais altas. Procurou um galho mais largo e deitou-
se do melhor modo que pôde, com as costas apoiadas no tronco. Não havia propriamente
conforto, mas dava para descansar. Ouviu por alguns momentos o sibilar do vento nas
folhas, caindo logo depois em sono profundo — sono de esgotamento.

***

Acordou com o barulho da passarada, pulando e cantando por todos os lados. Já era
dia claro. A chuva terminara e a temperatura estava agradavelmente quente. Crest
esfregou os olhos. Contrariando sua previsão, sentia-se refeito e bem-disposto. O
descanso fizera bem até para seu pé machucado. Tinha, porém, fome. Não longe dele, um
pássaro todo vermelho expandia sua queixa sonora contra a presença de Crest naquela
árvore. Assim que Crest fez um movimento com o corpo, bateu asas.
Olhou para baixo.
Sentiu um calafrio. Acabou de despertar na mesma hora. Sua boa estrela estava se
apagando.
A poucos metros do local de seu repouso, estava um dos monstros de tromba, já
com a mão na pistola de raios térmicos.

***

A cólera e o ódio haviam desaparecido de seu rosto, dando lugar uma certa
ponderação. Era mesmo descabida loucura andar correndo feito um doido no meio da
floresta. Deste jeito, jamais encontraria o arcônida. Cada vez que pensava em Golath e no
seu fracassado plano, a cólera lhe invadia o ser. Se, desde o começo, tivessem tratado o
arcônida com muito mais severidade, tal problema não teria acontecido. Amaldiçoava o
fato de estar na dependência de Golath, que era o único que sabia dirigir o pequeno
aparelho a jato.
Zerft não tinha dúvida de que seu prisioneiro teria fugido para estas bandas.
Quem sabe teria o velho percebido a jogada dos três degradados?
Zerft remexera toda a Kaszill, sem encontrar o velho fugitivo. A escotilha da parte
traseira estava aberta. Golath não se enganara quanto ao caminho de fuga, mas somente
quanto ao seu destino. Infelizmente a chuva forte apagara qualquer vestígio da passagem
do velho, não restando para Zerft nenhum indício de orientação.
Ao clarear do dia, Zerft deixou a Kaszill e caminhou para a floresta, onde, conforme
seus cálculos, encontraria o velho arcônida. Olhou uma vez para trás e percebeu que
Golath estava entrando naquela hora para os escombros. Mas os novos planos do seu
odiado colega não lhe interessavam mais.
Zerft ponderou que o fugitivo era uma pessoa de idade, que certamente não iria se
embrenhar floresta adentro. Com isto, diminuía a área que tinha de vasculhar.
Sistematicamente, começou a inspecionar o terreno em volta.
Já andara bastante, quando lhe apareceu o animal exótico. Seu tamanho não passava
da metade do corpo de Zerft, de maneira alguma tão “amplo” como ele. A princípio,
parecia até uma coisa ridícula. Dava a impressão de ser constituído de duas partes
diferentes: uma inferior, mais fina e arredondada, e da cabeça grande e ovalada. A parte
inferior do corpo era coberta de pêlo espesso e preto. Este pêlo era tão comprido
embaixo, que lhe escondia as patas. Quando caminhava, dava a impressão de ser
transportado por um colchão de ar. Zerft concluiu que o animal dispunha de muitos pés.
Ao contrário da parte inferior, a cabeça do estranho bicho era completamente lisa. A
grande quantidade de minúsculos olhos dava a impressão de pequenos orifícios escuros.
Havia ainda outros orifícios na parte superior, cuja finalidade Zerft desconhecia.
Por um momento os dois adversários se entreolharam. O animal parecia tão surpreso
quanto Zerft. Fitou-o sem fazer o menor movimento, acabando por soltar um guincho
estridente, que não perturbou a curiosidade de Zerft perante aquela visão sem-par.
Segundos após, se repetiu o mesmo guincho, sendo que, então, o animal começou a se
mover lentamente no sentido oposto.
Zerft supôs, sem ter nenhuma razão para isto, que o bicho caminhava na direção do
arcônida e o foi seguindo. Quando o animal percebeu seus passos atrás dele, parou,
olhando desconfiado para o unitro.
— Toca para frente, bicho imundo, ou eu te quebro as pernas.
Não ligando à ameaça, o animal continuou olhando firme para Zerft. Dava a
impressão de estar mastigando alguma coisa. Devia estar irritado pela invasão dos seus
territórios.
Mais por curiosidade do que por maldade, Zerft fez um movimento brusco com a
tromba, para obrigar o animal a continuar seu caminho.
Foi neste instante que ele ficou sabendo do significado dos outros orifícios na
cabeça do animal. Um jato fino e de boa pressão de um líquido desconhecido o atingiu
em cheio, causando-lhe uma ardência nos ombros.
Zerft viu que uma gosma amarelada lhe escorria dos ombros, produzindo um pouco
de irritação na pele. Talvez fosse esta a arma de defesa do animal. Estava, pois,
convencido de que, fora essa pequena demonstração de irritação, o animal era inofensivo.
Continuou tocando-o para frente, ou melhor, tentando tocá-lo para frente. Notou que não
conseguia intimidá-lo, pois o lançador de líquidos continuou parado.
— Vamos embora, seu sapo dos infernos!
Um novo jato de líquido o atingiu, obrigando-o a um grito muito forte e a dar dois
passos para trás. Olhou horrorizado para o braço. Num piscar de olho, o líquido produzira
uma ferida funda na carne. As dores quase o fizeram desmaiar. Sacou da pistola de raios
térmicos, mas seu adversário já não estava ali. Olhou furioso em volta.
Ao que parecia, o estranho animal tinha a faculdade de temperar ou graduar a
virulência do seu veneno, de acordo com a situação. O primeiro jato não passara de
simples admoestação. Se Zerft tivesse ido embora, nada lhe aconteceria. Continuou
provocando o animal e teve que arcar com as conseqüências. Seu braço doía muito e
sangrava bastante.
Rasgou depressa uma tira de pano de sua roupa e fez uma atadura bem apertada no
local da ferida. Assustado, ficou medindo a possibilidade de este ácido conter um veneno
que o pudesse depois paralisar ou mesmo lhe provocar a morte. Numa lógica confusa,
colocou o arcônida no meio de tudo isto.
“O velho é o grande culpado”, pensou irado. “Desde que ele apareceu, não tivemos
mais sorte.”
O ódio voltou a seu coração.
“Os arcônidas! Os malditos que durante séculos e séculos escravizaram meu povo”,
recordou-se, “até que com muito sacrifício conseguimos nos libertar da antiga
servidão...”
O ódio contra Árcon estava arraigado em todo unitro. Para Zerft, de nível mental
relativamente baixo, arcônida era sinônimo de escravização. Para ele, não havia nenhum
tom intermediário entre o preto e o branco. Não era capaz de ter tolerância para com
ninguém, nem para com nada. Nunca tivera a idéia de procurar dentro de si mesmo a
causa dos contínuos fracassos de sua vida. Eram sempre os outros os culpados. Desta
atitude errada, tinha que se cristalizar dentro dele um rochedo de ódio contra tudo e
contra todos. Tornara-se um misantropo, incapaz de compreensão, muito menos de
amizade.
Com a mão não atingida pelo ácido do animal, carregava a arma. Do estranho bicho
não havia mais sinal. Ele mesmo não estava mais preocupado com o adversário
irracional. Havia uma preocupação maior: Crest.
“Este velho desgraçado vai pagar bem caro por tudo que eu estou passando”,
determinou mentalmente.
E ali estava o degredado, de arma em punho. Um coitado, completamente errado,
que só podia agir guiado por profundos recalques.
Isto, porém, não lhe diminuía a periculosidade...

***

Seu adversário ainda não o tinha visto. Devagar, sem provocar o menor ruído, Crest
puxou a arma, sem perder de vista o indivíduo de tromba, que parecia ferido.
Provavelmente fora vítima de um animal lançador de ácidos. Ufgar, já há muitos anos, se
referira a este animal como uma singularidade daquele planeta. Dizia Ufgar que o animal
só emitia o líquido venenoso contra animais de porte maior, ao se sentir atacado.
Quando o unitro ficou de costas, Crest percebeu seu ferimento. Horrorizado com o
sofrimento alheio, fechou os olhos, por pura compaixão. Passou-lhe até pela cabeça a
idéia de descer da árvore para prestar socorro ao ferido. Mas depois lembrou-se do
motivo por que o unitro andava por ali. Era o mesmo que o havia ameaçado, na nave
destroçada, de arma em punho. Não havia a menor esperança de que desta vez seu
procedimento seria diferente.
Foi então que Crest viu o animal lançador de ácido, que devia estar muito excitado.
O unitro não o podia ver, pois se aproximava por trás. Ufgar explicara a diabólica
esperteza destes animais que davam a impressão de serem totalmente inofensivos.
Crest estava num dilema. Não sabia para que lado pender. Não podia aceitar que um
ser inteligente fosse destruído pela esperteza de um animal. Por outro lado, se prevenisse
o unitro, estaria quase cometendo um suicídio.
Viu o animal se aproximando cada vez mais do unitro. Poucos metros separavam os
dois. Estes animais tinham uma estranha propriedade: podiam regular, conforme a
necessidade, o teor da acidez ou da virulência do seu líquido. De um inofensivo prurido
na pele, até a rápida destruição dos tecidos. Não era preciso ser profeta para prever que
grau de intensidade o animal usaria contra o unitro.
O senso de bondade humana acabou derrotando a própria razão em Crest. Quando o
animal atingiu a posição crítica, para iniciar o jato de líquido destruidor, Crest deu um
grito de alerta.
Zerft fez uma meia-volta com o corpo e seu semblante transfigurou-se.
Instintivamente o animal iniciou seu processo de defesa. O unitro se lançou para o lado.
Sua arma escapou e rolou uns palmos para baixo. Crest foi muito rápido. Pulou de onde
estava e descarregou sua arma contra o perigoso animal, que na mesma hora tombou.
O unitro continuava inerte no chão. Crest julgava que ele estivesse sem sentidos.
Aproximou-se, devagar, com a arma na mão. Quando se agachou para tentar auxiliar o
ferido, a tromba do unitro, que se fingia de desacordado, enlaçou a mão de Crest,
puxando-o para o chão. Horrorizado, Crest percebeu tardiamente que cometera um
grande erro. Não podia fazer nada contra a força bruta daquela tromba musculosa. Sentiu
que dois braços fortes o prendiam. Resignado, teve que aceitar a idéia de que a promessa
feita a Rhodan não seria cumprida. O Space-Jet estava irremediavelmente perdido.

