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Falo então dos componentes materiais, não da articulação que recorta o som em
sílabas, lacunas, acentuações na voz do individuo que canta, mas no ato mesmo de
articular que propicia a enunciação e a efetivação do sujeito no discurso. Trata-se
enfim do movimento vocal que é impulsionado pelo corpo inteiro e acontece
indiferente à unidade prosódica, morfológica ou sintática da língua. Eis o traço
especifico do pretendo apontar da singularidade no ato de falar cantando: o corpo
que põe seus órgãos a serviço da articulação de uma gama sonora de natureza
híbrida - fonema, acento, ritmo, harmonia, etc - que busca realizar a palavra
cantada.
Esse ponto de vista é para mim o referencial de escuta para as várias interpretações
que Billie Holiday realizou, por exemplo, para My man. Nesta, que teria uma das
mais repetidas por ela, Billie brinca não só com a voz e a interpretação, mas com os
efeitos que tira disso, construindo a si mesma como sujeito das experiências
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amorosas que faz acontecer no momento em que interpreta uma melodia. A
verdade de suas histórias de paixão resulta de uma impostura de voz no instante da
enunciação cantada.
Com base em uma descrição mais detalhada dos componentes sonoros - musicais e
prosódicos - da palavra cantada, é possível definir a repetição combinada com a
diferença que se acha no centro da técnica vocal de Billie Holiday. Daí que arte
interpretativa e composicional se confundem na medida em que Billie torna possível
algo impensado pelo compositor ao compor a canção entregue á arte vocal da
cantora.
Exemplo disso é o tom irônico com que ela emite frases melódicas cantando My man
na apresentação de 6 de julho de 1957, no Freebodypark, em Newport.
Acompanhada por três músicos, após uma breve introdução do piano, Billie entra
vagarosamente com sua voz, abrindo tempo para o dizer que produz a forma cool,
resignada do sujeito amoroso. A elasticidade temporal que marca sua interpretação
pode ser decomposta nas pausas e alongamentos vocálicos na emissão da primeira
frase melódica: a voz de Billie é impulsionada de modo a distribuir pausas,
intensidade e lacunas entre segmentos fônicos e rítmicos.
Mas se, no caso das três palavras tomadas em sua seqüência na frase melódica, a
pausa indica um ato de segmentação sonora que sucede à emissão de cada uma
delas, o mesmo não se observa se tomamos isoladamente lot e got , que perfazem
o ápice silábico onde se cria uma rima. Aludo aqui à intensidade, ou seja, a força
expiratória que a voz de Billie emprega para realizar o som de cada um desses itens
lexicais. Por certo, uma medição acústica mais precisa, nos faria ver que em got. a
voz de Billie vibra em uma intensidade maior, que em lot. Vejamos como se pode
representar esse diferencial de intensidade na partitura que corresponderia à traços
da interpretação de Billie Holiday na frase melódica em questão:
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emissão vocal, ou seja, como combina intensidade e brevidade em relação
respectivamente á força de expiração e à duração da nota. É o que apontamos no
modo como Billie canta "lot" e "got" imprimindo nesta uma força mais intensa que
naquela.
O que pode marcar a diferença entre a palavra cantada e a palavra falada é que
aquela, conspirando com suprasegmentos do nível prosódico da linguagem, pode
produzir sentido além do seu limite morfológico e sintático. Os descompassos entre
um segmento fônico e um traço rítmico marca uma não-coincidência entre o sentido
da palavra e a unidade sonora que lhe dá suporte. Uma pausa, um alongamento ou
uma intensidade maior na emissão de um elemento sonoro pode reter a duração
enunciativa mostrando o trajeto do dizer se marcando na zona da disjunção entre a
palavra e seu sentido. Deter o fluxo enunciativo é suspendê-la, evidenciando as
relações descontinuas entre seus componentes e uma suposta significação.
Isso faz pensar o jogo enunciativo com o tempo no quadro da palavra cantada.
Graças à particularidade do som na música, a fala cantada abre possibilidades de
sentido para as palavras ditas sob o suporte de uma linha melódica, que, na
repetição, é sempre suscetível de ser outra. A cada vez que a palavra é enunciada
em uma melodia, esse ato de enunciar torna possível uma significação virtualmente
inusitada, diferente.
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Deste modo, a duração vocal realizada por Billie Holiday em determinados
segmentos melódicos, por exemplo na canção My man, expõe um modo de
subjetivação produzido no intervalo que se abre entre um segmento melódico e
prosódico e um sentido a vir nas palavras que aí se articulam. Não se trata de uma
duração medida cronologicamente, mas de uma percepção do tempo de enunciação,
no instante do proferimento da palavra cantada, como possibilidade que atua a
própria musicalidade, expondo seu potencial subjetivante, ou seja, o de constituir o
eu do individuo que se diz cantando.
Em sua autobiografia, ela mesma conta: "as pessoas dizem que ninguém canta
palavras como "hunger" ou "love" como eu". Ao impor-se a diferença como o
fundamento de suas interpretações, Billie Holiday torna possível a abertura de um
espaço em que não somente repete a partitura de uma canção, mas participa de um
ato criador, confundindo o ato de interpretar com o de compor, já que no final das
contas o si mesmo da lady Billie era o resultado final da criação quando cantava.
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