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Graham Greene

O Americano Tranquilo

TRADUÇÃO DE P. J. DE MORAIS

Clássicos da Literatura Contemporânea

ULISSEIA

Este livro foi digitalizado por Sandra Leonor Ferreira em Março de 2007 para uso
exclusivo de deficientes visuais.
Contracapa:

Publicado em 1955, O Americano Tranquilo é um dos grandes romances alguma vez


escritos sobre a guerra do Vietname. Não a guerra americana mas a francesa que a
precedeu. E, contudo, como screve o crítico, Adam Schildge, este romance, de algum
modo, através de um dos seus personagens principaisAlden Pyle (o próprio americano
tranquilo, de facto um agente da CIA muito dado a intrometer-se no que não lhe diz
respeito), o que veio a ser a intervenção norte-americana naquele país do Extremo
Oriente.
Livro de guerra que no entanto não se detém nas descrições bélicas, O Americano
Tranquilo é, acima de tudo, uma obra sobre a condição humana. Mais que as questões
políticas (que, não obstante, estão sempre presentes), mais que o antagonismo entre as
visões do mundo do narrador, o jornalista britânico Thomas Fowler, que não gosta da
política americana (para ele formada apenas por «meias-mentiras»), e o já citado Alden
Pyle, o que está em causa nestas páginas é sobretudo o amor, o ódio, a traição, e depois,
o sacrifício dos civis e a morte dos inocentes.
Adaptado ao cinema em 2002 – por Philip Noyce e com os principais papéis a cargo de
Michael Cain e Brendan Frazer, O Americano Tranquilo é uma das grandes obras
ficcionais de Grahham Grenne e um romance que o leitor não esquecerá.

Badana do livro:
Graham Greene (1904-1991) é uma das grandes figuras da literatura inglesa do
século XX. Iniciou a sua carreira como jornalista, colaborou longamente com o jornal
The Times, tendo sido correspondente na Libéria, México, Malásia, Indochina, Cuba e
Haiti. Foi essa longa experiência de testemunha das violências da história que deu
matéria-prima que usou em muitos dos seus romances.
Convertido ao catolicismo em 1926, foi por vezes comparado a François
Mauriac, ainda que o seu extraordinário sentido dos ambientes, da cor, da realidade
material dos lugares distingam a sua obra do carácter um pouco fechado dos romances
deste último.
De entre a sua vasta bibliografia, destacam-se os romances The Power and the Glory
(1940), The Heart of the Matter [O Nó do Problema] (1948), The End of the Affair
(1951), The Quiet American [O Americano Tranquilo] (1955), Our Man in Havana [O
Nosso Agente em Havana] [1958), The Honorary Cônsul (1953), e The Human Factor
(1978). Escreveu também uma autobiografia intitulada A Sort of Life (1971) e Ways of
Escape (1980).
Clássicos da Literatura Contemporânea
colecção dirigida por João Carlos Alvim

Título do original: The Quiet American


Copyright © Graham Greene, 1986

Todos os direitos reservados para a língua portuguesa, excepto Brasil, por


Editora Ulisseia, Lda.
Av. Antônio Augusto de Aguiar, 148-1.° 1050-021 Lisboa
Tel. 213801 100

Composição: Fotocompográfica, Lda.


Impresso em Janeiro de 2003 por Tilgráfica - Sociedade Gráfica, SA
Dep. legal n.O 190759/03
Capa de Editora Ulisseia
Desagrada-me ficar comovido: porque
a vontade se excita, e a acção
É coisa extremamente perigosa; tremo
com o artificial,
Com qualquer prevaricação sentimental
e processo ilegítimo;
Somos tão propensos a coisas destas,
com as nossas terríveis noções do dever.»

A. H. Clough

«É esta a era privilegiada para novas


invenções
De matar corpos e de salvar almas,
Todas propagadas com as melhores
intenções.»

Byron

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....Meus caros René e Phuong:

Pedi-vos autorização para vos dedicar este livro não só em memória das tardes
felizes que convosco passei em Saigão nos últimos cinco anos, mas também porque
descaradamente me servi da vossa morada para alojar uma das minhas personagens e do
teu nome, Phuong, para conveniência dos leitores, porque é simples, bonito e fácil de
pronunciar, o que não acontece com a maior parte dos nomes das tuas compatriotas.
Poderão verificar que de pouco mais me servi e que é evidente que não copiei quaisquer
personagens residentes no Vietname. Tanto Pyle como Granger, Fowler, Vigot e Joe
não são cópias de originais existentes em Saigão ou Hanói e o general Thé já morreu:
segundo dizem com um tiro nas costas. Os próprios acontecimentos históricos foram
alterados. Por exemplo, a bomba junto do Continental não seguiu, mas sim precedeu, as
bombas das bicicletas. Não tenho escrúpulos quanto a pequenas alterações deste tipo.
Trata-se de um romance e não de uma descrição histórica, e espero que esta história
acerca de algumas personagens imaginárias vos faça passar a ambos uma tarde quente
de Saigão.

Afectuosamente,
GRAHAM GREENE

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PRIMEIRA PARTE

Capítulo I

Depois do jantar sentei-me no meu quarto, na Rua Catinat, à espera de Pyle: ele
dissera: "Chegarei quando muito às dez horas», e quando bateu a meia-noite senti-me
incapaz de ficar quieto por mais tempo, desci as escadas e saí. Um grupo de velhas de
calças pretas agachava-se no patamar: estávamos em Fevereiro e provavelmente sentiam
demasiado calor na cama. Um condutor de trishaw pedalava lentamente em direcção à
margem do rio, e no local de desembarque dos novos aviões americanos brilhavam
lampiões. Em toda a extensão da rua não havia sinal de Pyle.
Podia acontecer, evidentemente, que por qualquer razão o tivessem retido na legação
da América, mas nesse caso teria certamente telefonado para o restaurante - era
extremamente meticuloso quando se tratava de pequenas cortesias. Voltei-me para
entrar em casa e vi uma rapariga que esperava no vão da porta seguinte. Não conseguia
ver-lhe a cara, apenas as calças de seda branca e a comprida túnica florida, mas apesar
disto sabia de quem se tratava. Esperara tantas vezes que eu chegasse a casa neste
mesmo sítio e a esta mesma hora!...
- Phuong (o que significa Fénix, mas hoje em dia nada existe que seja fabuloso e
possa renascer das próprias cinzas. Antes que ela tivesse tempo de o dizer eu sabia que
esperava Pyle) - disse-lhe. - Ele não está aqui.
- Je sais. Je t'ai vu seul à la fenêtre.
- Podes esperar lá em cima - disse-lhe. - Não deve tardar. - Posso esperar aqui.
- Não é conveniente. A polícia pode levar-te.
Ela seguiu-me pelas escadas acima. Pensei em várias graças irónicas e desagradáveis,
mas os seus conhecimentos de francês e inglês

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não eram suficientes para que ela atingisse a ironia e, o que é mais estranho, não me
apetecia magoá-la nem magoar-me a mim mesmo. Quando chegámos ao patamar as
velhas viraram as cabeças e logo que passámos as suas vozes elevaram-se e depois
baixaram como se estivessem a cantar em coro.
- De que estão a falar?
- Pensam que voltei para casa.
No meu quarto a árvore que eu arranjara para o ano novo chinês deixara cair a maior
parte das suas flores amarelas. Jaziam entre as teclas da minha máquina de escrever.
Apanhei-as.
- Tu es troublé - disse-me Phuong.
- Não é seu costume. É um homem tão pontual... Tirei a gravata e os sapatos e deitei-me
na cama.
Phuong acendeu o fogão de gás e pôs água a aquecer para o chá. Podia ter
acontecido há seis meses.
- Ele diz que vais partir brevemente - disse-me.
- Talvez.
- Ele é muito teu amigo.
- Agradece-lhe em meu nome.
Reparei que tinha um penteado diferente, deixando agora o cabelo negro cair, liso,
até aos ombros. Lembrei-me de que Pyle criticara em tempos o complicado penteado
que ela achava ser próprio da filha de um mandarim. Fechei os olhos e vi-a de novo
como fora: 'o silvo do vapor, o tilintar de uma chávena, uma determinada hora da noite
e a promessa de tranquilidade.
- Ele não se demorará - disse-me, como se eu necessitasse de ser confortado pela sua
ausência.
Perguntei-me no que falariam quando estavam juntos: Pyle era muito sério e eu
aturara-lhe as dissertações sobre o Oriente, que ele conhecia há meses, tantos quantos eu
o conhecia há anos. Outro dos seus temas preferidos era a democracia e tinha ideias
definidas e irritantes sobre o que os Estados Unidos estavam a realizar a favor do
mundo. Em contrapartida, Phuong era de uma ignorância maravilhosa: se porventura o
nome de Hitler surgisse numa conversa ela interrompia-a para perguntar de quem se
tratava. A explicação era tanto mais difícil quanto ela nunca conhecera um alemão ou
um polaco e as suas noções de geografia da Europa eram extremamente vagas, embora,
evidentemente, quando se tratava da princesa Margarida, soubesse muito mais do que
eu. Ouvi-a pousar um tabuleiro aos pés da cama.
- Ele ainda está apaixonado por ti, Phuong?

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Levar uma anamita para a cama é como que levar um pássaro: chilreia e canta sobre
a nossa almofada. Houve tempo em que pensei que nenhuma delas cantava como
Phuong. Estendi a mão e toquei-lhe no braço - também os seus ossos eram frágeis
como os dos pássaros.
- Ainda está, Phuong?
Ela riu e ouvi-a acender um fósforo. Apaixonado? Talvez se tratasse de uma daquelas
frases que não entendia.
- Posso preparar-te o cachimbo? - perguntou-me.
Quando abri os olhos ela já acendera a lamparina e o tabuleiro estava preparado. A luz
dava-lhe à pele um tom de âmbar escuro e ela debruçou-se sobre a chama com uma
expressão de concentração, aquecendo a pequena pasta de ópio, rodando com a
agulha.
- Pyle ainda não fuma? - perguntei-lhe.
-Não.
- Deves convencê-lo; caso contrário não voltará.
Entre eles existia a superstição de que um amante fumador de ópio voltava sempre, nem
que estivesse em França. A capacidade sexual de um homem podia ser prejudicada pelo
fumo, mas elas preferiam sempre o amante fiel ao amante potente. Phuong amassava a
pequena bola de pasta quente na margem convexa da taça e já cheirava a ópio. Não
existe qualquer cheiro que se assemelhe. O despertador ao lado da cama indicava meia-
noite e vinte, mas o meu estado de tensão desaparecera. Pyle esfumava-se. A lamparina
iluminava a cara de Phuong enquanto cuidava do longo cachimbo e se debruçava sobre
ele com a mesma atenção solene que teria dedicado a uma criança. Eu gostava do meu
cachimbo: mais de sessenta centímetros de bambu direito, com marfim em ambas as
extremidades. A taça encontrava-se a dois terços da extremidade superior, tal um
convólvulo invertido, com a margem convexa polida e escurecida pelo frequente
amassar do ópio. Com um movimento de pulso ela introduziu a agulha na pequena
cavidade, libertou o ópio e inverteu a taça sobre a chama, segurando o cachimbo para
que se mantivesse firme. A conta de ópio borbulhava brandamente, regularmente, à
medida que eu aspirava.
O fumador experiente consegue aspirar de uma só vez todo o cachimbo, mas eu
precisava sempre de chupar várias vezes. Depois deitei-me para trás, com a cabeça
encostada à almofada de cabedal, enquanto ela preparava o segundo cachimbo.
- Sabes? É realmente claro como a água. Pyle sabe que eu fumo sempre umas
cachimbadas antes de me deitar e não quer interromper-me. Amanhã de manhã passará
por cá - disse-lhe.