***

Liszog ficou furioso consigo mesmo quando notou que havia dormido. Ergueu-se do
buraco com muito medo. Já era dia claro e não havia mais chuva. Um sorriso bailou no
seu rosto quando viu diante de si, no mesmo local, o lindo jato terrano. Nem queria
pensar o que Golath ou Zerft teriam feito dele se o arcônida tivesse chegado até o jatinho,
por falta de vigilância. Liszog saiu da cova e olhou em volta. Não se via ninguém por
perto, nem Golath, nem Zerft, nem o arcônida. Tinha a sensação de muita sujeira na
tromba e nada desejava tanto como voltar para a Kaszill para fazer uma lavagem. Correu
até o lago e entrou na água para se livrar do barro e matar a sede. Depois, começou a
pegar pedras com a tromba e atirá-las n’água.
Desejava ardentemente que Golath voltasse o quanto antes, pois se sentia
desamparado naquele mundo estranho. Só ficaria tranqüilo mesmo quando pudesse voltar
para Unitro, se é que isto fosse acontecer.
Voltou para o lugar de antes e se agachou ao lado da cova barrenta. Sentia uma
espécie de desânimo e indiferença.
Viu então a figura enorme de Golath, no alto da rampa. O unitro lhe fez um gesto
com a mão. Trazia uma caixa pequena e outros objetos. Zerft não se encontrava em sua
companhia.
Liszog se levantou. Seu desânimo desapareceu. Sentia, agora, vontade de fazer
qualquer coisa para voltar para sua terra. Foi ao encontro de Golath.
— Você dormiu! — afirmou ele zangado.
Liszog sorriu sem jeito, ajudando Golath a carregar os objetos.
— Por sorte sua e nossa, parece que não houve nada de extraordinário esta noite —
disse Golath mais compreensivo. — Preste atenção para não deixar cair nada.
Liszog olhava com desconfiança aqueles objetos que Golath tirou da nave
semidestruída. Não entendia quase nada de máquinas e peças mecânicas, tendo até medo
destas coisas.
— O que você vai fazer com tudo isto?
— O que tenho aqui ainda não é suficiente. Amontoei lá perto da Kaszill muitas
coisas que você irá buscar para mim.
Já haviam atingido a beira do lago, e Golath continuou a falar:
— Talvez eu consiga construir ou montar um gerador de campo magnético por meio
do qual eu possa neutralizar o envoltório de proteção que nos impede de chegar até a
nave.
Com cara triste de quem não acreditava no que ia fazer, Liszog olhou para o
aparelho tão bem protegido.
— Você acha que vai dar certo?
— Isto vai depender da intensidade de energia que protege o pequeno aparelho, isto
é, vai depender de quem produz mais energia, o meu gerador ou esta fonte invisível que
alimenta o envoltório.
Liszog, pensativo, agitou a tromba.
— De que maneira o arcônida poderá neutralizar esta camada protetora que impede
a entrada no aparelho? — perguntou Liszog. — Será que ele vai fazer isto de dentro da
casa?
— Acho que não. Acredito que ele possua consigo um aparelho qualquer, e fazendo
uso de tal mecanismo, desligue o envoltório de proteção da pequena espaçonave — levou
a mão em concha sobre os olhos, fitando Liszog como se o estivesse vendo pela primeira
vez na vida. — Que burro que eu fui! Por que não pensei em revistar o arcônida?
Teríamos encontrado o aparelho e economizado todo este trabalho.
— Zerft já o terá prendido de novo, com toda certeza — disse Liszog. — Podemos
então ver se o velho traz mesmo algum aparelho, como você falou.
— Se Zerft o encontrar, não nos restará mais nenhuma possibilidade de procurar
alguma coisa na roupa do velho arcônida — concluiu Golath, visivelmente abatido.
Liszog ficou sério. O desânimo se apoderara de novo dele. Chegaram até perto do
Space-Jet, pondo no chão os vários objetos retirados dos escombros da Kaszill.
— Chegamos! — disse Golath com alegria, procurando um lugar seco.
Liszog ficou olhando para ele, parado. Começava a sentir uma leve simpatia por
Golath, acima de tudo, um homem positivo e intrépido. Estava sempre preocupado em
melhorar a situação, usando para isto sua grande experiência. Era muito diferente de
Zerft, cujas reações eram primitivas e quase irracionais.
— Seria melhor você ir agora — opinou Golath. — Deixei tudo arrumado na sala de
comando.
Liszog concordou. Em pensamento, já estava deitado sobre a aparelhagem de limpar
as trombas, pois o próprio Golath teria também aproveitado a ocasião para fazer a mesma
coisa.
— Não demore — pediu Golath — e esteja sempre muito atento a tudo. Se Zerft
aparecer por lá, não se deixe levar por ele.
— Vou fazer o que você está dizendo. Não se preocupe.
Subiu a rampa. Quando olhou lá de cima, Golath já estava em pleno trabalho.

***

Por mais que Crest tentasse reagir contra a tromba e os braços fortes do unitro de
cento e cinqüenta quilos, jamais poderia escapar. Já estava vendo pontos coloridos diante
dos olhos e se sentia quase enforcado, respirando muito dificilmente. Seu adversário,
embora ferido, não o largaria.
O brutamontes não iria ter consideração por quem lhe salvara a vida!
As mãos de Crest, agarradas no seu adversário, não tinham força para determinar
qualquer mudança na sorte daquela luta. Sua arma térmica, há muito rolara no chão. Todo
o esforço do velho e fraco, mas inteligente arcônida, visava apenas atrasar o momento da
morte.
Com sua força descomunal, Zerft rolou no chão, até ficar em cima de Crest. A
impressão do velho era de que todos os seus ossos já estavam quebrados, não só pela
força descomunal do unitro, mas principalmente pelo seu peso. Fechou os olhos e viu que
seu poder de reação estava chegando a zero.
Veio, porém, o socorro de onde não podia esperar. O lançador de ácido, atingido
mortalmente pela descarga dos raios térmicos, conseguiu ainda se erguer. Cambaleando,
deu uns passos na direção do emaranhado dos dois corpos e, sem medir muito a distância,
soltou o último jato de seu líquido peçonhento. Último porque, com o esforço ingente,
morreu.
Este jato, produto de uma reação automática do terrível animal, fez Zerft dar um
grito estridente. Fora atingido nas costas. Continuou gritando e, sem o perceber, largou
seu adversário, e passou a esfregar as costas contra o chão úmido da floresta. O pobre
arcônida levou uns segundos para entender o que se passara. Depois, arrastou-se e
agarrou a pesada arma do unitro. Este, desvairado de dor, tentava apalpar o local em que
fora ferido. Viu Crest apanhar sua arma. Apesar da dor imensa, tentou mudar de posição
para atacar o velho.
A vista de Crest ainda estava turva. Divisou o adversário apenas como uma sombra
indefinida. As mãos lhe tremiam. O monstro se aproximava, seria o fim para ele.
Desesperado, atirou na grande silhueta que oscilava e ia crescendo em sua direção. O leve
trepidar da arma foi o sinal evidente de que, sem conseguir ver o que seus dedos
apertavam, acertara no uso da estranha arma.
Um raio de luz fortíssimo vibrou no ar, dando uma coloração diferente no tom verde
da mata. O vulto ameaçador desaparecera. Crest queria se levantar para ver o que
acontecera. Mas não teve forças. Parecia estar com tontura. Tudo que via em torno, eram
pontos coloridos. Conseguiu se ajoelhar, arrastando-se um pouco para frente. Alguma
coisa estava no seu caminho. Apalpou. Era macio. Teve que constatar com horror que era
o cadáver de Zerft. Tinha-o matado.
“Ele o atacou e ia matá-lo”, manifestou-se de novo seu cérebro lógico. “Você teve o
direito de defender sua vida.”
Sua vida? Que negócio é este? Ele não foi ali para morrer? Por que devia ele
defender uma coisa, com cuja perda já estava de antemão conformado?
Ah! O Space... Era isto, pois Rhodan dissera que não podia de maneira alguma cair
nas mãos de outros seres. A Terra tinha de manter com unhas e dentes os pontos positivos
de sua tecnologia, se não quisesse decair rapidamente, cedendo a liderança para povos
selvagens.
“Parece que é este mesmo o meu destino: lutar em prol da Humanidade”, pensava
ele.
Sua visão foi melhorando aos poucos. Na sua frente jazia a figura colossal do
primeiro ser inteligente de tromba que vira em toda a sua vida. Estava morto.
Escondidas em seu corpo alquebrado e totalmente extenuado, havia reservas de
força de vontade, capazes de pô-lo de pé. E agora, Crest era portador de uma arma tão
poderosa como a de seus adversários, ainda vivos. E já era tempo de se aproximar do
pequeno aparelho para ver o que os dois unitros tencionavam fazer.
“Quem sabe já estão prestes a neutralizar a poderosa proteção magnética?”
Este pensamento lhe deu ainda mais força e foi caminhando.
“Se alguém, sem nenhuma idéia preconcebida, me estivesse reparando agora,
haveria de mudar sua idéia errada sobre a decadência da raça arcônida”, pensava ele.
Apesar de sua avançada idade, tivera um comportamento extraordinário. Sem dar
conta do que fazia, caminhava agora ereto, como se fosse um rapaz de trinta anos.
Durante uma longa fase de sua vida, renegara abertamente sua raça. Não se tornara
de fato um terrano, em palavras e ações?
Mas haveria de morrer como um arcônida.
E se sentia orgulhoso disso.
7

