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Limites

João Felipe Chiarelli Bourcheid


“O que há de interessante numa matéria chata e difícil como os Limites? O que pode
ajudar em minha vida algo que é tão abstrato e sem significância? Para que inventaram isso:
apenas para me reprovar?” Infelizmente, esse pensamento ainda domina a mentalidade de
muitos professores e estudantes, não só relacionados com o conteúdo de Limites, mas com
tudo que é conteúdo. E isso ocorre, na minha avaliação, por causa da falta de interesse que as
pessoas tem em tal conhecimento. Mas, a verdade é que não existem limites para coisas
interessantes dentro dos limites.

Quem faz um curso de eletrônica, logo vê que na parte de processamento da


informação há basicamente duas escolas: a escola analógica e a escola digital. Eu até acho
interessante que nas primeiras aulas de eletrônica digital, talvez motivadas por Hans
Camenzind na introdução de seu livro Analog CI Design, os professores sempre ressaltam que
o mundo é fundamentalmente analógico com exemplos de: temperatura, posição, tempo, som,
luz, energia e etc. Mas, essa ideia não é muito verdadeira, uma vez que posso dar vários
outros contra-exemplos de grandezas digitais: pessoas, dinheiro, dias, mercadorias e etc.

Outra coisa interessante é que há uma grande disputa entre essas escolas no requisito
de dizer quem é a melhor. Os argumentos são vários: que o vinil é muito mais fiel do que o
CD, que as máquinas de calcular digitais são muito mais precisas, que é absurdo o número de
transistores que se gastam para fazer um processador, que são gigantescos os circuitos
analógicos... Afinal, quem é melhor?

A resposta é: depende. Depende do tipo de problema. Não é a toa que umas das coisas
que mais vemos no ensino fundamental e voltamos a ver no médio – e que parece a coisa mais
inútil – é que existem conjuntos numéricos, entre eles, os inteiros e os reais. Não é atoa que se
dividem esses dois conjuntos: há uma série de problemas que podem ser bem resolvidos com
a teoria dos números e outros que podem ser bem desenvolvidos com cálculo, por exemplo.

Mas, apesar dessa evidente divisão, eles estão ligados na raiz. E a demonstração disso
é mérito de Newton que conseguiu construir os tijolos mais importantes da ponte entre o
mundo real e o mundo inteiro. Esse processo foi tão importante que quando lemos o seu livro
Principia, até parece que é chavão usar a expressão ad infinitum, modo pelo qual ele resolve
quase todos os problemas.

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É tão importante essa ferramenta que hoje muita coisa do mundo analógico se explica
com coisas digitais e muitas do mundo digital se explicam com o mundo analógico. E o nome
dessa ponte se chama Limite.

É com esse conceito de Limite que podemos ouvir música feita de 0 e 1.

Vamos estudar um pouco essa realidade que viveu Newton e os problemas que ele
enfrentava na época e como é que se desenvolveu esse conceito de levar as coisas ao Limite.
Vamos, primeiro, nos situar historicamente: estamos no início da Revolução Industrial. Várias
novas máquinas acabaram de aparecer, mas todas máquinas muito simples. A mais importante
delas: a máquina a vapor. Mas, não existe entendimento sobre essas máquinas, e qualquer
desenvolvimento superior por tentativa e erro é demasiadamente lento.

Assim como vários outros cientistas da época, Newton tentava ver alguma relação
entre essas máquinas. Uma curiosidade interessante é que Newton vai nascer no mesmo dia
que Galileu morre, Galileu esse que tinha aberto um grande rombo na teoria da época. Antes
de Galileu, se acreditava que, como tinha dito Aristóteles, para haver movimento, deve haver
força. Esse conceito aparente travava muito o entendimento das coisas e seu desenvolvimento
se tornava difícil. Galileu, então, vai fazer a seguinte experiência: ele pega uma mesa e a
encera com um óleo, e daí empurra um objeto relativamente pesado e depois cessa a força. Ao
contrário do que dizia Aristóteles, o objeto continua a se movimentar independentemente de
ter se cessado a força.

Porém, infelizmente, Galileu não consegue muito além disso. Apesar de ter dito que a
teoria de Aristóteles estava errada, ele não disse o que seria o certo. Então, coube a Newton
resolver esse problema: definir o real conceito de força.