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A agulha entrou novamente e eu fumei o segundo cachimbo. Quando o pousei disse:


- Não há motivo para preocupações. Não há mesmo o mínimo motivo.
Bebi um gole de chá e levei a mão ao seu sovaco.
- Quando me deixaste - disse - foi uma sorte ter isto a que me agarrar. Na Rua de Ormay
há uma casa bastante boa. Nós, os Europeus, complicamos as coisas mais
insignificantes. Não devias viver com um homem que não fuma, Phuong.

- Mas ele vai casar comigo - respondeu-me. - Já falta pouco tempo.


- Tens razão; o caso assim muda de figura.
- Queres que te prepare novo cachimbo?
- Quero.
Pus-me a pensar se no caso de Pyle não aparecer ela consentiria em dormir comigo
aquela noite; mas eu sabia que depois de quatro cachimbadas já não a desejaria.
Evidentemente que seria agradável sentir a meu lado, na cama, a sua coxa Cela dormia
sempre de costas), e quando .de manhã acordasse podia principiar o dia com um
cachimbo em vez de o começar com a minha própria companhia.
- Pyle já não vem - disse. - Fica aqui, Phuong.
Ela estendeu-me o cachimbo e abanou a cabeça.
Logo que aspirei o ópio, tanto a sua presença como a Sua ausência passaram a ter pouca
importância.
- Por que é que o Pyle não veio? - perguntou-me.
- Como queres que saiba?
- Foi falar com o general Thé?
- Não faço a mínima ideia.
- Ele disse-me que se não pudesse jantar contigo viria aqui ter.
- Não te preocupes. Ele vem. Arranja-me outro cachimbo.
Quando ela se debruçou sobre a chama lembrei-me do poema de Baudelaire:

Mon enfant, ma soeur...

E o resto?

Aimer à loisir,
Aimer et mourir
Au pays qui te ressemble.

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Ao longe, nos cais, dormiam os barcos dant l'humeur est vagabande. Pensei que, se
a cheirasse, a sua pele teria uma ténue fragrância de ópio e que a sua cor seria idêntica à
da pequena chama. Vira as flores do seu vestido junto dos canais do Norte; era tão
indígena como uma erva, e eu nunca mais quisera voltar para o meu país.
- Quem me dera ser o Pyle - disse em voz alta, mas o sofrimento era limitado e
suportável; o ópio encarregara-se disso. Alguém bateu à porta.
- É o Pyle - disse ela.
- Não é. Ele não bate assim.
Alguém bateu de novo com impaciência. Ela levantou-se apressadamente, fazendo
estremecer a árvore amarela, que novamente espalhou as pétalas das suas flores sobre a
máquina de escrever. A porta abriu-se.
- Monsieur Foulair? - indagou alguém.
- O Fowler sou eu - respondi. Não me ia incomodar por um polícia. Sem levantar a
cabeça, conseguia ver os seus calções de caqui.
Ele passou a explicar num francês vietnamita quase incompreensível que precisavam
de mim imediatamente - já - rapidamente – na Sureté.
- Na Sureté francesa ou vietnamita?
- Francesa.
Dita por ele a palavra soava como «françung».
- De que se trata?
Ele não sabia: as suas ordens eram as de me levar.
- Toi aussi - disse a Phuong.
- Diga vous quando se dirige a uma senhora - disse-lhe. - Como sabia que ela estava
aqui?
Repetiu simplesmente que eram estas as suas ordens.
- Irei amanhã de manhã.
- Agora - disse o homenzinho, cuidado e obstinado.
Não valia a pena discutir, e consequentemente levantei-me, pus a gravata e calcei os
sapatos. A polícia aqui tinha a última palavra: podia retirar-me o direito de circulação;
podia proibir-me de assistir às conferências de imprensa; podia mesmo, caso quisesse,
recusar-me o visto de saída. Estes eram os métodos legais vigentes, mas a legalidade
não era essencial num país em guerra. Eu conhecia um homem que súbita e
inexplicavelmente ficara sem cozinheiro: conseguira localizá-lo na Sureté vietnamita,
mas os oficiais garantiram-lhe que o haviam libertado, após o interrogatório. A família
nunca mais o viu. Talvez se tivesse

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juntado aos comunistas; talvez se tivesse alistado num dos exércitos particulares que
abundam em redor de Saigão: os hoa-haos ou os caodaístas ou o general Thé. Talvez
estivesse numa prisão francesa. Talvez estivesse alegremente em Cholon, o subúrbio
chinês, a ganhar dinheiro com raparigas. E era possível que o seu coração não tivesse
resistido ao interrogatório. Eu disse:
- Não vou a pé. Terão de me pagar um trishaw.
Era indispensável manter uma certa dignidade. Por esta mesma razão recusei o
cigarro que o oficial da Sureté francesa me ofereceu. Depois dos três cachimbos sentia-
me com as ideias claras e alerta: era-me possível tomar decisões daquele tipo com
facilidade e sem perder de vista o problema fundamental: que quereriam eles de mim?
Encontrara Vigot por v_rias vezes em festas; reparara nele porque me parecera in-
congruentemente apaixonado pela mulher, que o ignorava, uma loura vistosa e falsa.
Agora eram duas da manhã e ele estava sentado, cansado e deprimido, envolvido no
fumo do cigarro e no calor opressivo, com uma pala verde sobre os olhos e um livro de
Pascal aberto sobre a secretária, para matar o tempo. Quando me opus a que
interrogasse Phuong fora da minha presença cedeu imediatamente, com um único
suspiro, que porventura representava o seu cansaço de Saigão, do calor ou de toda a
condição humana.
Disse em inglês:
- Lastimo ter sido forçado a pedir-lhe que viesse aqui.
- Não me pediram. Ordenaram-me.
- Ah, esta polícia indígena... eles não percebem.
Tinha os olhos fixos numa página de Les Pensées, como se ainda estivesse absorto
naqueles tristes argumentos.
- Desejava fazer-lhe algumas perguntas... acerca de Pyle.
- É preferível fazer-lhas directamente.
Virou-se para Phuong e interrogou-a secamente em francês.
- Há quanto tempo vive com Monsieur Pyle?
- Há um mês... não sei bem - respondeu Phuong.
- Quanto lhe pagou ele?
- Não tem o direito de lhe fazer uma tal pergunta - disse-lhe. - Ela não está à venda.
- Ela já viveu consigo, não viveu? - perguntou abruptamente.
- Durante dois anos.
- Sou um correspondente cuja missão é fazer reportagens sobre a vossa guerra...
sempre que me deixam. Não me peça que também contribua para a vossa secção de
escândalos.

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- Que sabe sobre Pyle? Peço-lhe que responda às minhas perguntas, senhor Fowler.
Não me agrada fazê-las. Mas isto é sério. Peço-lhe que me creia quando lhe digo que é
muito sério.
- Não sou um informa dor. O senhor sabe tudo quanto lhe posso dizer sobre Pyle.
Tem trinta e dois anos, trabalha na Missão de Auxílio Económico e é de nacionalidade
americana.
- O senhor fala como se fosse um seu amigo - disse Vigot, olhando para Phuong. Um
polícia indígena entrou com três chávenas de café.
- Talvez prefira chá - perguntou Vigot.
- E sou amigo dele - disse-lhe. - Por que não? Há-de chegar o dia em que regresse à
minha terra. Não posso levá-la comigo. Ela fica bem com ele. Trata-se de um acordo
razoável. E ele, segundo diz, vai casar-se com ela. E até é possível que o faça, sabe? A
seu modo é um tipo decente. Sério. Não é como esses malditos barulhentos do Conti-
nental. É um americano tranquilo - defini-o precisamente como se tivesse dito "um
lagarto azul», "um elefante branco».
Vigot disse «Sim». Parecia procurar sobre a secretária palavras que exprimissem o
que pretendia dizer tão precisamente como eu fizera. "Um americano muito tranquilo».
Ficou ali sentado no pequeno gabinete escaldante aguardando que um de nós falasse.
Um mosquito zumbiu preparando-se para o ataque e eu examinei Phuong. O ópio torna-
nos perspicazes - talvez pela mera razão de nos acalmar os nervos e aquietar as
emoções. Coisa alguma, nem mesmo a morte, nos parece excepcionalmente importante.
"Phuong», pensei, "não se apercebera do seu tom de voz, melancólico e final, e o seu
inglês era muito mau». Sentada naquela dura cadeira de escritório não deixara ainda de
esperar pacientemente por Pyle. Naquele momento eu já deixara de esperar e
percebi que Vigot se apercebera das nossas duas atitudes.
- Como foi que o conheceu? - perguntou Vigot.
Porquê explicar-lhe que fora Pyle quem me conhecera? Vira-o, em Setembro passado,
atravessar o largo em direcção ao bar do Continental: uma cara manifestamente jovem e
inexperiente que nos foi atirada como um dardo. Com aquelas pernas esgalgadas, o
cabelo cortado muito curto e o olhar de quem tem o hábito de horizontes extensos
parecia incapaz de maldade. As mesas na rua estavam quase todas ocupadas.
- Importa-se que me sente? - perguntou-me, sério e cortês. - Chamo-me Pyle. Sou
novo na terra - e encolheu-se na cadeira e pediu uma cerveja. Depois olhou
apressadamente para cima, para a luz crua do meio-dia.

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- Foi uma granada? - perguntou, excitado e esperançoso.


- Provavelmente o escape de um automóvel - disse-lhe, e de repente fiquei com pena do
seu desapontamento.
Esquecemo-nos tão rapidamente da nossa própria juventude! Houve tempo em que
eu próprio tinha interesse por aquilo que, à falta de melhor termo, chamam notícias.
Mas as granadas tinham-se tornado cediças; não passavam de uma anotação na última
página do jornal local: tantas na passada noite em Saigão, tantas em Cholon. Nunca
atingiam a imprensa europeia. Do cimo da rua chegavam as maravilhosas silhuetas
direitas - as calças de seda branca, as longas e cingidas túnicas, com desenhos rosa e
lilás, abertas até à coxa. Contemplei-as com a nostalgia que eu sabia ir sentir quando
deixasse para sempre aquelas paragens.
- São lindas, não acha! - perguntei-lhe por cima do copo de cerveja, e Pyle deitou-
lhes uma olhadela apressada, já elas começavam a subir a Rua Catinat.
- Acho - disse com indiferença (era do tipo sério). - O ministro preocupa-se muito
com estas granadas. Diz que seria muito embaraçoso se se desse um acidente... com um
de nós, claro.
- Com um de vocês? Sim, devia ser sério. O Congresso não gostaria. - Por que razão
nos apetece arreliar os inocentes? Talvez há dias ele ainda andasse a passear pelo parque
de Boston com os braços atravancados pelos livros que estava a ler sobre o Oriente e os
problemas da China. Nem mesmo ouviu o que eu lhe disse: estava já absorvido nos
dilemas da democracia e nas responsabilidades do Ocidente: estava resolvido - soube-o
dentro de muito pouco tempo - a praticar o bem, não em relação a qualquer indivíduo,
mas a um país, a um continente, a um mundo. Agora estava no seu elemento, com o uni-
verso inteiro à sua disposição para melhorar.
- Está na morgue? - perguntei a Vigot.
- Como sabe que morreu? - Era uma pergunta tola de polícia, indigna de um homem que
lia Pascal, indigna também do homem que tão estranhamente gostava da mulher. Não se
pode gostar sem intuição.
- Não sou culpado - retorqui.
Disse para comigo que era verdade. Pyle não fazia sempre o que queria? Procurei
qualquer sentimento dentro de mim, nem que fosse ressentimento pela suspeita de um
polícia, mas nada encontrei. «A responsabilidade cabia a Pyle, e a mais ninguém. Não é
preferível estar-se morto?», argumentava o ópio dentro de mim. Mas olhei cautelosa-
mente
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para Phuong porque para ela era duro. A seu modo devia ter gostado dele; não gostara
ela de mim e não me abandonara para viver com Pyle? Ligara-se à juventude e à
esperança e à seriedade e agora tudo isto lhe falhara mais do que a idade e o desespero.
Ela estava ali sentada a olhar-nos e eu pensei que ela não tinha ainda percebido. Talvez
fosse uma boa ideia eu conseguir levá-la dali antes que o compreendesse. Estava pronto
a responder a quaisquer perguntas desde que pudesse acabar rápida, e no entanto
ambiguamente, a entrevista por forma a dizer-lhe tudo mais tarde, a sós, longe dos olhos
do polícia e das cadeiras duras do gabinete e do globo nu em torno do qual rodopiavam
as borboletas.
Disse a Vigot:
- Quais são as horas que lhe interessam?
- Entre as seis e as sete.
- Às seis tomei uma bebida no Continental. Os criados devem lembrar-se. Às seis e
quarenta e cinco caminhei até ao cais para ver o desembarque dos aviões americanos. À
porta do Majestic vi Wilkins, do Associated News. Depois entrei no cinema ao lado.
Devem provavelmente recordar-se - foi-lhes necessário arranjarem-me troco. Dali tomei
um trishaw até ao Vieux Moulin - creio que cheguei cerca das oito e meia - e jantei
sozinho. Estava lá o Granger -:- pode perguntar-lhe. Depois meti-me em novo trishaw
para voltar para casa, por volta das dez menos um quarto. É muito possível que consiga
encontrar o condutor. Esperava que Pyle chegasse às dez, mas ele não apareceu.
- Qual a razão por que o esperava?
- Ele telefonara-me. Disse que necessitava de falar comigo sobre um assunto
importante.
- Faz ideia do que seria?
- Não. Para Pyle tudo era importante.
- E esta rapariga que ele tinha? Sabe onde se encontrava?
- Esperava-o na rua à meia-noite. Estava preocupada. Não sabe de nada. Não vê que ela
ainda continua à espera dele?
- Vejo - disse Vigot.
- E não pode realmente acreditar que o matei por ciúmes; e ela, que razões podia ter?
Pyle ia casar-se com ela.
- Sim, tem razão.
- Onde o encontrou?
- Dentro de água, por baixo da ponte que leva a Dakow.
O Vieux Moulin estava junto da ponte. Nesta havia polícia armada e o restaurante tinha
uma grade de ferro de protecção contra as granadas.