No momento em que Liszog ia entrando pela escotilha da Kaszill, passou-lhe pela


cabeça a idéia de que o arcônida pudesse estar a bordo da velha e acidentada nave. Ficou
parado. Habituara-se com o fato de os outros tomarem decisão por ele, sendo que
geralmente aceitava o que os outros diziam. Ali não havia ninguém para aconselhá-lo,
nem para tomar decisões por ele.
Golath dissera apenas que tudo estava na central de comando. Depois que Golath
saíra dali, o velho arcônida podia ter chegado e se escondido por entre os escombros.
Com toda a solenidade, Liszog puxou da arma. Certamente seria mais seguro entrar
na nave pela grande fenda do bojo. Pulou da escotilha para fora, para o ar livre,
observando bem a floresta, pois tinha esperança de ver Zerft. Mas, em volta, estava tudo
na maior calma. Liszog foi caminhando pela grande fenda, aberta com a queda da
Kaszill. No corredor, que dava para a central de comando, havia pouca claridade. O
jovem unitro não se sentia bem. Pegou firme a grande arma térmica e continuou seu
caminho. A porta da central de comando estava apenas encostada. Procurou não fazer
ruído.
Sua precaução se mostrou logo inútil. O recinto estava vazio. Viu os objetos de que
Golath falara, reunidos na outra entrada. Tudo estava em ordem.
Respirou aliviado, dirigindo-se então para a aparelhagem de limpar a tromba. Notou
que seu mecanismo ainda estava funcionando. Cansado, deitou-se no estrado e começou
o longo cerimonial da limpeza. Assim, achava-se ele, deitado na aparelhagem, quando
Crest, sem suspeitar de nada, ia entrando pela escotilha semi-aberta.

***

O corpo de Crest se transformou numa síntese de dores. Seus esforços inauditos dos
últimos dois dias cavaram sulcos no seu rosto magro. Eram visíveis os sintomas de um
superesgotamento. Seus olhos estavam fundos, seus belos cabelos, de ordinário sempre
bem penteados, desgrenhados e sujos. A magreza de seu corpo estava pessimamente
velada pela capa toda esfarrapada.
Se o arcônida ainda parava de pé e caminhava, devia-o tão-somente à sua grande
força de vontade. Era esta vontade inquebrável que lhe dava energia para agir. A arma
dos estrangeiros parecia ter arrobas de peso, mas era obrigado a carregá-la. Seria o fator
decisivo na luta final pelo Space-Jet.
Saiu da floresta. O pequeno trecho entre as árvores e o lago pareceu-lhe um deserto
sem fim. No meio deste deserto havia um oásis, um ponto escuro, isto é, os escombros da
nave dos unitros.
— Você tem que continuar sua missão! — dizia para si mesmo.
As palavras quase não se ouviam mais devido aos lábios rachados.
“Vá até os escombros da nave dos unitros. Lá você poderá descansar um pouco”,
disse a parte lógica do seu cérebro.
Ouviu ainda outra voz, fria e firme. Ecoava em sua cabeça como se fosse um som
real:
“— O Space-Jet não pode, de maneira alguma, cair em mãos de inteligências
estranhas.”
Perry Rhodan! Era a voz dele e ouviu também quando ele disse, num tom de amarga
despedida:
“— Obrigado, amigo!”
Crest começou a caminhar. Já havia perdido a tira de pano que envolvia seu pé
machucado. Não valia mais a pena amarrar outra. Tentaria apoiar o peso do corpo mais
do lado não machucado. Estava conseguindo andar muito melhor do que supunha. A
distância até os escombros da Kaszill pareceu-lhe desta vez um pouco mais curta.
Calculava que os dois unitros estivessem ocupados com o jatinho, lá perto da casa.
Com muito sacrifício chegou até a Kaszill. Claro que não sabia o nome da nave e
mesmo não lhe interessava sabê-lo. A cabeça lhe ardia em febre. Na noite de chuva, havia
se resfriado, dormindo molhado naquela árvore. Não se lembrava mais quando fora a
última vez que se alimentara.
A carcaça escura da nave acidentada já não lhe era estranha. O que teria levado
aqueles três unitros e fazerem uma aterrissagem tão desesperada? Exatamente neste
planeta?
Crest pôde deduzir que, pela forma do choque e dos escombros, tratava-se de uma
espaçonave de decolagem e aterrissagem vertical. Quem quisesse se aventurar em
cosmonáutica, tinha que contar com perdas assim, mormente nos primeiros anos de
desenvolvimento tecnológico.
Crest entrou pela escotilha, que era bem grande, em decorrência da estatura dos
seres de tromba. O péssimo estado da espaçonave permitia concluir que ela não
representava o padrão tecnológico da cosmonáutica dos unitros. Talvez tivessem feito
uma aterrissagem de emergência... Sendo assim, era mais que justificado seu interesse
pelo Space-Jet. Provavelmente não dispunham de aparelhagem de rádio que lhes
permitisse entrar em contato com sua pátria e pedir socorro. Podia ser também que a
aparelhagem de rádio se danificara em conseqüência do choque contra o solo.
Automaticamente, Crest pensou na Solar System, ao lado da qual a velha nave dos
unitros parecia um brinquedo.
O velho cientista continuou seu caminho, apoiando-se com a mão na parede. A sorte
de ter visto Liszog uns segundos antes que este o enxergasse, salvou a vida de Crest.
Liszog atirou do estrado onde estava deitado, mas os raios térmicos atingiram
somente o grosso metal da escotilha, atrás da qual Crest se abrigara. Estava certo de que
na velha Kaszill só podia estar um dos unitros. Se saísse da nave, iria se expor como alvo
fácil, pois o terreno plano não oferecia nenhuma proteção contra este tipo de arma.
O que será que seu adversário iria fazer agora?
Era importante prever as reações do unitro. Não podia esperar até que o indivíduo de
tromba executasse seu plano, pois então seria tarde demais. Crest se colocou mentalmente
na posição do adversário.
O ataque não podia vir da central de comando. O adversário haveria de supor que
Crest estaria atento atrás da escotilha, pronto para fazer fogo a qualquer movimento
suspeito. Portanto, haveria de subir pela fenda do bojo da Kaszill, para pegá-lo de
surpresa pelas costas.
O velho arcônida esgueirou-se, procurando uma melhor posição, e olhou com
cautela para o outro lado. Viu o unitro de pé sob a curvatura da parte traseira da nave.
Disparou sua pesada arma. Seu adversário se jogou no chão e o feixe de raios passou
rente a ele. Crest maldisse a oportunidade perdida. Dificilmente teria outra tão boa.
Quando olhou de novo, o unitro havia já desaparecido pela fenda, entrando
naturalmente nos escombros. Crest não ignorava que seu adversário era muito mais ágil e
resistente do que ele. Tinha todas as vantagens na luta.
A câmara da escotilha, onde estava, iria se transformar numa armadilha, que teria
que abandonar o mais depressa possível. Quem sabe seu adversário estava de novo na
central de comando, para estudar nova estratégia.
Crest deixou a escotilha e foi para fora. Com dificuldades, foi mancando para a
parte calcinada da espaçonave, que era o final da fuselagem. Escondeu-se atrás de uma
chapa metálica retorcida. Não demoraria muito até que o unitro constatasse que a
escotilha estava vazia. O jovem degredado seria suficientemente esperto para calcular o
novo esconderijo do arcônida. A parte traseira da Kaszill, na confusão dos destroços e
chapas de metal arrancadas, oferecia muita possibilidade para se esconder.
Crest lamentava poder ver de seu novo esconderijo somente a entrada para a
escotilha, não a fenda no bojo. Isto permitia a seu adversário chegar até ele quase sem ser
visto. Bastava dar a volta.
Um lampejo amarelado fez o ar estremecer e o obrigou a fechar os olhos. Teve
vontade de revidar o tiro. Porém, logo calculou que este tiro era só para descobrir o seu
paradeiro. O unitro não sabia, portanto, a posição exata do arcônida.
Crest mediu bem de que direção viera a descarga. Olhou cauteloso pela fresta da
chapa de ferro. A parte da frente da nave dava a impressão de estar abandonada e não
muito longe dele. Não se via nenhum sinal do inimigo.
O segundo tiro de sondagem do jovem unitro arou uma faixa comprida do chão,
dando-lhe uma cor escura. O capim queimara; a fumaça e o cheiro acre provocaram as
narinas do arcônida. Comprimiu o rosto com as duas mãos, para não ter que espirrar. O
sulco no chão provocado pelo segundo disparo estava apenas a um metro de Crest.
Mas ele sabia agora onde o jovem unitro estava escondido. Tomando-se o eixo da
parte traseira da fuselagem como referência, Liszog devia se encontrar, no momento do
tiro, a uns trinta graus de Crest. O lugar onde estava devia lhe dar boa cobertura. E, além
de tudo, seria muito difícil para o cientista atirar naquela direção. Teria que ficar de pé e
isto significava quase um suicídio em se tratando de armas daquele tipo.
Mas por dois motivos, Crest tinha que terminar logo aquele combate. Primeiro,
havia o perigo de aparecer por ali de repente o segundo unitro, o que equivaleria
praticamente a perder a luta. Segundo, muito mais importante e realmente decisivo era o
fato de que a situação do estado geral de Crest, sua saúde, inspirava-lhe grande cuidado.
Crest não tinha medo de nada, mas nem por isto deixava de conhecer sua fraqueza.
Era um cientista, e não um soldado treinado para a luta. Seus problemas eram a
programação de computadores e a pesquisa dos fatos das ciências naturais. Tinha bons
conhecimentos de estratégia cósmica e seria mesmo capaz de levar à vitória uma frota
espacial bem treinada. Mas ali, achava-se sozinho e tinha que lutar com um inimigo
jovem. Portanto, superior a ele.
“Acho mesmo um milagre o fato de ainda estar vivo”, pensava ele.
***