Então, Newton começou a estudar o seguinte fenômeno. Se temos dois corpos de


massas iguais sendo que um está parado e outro está em movimento, a 1 m/s, em direção ao
que está parado, quando os corpos colidirem, o que acontecerá? Fazendo a experiência,
Newton notou que os corpos iriam na verdade continuar em movimento um junto ao outro, só
que com a metade da velocidade.

Então, fez-se necessário criar uma nova grandeza: a quantidade de movimento. A


quantidade de movimento é definida da seguinte forma:

2
Q=mV ,

onde m é a massa e V a velocidade. E então, desprezando as colisões e o atrito, depois de


vários experimentos, Newton concluiu que Q era constante. E nosso experimento comprova
isso: como os dois corpos tinham a mesma massa, dobrando a massa – pois agora tem mais
massa participando do movimento – a velocidade tem que cair pela metade para continuar
constante a quantidade de movimento.

Um trem, por exemplo, tem uma quantidade de movimento praticamente constante


para um período de tempo relativamente grande. Lembre-se o trem foi uma consequência da
máquina a vapor. E se notava uma variação na quantidade de movimento de um trem quando
se ligava os motores. Então, começou-se a medir essas variações: quando se ligava os motores
por 1 segundos, a velocidade variava em 1 metro por segundo. Então, fez-se tabelas como
esta:

Tempo Velocidade

0s 0m/s

1s 1m/s

2s 2m/s

3s 3m/s

Não era difícil perceber que

V =at ,

em que a é a aceleração e t o tempo.

O problema todo aparecia quando se colocava junto disso a posição.

Tempo Velocidade Posição Real Posição Estimada

0s 0m/s 0m 0m

1s 1m/s 0,5m 1m

2s 2m/s 2m 3m

3s 3m/s 4,5m 6m

3
Note como é irregular a coluna da posição. A primeira vista, o que deveria-se
acontecer é que fosse os seguinte valores de posição: 0m, 1m, 3m e 6m, pois deveríamos ir
somando o valor da velocidade anterior a nova posição, pois se um corpo anda em um certo
tempo a uma certa velocidade, a sua nova posição será a posição anterior mais o produto da
velocidade vezes a diferença de tempo.

Apesar disso, se pegássemos as mesmas medidas em intervalos de tempos menores,


teríamos uma visão diferente.

Tempo Velocidade Posição Real Posição Estimada

0s 0m/s 0m 0m

0,25s 0,25m/s 0,03125m 0,0625m

0,5s 0,5m/s 0,125m 0,1875m

0,75s 0,75m/s 0,28125m 0,375m

1s 1m/s 0,5m 0,625m

Pegando as amostras em números de intervalos menores, elas parecem se aproximar


mais dos resultados reais. Quando pegamos as amostras em intervalos realmente pequenos, as
posições estimadas batem fortemente com a posição real.

E o detalhe nem era pegar mais amostrar, porque a velocidade crescia de uma forma
conhecida, o que realmente precisava era somar as velocidades parciais de forma mais
frequente que poderíamos obter bons resultados. O único problema era simular uma
quantidade tão grande que tornava o trabalho gigantesco.

Então, Newton teve a ideia de pensar em infinitos instantes de tempo. O pensamento


foi mais ou menos o seguinte. Sabemos que a velocidade no instante t é dada pela função

v t =at ,

em que t é o instante em que queremos a posição, então podemos dividir esse t em n partes de
modo formar n intervalos. Para cada intervalo calculamos

it t
v  ⋅ ,
n n

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para i variando de 1 a n, e, no final somamos todos os resultados.

Essa ideia é a mesma apresentada na forma de tabela, só que um pouco mais


formalizada. O grande diferencial que Newton utilizou foi supor

n=∞ .

Ficamos com algo do tipo:

t t 2t t 3t t nt t
S=lim n ∞ v   v   v   ⋯v  
n n n n n n n n

t t 2t 3t nt
S=lim n ∞ v  v  v  ⋯v  
n n n n n

Substituindo a função pelo seu valor, temos

t t 2t 3t nt
S=lim n  ∞ a a a ⋯a 
n n n n n

t t 2t 3t nt
S=lim n ∞ a    ⋯ 
n n n n n

t t2t3t⋯nt
S=lim n ∞ a  
n n

t t 2t3t⋯nt
S=lim n ∞ a 
n n

t 123⋯n
S=lim n  ∞ at 
n n

2 1 123⋯n
S=lim n  ∞ at  
n n

Uma propriedade interessante dos limites é que o limite de uma constante vezes algo
que varia é igual a constante vezes o limite do que varia. A explicação é um pouco complexa,
mas em princípio isso tem a ver com o fato de que o limite de uma constante é igual a própria
constante, e portanto, aplicando o limite sobre a constante não interferiria em nada, então o
limite só interfere no que varia. Com isso, chegamos ao seguinte

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2 1 123⋯n
S=at lim n  ∞ .
n n

Lembra quando falamos que a posição era uma grandeza analógica? Pois para
definirmos a posição dessa forma, temos que resolver um problema de números inteiros, é
claro, no seu limite, mas no fundo, isso não deixa de ser um problema de números inteiros.