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Não era seguro atravessar-se a ponte de noite, dado que, depois do escurecer, toda a
região mais afastada do rio estava nas mãos dos vietcongues. Devo ter jantado
despreocupadamente a uns vinte e cinco metros do seu cadáver.
- A chave do problema está em ele se ter envolvido em sarilhos. - Para lhe falar
francamente - disse Vigot - não posso dizer que tenha grande pena. Estava a fazer muito
mal.
- Deus nos guarde sempre - disse-lhe - dos inocentes e dos bons.
- Dos bons?
- Sim, dos bons. À maneira de Pyle. O senhor é católico. Não pode admitir o
caminho que ele seguia. E, de qualquer modo, ele não passava de um maldito
americano.
- Importa-se de o identificar? Lastimo. Faz parte da rotina, de uma rotina pouco
agradável.
Não me dei ao trabalho de perguntar a razão por que não esperava por alguém da
legação americana: eu conhecia-a. Os métodos franceses, segundo os nossos padrões
frios, são um tudo-nada antiquados: acreditam na consciência, no sentimento de culpa,
em ser necessário confrontar o criminoso com o objecto do seu crime, porquanto pode
perder a presença de espírito e trair-se. Enquanto ele descia as escadas de pedra em
direcção ao local onde zumbia, na cave, o sistema de refrigeração, repeti para mim
mesmo que estava inocente.
. Tiraram-no para fora como se fosse um tabuleiro de gelo e eu olhei para ele. As feridas
estavam congeladas até à placidez. Eu disse: - Vê, não se abrem com a minha presença.
- Comment?
- Não é este um dos objectivos? Prova por uma coisa ou por outra? Mas vocês
congelaram-no até ficar rígido. Na Idade Média não havia frigoríficos para congelação.
- Reconhece-o?
- Ah! Sim.
Mais do que nunca tinha um ar deslocado: devia ter ficado em casa. Vi-o num
álbum de família, montando a cavalo num rancho, tomando banho em Long Island,
fotografado com os seus colegas num apartamento de um vigésimo terceiro andar. Ele
pertencia aos arranha-céus e aos elevadores expressos, aos gelados e aos Martinis secos,
ao almoço com leite e sanduíches de galinha no Merchant Limited.
- Não morreu disto - disse Vigot apontando para uma ferida no peito. - Foi afogado
na lama. Encontrámos-lhe lama nos pulmões.

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- Trabalharam depressa.
- Neste clima é indispensável.
Introduziram novamente o tabuleiro e fecharam a porta. A borracha serviu de
amortecedor.
- É-lhe de todo impossível ajudar-nos? - perguntou Vigot.
- Absolutamente impossível.
Phuong e eu voltámos a pé para casa; já não era preciso manter a dignidade. A morte fez
desaparecer a vaidade - mesmo aquela vaidade do homem enganado, que não deve
mostrar a sua dor. Ela ainda não se tinha apercebido do que se tratava e eu não tinha
técnica suficiente para lho contar lenta e docemente. Era um correspondente: pensava
em grandes títulos. "Oficial americano assassinado em Saigão.» Quando se trabalha
num jornal não se aprende o processo de comunicar as más notícias com prudência, e
mesmo agora era-me necessário pensar no meu jornal e perguntar-lhe:
- Importas-te de esperar enquanto eu envio um telegrama? Deixei-a na rua enquanto
mandava o meu telegrama e depois voltei ao seu encontro. Não passava de um gesto:
sabia muito bem que os correspondentes franceses já deviam estar informados ou, no
caso de Vigot se ter portado decentemente (o que era possível), os censores reteriam o
meu telegrama até os franceses terem mandado o deles. O meu jornal seria o primeiro a
receber a notícia proveniente de Paris. Não que Pyle fosse muito importante. Nunca
seria possível telegrafar os detalhes da sua verdadeira carreira, dizer que antes de morrer
fora o responsável de pelo menos cinquenta mortes, dado que iria prejudicar as relações
anglo-americanas e o ministro ficaria contrariado. O ministro tinha um imenso respeito
por Pyle - Pyle fora bem classificado em... num daqueles assuntos em que os
Americanos se graduam: talvez em relações públicas ou em ,arte teatral, talvez mesmo
em estudos orientais (ele lera muitos livros).
- Onde está o Pyle? - perguntou Phuong. - Que queriam eles?
- Vem para casa - disse-lhe.
- O Pyle também vem?
- É tão provável que vá até lá como a qualquer outro sítio.
As velhas continuavam a tagarelar no patamar, na relativa frescura.
Quando abri a porta percebi imediatamente que o meu quarto sofrera uma busca: estava
tudo muito mais arrumado do que eu jamais seria capaz de deixar quando saísse.
- Mais um cachimbo? - perguntou-me Phuong. - Está bem.

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Tirei a gravata e os sapatos; o interlúdio terminara: a noite era quase igual às do


passado. Phuong agachou-se aos pés da cama e acendeu a lamparina. Mon enfant, ma
soeur - pele cor de âmbar. Sa douce langue natale.
- Phuong - disse. Ela amassava o ópio na taça. - Il est mort, Phuong. - Segurava a
agulha na mão e fitou-me como uma criança que tenta concentrar-se, franzindo as
sobrancelhas.
- Tu dis?
- Pyle est mort. Assassiné.
Ela pousou a agulha e sentou-se sobre os calcanhares, fitando-me. Não houve cena, nem
lágrimas, simplesmente reflexão - a reflexão prolongada e solitária de alguém a quem é
necessário alterar todo um rumo de vida.
- É melhor ficares aqui esta noite - disse-lhe.
Baixou a cabeça em concordância, e pegando na agulha começou novamente a aquecer
o ópio. Naquela noite acordei de um daqueles curtos mas profundos sonos do ópio que
duram dez minutos mas dão a sensação de toda uma noite de repouso, e encontrei a mão
onde sempre a tivera durante a noite: entre as suas pernas. Ela dormia e mal lhe ouvia a
respiração. De novo, depois de tantos meses, não estava só, e no entanto, de repente,
com raiva, lembrando-me de Vigot lá na polícia, com a sua pala para os olhos, nos
corredores sossegados e desertos da legação e na pele macia e sem pêlos sob a minha
mão, pensei: "Teria sido realmente eu o único a gostar de Pyle?»

26
Capítulo II

Na manhã em que Pyle chegou ao largo junto do Continental eu estava farto dos
meus colegas americanos da imprensa: grandes, barulhentos, acriançados e de meia-
idade, cheios de graças azedas contra os franceses, que, no fim de contas, combatiam
nesta guerra. Periodicamente, completada e arrumada uma missão e retirados os mortos
da cena, eles eram chamados a Hanói, a quase quatro horas de voo, o comandante fazia-
lhes uma alocução, pernoitavam na Pousada da Imprensa, que apregoavam ter o melhor
barman de toda a Indochina, eram enviados por avião até ao mais recente campo de
batalha a uma altitude de 900 metros (o limite do alcance da artilharia pesada) e depois
reconduzidos, intactos e com grande barulho, como se se tratasse de um divertimento
escolar, ao Hotel Continental, em Saigão.
Pyle era sossegado, parecia modesto. Naquele primeiro dia fora-me necessário
algumas vezes chegar-me para a frente para ouvir o que dizia. E era muito, muitíssimo
sério. Por várias vezes parecia encolher-se dentro de si mesmo com o barulho da
imprensa americana no terraço de cima - o terraço que tinha fama de ser mais seguro
contra as gra nadas de mão. Mas Pyle não criticava quem quer que fosse.
- Já leu algum livro de York Harding? - perguntou.
- Não. Creio que não. O que é que ele escreveu?
Olhou para um milk bar*1 do outro lado da rua e disse com um ar sonhador:

*1 Bar em que são servidas bebidas não alcoólicas.

29

- Aquela soda fountain*1 tem bom aspecto.


Quanta saudade da sua terra estaria por detrás daquela sua estranha forma de observar
uma cena tão pouco familiar? Mas não tinha eu, no meu primeiro passeio pela Rua
Catinat, reparado em primeiro lugar na loja com o perfume de Guerlain e procurado
consolo na ideia de que, no fim de contas, a Europa só estava a trinta horas de voo? Ele
desviou o olhar do bar com relutância e disse:
- O York escreveu um livro intitulado O Progresso da China Vermelha. É um livro
muito profundo.
- Não li. Você conhece o autor?
Ele baixou a cabeça solenemente e mergulhou no silêncio. Mas quebrou-o de novo
uns momentos depois para modificar a impressão que deixara.
- Não o conheço bem - disse. - Só estive com ele umas duas vezes. - Agradou-me
que tivesse dito isto, que considerasse jactância dizer-se conhecido de... como se
chamava ele?.. York Harding. Vim a saber mais tarde que Pyle tinha um imenso
respeito pelos escritores que ele chamava sérios. Este termo excluía os romancistas, os
poetas e os dramaturgos, a menos que focassem assuntos a que ele dava o nome de
contemporâneos, e mesmo assim era sempre melhor ler as coisas tratadas sem rodeios,
como no caso de York.
Eu disse:
- Sabe, quando se vive durante muito tempo num sítio deixa-se de ler a seu respeito.
- Evidentemente que gosto sempre de saber o que o homem local pensa -
respondeu-me cautelosamente.
- E depois comparar com o que York diz?
- Sim. - Talvez notasse a ironia porque acrescentou, com a sua delicadeza habitual: -
Sentir-me-ia extremamente grato se você alguma vez tivesse ocasião de me fazer um
resumo dos aspectos fundamentais. Sabe? York esteve aqui há mais de dois anos.
Gostei da sua lealdade para com Harding - quem quer que fosse esse Harding. Era
uma variante em relação às difamações e ao cinismo imaturo dos jornalistas. Disse-lhe:
- Beba mais uma cerveja enquanto eu tento dar-lhe uma ideia de tudo isto.
Comecei, ao mesmo tempo que ele me olhava atentamente como um aluno modelo,
por explicar a situação no Norte, em Tonquim,

*1 Outro termo para designar o mesmo tipo de estabelecimento.