Liszog refletia:
“Escondeu-se em qualquer canto deste montão de ferro velho e não se mexe. Ele
julga que desta maneira serei obrigado a me expor mais. Tenho plena certeza de que está
vivo.”
Crest, apesar de velho e alquebrado, exausto e faminto, estava preocupando o jovem
unitro muito mais do que este imaginava. Enquanto isto, Golath estava impaciente,
esperando por ele diante do Space-Jet. Certamente Golath não teria coragem de
abandonar o lugar e sair à procura de Liszog. Seria de fato uma temeridade sair de lá. O
arcônida poderia chegar e fugir com o pequeno aparelho.
Portanto, de Golath, ele não podia esperar nenhum auxílio. Em Zerft, não queria
nem pensar. Já o fato de o arcônida ter saído da floresta, podia significar algo de trágico
para Zerft. Liszog começou a enrolar a tromba, sinal evidente de que estava nervoso.
“De onde será que este velhinho tira tanta energia para continuar com a idéia fixa
de defender a todo custo seu pequeno aparelho?”, refletiu indagando-se.
Com muita cautela, o jovem unitro se atreveu a espichar a cabeça para fora de seu
esconderijo, a fim de olhar em torno. Levou um susto quando viu seu adversário surgir
detrás de uma chapa metálica, já de arma engatilhada. Por puro instinto, lançou-se no
chão, de volta ao seu esconderijo. O jato energético roçou por cima dele, sentindo nas
costas a onda de calor. Areia, pedras e sujeira se depositaram sobre ele, mas, de qualquer
maneira, conseguiu escapar.
Rastejou uns metros à beira do fosso. Sabia agora a direção exata onde se escondia o
velho. Olhou de novo para fora de seu esconderijo. O arcônida devia estar atrás da chapa.
Liszog tinha no rosto um sorriso de vitória.
Ergueu a pesada arma e descarregou frenético contra a chapa de ferro. O metal ficou
incandescente e logo depois começou a derreter. Com o dedo no gatilho, continuava
despejando o jato energético contra a chapa. A temperatura devia ser tanta, naquele
trecho fortemente atingido pelos raios térmicos, que nenhum ser vivo poderia escapar.
Com um guincho horrendo, querendo sair de sua tromba, qualquer coisa semelhante
a um grito de vitória, Liszog parou triunfante no local, onde antes estava a chapa, para
ver os restos mortais do seu desafeto, já naturalmente carbonizados.
Mas não havia nada.

***

Crest sabia que o unitro, depois da tremenda descarga energética, já devia ter-se
abrigado de novo. O tiro passou por sobre a vala, sem prejudicá-lo. Mas Crest não tinha
dúvida de que fora visto. Arrastando-se pelo chão, deixou o esconderijo. Escondeu-se
mais para dentro das ruínas. Porém o unitro continuou com seu fogo cerrado. Crest olhou
em volta, pois precisava de um lugar que lhe desse melhor garantia.
Metais recurvados o obrigaram a ficar de pé. Perguntou a si mesmo se não estava se
expondo à irradiação atômica, pois a radiatividade devia ser muito forte naquele local.
Isto dependia, naturalmente, do tipo de propulsão utilizada na nave. Mas, já que os
monstros de tromba andavam por ali sem nenhuma preocupação, se houvesse alguma
radiatividade, devia ser mínima.
Crest se espremeu entre as barras de ferro. Depois olhou para trás. O unitro ainda
estava de pé diante da chapa derretida. Parecia indeciso. Crest queria levantar a arma,
mas uma barra de ferro na sua frente o impediu. Quando conseguiu se livrar dela, o
inimigo já desaparecera.
A excitação da luta fizera com que Crest esquecesse seu péssimo estado geral. Mas,
neste momento de mais calma, começou a tremer e teve que se apoiar para descansar. Seu
repouso foi muito curto, pois um novo adversário surgiu!
Ouviu primeiro um ruído, completamente diferente de tudo que se podia ouvir entre
os destroços de uma espaçonave. Assustado, olhou em volta. A poucos metros dele,
aproximavam-se alguns daqueles animais cilíndricos, que estavam escondidos no interior
dos escombros. Eram aqueles horrendos monstros de escamas, que escavavam a areia ou
o chão mole com seu longo chifre. Ergueram as cabeças para o ar, prontos para o ataque.
Durante o dia eram quase cegos.
Crest, na sua calma inteligente, supôs que eles, fugindo da chuva forte, encontraram
abrigo ali nos escombros. As possantes descargas energéticas os teriam assustado.
Deviam estar excitados e ferozes. Suas tenazes se moviam de um lado para o outro. Eram
mais de uma dúzia. As escamas, verdadeiras placas ósseas, roçavam no chão ou nas
partes metálicas do montão de escombros, produzindo então aquele barulho estranho.
Crest evitou fazer o menor movimento. Se atirasse naquele momento, seria vítima
dos monstros de chifre e, ao mesmo tempo, chamaria a atenção do unitro. Não podia
enfrentar dois inimigos simultaneamente.
Os animais deviam sofrer muito com a claridade, pois andavam muito lentamente.
As tenazes se emaranhavam por entre as peças metálicas que lhes barravam o caminho.
Agora que os via assim de perto e com a luz do dia, podia compreender o respeito que o
descobridor do planeta, Ufgar, tinha por eles.
Nenhum ser humano, nem mesmo um arcônida, pode suportar indefinidamente um
desgaste tão grande dos nervos e das forças físicas em geral. Terá que chegar
invariavelmente a uma estafa total. E Crest sabia que não estava muito longe deste ponto.

***

Crest viu o caudal de raios térmicos que se espalhava pelo chão. A forte cintilação
chegava até ele e o cheiro de carne chamuscada impregnava o ar. Mas o fogo de artifício
não durou muito tempo.
Ouviu um grito selvagem. Nuvens de fumaça se elevavam do chão. Teve que abafar
a tosse e tentou discernir alguma coisa através da fumaça. Depois veio uma chuva forte
que apagou o fogo iniciante, deixando em volta um cheiro desagradável.
Crest supunha que o unitro tivesse aberto fogo contra os horrendos bichos
cilíndricos. A concluir pelo grito lancinante de Liszog, os animais selvagens o teriam
dominado. Nem mesmo ao seu pior adversário, Crest haveria de desejar uma morte deste
jeito. O vento lhe trazia o cheiro de carne queimada e seus olhos ardiam com a fumaça
que a chuva não eliminara de todo. Sentia dores agudas nos pulmões e via que não podia
permanecer ali por mais tempo. Lá fora, talvez, encontraria um bando de animais daquela
espécie, excitados e famintos. Mas, no momento, pareciam-lhe o mal menor. Mancando e
tossindo, saiu.
Tropeçou em alguns animais atingidos pelos raios térmicos. Vivo, não se via mais
nenhum. O ar puro lhe fez bem. O vento perpassava através de sua esfarrapada capa e a
chuva refrescava-lhe a cabeça. Uma claridade difusa se espalhava por toda a natureza.
Aí foi que ele viu o unitro!
Estava deitado de bruços sobre um rebordo metálico da velha nave destroçada. A
distância entre ele e Crest não era mais de quinze metros.
Crest não tirava os olhos dele. O unitro estava mais vivo do que nunca, perdera a
arma e viera procurar um lugar que o protegesse dos ferozes animais. Seus enormes olhos
fixavam também o arcônida e, neste olhar, havia qualquer coisa de resignação. Por muito
tempo, Crest ficou parado na chuva, observando as intenções do inimigo. O velho
arcônida continuava com a pesada arma na mão.
Aos poucos, Liszog foi se erguendo do rebordo metálico. Estava deixando um rastro
mais fundo no chão úmido. Certamente estava se movendo de joelhos.
— Pare onde está! — disse Crest em intercosmo.
O unitro continuou caminhando contra ele. Havia nos seus olhos traços de
determinação, como se tivesse força para andar a vida toda. Seus olhos estavam bem
abertos.
— Pare! — ordenou de novo Crest, dando mais ênfase à sua ordem, levantando o
cano da arma contra o unitro.
O obstinado adversário não queria ouvir. Continuava caminhando na direção de
Crest, como se fosse um sonâmbulo. A chuva escorria de seu rosto e a pele escura parecia
reluzir mais com a água. Os olhos redondos brilhavam de um modo esquisito, quase que
febris.
Crest deu um passo para trás. A arma nas mãos parecia pesar muitas toneladas,
“Não posso matá-lo assim indefeso”, pensava Crest. “Por que este maluco não pára?”
O vento, cada vez mais forte. Sibilava e gemia nos destroços da Kaszill, arrastando
objetos mais leves. Era uma orquestra diferente, com sons de um mundo distante.
Liszog estava quase atingindo Crest. Continuava mantendo o mesmo ritmo. Sua
tromba se vergou toda e a arma tremeu na mão de Crest.
O arcônida não conseguia apertar o gatilho, o unitro o iria pegar, com a maior
facilidade. Incompreensível o que se passava com o velho arcônida. Bastava-lhe uma leve
compressão do dedo, para que seu adversário fosse atirado longe. Mas Crest não podia
aceitar a idéia de descarregar a arma num homem ferido e indefeso.
Deixou a arma cair.
O unitro parou dois passos à frente dele. Desta vez, estava mesmo parado, embora o
cientista tivesse a impressão de que o espaço entre eles diminuía cada vez mais.
Nos grandes olhos redondos havia uma sombra de tristeza. Era como se, neste
momento, o unitro perdesse a esperança de algo que há muito tempo esperava com ardor.
Crest chegou a ouvir sua respiração quase ofegante.
De repente, Liszog caiu. Seu corpo alto e forte rolou e ficou estirado no chão úmido,
sem o menor movimento.
Só então foi que Crest pôde ver os terríveis ferimentos que os animais cilíndricos
haviam produzido em seu adversário. Amaldiçoou aqueles animais vingativos. Mas já era
tarde.
Liszog estava morto.

