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15/05/2021 :: revista de estudos poético-musicais ::

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ENUNCIAÇÃO CANTADA: O SUJEITO FEITO NAS


ISSN: 1806-9401
VIBRAÇÕES CORPORAIS*
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PEDRO DE SOUZA é Doutor em Lingüística pela
UNICAMP e professor de Lingüística na Universidade
Federal de Santa Catarina

* Trabalho apresentado no Floripa em composição,


realizado em 2004 na UFSC.

enunciação cantada: o sujeito feito nas vibrações corporais

O que pretendo tematizar aqui é não só o sentido advindo da articulação


letra/melodia, mas o jogo da repetição e da diferença que se produz em cada ato de
enunciação das mesmas palavras imbricadas em sons de natureza lingüística e
musical. Para isso, tomo como objeto de análise duas das interpretações de Billie
Holiday para a canção My Man, de Jacques Charles e Maurice Yvain. Quero me ater
no modo com que o elemento da duração é um componente que trabalha o
encontro simultâneo entre duas séries de sonoridade na palavra que se enuncia
cantando.

Tais séries de sonoridade, eu as defino aqui a partir de um ponto de vista lingüístico


em que a emissão das palavras obedece a um principio de articulação. Trata-se da
maneira de vocalizar sons que resultam imediatamente em unidades lingüísticas de
nível morfológico e prosódico. Particularmente, a prosódia diz respeito a um
mecanismo de articulação de que participam sons que se superpõem à cadeia
sonora constituindo o grupo dos chamados traços supra-segmentais, ou seja, o som
lingüístico considerado do ponto de vista de seu modo de pronunciar. De modo que
o ritmo, a intensidade, o alongamento, a pausa, a hesitação são elementos que
compõem a dimensão prosódica de uma enunciação lingüística.

É certo que, para os fins de uma abordagem morfo-fonológica de tradição


estruturalista, as línguas em geral operam segundo um mesmo sistema de
articulação, ou seja, um determinado conjunto de regras que regulam o modo como
as unidades sonoras devem ser segmentadas para formar sílabas, palavras, frases.

O que para a fonologia contemporânea vai mudar, no interior desse modelo


articulatório, é o critério sob o qual os sons aí se articulam. Nas línguas latinas, por
exemplo, o sistema de atamento dos elementos de uma palavra ou frase segue a
perspectiva da forma lógica, em que cada segmento na cadeia linear da fala deve
corresponder a um sentido previamente calculável. Já no inglês, por exemplo, a
língua materna de Billie Holiday, não é a correspondência lógica de sentido que
importa para a emissão das palavras, mas sim a força com que seus componentes
sonoros são proferidos. Tem-se nesta língua a regência do mesmo modelo de
articulação que se encontra em outras, porém realizado sob os auspícios de outro
modo de realização sonora. Refiro-me aqui aos acidentes e particularidades do
modo de vocalizar que modificam a rigidez com que o som emitido pode ser
classificado como uma unidade morfológica ou prosódica.

Falo então dos componentes materiais, não da articulação que recorta o som em
sílabas, lacunas, acentuações na voz do individuo que canta, mas no ato mesmo de
articular que propicia a enunciação e a efetivação do sujeito no discurso. Trata-se
enfim do movimento vocal que é impulsionado pelo corpo inteiro e acontece
indiferente à unidade prosódica, morfológica ou sintática da língua. Eis o traço
especifico do pretendo apontar da singularidade no ato de falar cantando: o corpo
que põe seus órgãos a serviço da articulação de uma gama sonora de natureza
híbrida - fonema, acento, ritmo, harmonia, etc - que busca realizar a palavra
cantada.

Esse ponto de vista é para mim o referencial de escuta para as várias interpretações
que Billie Holiday realizou, por exemplo, para My man. Nesta, que teria uma das
mais repetidas por ela, Billie brinca não só com a voz e a interpretação, mas com os
efeitos que tira disso, construindo a si mesma como sujeito das experiências
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amorosas que faz acontecer no momento em que interpreta uma melodia. A
verdade de suas histórias de paixão resulta de uma impostura de voz no instante da
enunciação cantada.

Com base em uma descrição mais detalhada dos componentes sonoros - musicais e
prosódicos - da palavra cantada, é possível definir a repetição combinada com a
diferença que se acha no centro da técnica vocal de Billie Holiday. Daí que arte
interpretativa e composicional se confundem na medida em que Billie torna possível
algo impensado pelo compositor ao compor a canção entregue á arte vocal da
cantora.

Quando se compara as diferentes interpretações de Billie Holiday para uma mesma


canção, é de se perguntar se se trata de uma mesma partitura. De qualquer modo,
de diferentes partituras interpretativa, o quês e repete é a melodia. Por certo a
repetição é uma força que faz a voz reproduzir a mesma melodia, tal como
composta; mas de tanto se repetir a música resvala, fica suscetível de tornar-se
diferente, não do que é, na sua forma original de composição, mas do que poderia
ser no momento em que os primeiros acordes tornaram possível sua criação.