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onde naquele momento os franceses se agarravam ao delta do rio vermelho que abrangia
Hanói e o único porto do Norte, Haiphong. Aqui cultivava-se a maior parte do arroz, e
logo que as colheitas amadureciam começava infalivelmente a luta anual pelo arroz.
- Isto quanto ao Norte - disse. - Os Franceses, pobres diabos, só poderão aguentar-se
se os Chineses não decidirem ajudar os Vietcongues. Uma guerra na floresta, na
montanha e nos pântanos; arrozais onde nos enterramos até aos ombros e o inimigo
desaparece sem se saber como, enterra as armas e veste um trajo de aldeão... Mas em
Hanói podemos apodrecer confortavelmente no meio da humidade. Eles aí não atiram
bombas. Deus sabe porquê. Pode chamar-lhe uma guerra perfeita.
- E aqui no Sul?
- Os Franceses dominam as estradas principais até às sete da tarde: depois desta hora
dominam as torres de vigia e as cidades... em parte. O que não significa que se esteja
seguro, ou não existiriam grades de ferro em frente dos restaurantes.
Quantas vezes já explicara tudo isto! Eu era um disco posto a girar para esclarecer os
recém-chegados: o membro do parlamento em visita, o novo ministro britânico. Por
vezes acordava de noite dizendo: ..Vejamos, por exemplo, o caso dos caodaístas.» - Ou
dos hoa-haos ou dos binh xuyen, de todos os exércitos privativos que vendiam os seus
serviços por dinheiro ou vingança. Os estrangeiros achavam-nos pitorescos, mas nada
há de pitoresco na traição e na falta de confiança.
- E por último - disse-lhe -, há D general Thé. Era o chefe das forças caodaístas, mas
está nas montanhas a lutar com ambos os lados: os franceses, os comunistas...
- York escreveu que o que faltava ao Oriente era uma terceira força - disse Pyle.
Talvez eu devesse ter reparado no brilho fanático, na resposta rápida a uma frase, na
musicalidade mágica dos números; quinta coluna, terceira força, sétimo dia. Se eu me
tivesse apercebido da direcção em que caminhava aquele jovem e incansável cérebro era
possível que nos tivesse poupado a todos, mesmo ao próprio Pyle, muitos dissabores.
Mas deixei-o na aridez esquelética dos elementos fundamentais e fui dar o meu passeio
diário pela Rua Catinat. Teria de aprender à sua custa quais os verdadeiros elementos
fundamentais: o ouro dos arrozais sob o sol achatado do fim da tarde; as canas frágeis
dos pescadores pairando sobre os campos como mosquitos; as xícaras de chá sobre a
plataforma de um velho abade, com a sua cama e os seus

31

calendários comerciais, os baldes e as chávenas partidas e o lixo de toda uma vida em


torno da sua cadeira; os chapéus das raparigas, em forma de concha, reparando a estrada
onde explodiu uma mina; o ouro e o verde-tenro e os vestidos coloridos do Sul, e no
Norte os castanhos-escuros e os fatos pretos e o círculo das montanhas inimigas e o
zumbir dos aviões. Quando cheguei contava os dias da minha missão tal como um
estudante risca no calendário os dias do trimestre; pensava que estava preso ao que
restava de Bloomsbury Square, ao autocarro 73 passando pelo pórtico de Euston e à
Primavera local de Torrington Place. Agora, no jardim do largo, os bolbos estavam
floridos, e era-me indiferente. Queria os meus dias pontuados por aquelas detonações
súbitas que tanto podiam vir de um tubo de escape como das granadas, queria ter diante
dos olhos aquelas gentis figuras com calças de seda deslocando-se com graciosidade
pela tarde húmida, queria Phuong. A minha casa deslocara-se quinze mil quilómetros.
Virei junto à casa do alto-comissário, onde a Legião Estrangeira fazia guarda com os
quépis brancos e as dragonas escarlates, atravessei junto da catedral e voltei ladeando o
muro lúgubre da Súreté vietnamita, que parecia cheirar a urina e a injustiça. E no
entanto também isto era estar em casa, tal como os corredores sombrios dos andares
superiores que evitamos quando somos crianças. Nas barracas junto dos cais estavam
expostas as novas revistas obscenas: Tabu e Ilusão; e os marujos bebiam cerveja
sentados no chão, alvos fáceis para uma bomba caseira. Pensei em Phuong, que devia
estar a regatear o preço do peixe na terceira rua à esquerda quando se desce, antes de se
dirigir ao milk bar para beber o seu refresco das onze horas (naqueles tempos eu sabia
sempre onde ela se encontrava), e o Pyle desapareceu fácil e naturalmente do meu
pensamento. Nem mesmo o mencionei a Phuong quando nos sentámos para almoçar no
nosso quarto da Rua Catinat, ela com o seu melhor vestido de seda florida, porque havia
dois anos que nos tínhamos encontrado no Grand Monde, em Cholon.

32
2

Nenhum de nós o mencionou quando acordámos na manhã que se seguiu à sua


morte. Phuong levantara-se antes de eu estar bem acordado e tinha o chá pronto. Não se
tem ciúmes dos mortos e nessa manhãpareceu-me fácil recomeçar a nossa vida em
comum.
- Ficas esta noite? - perguntei a Phuong tão naturalmente quanto me foi possível,
enquanto comia os croissants.
- Terei de ir buscar a minha mala.
- A polícia pode lá estar - disse. - É preferível que eu vá contigo. - Foi o mais perto
que estivemos de falar em Pyle, nesse dia.
Pyle tinha um apartamento numa moradia nova junto da Rua Duranton, perto de uma
daquelas ruas principais que os Franceses constantemente subdividiam em honra dos
seus generais - de modo que a Rua de Gaulle depois do terceiro cruzamento se
transformava em Rua Leclerc e mais tarde ou mais cedo mudaria abruptamente para
Rua De Lattre. Devia ter chegado da Europa por via aérea alguém importante porque
havia um polícia olhando para o pavimento em cada dez metros da estrada que levava à
residência do alto-comissário.
No caminho coberto de areia que conduzia ao apartamento de Pyle havia várias
motocicletas, e um polícia vietnamita examinou O meu cartão de jornalista. Não
consentiu que Phuong entrasse na casa e consequentemente eu fui procurar um oficial
francês. No quarto de banho de Pyle, Vigot lavava as mãos com o sabonete de Pyle e
enxugava-as com a toalha de Pyle. O seu fato tropical tinha uma mancha de óleo na
manga: "do óleo de Pyle», pensei.

33

- Alguma novidade? - perguntei.


- Encontrámos o carro dele na garagem. Não tem gasolina. Deve ter saído de trisbaw...
ou no carro de outra pessoa. Talvez tivessem esvaziado o depósito.
- Talvez tivesse ido a pé - disse-lhe. - Sabe muito bem como são os Americanos.
- O seu carro ardeu, não é verdade? - continuou pensativamente. - Não tem um
novo?
- Não, não tenho.
- Não é problema de grande importância.
- É verdade, não é.
- Tem alguma opinião? - perguntou.
- Até as tenho de mais - respondi-lhe.
- Conte-mas.
- Pode ter sido assassinado pelos vietcongues. Já mataram bastante gente em Saigão. O
seu corpo foi encontrado no rio, junto da ponte que conduz a Dukow, território
vietcongue, logo que a vossa polícia se retira, à noite. Ou pode ter sido morto pela
Sureté vietnamita: já houve casos. Talvez não gostasse dos amigos que ele tinha. Talvez
fosse morto pelos caodaístas porque conhecia o general Thé.
- Conhecia?
- Dizem que sim. Talvez tivesse sido morto pelo general Thé por conhecer os
caodaístas. Talvez fosse morto pela hoa-haos por se atirar às concubinas do general.
Talvez fosse simplesmente morto por al guém que pretendia roubar-lhe o dinheiro.
- Ou talvez se trate de um simples caso de ciúme - disse Vigot. - Ou talvez fosse a
Sureté francesa - continuei - por não lhe agradarem os contactos que ele tinha. Tem a
certeza de que procura as pessoas que o mataram?
- Não procuro ninguém - disse Vigot. - Estou simplesmente a fazer o meu relatório.
Desde que se trate de um acto de guerra... Ora, há-os aos milhares, que morrem todos os
anos.
- Pode riscar-me da sua lista - disse-lhe. - Não estou envolvido nesse assunto. Nada
envolvido - repeti. Fora um dos artigos do meu credo. Dado o estado da condição
humana, deixá-los lutar, deixá-los matar, eu nada tinha com o caso. Os meus colegas
jornalistas intitulavam-se correspondentes; eu preferia a designação de repórter.
Escrevia o que via: não actuava - o simples facto de emitir uma opinião é de certo modo
actuar.
- O que o traz aqui?

34

- Vim buscar as coisas de Phuong. Os seus polícias não a deixaram entrar.


- Bom, então vamos procurá-las.
- É simpático da sua parte, Vigot.
Pyle tinha dois quartos, uma cozinha e uma casa de banho. Fomos ao quarto de cama.
Sabia onde Phuong guardava a mala: debaixo da cama. Puxámo-la os dois para fora;
continha as suas ilustrações. Tirei do guarda-fato a sua parca roupa, duas túnicas boas e
o seu outro par de calças. Tinha-se a sensação de que estavam ali dependuradas havia
poucas horas, de não pertencerem à casa, de estarem de passagem, como uma borboleta
num quarto. Encontrei as suas pequenas cuecas triangulares numa das gavetas, assim
como a colecção de lenços de pescoço. Havia realmente muito pouco a meter dentro da
mala, menos do que na minha terra se leva para um fim-de-semana.
Na sala, um retrato dela com Pyle. Tinham sido fotografados no jardim botânico
junto de um grande dragão de pedra. Ela segurava pela trela o cão de Pyle: um chow
preto com a língua da mesma cor. Um cão demasiadamente preto. Meti a fotografia na
mala.
- O que aconteceu ao cão? - perguntei a Vigot.
- Não está aqui. Pode ser que o tivesse levado consigo.
- Talvez volte e então pode analisar a terra agarrada às suas patas.
- Não sou o Lecoq ou o Maigret, e estamos em guerra.
Dirigi-me à estante e examinei as duas filas de livros: a biblioteca de Pyle. O Progresso
da China Vermelha, O Desafio à Democracia, O Papel do Ocidente - as obras
completas de York Harding. Muitos relatórios de congressos, um livro com frases
vietnamitas, uma história da guerra nas Filipinas, as obras de Shakespeare, da Livraria
Moderna. Com que livros descansava? Encontrei noutra prateleira as suas leituras leves:
um Thomas Wolfe de bolso, uma antologia misteriosa intitulada O Triunfo da Vida e
uma selecção de poesia americana. Havia também um livro de problemas de xadrez.
Não parecia grande coisa para encerrar um dia de trabalho, mas era preciso não
esquecer que tivera Phuong. Escondido por detrás da antologia havia um livro forrado a
papel intitulado A Fisiologia do Casamento. Talvez estivesse a estudar os problemas
sexuais, tal como estudara o Oriente... no papel. E a palavra mágica era o
casamento. Pyle não temia as complicações.
A sua secretária estava praticamente nua.
- Você fez uma limpeza total - disse a Vigot.
- Ah - disse Vigot. - Foi-me necessário tomar conta dessas coisas em nome da legação
americana. Você sabe com que rapidez se
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espalham os boatos. Podia dar-se um roubo. Selei todos os seus papéis. - Disse tudo isto
com aspecto grave.
- Qualquer coisa comprometedora?
- Não podemos permitir-nos encontrar coisas comprometedoras quando se trata de um
aliado - disse Vigot.
- Importa-se que eu leve um destes livros como recordação? - Viro a cara para a outro
lado.
Escolhi O Papel do Ocidente e meti-o na mala juntamente com a roupa de Phuong.
- De amigo para amigo - disse Vigot -, não há nada que me possa dizer
confidencialmente? O meu relatório já está encerrado. Foi assassinado pelos
comunistas. Talvez se trate do começo de uma campanha contra o auxílio americano.
Mas aqui entre nós... ouça, estamos a falar em seco, que lhe parece irmos até à esquina
beber um vermute cassiS?
- É ainda muito cedo.
- Ele não lhe fez quaisquer confidências na última vez que o viu?
-Não.
- Quando foi isso?
- Ontem de manhã, depois do grande estrondo.
Vigot fez uma pausa para que a minha resposta penetrasse – em mim e não nele; ele
interrogava com lealdade.
- Você não estava em casa quando ele o procurou ontem à noite?
- Ontem à noite? Devo ter estado. Não pensei...
- Pode acontecer que lhe seja necessário um visto de saída. Sabe que podemos demorá-
lo indefinidamente.
- Acha realmente - disse-lhe - que eu quero regressar ao meu país?
Vigot olhou pela janela o dia brilhante e sem nuvens. Disse com tristeza:
- A maior parte das pessoas quer.
- Gosto disto aqui. Na minha terra tenho... problemas.
- Merde - disse Vigot. - Eis o adido económico americano. E repetiu com sarcasmo: -
Adido económico.
- É melhor ir-me embora. Vai querer selar-me a mim também. Vigot disse com um ar
cansado:
- Desejo-lhe boa sorte. Ele vai ter um sem-fim de coisas a dizer-me.
Quando saí, o adido económico estava junto do seu Packard e tentava explicar
qualquer coisa ao chauifeur. Era um homem gordo, de