***

No seu relatório, Ufgar descrevia que, no segundo planeta do sol amarelo, as chuvas
duravam dias e dias. Mas não podia falar — é claro — nada a respeito dos apuros, da luta
heróica de um velho arcônida para salvar, com as últimas forças que lhe restavam, uma
pequena espaçonave de 35 metros de diâmetro.
Ufgar foi um explorador jovem, intrépido e não um arcônida degenerado dos tempos
modernos. Saltara de sua nave com a bandeira de Árcon na mão e com os seus homens
fizera muitas incursões pelo planeta adentro.
Crest não tinha bandeira. Nem saberia que símbolos esta bandeira devia ter. Os do
Grande Império de Árcon ou os do pequeno sistema solar com nove planetas, que
recebera dos terranos o pomposo nome de Império Solar.
Em Crest não havia mais nada da arrogância de membro da hegemonia aristocrática
de Árcon, quando se afastou do cadáver de Liszog. Conservava apenas seu orgulho
natural de haver vencido a todas as peripécias, sem ter usado violência. Queria lutar pelo
Space-Jet até o último fio de vida, mas nunca com meios que o envergonhassem.
A chuva voltou a engrossar. E logo nesse momento, que tinha de fazer um grande
esforço para ir até o Space-Jet. Enquanto o tempo estivesse tão ruim assim, seria inútil
tentar chegar à pequena espaçonave. Suas forças não eram suficientes para tanto. O local
mais seguro era a central da nave unitra.
Literalmente mais morto do que vivo, Crest chegou até a escotilha, onde já estivera
tantas vezes. Conforme seus cálculos, o dia findava.
Há quanto tempo já estava andando, ou melhor, se arrastando, por aquela
redondeza? Quando foi a última vez que se alimentou?
Estava cansado demais para poder pensar melhor.
Entrou na Kaszill, como se estivesse bêbado. Cambaleando e se apoiando em tudo.
Lá fora zunia a tempestade e a chuva batia com força nos destroços metálicos da
antiquada nave unitra. Mas Crest não ouviu mais o tamborilar da chuva no metal, nem o
esfuziar do vento nas latas do revestimento externo.
Deixou-se cair no chão e o sono viria imediato.
Havia então apenas dois seres inteligentes no planeta Crest. Ambos tinham o mesmo
objetivo. Nenhum deles haveria de desistir. Era o único ponto em que se assemelhavam.
Existia, porém, uma diferença essencial entre eles: um era um ancião arcônida; o
outro, um jovem unitro, estuante de força.
Todo o resto era coisa de somenos importância nesta luta obstinada, onde não
possuía o mínimo valor o fato de um ser um emérito cientista e outro um reles ladrão.
O mais forte venceria... ou o mais inteligente.
Os pensamentos de Crest se remexiam num remoinho confuso de sentimentos
contraditórios. Seu sistema nervoso começava a se recuperar.
Depois se esqueceu de tudo, de si e do planeta onde estava, também do Space-Jet.
Dormia tranqüilamente.
8

Em Terrânia, era o dia 24 de janeiro de 2.045.


Neste dia, voltou à baila o assunto Crest. Reginald Bell, para os amigos
simplesmente Bell ou o gorducho, veio em disparada pelo corredor. Não reduziu a
velocidade ao entrar no escritório de Rhodan. Empurrou a porta e já ia berrar, quando...
— Sabia que era você — disse Rhodan, tranqüilo.
Por uns instantes, Bell não soube o que dizer. Estava um pouco perplexo, mas logo
depois prosseguiu:
— Desde quando você consegue me seguir telepaticamente?
— Bobagem! — disse o homem alto, refugiando-se da pergunta do amigo. — Não
sigo ninguém, muito menos você, como sabe muito bem. Mas o negócio é que existe só
uma pessoa que entra aqui sem bater.
Bell enrubesceu. Certamente não de acanhamento, mas de indignação. Era um
homem muito perspicaz. Seu temperamento, no entanto, estava no mesmo nível que sua
perspicácia e sentia um grande prazer em fazer brincadeiras com os amigos.
— Lá fora está sentado um desgraçado de um maluco — começou Bell. — Está me
chateando há mais de uma hora. Você sabe o que este sujeito pretende?
— Veio para tratar do monumento a Crest. Fui eu quem o mandei chamar.
— Você o mandou o quê? — perguntou Bell decepcionado. — Este cara de gaiato
não vai conseguir esculpir nem um anão de jardim, que dirá então um monumento para o
velho cientista!
Rhodan olhou para ele com desaprovação.
— Este “desgraçado maluco”, como você o chamou, é Mangelmann, o escultor
mais competente da atualidade. Você devia saber disso. E se um dia necessitarmos de
figuras de anão de jardim, não precisaremos procurar muito por um bom modelo.
Estava mais do que claro, qual era o modelo a quem Rhodan se referia. Bell ficou de
cara séria.
— O senhor sabe se Crest aceita a idéia de se fazer um monumento em sua honra? É
um homem calado, que fez tudo com simplicidade. Mas, a quem que eu estou falando
isto? Acho, porém, que não estamos seguindo a mentalidade de Crest se dermos uma
encomenda desta ao escultor Mangelmann.
Perry Rhodan concordou. Nos seus olhos castanhos, parecia que, por um momento,
vislumbrava sua verdadeira idade, não aquela que o corpo manifestava.
— Não tenho dúvidas de que Crest se oporia a isto — concordou Rhodan. — Não se
esqueça, porém, de que erguemos este monumento não para ele, propriamente, mas para
nós. É sempre bom lembrar aos terranos que criaturas de outros sistemas podem ser
nossos amigos também. Outras inteligências do espaço não têm de ser forçosamente
nossos inimigos.
— Estou compreendendo seu pensamento, Rhodan. Devo mandar o homem entrar?
— Naturalmente — respondeu Rhodan.
Mangelmann entrou. Um homem baixo, quase que achatado, dando a impressão de
afogado em seu desajeitado paletó. Seu rosto era moreno, sua idade, porém, difícil de
calcular. Educado e calmo. Sua voz tinha uma ressonância muito agradável.
Rhodan passou às suas mãos duas grandes fotos que estavam sobre a mesa.
— O senhor pode fazer alguma coisa com isto?
Mangelmann olhou para as duas fotografias.
— É, mas... — começou ele hesitante.
— É ele mesmo — disse Bell de seu canto.
Rhodan se levantou, deu a volta pela mesa, colocando-se atrás do escultor e olhando
as fotografias por cima de seus ombros.
— Não lhe podemos oferecer o modelo vivo; Crest, infelizmente, está impedido.
— Compreendo — disse Mangelmann, em voz baixa.
— Não é isto — disse o administrador, sorrindo. — Ele não está morto não.
Irresoluto, o artista virava as fotos de um lado para outro. Depois, dirigiu-se a
Rhodan e disse com voz firme:
— Está bem, sir, aceito a incumbência.
— Não lhe damos prazo para terminar, exigimos, porém um bom trabalho. Seu
trabalho será apenas passar este homem para a pedra. Quanto às dimensões, Mister Bell
vai lhe dar mais detalhes. Quanto aos honorários, ficarão na proporção de sua obra.
Mangelmann se levantou. Seus movimentos eram rápidos e nervosos. Despediu-se e
Bell o levou até a porta.
— Um homem formidável! — disse Rhodan, quando já estavam sozinhos.
— Para você, cada um tem um lugar fixo — disse Bell secamente. — Existem os
homens bons, ruins, bobos, inteligentes. Cada um está catalogado cientificamente.
— Sinto, porém, grande dificuldade em catalogá-lo cientificamente — disse
Rhodan. — Você não se enquadra bem em nenhuma classificação científica.
— Sou realmente algo fora de série — disse Bell cheio de si.
Neste dia, o nome de Crest não foi mais mencionado.
No dia seguinte, porém, não se falava sobre outro assunto.
9