Exemplo disso é o tom irônico com que ela emite frases melódicas cantando My man
na apresentação de 6 de julho de 1957, no Freebodypark, em Newport.
Acompanhada por três músicos, após uma breve introdução do piano, Billie entra
vagarosamente com sua voz, abrindo tempo para o dizer que produz a forma cool,
resignada do sujeito amoroso. A elasticidade temporal que marca sua interpretação
pode ser decomposta nas pausas e alongamentos vocálicos na emissão da primeira
frase melódica: a voz de Billie é impulsionada de modo a distribuir pausas,
intensidade e lacunas entre segmentos fônicos e rítmicos.

[It]-- [cost]- (piano) me a lot (pausa),


But there's one thing (pausa)
that I've got (pausa),
it's my [man]-. it's my [man]-

O travessão, o colchete e o parêntesis são empregados aqui para indicar, na cadeia


da fala cantada, pontos de descontinuidades tais como pausas longas e breves,
intensidades e duração, e também a interferência de sons outros que, no canto,
atuam ao lado da voz: acordes instrumentais que se solidarizam com o ritmo
imposto pela vocalização.

Mas se, no caso das três palavras tomadas em sua seqüência na frase melódica, a
pausa indica um ato de segmentação sonora que sucede à emissão de cada uma
delas, o mesmo não se observa se tomamos isoladamente lot e got , que perfazem
o ápice silábico onde se cria uma rima. Aludo aqui à intensidade, ou seja, a força
expiratória que a voz de Billie emprega para realizar o som de cada um desses itens
lexicais. Por certo, uma medição acústica mais precisa, nos faria ver que em got. a
voz de Billie vibra em uma intensidade maior, que em lot. Vejamos como se pode
representar esse diferencial de intensidade na partitura que corresponderia à traços
da interpretação de Billie Holiday na frase melódica em questão:

Conforme se vê na transcrição da partitura executada por Billie, as pausas são


escandidas em pontos diferentes da frase melódica: ora aparecem no intervalo
entre um segmento fônico e outro, ora aparecem exatamente sobre um
determinado segmento fõnico. Em todas estas ocorrências, as pausas são
arbitrariamente expandidas, o que na linguagem musical designa um fermata -
notado pelo símbolo ao lado[1], ou seja, o fermata é o indicador de uma pausa
maior não prevista na partitura criada pelo compositor. Musicalmente, trata-se de
uma suspensão arbitrária da duração da nota, ato em que o intérprete reinventa o
modo de enunciar a palavra proferida sob o suporte musical. notado arbitrária, se [1] símbolo da pausa
comparamos com o modo com que ela emite lot. (fermata):

Em verdade, a partitura mostra a diferença de freqüência na fonação dos


segmentos: "got" é emitido na nota sol e "lot", na nota mi . De modo que, em
termos de interpretação, a comparação mais pertinente diz respeito à duração
resultando no efeito de tempos mais breves ou mais longos, conforme a intensidade
impressa.. Destaque-se aí como a cantora distribui diferentemente a intensidade de

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emissão vocal, ou seja, como combina intensidade e brevidade em relação
respectivamente á força de expiração e à duração da nota. É o que apontamos no
modo como Billie canta "lot" e "got" imprimindo nesta uma força mais intensa que
naquela.

É o caso de ressaltar aqui a funcionalidade da força acentual em termos


enunciativos. Dizer mais intensamente significa em termos da constituição do
indivíduo que canta em sujeito. De modo que, além de emitir mais intensamente a
palavra "got" comparado com o modo com que emitiu "lot", a voz de Billie abre o
tempo entre os segmentos "got" e "it's" fazendo da pausa expandida uma lacuna
que resulta em efeito de subjetivação.

Este modo de enunciar cantando produz a posição do sujeito constituído frente a


seu drama amoroso. É como se a cada parada, o sujeito marcasse a desconexão
entre o lugar do qual fala e os possíveis discursos que significam esse mesmo lugar
de subjetivação na experiência amorosa Essa diferença de acento expiratório resulta
respectivamente em vibrações mais baixas e mais altas, colocando em relevo não só
o acento recaído sobre a unidade silábica da frase melódica, mas sobretudo o
sentido a ser interpretado na palavra cantada nesta posição.

No ponto da cadeia da fala em que se localiza as duas palavras, é o caso de ligar as


intensidades mais baixas e altas da força com que a frase melódica é emitida ao
sentido que se efetiva na enunciação da canção, por sua letra e melodia. Dito de
outro modo, na combinação entre intensidades, nesta interpretação que Billie dá a
My man, há um efeito de subjetivação imputado ao modo com que o corpo é
solicitado para fazer vibrar o som. É como se movimentos corporais específicos
determinassem uma velocidade temporal de expiração e inspiração que,
antecedendo a um resultado sonoro, fosse proporcional à intensidade com que o
som é efetuado neste ato.