36

meia-idade, com um traseiro exagerado e uma cara que parecia nunca ter necessidade de
navalha. Chamou:
- Fowler. Pode explicar a este maldito chauJfeur...?
Eu expliquei.
- Mas foi exactamente isso que eu lhe disse. Ele finge sempre que não percebe francês.
- Talvez seja uma questão de pronúncia.
- Estive três anos em Paris. A minha pronúncia chega para um destes danados
vietnamitas.
- A voz da democracia - disse-lhe.
- Que diz?
- Parece-me que é um livro de York Harding.
- Não percebo onde quer chegar. - Olhou desconfiadamente para a mala que eu trazia na
mão.
- Que tem aí dentro? - perguntou.
- Dois pares de calças de seda branca, duas túnicas de seda, umas quantas cuecas,
acho que três pares. Tudo de fabrico nacional. Nada de auxílio americano.
- Esteve lá em cima?
- Estive.
- Já sabe o que se passa?
-Já.
- É uma coisa terrível, terrível.
- O ministro deve estar muito perturbado.
- Se lhe parece! Ele é agora .o alto-comissário e pediu uma entrevista ao presidente. -
Pôs a mão no meu braço e arrastou-me para longe dos automóveis.
- Você conhecia bem o jovem Pyle, não é verdade? Não me posso conformar com o
que lhe sucedeu. Conhecia o pai dele. O professor Harold C. Pyle; já deve ter ouvido
falar nele...
- Não, nunca ouvi.
- É a maior autoridade mundial em erosão subaquática. Não viu, no mês passado, o seu
retrato na capa da Time?
- Ah, parece-me que me recordo. Um penhasco esboroando-se ao fundo e óculos com
aros de ouro em primeiro plano.
- Esse mesmo. Tive de rascunhar o telegrama para a família. Foi horrível. Gostava
daquele rapaz como se fosse meu filho.
- Nessas condições você é um parente próximo do pai.
Ele olhou-me com os seus olhos castanhos e húmidos e disse:
- Que diabo lhe aconteceu? Não são maneiras de falar quando uma jóia de rapaz...

37

- Desculpe. A morte atinge as pessoas de maneira diferente. - Talvez ele tivesse


efectivamente gostado de Pyle. - Que dizia você no telegrama?
Ele respondeu-me literalmente e com um ar sério:
- «Lamento comunicar seu filho morreu como soldado pela democracia.» O ministro
assinou-o.
- Como um soldado - disse. - Não acha que pode causar confusões? Refiro-me à
gente lá da terra. A Missão de Auxílio Económico não tem parecenças com o Exército.
Também dão PurpIe Hearts *1?
Ele disse numa voz baixa, tensa de ambiguidade:
- Tinha um cargo especial.
- Ah! Evidentemente todos desconfiávamos disso.
- Ele não dava à língua, pois não?
- Ah! não - respondi-lhe, e a frase de Vigot veio-me à ideia: «Era um americano muito
tranquilo.»
- Tem alguma ideia - perguntou-me - das razões porque eles o mataram? E quem o
fez?
Subitamente fiquei furioso; estava farto deles todos com as suas lojas privativas para
venda de Coca-Cola, os seus hospitais ambulantes e os seus wyde-cars e os seus
canhões quase, mas não absolutamente, último modelo. Respondi:
- Sim, tenho. Mataram-no porque era demasiadamente inocente para continuar a
viver. Era novo, ignorante e parvo e meteu-se em sarilhos. Tal como qualquer de vocês,
não fazia a mínima ideia de todo o problema e vocês deram-lhe dinheiro e os livros de
York Harding so bre o Oriente e disseram-lhe: «E agora é andar para a frente. Conquiste
o Oriente em prol da democracia.» Nunca viu o que quer que fosse de que não tivesse
ouvido falar numa sala de conferências, e os escritores e as conferências fizeram dele
um idiota. Quando tinha um cadáver diante dos olhos nem mesmo conseguia aperceber-
se das feridas. Uma ameaça vermelha, um soldado da democracia.
- Pensei que você era amigo dele - disse-me com um ar reprovador.
- Fui seu amigo. Teria gostado de o ver ler, lá na sua terra, os suplementos dos
domingos e interessar-se pelo basebol. Gostaria de o saber feliz com uma rapariga
americana estandardizada, com assinatura num clube de obras literárias.
Ele aclarou a voz com um ar embaraçado.

1 Condecoração concedida pelos EUA, a todos os soldados feridos em combate.(N.


do R)

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- Claro que me tinha esquecido daquele infeliz assunto. Eu estava do seu lado,
Fowler. Ele portou-se muito mal. Devo dizer-lhe que tive uma longa conversa com ele
acerca da rapariga. Sabe... eu tinha a vantagem de conhecer o professor e a senhora
Pyle...
- O Vigot está à sua espera - disse e afastei-me. Só então reparou em Phuong e
quando me voltei para o olhar ele contemplava-me com um ar de perplexidade dolorida:
o eterno irmão mais velho que não consegue compreender.

39
Capítulo III

A primeira vez que Pyle viu Phuong foi novamente no Continental, talvez dois
meses depois de ele ter chegado. A noite começava com a frescura súbita que vem logo
que o Sol baixa, e as velas nas tendas das ruas laterais já estavam acesas. Os dados
batiam nas mesas onde os franceses jogavam o quatre vingt-et-un e as raparigas das
calças de seda branca desciam, a Rua Catinat, nas suas bicicletas, a caminho de casa.
Phuong bebia um copo de sumo de laranja e eu uma cerveja e estávamos silenciosos,
satisfeitos por estarmos juntos. Nessa altura Pyle dirigiu-se para nós por entre as mesas
e eu apresentei-os. Tinha a mania de olhar fixamente para uma rapariga como se nunca
tivesse visto nenhuma e depois corava.
- Gostaria de o convidar e à senhora para a nossa mesa. Um dos nossos adidos...
.
Era o adido económico. Sorriu-nos alegremente do terraço superior, um sorriso
rasgado e quente de acolhimento, cheio de confiança, comparável ao homem que
conserva os amigos porque usa desodorizante adequado. Já ouvira por várias vezes
chamarem-lhe Joe, mas nunca chegara a saber o seu apelido. Puxou ruidosamente as
cadeiras e chamou o criado embora todo o resultado de uma tal actividade no
Continental só pudesse resultar numa escolha entre cerveja, brande com soda e vermute
cassis.
- Não pensava vê-lo aqui, Fowler - disse-me. - Estamos à espera da rapaziada que
voltou de Hanói. Parece que a luta foi das boas. Você não esteve lá com eles?

43

- Estou farto de fazer quatro horas de voo para assistir a uma conferência de
imprensa.
Olhou-me com um ar de reprovação e disse:
- Estes tipos estão na verdade cheios de entusiasmo. Podiam ganhar o dobro se se
dedicassem a negócios ou à rádio, e sem quaisquer riscos.
- Talvez tivessem de trabalhar - respondi.
- Dá a impressão de cheirar a luta como cavalos de batalha continuou com um ar
exultante, não prestando a mínima atenção às palavras que lhe desagradavam. - Veja o
Bill Granger, por exemplo. É impossível afastá-lo de qualquer escaramuça.
- Você deve ter razão. Vi-o metido numa, há poucas noites... No bar do Sporting.
- Você sabe muito bem que não era a isso que eu me referia. Dois condutores de trishaw
pedalaram furiosamente Rua Catinat abaixo e estacaram, em pose fotográfica, diante do
Continental. No primeiro vinha o Granger. O outro trazia uma trouxa pequena, cinzenta,
silenciosa, que Granger começou a tirar para a rua.
- Ora vamos, Mick - disse. - Vamos lá. - Depois entrou em discussão com o condutor
acerca do preço. - Aqui tens - disse. - É pegar ou largar - e atirou ao chão por cinco
vezes moedas a perfazer a quantia precisa para que o homem se abaixasse e as apa-
nhasse.
O adido económico, com um ar nervoso, disse:
- Estes rapazes merecem distrair-se um pouco. Granger lançou o seu fardo sobre uma
cadeira. Depois reparou em Phuong.
- Olha o malandro do Joe. Onde a encontraste? Não sabia que ainda eras capaz de
assobiar. Desculpem, mas vou ver onde é a retrete. - Tratem do Mick.
- Maneiras rudes de tropa - disse eu.
Pyle, com um ar sério, corando novamente, disse:
- Nunca vos teria convidado para esta mesa se tivesse pensado que...
A trouxa cinzenta agitou-se na cadeira e a cabeça caiu sobre a mesa como se
estivesse desligada do corpo. Suspirou, um longo suspiro sibilante de infinito tédio, e
depois ficou imóvel.
- Conhece-o? - perguntei a Pyle.
- Não, não o conheço. Não é jornalista?
- Ouvi o Bill chamar-lhe Mick - disse o adido económico.
- Não há um novo correspondente da U.P.?

44

- Não é este. Eu conheço-o. Não pertencerá à vossa Missão Económica? Você não
pode conhecer todos os seus colegas. Há-os às centenas.
- Não me parece que seja dos nossos - disse o adido económico. - Não me lembro
dele.
- Podemos procurar o seu cartão de identidade - sugeriu Pyle.
- Por amor de Deus, não o acorde. Um bêbedo já nos chega. E o Granger deve
saber quem ele é.
Mas não sabia. Voltou do lavabo com um ar triste.
- Quem é esta tipa? - perguntou com ar taciturno.
- A menina Phuong é amiga do Fowler - disse Pyle secamente.
- Queremos saber quem é...
- Onde a foi ele encontrar? Nesta terra é preciso ter muito cuidado. - E acrescentou
h.lgubremente: - Graças a Deus que apareceu a penicilina.
- Bill - disse o adido económico. - Queremos saber quem é o Mick.
- Sei lá!...
- Mas foi você quem o trouxe.
- As rãs não aguentam o scotch. Adormeceu.
- É francês? Pareceu-me que você lhe chamara Mick.
- Tinha de lhe chamar qualquer coisa - disse Granger. Debruçou-se por forma a
aproximar-se de Phuong e disse:
- Ouça. É consigo que estou a falar. Quer outra laranjada? Está comprometida para
esta noite?
- Ela está comprometida todas as noites - disse eu.
O adido económico disse apressadamente:
- Como vai a guerra, Bill?
- Houve uma grande vitória a noroeste de Hanói. Os franceses recapturaram duas
aldeias sem nunca nos terem informado de que as tinham perdido. Muitas mortes do
lado dos vietcongues. Não lhes foi ainda possível fazer uma estimativa, mas informar-
nos-ão dentro de uma ou duas semanas.
- Corre o boato de que os vietcongues entraram em Phat Diem, queimaram a catedral
e correram com o bispo - respondeu o adido económico.
- Em Hanói não nos falaram nesse assunto. Isso não é uma vitória.
- Uma das nossas brigadas de médicos não conseguiu passar para lá de Nam Dinh -
disse Pyle.