Esse problema de números inteiros foi resolvido por Gauss, um matemático alemão,
que deu uma interessante solução para o problema. A solução é a seguinte. Para sabermos a
soma de todos os números de 1 até n, basta que somamos cada elemento a seu complemento
de n, ou seja, pela expressão ao contrário:

 n=123⋯n

 n= nn−1n−2⋯1

 n n =[n1n−12 n−23⋯1n]

2  n=[n1 n1n1⋯ n1]

2  n=n n1

n n1
 n= .
2

Só como comentário histórico, o matemático que fez essa demonstração tinha 8 anos
quando a fez. O fato se quando porque o professor dele em vez de dar aula, dava o exercício
de somar todos os números até 100, por exemplo. Enquanto isso, ele tirava uma soneca.
Porém, certa vez, um aluno chamado Gauss se deu conta que tinha um jeito bem mais rápido
de fazer as contas e tão logo quanto o professor deu o exercício ele o resolveu. Porém, como
os planos do professor eram tirar uma soneca, o professor não ficou nada contente com a sua
esperteza e quase que Gauss acabou por se encrencar, se não fosse o diretor da escola ter lhe
protegido. O mesmo diretor depois o conseguiu uma bolsa para estudar numa universidade.

Substituindo o resultado de Gauss, temos:

1 n n1
S=at 2 lim n  ∞
n 2n

6
2 1 n1
S=at lim n ∞
n 2

1 n1
S=at 2 lim n ∞
2 n

at 2 n1
S= lim n  ∞ .
2 n

Se apoiando fortemente nos números inteiros, agora o limite pode mostrar todo o seu
poder. Para resolver o limite acima, procedemos da seguinte forma:

2
at n1
S= lim n ∞
2 n

at 2 n 1
S= lim n  ∞ 
2 n n

at 2 1
S= lim n ∞ 1
2 n

2
at 1
S= lim n ∞ 1
2 n

Usaremos aqui outra importante propriedade dos Limites. A propriedade é que o


Limite da soma é igual a soma dos limites.

2
at 1
S= lim n ∞ 1 
2 n

at 2 1
S= lim n ∞ 1lim n ∞ 
2 n

Outra importante propriedade é que o Limite de uma constante é igual a própria


constante.

at 2 1
S= 1lim n  ∞ 
2 n

E a última propriedade que precisamos usar é a seguinte: o limite do inverso de n, para


quando n tende ao infinito é igual a zero.

7
2
at
S= 10
2

at 2
S= 1
2

at 2
S= .
2

Chegamos aqui ao resultado que nos trás os livros de cinemática, é claro, apenas o
termo da aceleração, falta-se considerar a velocidade inicial e a posição inicial. Mas, mesmo
assim, isso já nos dá uma boa ideia do que é o Limite de fato, seu desenvolvimento histórico e
suas aplicações. E o que ocorreu de fato é que primeiro foi-se necessário resolver problemas
de integração – como esse que calculamos – e depois é que surgiu a ferramenta limite. Mas,
hoje, o limite tem aplicações independentes, como por exemplo, a própria ideia de
transformar 0 e 1 em codificação de músicas em CDs.

Por fim, falta-se fazer algumas considerações para deixar o entendimento ainda mais
rico. Muito do que se tem hoje provado, era feito que meio que de forma tendenciosa por
meio de gráficos de funções. É verdade que isso não é muito seguro, mas é um jeito de abrir
espaço para a imaginação. E, na maioria das vezes, apesar de isso não garantir uma solução
correta, pode dar uma boa base para encontrá-la, isto é, pelo menos ter uma noção.

Como desafio, deixo a tentativa de relacionamento e, se possível, de provas sobre as


propriedades dos limites utilizadas:

a) o limite de uma constante vezes algo que varie é igual a constante vezes o limite do que
varia.

b) o limite de uma soma é igual a soma dos limites.

c) o limite de uma constante é igual a ela mesma.

d) o limite de uma hipérbole 1/x é 0.

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