Pelo menos na maior parte da Galáxia, todos os seres que respiram oxigênio
necessitam de certos intervalos para repouso.
Golath estava enfrentando um problema: ter de dominar seu cansaço. Sua vida iria
depender deste resultado, ou seja, agüentaria ou não sem dormir. Construíra um abrigo
contra a chuva, mas a ventania o carregara para longe.
O pior é que nem Zerft, nem Liszog voltaram para junto do Space-Jet. Seria
estupidez ir procurá-los. Não podia abandonar seu posto. Talvez até o velho arcônida
estivesse esperando por perto, ali no alto da rampa, aguardando pela hora em que ele,
Golath, se ausentasse.
É claro que não podia passar pela cabeça do unitro que o velho e depauperado
arcônida tivesse vencido seus dois colegas. O que podia supor é que os dois se tivessem
destruído mutuamente, num duelo de monstros. Ou ainda, que Zerft convencera Liszog a
ir com ele pelas florestas à procura do velho. E por isto, Liszog ainda não voltara com o
restante das peças de que tanto necessitava para confeccionar um gerador de campo
magnético.
Golath recostou-se contra o único galho que restou do abrigo, arrancado pela fúria
da tempestade. Seu corpo estava enrijecido de frio. Às vezes dava umas voltas correndo
em torno da pequena espaçonave, para ativar a circulação sangüínea. Foi obrigado a usar
a forma primitiva quando da lavagem da tromba. Não havia outro jeito. Embora não
houvesse ninguém para ver, chegou a sentir vergonha. Como um selvagem, arranjou uma
vara com folhas na ponta. Era uma verdadeira tortura, em comparação com os lavadores
automáticos.
O vento frio o incomodava, zumbindo nos seus ouvidos. O chão estava tão fofo que
atolava até a metade da canela, nos lugares mais baixos. Quando sentava, seus quase
cento e cinqüenta quilos cavavam uma depressão no solo.
O lago, geralmente calmo, tinha agora ondas de mais de dois metros de altura.
Golath não podia vê-las, pois a escuridão era total. Ouvia, porém, seu forte bramido
contra a areia da praia.
Num dado momento, a ventania atirou um pequeno animal, que veio bater no ombro
do unitro, agarrando-se aí. O coitadinho começou a guinchar, obrigando Golath a retirá-lo
com a tromba. Por muito tempo, o bichinho continuou a incomodar os ouvidos do unitro.
Depois disso, Golath pegou no sono. Sonhos horríveis povoavam-lhe a mente. Mas,
de repente, acordou. Escutara um ruído estranho. Abriu os olhos assustado, sentindo um
tremor de frio em todo o corpo. Não era nada. Foi apenas o galho que o apoiava que
quebrou sob seu peso.
A noite parecia sem fim. Acordou muitas vezes, pensando que o arcônida tivesse
chegado, mas era sempre o barulho da ventania. Tentou convencer a si mesmo de que o
velho arcônida não teria força nem coragem para enfrentar a tempestade. Mesmo assim, a
diminuta possibilidade do aparecimento do velho teimoso não lhe dava tempo para
descansar.
Nunca, como naquela noite, Golath amaldiçoou tanto os juízes que os condenaram
ao degredo. Pensamentos de vingança se apossaram dele. Se conseguisse pegar a graciosa
espaçonave e voltar triunfante para sua pátria, sua primeira ação seria vingar-se de quem
lhe impusera castigo tão injusto.
Durante estas últimas horas, a indignação se avolumava no íntimo de Golath. De
início, era apenas comiseração consigo mesmo. Depois, começou a tomar corpo o
sentimento da injustiça que fizeram contra ele. Nesta altura, não havia mais espaço para
um pensamento lógico.
Depois, veio o ódio, a cólera cega contra tudo que o impedia de alterar sua trágica
situação. E para esta cólera imensa, não havia válvulas de escape. Agigantava-se dentro
dele e, como a água num reservatório, ou transbordava ou rebentava.
Instintos animalescos vinham à tona, abafando a voz da razão. Não sentia mais nem
o vento, nem a chuva fria. O cansaço também desapareceu, e com a gana de uma ave de
rapina, ficou à espera de sua vítima. Aos poucos, estava ficando claro. O céu, porém,
continuava coberto de nuvens.
Golath levantou, espreguiçou e respirou fundo. Estava preparado e disposto para a
luta com o arcônida.
“Venha logo, velho!”, pensava enfurecido.

***

E ele veio.
Arrastou-se pela escotilha semi-aberta. A tempestade cessara. Apenas a chuva
continuava fina. Por toda parte, se viam pequenos regatos e poças d’água. O solo estava
muito mole.
Crest agachou-se e fez massagem no pé inchado. Não sentia forças para se levantar.
Seu corpo se recusava a obedecer-lhe. Sabia que estava doente. Durante toda a noite
tivera sonhos febris e agora via que suas forças estavam sumindo, não davam nem para
vencer aquele resfriado. Mas, seu estado físico não conseguia vencer sua força de
vontade. Apesar de não ter disposição para se levantar, ainda confiava em si.
Esta determinação mobilizou as depauperadas reservas ou, talvez, produziu novas.
Nasceu-lhe a obstinação contra a morte, isto é, não a queria de maneira alguma, antes de
salvar o Space-Jet. Seria sua última missão em prol dos terranos.
Deixou os escombros da Kaszill e veio patinando pelo deserto de água e lama. Um
fogo estranho cintilava nos seus olhos vermelhos. Esperou inutilmente pela manifestação
do seu cérebro lógico.
Será que seu bom senso fora também vítima do esgotamento físico? Ou será que a
febre não permitia que a voz da razão viesse à tona?
A cada tombo ou escorregão, aliás seguidos, surgiam novas forças. Em poucos
minutos sua roupa encharcou-se.
Em dias de chuva, assim como aquele, Crest gostaria de estar sossegado em sua
casa, atrás das janelas e com uma agradável temperatura. As gotas d’água bateriam na
vidraça e desceriam em fios prateados. Veria a tranqüilidade do lago e teria uma sensação
da Eternidade. Um dos robôs se aproximaria dele, trazendo um chá ou café bem quente,
depositando a bandeja na mesa.
Não devia pensar nestas coisas. Deu a última olhada para trás. A Kaszill se
transformara numa mancha escura. Talvez, nunca mais voltasse para revê-la.
— Curioso... por que razão ainda não me arrependi por ter escolhido este planeta
como minha última morada? — perguntou a si mesmo. — Perry Rhodan, quando souber
do que está acontecendo por aqui, vai autocensurar-se. Muitas e muitas vezes, Rhodan me
aconselhara a procurar lugares mais seguros, na própria Terra.
Parou um pouco para descansar. Em que situação encontraria seu adversário? Será
que ainda estava tentando destruir o envoltório de proteção?
Estas indagações lhe produziram um calafrio no corpo. Em caso positivo, o unitro
acabaria entrando no soberbo jato, síntese das últimas conquistas técnicas dos terranos.
E como é que o estranho indivíduo de tromba iria saber manejar aqueles
instrumentos todos? E pior ainda, como iria descobrir a finalidade deles todos?
Estes pensamentos deram forças ao velho arcônida. Não devia é chegar tarde
demais. Contra toda expectativa e contra sua vontade, dois adversários seus já foram
eliminados. O último deles lhe seria o mais difícil. Seus lábios desenharam uma leve
curva no rosto pálido. Estava chegando a hora da decisão. Crest tinha medo desta
decisão, mas não por motivo pessoal.
O unitro estava mais do que tresnoitado, isto é, tinha mais de duas noites sem
dormir, ao ar livre, com chuva fria e tempestade. Certamente que isto influiria no seu
estado geral.
Crest começou a lembrar-se de seu grande amigo Rhodan, no primeiro encontro
com ele. Naquele tempo, o administrador era um simples major. Foi o primeiro homem a
descer na Lua com uma espaçonave, a celebérrima Stardust. A Astronáutica estava ainda
engatinhando. Desde aquela época, Crest dedicou toda a sua vida exclusivamente ao bem
da Terra.
Agora suas forças estavam chegando ao fim. Preocupado, apalpou sua arma.
“Interessante como as armas das raças que se dedicam à Cosmonáutica são
basicamente muito parecidas. Muito natural isto”, pensava Crest. “A finalidade delas é
espalhar a morte e a destruição. Assim, chega-se, em todos os planetas, a uma forma
ideal de arma de mão, fácil de ser usada...”
O arcônida olhou para o lago. A margem estava no lado do declive íngreme e não
dava para ver daqui. Chegara ao local onde a Solar System se detivera enquanto
descarregavam a casa e o Space-Jet. Devido à chuva, poucos eram agora os sinais
deixados pela gigantesca espaçonave, comandada por Rhodan.
O jato estava no lugar de sempre. Muito nervoso e fraco, Crest tropeçou à beira da
rampa.
O unitro não era bobo. Procurara abrigo atrás do pequeno aparelho. O velho
cientista reparou na quantidade de ferramentas e peças empilhadas na frente do jato.
Certamente o unitro estava tentando romper o envoltório energético.
O mais rápido que pôde, correu para frente.

***

Num galeio sensacional, Golath saltou para dentro da cova, feita já há dois dias.
Água e lama espirraram para os quatro cantos, enquanto o corpo de Golath se sentia
protegido no fundo da cova.
“Até que enfim o arcônida chegou”, pensou satisfeito.
Apenas por um instante, a sombra de Crest surgiu lá em cima, no início da rampa.
Uma figura cambaleante, parecendo empurrada pela ventania. Antes que Golath pudesse
apanhar a arma, o velho arcônida já desaparecera. Como um cão de fila, o unitro era todo
ouvidos para qualquer ruído no meio da chuva.
De que lado viria o ataque? Se seus olhos não o estavam enganando, o velho
cientista portava uma arma de raios térmicos de fabricação dos unitros. Isto significava
que Liszog ou Zerft estava morto. Ou talvez os dois. De seu esconderijo, Golath via e
ouvia tudo que se passava em volta. Tinha livre descortino sobre toda a rampa, o que lhe
era uma grande vantagem. Quando o arcônida quisesse descer — e ele tinha que descer,
se desejasse entrar na espaçonave — não teria nenhuma proteção na ladeira de areia. Ele,
sim, estava bem protegido no fundo da cova.
Mas o velho não seria tão louco assim de descer diretamente para perto da
espaçonave. O último dos degredados esperava que seu adversário, quando estivesse
numa boa distância, arriscaria uma rápida descida direta. Mas nem isto o poderia ajudar,
pois a praia era muito plana e não oferecia abrigo razoável. Só restava uma alternativa
para o arcônida: enfrentá-lo em campo aberto, sem nenhuma possibilidade de cobertura.
Golath estava feliz. Antevia seu triunfo. A fim de enganar o adversário, abandonaria
a cova no chão, e, logo a seguir, saltaria novamente para dentro dela, assim que pudesse
disparar um tiro certeiro.
Mas dava a impressão de que o velho perdera a coragem. Por mais que forçasse a
vista, a silhueta cambaleante não aparecia em lugar nenhum.
“Ele vai querer continuar com sua tática de levar meu sistema nervoso ao
desespero”, pensava Golath. “Mas não conseguirá.”
Não tinha dúvida de sua vitória. Estava preparado para todo e qualquer truque do
adversário. Afinal de contas só havia mesmo um caminho cá para o jato: a rampa.