45
- Você conseguiu chegar até aí, Bill? - perguntou o adido económico.
- Quem pensa você que eu sou? Sou um correspondente com uma ordem de
circulação onde estão marcadas as minhas limitações. Meto-me num avião até ao
aeroporto de Hanói. Põem à nossa disposição um automóvel que nos conduz aos
alojamentos da imprensa. Fazem um voo sobre as duas cidades que recapturaram e
mostram-nos as bandeiras tricolores. Àquela altitude quem pode saber ao certo de que
bandeiras se trata? Depois temos uma conferência de imprensa e um coronel explica-nos
tudo o que estivemos a observar. Em seguida entregamos os telegramas ao censor.
Depois bebemos uns copos. É o melhor barman da Indochina. E por fim regressamos de
avião.
Pyle franziu as sobrancelhas à cerveja.
- Você menospreza-se, Bill - disse o adido económico. - Veja, por exemplo, aquela
reportagem sobre a Estrada 66... como lhe chamaram vocês? O caminho para o Inferno:
era digna de um Pulitzer. Sabe a quem me refiro... àquele homem com a cabeça em
estilhaços ajoelhado na vala e o outro que você viu caminhando como num sonho...
- Você pensa que eu era capaz de me aproximar daquela maldita estrada? Stephen
Crane descrevia uma guerra sem nunca a ter visto. E por que não eu? Isto não passa de
uma reles guerra colonial. Quero outra bebida. E depois vamos arranjar uma rapariga.
Você tem a sua. Eu também. quero uma.
Eu disse a Pyle:
- Você acha que há alguma coisa de verdade no boato sobre Phat Diem?
- Não sei. É importante? Se o é, gostaria de ir até lá dar uma vista de olhos.
- Importante do ponto de vista da Missão Económica?
- Ora você sabe que não é possível fazer-se uma limitação rígida. A medicina
também é uma espécie de arma, não acha? Estes católicos devem ser bastantes contra os
comunistas, não lhe parece?
- Negoceiam com os comunistas. Quem fornece ao bispo as vacas e o bambu para
construções são os comunistas. Não me parece que sejam exactamente a terceira força
de que fala o York Harding - disse-lhe, para o arreliar.
- Acabem com isso - gritou Granger. - Não posso perder a noite inteira aqui. Vou até
à Casa das Quinhentas Raparigas.

46

- Gostaria que você e a menina Phuong jantassem comigo... - disse Pyle.


- Você pode comer no Chalet - interrompeu Granger - enquanto eu me atiro às
pequenas da casa ao lado. Vamos daí, Joe. Você pelo menos é um homem.
Parece-me que foi então, enquanto tentava definir o que realmente era um homem,
que senti pela primeira vez afeição por Pyle. Estava sentado, ligeiramente desviado de
Granger, rodando com a caneca de cerveja, com uma expressão de alheamento resoluto.
Disse a Phuong:
- Deve cansar-se com estas conversas profissionais... sobre o seu país.
- Comment?
- Que vão fazer do Mick? - perguntou o adido económico.
- Deixá-lo aqui - respondeu Granger.
- Não pode fazer uma coisa dessas. Você nem mesmo sabe como ele se chama.
- Podíamos levá-lo connosco e entregá-lo aos cuidados das pequenas.
O adido económico deu uma gargalhada estrondosa e comunicativa. Parecia uma
cara vista na televisão.
- Vocês, os jovens, podem fazer o que quiserem, mas eu já estou demasiadamente
velho para brincadeiras. Vou levá-lo comigo para casa. Você não disse que ele era
francês? - perguntou.
- Pelo menos falava francês.
- Se conseguirem metê-lo no meu carro...
Quando o automóvel se afastou Pyle meteu-se com o Granger num trishaw e Phuong e
eu seguimos num outro pela estrada que conduz a Cholon. Granger fizera uma tentativa
para ir no trishaw com Phuong, mas Pyle impedira-o. Enquanto nos levavam pela longa
estrada do subúrbio até à cidade chinesa cruzámo-nos com uma comprida fila de carros
blindados franceses, cada um deles com um canhão e um oficial, silencioso e imóvel,
qual busto esculpido sob as estrelas e o céu negro, liso e côncavo: mais complicações
provavelmente com um exército privado, como os de Bin Xuien, que dirigia o Grand
Monde e as casas de jogo de Cholon. Era uma terra de barões rebeldes: Como a Europa
na Idade Média. Mas que faziam aqui os Americanos? Colombo ainda não lhes
descobrira a América.
- Gosto daquele rapaz, do Pyle - disse a Phuong.
- É tranquilo - disse-me, e o adjectivo que ela foi a primeira a usar aderiu como a
alcunha de um colegial, até ao ponto de o ouvir ao

47

próprio Vigot, com a sua pala verde, enquanto me falava da morte de Pyle.
Mandei parar o trishaw à porta do Chalet e disse a Phuong:
_ Entra e arranja uma mesa. Parece-me melhor ir ver o que se passa com Pyle.
Foi o meu primeiro instinto: protegê-lo. Nunca me ocorreu que houvesse uma maior
necessidade de me proteger a mim próprio. A inocência pede sempre silenciosamente
protecção, quando seria muito mais sensato precavermo-nos contra ela: a inocência é
como um leproso mudo que perdeu o guizo e vagueia pelo mundo sem más intenções.
Quando cheguei à Casa das Quinhentas Raparigas, Pyle e Granger já tinham entrado.
Perguntei no posto de polícia militar junto da entrada:
- Deux américains?
Era um jovem soldado da Legião Estrangeira. Parou de limpar o revólver e estendeu
o polegar em direcção à porta, ao mesmo tempo que dizia uma graça em alemão. Não a
percebi.
No imenso pátio aberto para o céu estava-se na hora do descanso. Havia centenas de
raparigas, estendidas na relva ou sentadas sobre os calcanhares, conversando com as
companheiras. As cortinas dos pequenos cubículos em redor do pátio não estavam
corridas. Deitada numa cama, os tornozelos cruzados, sozinha, estava uma rapariga can-
sada. Em Cholon havia desordens e as tropas tinham sido confinadas nos quartéis e não
havia trabalho: o domingo do corpo. Restava aquele bando de raparigas que
zaragateavam, arranhavam-se e gritavam para me recordar que os velhos costumes
permaneciam. Lembrei-me da velha história de Saigão sobre um visitante que perdera
as calças enquanto tentava pôr-se a salvo no posto da polícia. Aqui não havia qualquer
protecção aos civis. Se lhes apetecia invadir território militar tinham de tomar as suas
precauções e solucionar os seus problemas.
Eu aprendera uma técnica: dividir é conquistar. Escolhi uma de entre o enxame que
se juntara à minha volta e conduzi-a lentamente atéao local onde pyle e Granger se
debatiam.
- Je suis un vieux - disse-lhe. - Trop jatigué - Ela riu parvamen te e insistiu. -
Mon ami - disse-lhe - il est tres riche, tres vigoureux.
- Tu es safe - respondeu-me.
Dei com Granger afogueado e triunfante, como se considerasse estas demonstrações
um tributo à sua masculinidade. Uma das raparigas dava o braço a Pyle e tentava
arrastá-lo docemente para fora da roda. Empurrei a minha rapariga para junto das outras
e chamei:

48

- Pyle, estou aqui.


Olhou-me por cima das cabeças das raparigas e disse:
- É terrível. Terrível.
Pode ter sido da luz do lampião, mas pareceu-me lívido. Ocorreu-me ser muito possível
que fosse virgem.
- Vamos, Pyle - disse-lhe. - Deixe-as ao cuidado do Granger. Reparei que levava a mão
à algibeira das calças. Não me espantava que tencionasse ficar com as algibeiras limpas
de piastras e notas.
- Não seja parvo, Pyle - gritei-lhe asperamente. - Vai provocar uma zaragata.
A minha rapariga tentava voltar para junto de mim e dei-lhe um novo empurrão até
ao círculo interior em torno de Granger.
- Non, non - disse -, je suis un anglais pauvre, tres pauvre. - Depois agarrei no braço
de Pyle e arrastei-o para fora com a rapariga pendurada no seu outro braço, como peixe
no anzol. Duas ou três raparigas tentaram interceptar-nos antes de atingirem o portão
onde estava de guarda o soldado, mas sem grande convicção.
- Que faço agora com esta? - disse Pyle.
- Não o maçará, vai ver - e nesse instante ela largou-lhe o braço e mergulhou na
escaramuça em torno de Granger.
- Acha que lhe não acontecerá nada de grave? - perguntou Pyle, inquieto.
- Tem o que pretendia: mulheres.
A noite lá fora parecia muito sossegada, cortada simplesmente por novo esquadrão
de carros blindados que faziam lembrar pessoas com um mesmo objectivo.
- É terrível. Nunca poderia acreditar... - disse Pyle. Depois continuou com respeito e
tristeza: - Eram tão bonitas!
Não invejava Granger; lastimava que uma coisa boa (e a beleza e a graça são
certamente aspectos de virtude) fosse manchada ou maltratada. Pyle era capaz de se
aperceber do sofrimento quando este estava mesmo em frente dos seus olhos (não
escrevo isto com intuito de o escarnecer; porque afinal muita gente há que não se
apercebe).
- Vamos até ao Chalet. Phuong está à espera.
- Desculpe - disse-me. - Esqueci-me por completo. Você não devia tê-la deixado só.
- Ela não corre perigo.
- Queria simplesmente certificar-me de que o Granger estavabem... - Mergulhou
novamente nos seus pensamentos, mas ao entrarmos no Chalet disse com amargura: -
Esquecera-me da quantidade de homens que...