Verifica-se assim, através desta interpretação de Billie, uma variação na mesma


melodia percebida por curvas entoativas. Tais curvas produzem espaços vazios,
pontos de suspensão da voz indicados por pausas ou pela junção de um
acompanhamento instrumental que se acrescenta ao efeito de sentido que a
intérprete está em vias de enunciar. Acentua-se, na entoação da mesma frase
melódica, um contraste rítmico propiciado pela interferência de componentes
sonoros de natureza supra-enunciativo - pausas e acordes instrumentais que
escandem a sucessão dos conteúdos das palavras cantadas, projetando sobre estas
palavras um sentido que não vem delas, mas da força imposta ao ato de dizê-las.

Desse modo é que a fluência prosódica é quebrada na medida em que são


indiferentes a rígidas estruturas gramaticais. Ou seja, não importa se "lot" e "got"
correspondem a um nome, advérbio ou verbo. O que importa é que sobre a posição
em que são ditas incidem marcadores de descontinuidade - alongamentos, pausas e
variações da altura melódica - que modificam o modo semântico com que devem
ser escutadas. Daí resulta a compreensão de que o cansaço define a forma do
sujeito que fala no canto de Billie. A descontinuidade durativa entre uma pausa e
outra e entre uma intensidade e outra descreve um eu, que amando se faz pela
mistura indissociável entre cansaço e insistência.

Vê-se como se pode descrever as diferentes performances vocais de Billie, modos


de enunciação que não remetem ao sentido concretamente rubricado nas palavras
articuladas na pauta musical da canção, mas à possibilidade de significar. Assim de
si para si, Billie pode enunciar toda a disposição à entrega amorosa, porém, em um
processo de subjetivação que incessantemente se recria: trata-se da potência de ser
em ladys sings the blue. Há, nas variações interpretativas que sua voz propicia à
interpretação de My man, a produção conseqüente de uma subjetividade no
instante do canto.

O que pode marcar a diferença entre a palavra cantada e a palavra falada é que
aquela, conspirando com suprasegmentos do nível prosódico da linguagem, pode
produzir sentido além do seu limite morfológico e sintático. Os descompassos entre
um segmento fônico e um traço rítmico marca uma não-coincidência entre o sentido
da palavra e a unidade sonora que lhe dá suporte. Uma pausa, um alongamento ou
uma intensidade maior na emissão de um elemento sonoro pode reter a duração
enunciativa mostrando o trajeto do dizer se marcando na zona da disjunção entre a
palavra e seu sentido. Deter o fluxo enunciativo é suspendê-la, evidenciando as
relações descontinuas entre seus componentes e uma suposta significação.

Isso faz pensar o jogo enunciativo com o tempo no quadro da palavra cantada.
Graças à particularidade do som na música, a fala cantada abre possibilidades de
sentido para as palavras ditas sob o suporte de uma linha melódica, que, na
repetição, é sempre suscetível de ser outra. A cada vez que a palavra é enunciada
em uma melodia, esse ato de enunciar torna possível uma significação virtualmente
inusitada, diferente.

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Deste modo, a duração vocal realizada por Billie Holiday em determinados
segmentos melódicos, por exemplo na canção My man, expõe um modo de
subjetivação produzido no intervalo que se abre entre um segmento melódico e
prosódico e um sentido a vir nas palavras que aí se articulam. Não se trata de uma
duração medida cronologicamente, mas de uma percepção do tempo de enunciação,
no instante do proferimento da palavra cantada, como possibilidade que atua a
própria musicalidade, expondo seu potencial subjetivante, ou seja, o de constituir o
eu do individuo que se diz cantando.

A propriedade de o canto cortar nas palavras suas unidades silábicas é marca da


vocalização de Billie Holiday. Billie sempre gostou de cantar dezenas de vezes a
mesma canção, mas a cada ato interpretativo acontecia sempre uma repetição que
era a retomada de uma diferença; ou a retomada de uma possibilidade de um novo
jeito de dizer cantando idênticas palavras. Assim se pode descrever a dimensão
performática de uma cantora que sempre lutou para cantar o que queria da forma
como queria.

Em sua autobiografia, ela mesma conta: "as pessoas dizem que ninguém canta
palavras como "hunger" ou "love" como eu". Ao impor-se a diferença como o
fundamento de suas interpretações, Billie Holiday torna possível a abertura de um
espaço em que não somente repete a partitura de uma canção, mas participa de um
ato criador, confundindo o ato de interpretar com o de compor, já que no final das
contas o si mesmo da lady Billie era o resultado final da criação quando cantava.

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