***

Mas existia outro. Crest continuou andando pela parte plana, até ter pelas costas a
curva da ladeira, que o protegia dos olhos do unitro.
Teve que se utilizar dos pés e das mãos para chegar até a margem do lago. Sua idéia
deu certo.
O barco ainda estava lá, onde ele deixara. Crest foi mancando pelo terreno ora
arenoso, ora coberto por brejo. O sucesso de seu plano ia depender de que o unitro ficasse
observando só a rampa que dava acesso direto ao Space-Jet. Nenhum dos três indivíduos
de tromba sabia da existência do pequeno barco do arcônida. Pretendia se aproximar da
espaçonave de barco.
De início teve a primeira decepção: o barco estava cheio de água. Durante a noite de
tempestade e de altas ondas no lago, a água enchera a embarcação. Não ia ter força para
emborcar o barco. Sem perder tempo, apanhou na praia uma pedra pontuda e procurou
um trecho da popa, o mais alto possível do nível d’água. Bateu com toda a força, mas a
pedra escapava de sua mão. Não ia conseguir nada desta maneira.
Sacou da arma. Não sabia o raio de ação da mesma, nem se a matéria de que era
construído o barco não iria incendiar-se. O tiro abriu uma perfuração irregular. A fibra
derretida espalhava um cheiro horrível, enquanto fragmentos incandescentes caíram
n’água. Começou a sair água pelo buraco. Para apressar o trabalho, colocou uma pedra
sob a quilha do barco, deixando-o em posição oblíqua.
A operação foi concluída mais depressa do que esperava. Rasgou uma tira larga do
seu capote, que realmente não merecia mais este nome, e com ela envolveu um cascalho
médio, que serviu de tampão para o buraco da arma de fogo. A pressão da água não seria
tão forte para tirar a pedra do lugar. É verdade que a chuva continuava caindo, mas a
quantidade era relativamente pequena e não o prejudicaria no pequeno percurso.
Um acesso de tosse interrompeu seu trabalho. Curvou-se, apertando os dois braços
contra o peito. A febre parecia uma fogueira dentro dele. As dores eram violentas, tão
violentas, que às vezes fechava os olhos. Será que já era o fim? Iria interromper tudo, a
poucos passos de seu objetivo? Fez um esforço ingente e conseguiu abafar o acesso de
tosse.
Mais um reinicio!
Os olhos úmidos estavam vendo melhor. Gemendo, empurrou o barco para dentro
d’água. Levou alguns minutos até que conseguiu entrar, sentar e pegar um dos remos. O
esforço foi tão grande, que teve de parar para respirar.
Seu papel em toda esta história não lhe parecia nem trágico, nem heróico. Estava
apenas fazendo o que devia. Estava cumprindo o que prometera. Colocou a arma na proa
e pegou o remo. O barco não era pesado e, além disso, carregaria apenas Crest. O suor
lhe escorria pela face. O cabo do remo foi até o fundo mole do lago, e ficou preso em
algo mais consistente. Fez uma pressão maior e, por fim, o barco foi se afastando da
margem. Porém, neste instante, Crest perdeu o equilíbrio e escorregou para trás. O remo
escapou-lhe da mão!
Estava já a vários metros da margem e o remo fincado no chão do lago. Crest sabia
que não podia desistir. Estendeu as mãos para fora e as transformou em remos. Muito
lentamente o barco chegou de novo à margem, e assim conseguiu puxar para fora o remo.
A primeira parte de seu plano, que acabara de executar, quase o matara de cansaço e
a segunda... ainda seria muito mais difícil.

***

A superfície do lago mostrava um quadro todo diferente. Do fundo, se irradiava uma


claridade de um amarelo-claro, cuja origem Crest não sabia explicar. As milhares de
gotículas de chuva produziam círculos, em cujo centro se levantavam pequenas bolhas.
Dava a impressão de um gigantesco quadro vivo, um mosaico oscilante, cujas pedrinhas
eram as gotas, formando círculos. Apesar da fraqueza geral, da febre que o fazia suar, de
todo o horror do momento, o arcônida não podia deixar de notar o encanto da natureza.
A claridade do fundo do lago parecia continuar um pouco no ar. Tudo indicava
haver no fundo d’água uma substância irradiadora. Ufgar não falara nada a respeito, e
certamente também não estivera no lago num dia de chuva e tempestade.
O barco ia avançando. Crest recolheu o remo e viu a silhueta do Space-Jet através
da leve cerração na margem do lago. Não dava para ver o unitro. Devia estar bem
escondido. Remou mais para fora, pois não devia se aproximar por aquele lado do
adversário.
Com isso, no entanto, se expunha ao perigo de ser descoberto mais cedo. Se viesse,
porém, do meio do lago, poderia surpreender Golath pelas costas. Felizmente o lago
voltara à sua calma normal e o leme do barco não preocupava mais.
Quanto mais se aproximava da sua antiga estação, mais aumentava sua ansiedade. O
que estava fazendo ali tinha um significado muito grande para a raça humana. Era
importante para os terranos ficarem com a posse exclusiva da pequena espaçonave, que
podia realizar transições com uma facilidade nunca vista. Do ponto de vista de segurança
da Terra, era então de absoluta necessidade a conservação de seus segredos. Era mais do
que razoável todo o cuidado de Rhodan a respeito daquele novo aparelho.
Agora, dependia de Crest, se a Terra iria ou não conservar em segredo seus avanços
tecnológicos. Esta responsabilidade era a única coisa que lhe dava ânimo. Estava pronto
para fazer qualquer sacrifício pessoal em prol do Space-Jet.
Aos poucos, foi penetrando na zona perigosa. Até o momento, nada de novo.
Monótona, a chuva continuava a cair. Crest não tirava os olhos da margem do lago. Seria
inútil deitar no fundo do barco quando Golath começasse a atirar, pois a fibra de vidro
não resistiria ao calor energético.
O velho e experimentado cientista sabia que se achava numa verdadeira armadilha,
de onde não podia fugir.
Foi então que viu o adversário. Estava agachado na cova que abrira com seus
colegas ao lado do Space-Jet. Seu rosto estava virado para a rampa, de onde devia descer
normalmente qualquer pessoa que desejasse ir à casa ou ao aparelho ao lado. Movia
impacientemente a tromba.
Sem o perceber, Crest prendeu a respiração. Daquela distância, com o movimento
oscilante do barco, seria um mero acaso um tiro certeiro. Além de tudo, o arcônida não
iria jamais atirar em alguém pelas costas, nem no pior de seus inimigos.
Parou de remar, a fim de que apenas as ondas tocassem o barco para frente.
Apanhou a arma que deixara na proa. Se o unitro virasse para ele, teria pelo menos uma
oportunidade. Via apenas a cabeça e às vezes também a tromba, que se agitava no ar.
Quais seriam os pensamentos que povoavam aquela cabeça semi-esférica?
Passou a mão na testa molhada pela chuva. Este simples movimento era o bastante
para lhe provocar dores. Ali em terra firme estava o Space-Jet, relativamente perto, no
esplendor de sua forma de disco voador. Entre ele e Crest havia, porém, o fantasma da
morte.
O barco encostou na areia da margem. Tudo aconteceu sem nenhum ruído e o
arcônida perdera toda a ansiedade de antes.
“Vai ouvir ruído quando eu saltar”, pensava Crest. “Vou precisar das duas mãos
para descer do barco. Como posso atirar nele, caso me veja?”
O destino sempre cria situações inesperadas. Naquele momento, a vida de um
homem dependia somente de um movimento de cabeça.

***

E Golath fez o tal movimento...!


O ruído de passos na areia atingiu-o com mais violência do que uma descarga
elétrica. E uma amarga desilusão tomou conta dele. Tudo tinha sido inútil. O arcônida o
surpreendera. Não desceu pela rampa. Na margem do lago balançava o barco vazio.
O ancião estava apenas a dez metros dele, empunhando uma arma de fabricação
unitra. Seria inútil querer explicar a Golath a força destruidora daquela arma.
O ancião sorria. Naquela figura esfarrapada, esquálida, ainda vibrava muita força,
tanto assim que ali estava ele ereto e orgulhoso — um arcônida das castas aristocráticas.
Era a mesma atitude dos velhos arcônidas que, há muitos séculos atrás, desembarcaram
em Unitro.
— Jogue sua arma fora e saia desta cova, devagar! — ordenou Crest em intercosmo.
Golath simplesmente se deixou cair sentado na cova, espirrando lama no próprio
rosto. A reação do velho foi lenta. Golath viu com que dificuldade ele corria pelo terreno
barrento.
O unitro se ergueu de um pulo. Seu corpo enlameado se empertigou todo. Olhou por
cima da borda da cova e soltou um grito de vitória.
O arcônida acabara de desligar o envoltório de proteção do Space-Jet e corria para
ele. Quase hesitante, Golath levantou a arma na direção de Crest. Mas o astuto velho
olhou para trás e se jogou no chão. Golath atirou e se agachou novamente no buraco. O
terrível jato de fogo passou rente a Crest. O unitro não tivera sorte com o primeiro
disparo. Quando levantou de novo a cabeça da cova enlameada, o velho já tinha passado
para o outro lado do Space-Jet. Seria loucura atirar agora.
Golath pulou para fora do buraco, atirou-se no chão e começou a se arrastar na lama
em direção ao jato. Se o arcônida tentasse entrar no aparelho pelo outro lado, teria que
impedir a qualquer preço.
O unitro sentiu frio quando tocou no aparelho com a extremidade da tromba. Mas já
estava quase de posse do precioso objeto voador, no limiar do tão sonhado triunfo. Seria
o primeiro desterrado a voltar para Unitro. Seria recebido com honras de herói e
reintegrado na sociedade, recebendo o respeito e o reconhecimento da nação pelo feito
heróico e de inestimável valor científico-cultural.
Seu rápido devaneio foi interrompido pela descarga da pesada arma de Crest. Bem
junto dele curvou-se um dos apoios de sustentação do aparelho, e o metal líquido
começou a gotejar na lama.
“Está destruindo sua própria espaçonave!”, pensou o unitro, desesperado.
Tinha que impedir isto. Suas mãos atingiram a base exterior do disco. Conseguiu
subir na parte quase plana da mesma. O metal polido achava-se muito escorregadio
devido à água da chuva. A cúpula central não estava muito longe. Golath foi
escorregando até lá. A arma pesada fazia um barulho estridente ao roçar a chapa de aço.
— Ziiiip!
Golath se levantou. Era o ruído típico de uma escotilha que se abria. Pulou para o
outro lado da cúpula, mas o arcônida o estava esperando de arma engatilhada. A roupa
toda esfarrapada pendia ao vento fraco, os olhos vermelhos estavam semicerrados.
Abriram fogo ao mesmo tempo. Antes que Golath tivesse notado que, com o
disparo, havia escorregado para trás, um golpe pesado o atirou para longe. Caiu, soltando
um grito surdo.
“Fui atingido!”, pensava nervoso.
Queria se levantar, mas as pernas se recusaram. Não tinha coragem de olhar para si
mesmo. No entanto não sentia dor.
Apoiou-se no antebraço e assim conseguiu se arrastar novamente até a cúpula. O
arcônida estava prostrado na escotilha, ainda com sinais de vida, porém seriamente
atingido no ombro.
“Um unitro é muito resistente, meu velho!”, pensava Golath. “É um osso duro
demais para você.”
Apoiou o peso do corpo no ombro esquerdo.
Estava tudo acabado! Jamais voltaria para Unitro. Seu ferimento era mortal. Mas o
arcônida também tinha de saber que perdera seu belo Space-Jet. Jamais sairia deste
planeta.
Tinha que morrer de olhos abertos.
— Arcônida! — exclamou Golath.
***