149
2

Phuong guardara-nos uma mesa junto do recinto de dança; a orquestra tocava um


número que há cinco anos estivera em moda em Paris. Dois pares vietnamitas
dançavam, pequenos, cuidados, distantes, com um ar de civilização que nós não
conseguíamos igualar (reconheci um deles, um contabilista da Banque de l'Indo-Chine,
e a sua mulher). Sentia-se que nunca vestiam descuidadamente, que diziam sempre o
que era preciso, que nunca eram vítimas de paixões desordenadas. Se a guerra parecia
medieval, eles eram o futuro século XVIII. Seria de esperar que o Sr. Pham-Van-Tu
escrevesse, nas horas livres, poemas augustos, mas por acaso eu sabia que ele estudava
Wordsworth e escrevia poemas sobre a natureza. Passava as férias em Dalat, tudo o que
encontrara de mais parecido com a atmosfera dos lagos ingleses. Quando se aproximou
curvou-se ligeiramente. Perguntei-me o que estaria a acontecer a Granger a vinte e cinco
metros mais acima na estrada.
Pyle pedia desculpa a Phuong em mau francês por tê-la feito esperar.
- C'est impardonnable - disse.
- Onde estiveram? - perguntou-lhe Phuong.
- Fui levar o Granger a casa.
- A casa? - disse, e ri e Pyle fitou-me como se eu fosse um outro Granger.
Subitamente vi-me como ele me via, um homem de meia-idade, com os olhos
ligeiramente injectados, principiando a engordar,

51

desgracioso no amor, talvez menos barulhento do que Granger, mas mais cínico, menos
inocente. E vi por momentos Phuong como a vira pela primeira vez no Grand Monde,
passando pela minha mesa ao dançar, com um vestido de baile branco, com dezoito
anos, acompanhada por uma irmã mais velha decidida a arranjar-lhe um bom casamento
com um europeu. Um americano comprara um bilhete e quisera dançar com ela: estava
ligeiramente bêbedo, nada que pudesse ser perigoso, e provavelmente era novo na terra
e julgava que as hospedeiras do Grande Monde eram prostitutas. Enquanto davam a
primeira volta ao recinto de dança ele apertou-a muito, e de repente vi-a dirigir-se à ir-
mã e ele ficar só, sem saber o que fazer, perdido entre os outros pares, sem perceber o
que acontecera nem porque acontecera. E a rapariga cujo nome eu desconhecia sentou-
se calmamente, bebendo de vez em quando um gole de laranjada, possuindo-se
completamente.
- Peut-on avoir l'honneur? - disse Pyle com a sua pronúncia horrível, e logo em
seguida vi-os dançar silenciosamente no outro extremo da sala, Pyle segurando-a tão
longe dele que dava a impressão de que de um momento para o outro se romperia o
contacto. Ele dançava muito mal e ela fora a melhor dançarina que eu conhecera nos
seus tempos do Grand Monde.
Fora um namoro prolongado e frustrante. Se me tivesse sido possível oferecer-lhe
casamento e um dote tudo se teria passado sem complicações e a irmã mais velha,
sempre que estivéssemos juntos, desapareceria silenciosa e diplomaticamente. Mas
foram precisos três meses para que eu conseguisse vê-la a sós durante uns momentos,
numa varanda do Majestic, enquanto na sala ao lado a irmã não parava de perguntar
quando tencionávamos entrar. No rio Saigão, à luz de archotes, descarregava, um
cargueiro vindo de França; as campainhas dos trishaws tocavam como se fossem
telefones e eu parecia um jovem e inexperiente idiota que não consegue dizer palavra.
Voltei desenganado para a minha cama da Rua Catinat, e não poderia sonhar que quatro
meses depois ela estivesse deitada a meu lado, com a respiração ligeiramente ofegante,
rindo como que de surpresa porque nada se passara exactamente como ela esperara.
- Monsieur Foulair.
Estivera a vê-los dançar e não reparara que a irmã me fazia sinais da mesa onde
estava. Ela caminhou até junto da minha mesa e com relutância convidei-a a sentar-se.
A nossa amizade acabara na noite em que ela adoecera no Grand Monde e eu levara
Phuong a casa.
- Há já um ano que o não via - disse-me.

52

- Vou muito frequentemente a Hanói.


- Quem é o seu amigo? - perguntou-me.
- Um tipo chamado Pyle.
- Que faz ele?
- Pertence à Missão Económica Americana. Você conhece o género: máquinas
eléctricas de coser para as desgraçadas costureiras.
- Mas há-as?
- Não sei.
- Mas não usam máquinas. Não há electricidade nos sítios onde vivem. - Era uma
mulher muito literal.
- É melhor perguntar ao pyle - disse-lhe.
- Ele é casado?
Olhei para o recinto de dança.
- Quanto a mim, nunca se aproximou de uma mulher mais do que aquilo.
- Dança muito mal.
- Dança mal, sim.
- Mas parece simpático e de confiança.
- Sim, parece.
- Importa-se que me sente à vossa mesa durante uns instantes? Os meus amigos são
muito insípidos.
A música acabou e Pyle inclinou-se cerimoniosamente para Phuong e depois
reconduziu-a à mesa e puxou-lhe a cadeira para que se sentasse. Percebi que ela gostara
do seu ar cerimonioso. Pensei em tudo o que ela perdia nas suas relações comigo.
- É a irmã de Phuong - disse a Pyle, e ele corou.
- É de Nova Iorque? - perguntou-lhe ela.
- Não. Sou de Boston.
- Também fica nos Estados Unidos?
- Ah, sim, fica. Fica, sim.
- O seu pai é comerciante?
- Não é bem. É professor.
- Um professor? - perguntou ela com um ligeiro tom de desapontamento.
- Bem, é uma espécie de autoridade em certos assuntos. Há muita gente que o
consulta.
- Sobre a saúde? É médico!
- Não é bem isso. É doutor em engenharia. Sabe tudo o que se passa na erosão
subaquática. Sabe o que é isso?
- Não, não sei.
53

Pyle disse, tentando fazer uma graça:


- Bom, então deixo ao pai a tarefa de lhe explicar.
- Ele está aqui?
- Ah, não, não está.
-Mas há-de vir?
- Não. Foi simplesmente uma graça - disse Pyle desculpando-se.
- Você tem outra irmã? - perguntei à menina Hei.
- Não, não tenho. Porquê?
- Deu-me a impressão de que sondava as possibilidades de casamento do senhor Pyle.
- Só tenho uma irmã - respondeu a menina Hei e deixou cair a mão com força sobre
o joelho de Phuong, como um presidente de uma assembleia que restabelece a ordem
com o seu martelo.
- Tem uma irmã muito bonita - disse Pyle.
- É a rapariga mais bonita de Saigão - disse a menina Hei, como que a corrigi-lo.
- Não duvido.
- São horas de pensarmos em jantar. A rapariga mais bonita de Saigão também
precisa de comer - disse eu.
- Não tenho fome - disse Phuong.
- É frágil - continuou com firmeza a menina Hei. Na sua voz transparecia uma nota
de ameaça. - Necessita de cuidados. Merece que os tenham. É muito, mesmo muito leal.
- O meu amigo é um homem cheio de sorte - disse Pyle com um ar grave.
- Adora crianças - disse a menina Hei.
Eu ri e depois olhei para Pyle: ele fitava-me com um ar surpreendido e
escandalizado e repentinamente ocorreu-me que estava genuinamente interessado no
que a menina Hei tinha a dizer. Enquanto encomendava o jantar (embora Phuong me
tivesse dito que não tinha fome eu sabia que ela comeria um bom bife tártaro com dois
ovos crus e os respectivos «etcéteras») ouvi-o discutir muito a sério o problema dos
filhos.
- Sempre pensei que gostaria de ter muitos filhos - disse. – Uma família numerosa é
um maravilhoso centro de interesse. Conduz à estabilidade do casamento. E também é
bom para as próprias crianças. Ser filho único é uma enorme desvantagem. - Nunca o
ouvira falar tanto.
- Que idade tem o seu pai? - perguntou a menina Hei com gula.
- Tem sessenta e nove anos.

54

- As pessoas de idade adoram os netos. É uma grande infelicidade que os pais da


minha irmã já não sejam vivos e não possam regozijar-se com os seus filhos. Quando
ela os tiver, já se vê - acrescentou, lançando-me um olhar dolorido.
- E que você os não possa gozar - disse Pyle desnecessariamente, a meu ver.
- O nosso pai era de muito boas famílias. Era mandarim em Hué.
- Já encomendei os vossos jantares - disse.
- Para mim não - disse a menina Hei. - Tenho de me juntar aos meus amigos. Gostaria
de estar novamente com o senhor Pyle. Talvez você possa combinar o encontro.
- Quando voltar do Norte - disse-lhe.
- Vai ao Norte?
- Acho que já é tempo de ir ver o que se passa com a guerra.
- Mas os correspondentes já voltaram - disse Pyle.
- É a melhor altura para ir. Não encontrarei o Granger.
- Então tem de vir jantar com a minha irmã e comigo depois de Monsieur Foulair partir.
- E acrescentou com cortesia impertinente: - Para a distrair.
Quando ela se afastou Pyle disse:
- Que mulher culta e interessante. E fala inglês tão bem.
- Diz-lhe que a minha irmã trabalhou em Singapura, no comércio - disse-me Phuong
orgulhosamente.
- Ah sim? Que género de trabalho?
- Importações e exportações. Ela sabe estenografia - traduzi. - Quem me dera que
tivéssemos na Missão Económica gente do seu género.
- Falar-lhe-ei nisso - disse Phuong. - Ela gostaria de trabalhar para os Americanos.
Depois do jantar dançaram novamente. Eu também danço mal e não tenho a falta de
sentido do ridículo de Pyle - ou tê-la-ia tido nos primeiros tempos, quando me apaixonei
por Phuong? Devo ter dançado muitas vezes com Phuong no Grand Monde, antes da
noite memorável em que a menina Hei adoeceu, memorável só pela oportunidade de
conversar com ela. Pyle não se aproveitava dessa oportunidade quando se aproximaram
de novo; estava menos tenso, era tudo. E segurava-a ligeiramente mais perto, mas
estavam ambos silenciosos. De repente, enquanto lhe olhava para os pés, tão leves e
precisos e dominadores da confusão dos dele, senti-me novamente apaixonado. Mal
podia acreditar que dentro de uma, de duas horas, ela voltaria comigo

55

para aquele quarto tosco, com a retrete comum e as velhas acocoradas no patamar.
Desejei nunca ter ouvido os boatos sobre Phat Diem, ou pelo menos que os boatos se
não referissem à única cidade no Norte onde as minhas relações de amizade com um
oficial de marinha francês me permitiam entrar sem censura e sem fiscalização. Uma
notícia sensacional publicada antecipadamente? Nunca naqueles tempos, em que o
mundo só se interessava pelas notícias sobre a Coreia. Uma oportunidade de morte? Por
que havia eu de querer morrer se Phuong dormia todas as noites a meu lado? Mas eu
conhecia a resposta a esta pergunta. Desde criança que não acreditava na permanência e
no entanto desejava-a. Receava constantemente perder a felicidade. Este mês, no
próximo ano, Phuong deixar-me-ia. E se não fosse para o ano, dentro de três anos. A
morte era o único valor absoluto do meu mundo. Perdendo-se a vida, nada mais se podia
perder em todo o sempre. Invejava aqueles que conseguiam acreditar num deus, e não
confiava neles. Sentia que conservavam a coragem com uma fábula sobre o imutável e o
permanente. A morte era muito mais certa do que Deus, e com a morte acabava-se a
possibilidade de o amor poder morrer de um dia para o outro. Desfazia-se o pesadelo do
aborrecimento e da indiferença. Nunca poderia ter sido um pacifista. Matar um homem
era certamente conceder-lhe um benefício incomensurável. Ah, sim, toda a gente, sis-
tematicamente, em toda a parte, queria bem aos inimigos. E cabia aos amigos estarem
reservados para a dor e para a estupidez.
- Desculpe-me ter-lhe roubado a menina Phuong - disse a voz de Pyle.
- Eu não sou dançarino, mas gosto de a ver dançar. - Falava-se dela invariavelmente
na terceira pessoa, como se não estivesse presente. Por vezes, tal como a paz, parecia
invisível.
Começaram as primeiras atracções da noite: um cantor, um prestidigitador, um
comediante - muito obsceno, mas quando olhei para Pyle era evidente que ele não
conseguia seguir o calão. Sorria quando Phuong sorria e ria pouco à vontade quando eu
ria.
- Onde está o Granger? - disse, e Pyle olhou-me com um ar de censura.
Depois começou a grande atracção da noite: um grupo de travestis. Vira já vários
durante o dia, subindo e descendo a Rua Catinat, com o queixo ligeiramente azulado,
ondulando as ancas. Agora, com vestidos de noite decotados, jóias e seios falsos e vozes
roucas, tinham um aspecto pelo menos tão apetecível como o da maior parte das
mulheres

56

europeias de Saigão. Um grupo de jovens da força aérea assobiou-lhes e eles


agradeceram-lhes com um sorriso esfuziante. Espantou-me a súbita violência do
protesto de Pyle:
- Fowler, vamo-nos embora. Já chega, não acha? Isto não é coisa própria para ela.
.