Crest abriu os olhos. O unitro o atingira no ombro e também estava certo de que não
sobreviveria. Mas, não havia nisso nada de trágico. Salvara o precioso Space-Jet.
Olhando para trás, parecia-lhe totalmente impossível chegar a uma vitória, como chegou.
— Mantive minha promessa! — sussurrou ele. — Salvei o Space-Jet, Rhodan.
Queria sorrir, mas as dores do ferimento transformaram o sorriso em amarga careta.
Enquanto isto, o unitro aproximou-se se arrastando.
— São fantasias minhas — disse Crest. — São alucinações febris de um quase
moribundo.
— Arcônida!
Era a voz furiosa de Golath. Aquele monstro coberto de lama era uma realidade.
Estava ali, e seu olhar de vencedor devorava o adversário desprotegido.
— Arcônida! — a voz era puro ódio e seu dono não sabia o que era compaixão.
A chuva caía ritmada na chapa polida do disco. O unitro reparou como o ancião
tentava levantar a pesada arma. O rosto horrendo, de onde saía a tromba, estava fechado,
numa expressão de ódio.
“Ele me odeia”, pensou Crest, “não por minha pessoa mesmo, mas só por ser
arcônida.”
Apontou a arma térmica para baixo, na direção do unitro. Talvez este movimento
tivesse assustado o pobre Golath, pois seu tiro passou muito acima da cabeça de Crest.
Mas a pontaria de Crest fora certeira. Desta vez não havia dúvida: o único desterrado
vivo estava realmente morto.
— Os arcônidas exploraram seu planeta e escravizaram sua raça — sussurrou o
velho cientista. — E agora você morreu nas mãos de um arcônida.
Por muito tempo, ficou ali imóvel, olhando o corpo de seu ex-adversário. A primeira
coisa que fez quando conseguiu se mover, foi jogar fora a pesada arma.
Olhou em volta. Tinha que entrar em contato com Terrânia.
Seria importante que Rhodan mandasse apanhar o Space-Jet antes que outros
interessados aparecessem.
Até o hipercomunicador, teria de andar uns dez metros. Isto lhe parecia quase
impossível. Mas tentou se arrastar para lá.
— Depois que a gente executa o mais difícil e pensa que já acabou tudo, vem ainda
muita coisa desagradável.
Com o esforço de sua vontade férrea, ia ganhando alguns palmos. Escorregava mais
do que se arrastava. Depois de vencer a metade do trecho, perdeu toda a visão. Mal
conseguia distinguir vultos indecisos. O ponto retangular bem claro era o hiper-
transmissor.
De repente as dores lhe desapareceram. Tinha a impressão de estar no centro de uma
grande esfera que o isolava de qualquer ruído. Nunca experimentara uma sensação deste
tipo.
“Devo estar morrendo”, pensava.
Mas não se assustou com isto. A calma era a mesma de sempre. Tudo teria de
terminar um dia...
Reparou que estava deitado, sem fazer nenhum movimento. Mas tinha de continuar,
centímetro por centímetro.
— Devia ter fechado a escotilha — lembrou-se ele.
Ia se aproximando do retângulo claro. Este tornava-se cada vez maior, mas menos
claro do que antes. Pela escotilha aberta, entrava o ar frio que lhe roçava o rosto. De
qualquer maneira, estava agüentando.
***
O Tenente Bowler, sentado à sua mesa de trabalho, girava distraído uma
esferográfica entre os dedos finos e bem tratados. Estava na Central de Rádio de Terrânia,
pertencente ao Ministério de Defesa Solar. Em torno dele, as várias telas do
hipercomunicador, enquanto as instalações de rádio achavam-se logo à sua frente.
Bowler era um oficial jovem, de pouca experiência. Sabia que estava ocupando o
posto de radiotelegrafista somente porque eram dias calmos, sem nenhuma complicação.
Olhava para os outros telegrafistas, alguns dos quais estavam em ligação com longínquos
planetas.
Ouviu o ruído característico que antecede uma mensagem do hipercom. Incontinenti
desapareceu dele a figura do jovem brincalhão e, empertigando-se todo, inclinou-se para
frente com toda concentração. O rádio vinha pelo canal de urgência urgentíssima. Isto
significava apenas que algum dos elementos de ligação direta com o chefe queria fazer
uma ligação. O código secreto para este canal era um raro privilégio de pouquíssimas
pessoas.
Bowler ligou a tela do videofone através da qual viera o sinal de alarme. Depois dos
primeiros sinais que geralmente parecem um tremido confuso, a imagem ficou nítida.
Bowler viu o interior de uma nave, era um tipo mais aperfeiçoado do Space-Jet. Mas
não se via ninguém.
De repente viu uma mão. Estranhamente rígida, erguia-se ela no canto inferior da
tela. Bowler não conseguiu se desfazer de uma sensação de algo trágico. A mão se movia
como se quisesse apanhar qualquer coisa.
Depois ouviu a voz, uma voz que lhe penetrou na medula dos ossos. Nunca mais
esqueceria o tom daquelas palavras:
— Crest... Crest falando — veio a voz arranhada do alto-falante.
Bowler saltou da poltrona. Sua inquietação se transmitiu aos demais operadores, que
abandonaram seus lugares e correram para junto dele. Ninguém disse nada.
— Senhor! — disse Bowler excitado. — Pelo amor de Deus, senhor, que aconteceu?
A mão foi abaixando lentamente.
Bowler estava branco como cera. Seu desejo era pegar aquela mão que surgira no
canto de sua tela.
— Diga... Rhodan... venha buscar... jato, Space-Jet.
O final foi mais um gemido. Bowler estava pálido, com o rosto coberto de suor.
— Senhor! — disse trêmulo.
A ligação continuava, mas Crest não falava mais. Com as mãos tremendo, apanhou
o registro automático de toda a ligação. Ao se levantar, derrubou a cadeira. Os colegas
abriram espaço para ele passar. O Tenente Bowler, o homem da elegância impecável,
estava profundamente abalado.
— Tenho que me comunicar imediatamente com Rhodan — disse.
Uma olhada para trás, lábios comprimidos, poucas palavras e uma ordem:
— Interrompam a ligação!
Homens calados, ordem cumprida. Zumbido de algum aparelho, tique-taque
monótono de outro.
Uma sala grande, mergulhada no silêncio.
***

Não havia mais nada a fazer. Talvez fosse bom ficar deitado ali, dando descanso
àquele interminável cansaço. O intrépido arcônida, deitado de costas, estava de olhos
abertos.
“Assim é que um homem deve morrer!”, pensava ele. “Velho, contente e realizado.”
Cumprira o que prometera. O Space-Jet estava nas mãos dos seus donos, os
terranos. Mãos jovens, fortes e empreendedoras.
— Obrigado, amigo! — parecia dizer alguém a seu lado.
Um minuto mais tarde, Crest estava morto.
Morreu, como viveu: tranqüilo, ainda com um leve sorriso nos lábios.

***

Era a primeira vez na vida que o Tenente Bowler comparecia à presença de Rhodan,
o Administrador-geral do Império Solar. Não estava nada contente com isto, pois estava
vendo a tristeza profunda nos olhos castanhos do grande homem.
Rhodan olhava longe. Apertava entre os dedos a cópia do rádio de Crest.
— Por favor, pode se retirar, Tenente Davis Bowler. Obrigado — disse com
aparente calma.
Bowler bateu a continência e saiu o mais depressa que a disciplina lhe “permitia”.
Rhodan ligou o microfone da sua mesa.
— Fala Rhodan. Tente encontrar Mr. Bell e diga-lhe para vir imediatamente a meu
escritório.
Esperou pela confirmação. Depois se recostou na poltrona.
Devia ter acontecido algo de imprevisto no planeta Crest. O grande arcônida,
aparentemente, conseguiu salvar o Space-Jet, morrendo naturalmente em decorrência
disto.
Um pouco mais tarde, chegou Bell. Conhecia Rhodan muito bem, para saber que
não era hora de brincadeiras.
O administrador se levantou. Seus olhos fitaram o velho amigo, um dos que ainda
lhe restavam.
— Bell — disse em voz baixa — vamos buscar nosso amigo Crest.

***
**
*
Ergueram na Terra um grande monumento a Crest
— a ele, o grande arcônida que, viajando à procura do
planeta da imortalidade, veio parar exatamente na Terra.
Por sua vida, toda devotada ao bem da humanidade
terrana, vida esta coroada pela morte heróica em defesa
dos mais altos interesses do Império Solar, Crest tornou-
se imortal. Mas de uma maneira diferente da que sonhava
quando era jovem...
Com o desaparecimento de Crest, começa uma nova
época da futura História da Humanidade.
Em A Estrela do Destino, o centésimo volume da
série, momentos eletrizantes estão por acontecer...

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