57
Capítulo IV

Vista do campanário da catedral a batalha era simplesmente pitoresca, um cliché


semelhante àqueles aspectos da guerra dos bóeres publicados numa velha Illustrated
London News. Um avião lançava víveres, em pára-quedas, a um posto isolado no
calcaire, essas estranhas montanhas da fronteira do Aname gastas pelo tempo, fazendo
lembrar pilhas de pedra-pomes. E porque voltava sempre ao mesmo local para descer,
era como se não se movesse, e o pára-quedas parecia imóvel, a meio caminho do solo.
Da planície subiam continuamente as detonações dos morteiros, com o fumo tão sólido
como a pedra, e no mercado as labaredas brilhavam palidamente à luz do sol. As
minúsculas figuras dos pára-quedistas deslocavam-se numa só fila ao longo dos canais,
mas a esta altitude pareciam imóveis. O próprio padre sentado a um canto da torre
mudou de posição enquanto lia o breviário. Àquela distância a guerra parecia muito
arrumada e muito limpa.
Eu viera de Nam Dinh numa barcaça antes do amanhecer. Não podíamos atracar na
estação naval porque estava cortada pelo inimigo, que cercava completamente a cidade
num raio de trezentos metros, e o barco entrou pelo lado da praça toda em fogo. Éramos
um alvo fácil à luz das chamas; por uma razão ou por outra ninguém disparou sobre nós.
Estava tudo quieto, exceptuando o estalar e o crepitar das bancadas a arder. Da margem
do rio chegava-me o ruído de uma sentinela se nega lesa mudando de posição.
Conhecera Phat Diem antes do ataque - a estreita e longa rua com bancadas de
madeira, interrompida de cinquenta em cinquenta metros

61

por um canal, por uma igreja, por uma ponte. De noite era exclusivamente iluminada
por velas ou por pequenas lamparinas de óleo (em Phat Diem só existia luz eléctrica nos
alojamentos dos oficiais franceses) e noite e dia a rua estava apinhada e barulhenta. A
seu modo, de uma maneira estranha e medieval, sob a protecção e ã sombra do bispo
príncipe, tem sido a cidade com mais vida de todo o país. Quando atraquei e me dirigi
ao quartel dos oficiais, era a mais morta. Destroços, vidros partidos, cheiro de tinta e
estuque queimados, a longa rua deserta até perder de vista, lembrava uma artéria de
Londres, de madrugada, terminado o alarme: esperava-se encontrar uma tabuleta avi-
sando: .Bomba que não explodiu».
A parede frontal do alojamento dos oficiais rebentara e as casas do outro lado da rua
estavam em ruínas. Depois de deixar Nam Dinh, enquanto descia o rio, o tenente Peraud
contara-me o que acontecera. Era um rapaz sério, um mação, e para ele tudo aquilo era
como que o castigo pelas superstições dos seus camaradas. O bispo de Phat Diem
visitara em tempos passados a Europa e adquirira certa devoção por Nossa Senhora de
Fátima, a visão da Virgem que, segundo crêem os católicos, aparecera a um grupo de
crianças em Portugal. Quando regressou ao seu país construiu em sua honra uma gruta
nos terrenos da catedral, e celebrava o Seu dia todos os anos com uma procissão. Desde
o dia em que as autoridades dispersaram o exército privativo do bispo, as relações com
o coronel comandante das tropas vietnamitas e francesas tornaram-se tensas. Este ano o
coronel que tinha certa simpatia pelo bispo dado que para ambos o seu país era mais
importante que o catolicismo - teve um gesto de amizade e caminhou, acompanhado dos
seus oficiais mais graduados, à cabeça da procissão. Em tempo algum se juntara maior
multidão em Phat Diem para honrar Nossa Senhora de Fátima. Mesmo muitos budistas -
que constituíam cerca de metade da população - não quiseram perder a festa, e aqueles
que não tinham fé em qualquer destes deuses acreditavam que, por qualquer forma,
todas aquelas bandeiras, aqueles turíbulos e a custódia dourada afastariam a guerra dos
seus lares. O que restava do exército do bispo - a fanfarra - ia à frente da procissão, e os
oficiais franceses, piedosos por ordem do coronel, seguiam como meninos de coro,
atravessavam o portão que conduzia aos domínios da catedral, passavam pela estátua
branca do Sagrado Coração, erguida numa ilha do pequeno lago em frente da catedral,
por sob o campanário com asas abertas à maneira oriental e entravam na catedral de
madeira esculpida com os seus pilares gigantescos feitos de troncos de árvores e

62

altar trabalhado em laca escarlate, mais budista do que cristão. Chovia gente de todas as
aldeias entre os canais, das regiões baixas onde os arrozais verdes e as sementeiras
douradas substituem as tulipas e os moinhos.
Ninguém reparara nos agentes do Vietcongue que também se haviam juntado à
procissão, e naquela noite, enquanto o batalhão comunista avançava pelos desfiladeiros
do calcaire até à planície de Tonquim, sob os olhos impotentes do posto francês das
montanhas sobranceiras, os agentes avançados atacaram Phat Diem.
Agora, passados quatro dias, com a ajuda dos pára-quedistas, O inimigo recuara de
um quilómetro e daí cercára a cidade. Era uma derrota: não permitiam jornalistas, nem
deixavam enviar telegramas porque os jornais só podiam falar de vitórias. Se as
autoridades tivessem tido conhecimento dos meus intuitos ter-me-iam detido em Hanói,
mas quanto mais nos afastamos do quartel-general mais fraco se torna o controlo até
que, quando se chega ao alcance de tiro do inimigo, somos tratados como visitas bem-
vindas: o que é uma ameaça para o estado-maior, em Hanói, uma preocupação para o
coronel em Nam Dinh, é uma brincadeira para o tenente no campo de batalha, uma,
distracção, uma manifestação de interesse por parte do mundo exterior, de modo a que
ele possa durante algumas bem-aventuradas horas dramatizar-se um tudo-nada e ver,
numa falsa luz heróica, os seus feridos e os seus mortos.
O padre fechou o breviário e disse:
- Bom, isto já está. - Era europeu, embora não fosse francês por que o bispo nunca
teria tolerado na sua diocese um padre francês. Disse, como que desculpando-se: - Sabe,
preciso de vir aqui para conseguir descansar um pouco daqueles pobres diabos. - O
ruído dos morteiros parecia aproximar-se, ou talvez fosse o inimigo que se resolvia a
responder. A grande dificuldade era encontrá-los: havia uma dúzia de frentes estreitas, e
entre os canais, os edifícios das herdades e os arrozais as oportunidades de cair numa
emboscada eram numerosas.
Em baixo, de pé, sentada ou deitada estava toda a população de Phat Diem.
Católicos, budistas, pagãos, todos tinham reunido os seus objectos mais valiosos: um
fogão, uma lamparina; um espelho, um guarda-vestidos, algumas esteiras, uma gravura
sagrada - e procurado abrigo nos domínios da catedral. Aqui, no Norte, logo que
anoitecesse o frio seria cortante e a catedral já estava cheia: não havia mais onde se
abrigarem; as próprias escadas que conduziam ao campanário tinham

63

todos os degraus ocupados, e a cada momento chegava mais gente aos portões, com
filhos e objectos de uso caseiro às costas. Qualquer que fosse a sua religião, pensavam
que ali estariam seguros. Enquanto observávamos este espectáculo, vimos um rapaz
com uniforme vietnamita e armado de espingarda abrir caminho: foi detido por um
padre, que lhe tirou a arma.
O padre a meu lado disse, à laia de explicação:
- Aqui somos neutros. Estamos em território de Deus.
Eu pensei: «Que estranha e miserável população que Deus tem no seu reino,
assustada, regelada, faminta (‘Não faço ideia de como vamos alimentar esta gente',
dissera-me o padre); poder-se-ia supor que a um grande rei era possível realizar mais do
que isto.» Mas depois pensei: «Onde quer que se vá é sempre o mesmo - não são os
governos mais poderosos que têm as populações mais felizes.»
Lá em baixo já tinham improvisado pequenas lojas.
- Parece uma imensa feira, não acha?, mas sem uma única cara risonha - disse-lhe.
- Ontem à noite sofreram terrivelmente com o frio. Somos forçados a manter as
portas do mosteiro fechadas, caso contrário invadir-nos-iam - respondeu o padre.
- Vocês conseguem livrar-se do frio lá dentro? - perguntei-lhe.
- Nem por isso. E nunca conseguiríamos alojar nem uma décima parte desta gente. -
Continuou: - Sei o que está a pensar. Mas parece-nos essencial, pelo menos a alguns de
nós, mantermo-nos em boa saúde. Temos o único hospital de Phat Diem e as únicas
enfermeiras que existem são estas freiras.
- E o vosso cirurgião?
- Faço o que posso.
Foi então que reparei que tinha a sotaina manchada de sangue. - Veio aqui à minha
procura? - perguntou-me.
- Não. Queria recuperar a calma.
- Perguntei-lhe isto porque ontem à noite estive aqui com um homem. Queria
confessar-se. Estava ligeiramente assustado com o que vira junto dos canais. Não
podemos condená-lo.
- As coisas estão más para esses lados?
- Os pára-quedistas apanharam-nos num fogo cruzado. Pobres almas. Pensei que talvez
sentisse o mesmo.
- Não sou católico. Creio que, a seu ver, nem mesmo sou cristão. - Os efeitos do medo
sobre os homens são estranhos.
- Não no meu caso. Se porventura acreditasse num deus qualquer,

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continuaria a detestar a ideia de uma confissão; estar ajoelhado num dos vossos
confessionários: expor-me perante outro homem. Deve desculpar-me, mas a meu ver é
mórbido... até mesmo pouco viril.
- Ah - disse-me com um ar bem disposto -, o senhor deve ser um bom homem.
Provavelmente nunca teve muito de que se arrepender.
Olhei para as igrejas que se erguiam a intervalos regulares entre os canais, em
direcção ao mar. No segundo campanário houve um brilho de luz.
- Vocês não conservaram todas as igrejas neutras - disse-lhe.
- É impossível. Os franceses concordaram em não intervir nos domínios da catedral.
Não podemos esperar mais do que isto. O que está agora a observar é um posto da
Legião Estrangeira.
- Vou andando. Adeus, padre.
- Adeus e felicidades. Cautela com os atiradores imprevistos.
Vi-me forçado a abrir caminho por entre a multidão para conseguir sair, para passar
pelo largo e pela estátua branca com os seus açucarados braços abertos e atingir a longa
rua. Conseguia alcançar quase um quilómetro e meio para cada lado, e além da minha
pessoa só havia dois outros seres vivos em toda aquela extensão - dois soldados com
capacetes camuflados que se afastavam lentamente, rua acima, com as metralhadoras
prontas a disparar. E digo seres vivos porque no vão de uma porta havia um morto com
a cabeça na estrada. Os únicos ruídos eram o zumbir das moscas aglomeradas sobre o
corpo e o ranger das botas dos soldados, que se tornava cada vez menos perceptível.
Afastei-me rapidamente do cadáver, virando a cabeça para o lado oposto. Alguns
minutos mais tarde, quando olhei para trás, estava só com a minha própria sombra e,
fora o ruído que eu fazia, reinava o silêncio. Tive a sensação de ser como que um alvo
numa carreira de tiro. Ocorreu-me que se me acontecesse qualquer coisa naquela rua
podiam passar-se muitas horas até darem comigo: o tempo suficiente para que as
moscas se juntassem.
Depois de atravessar dois canais virei por uma rua que conduzia à igreja. Uma dúzia
de homens estavam sentados no chão, disfarçados de pára-quedistas, enquanto que dois
oficiais examinavam um mapa. Ninguém me prestou atenção quando me juntei a eles.
Um dos homens, com a comprida antena de um emissor portátil, disse: - Já podemos
avançar - e todos se levantaram.
Perguntei-lhes no meu mau francês se os podia acompanhar. Uma das vantagens
desta guerra consistia no facto de uma cara europeia

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ser, só por si, um passaporte: era impossível suspeitar-se que um europeu fosse um
agente inimigo.
- Quem é o senhor? - perguntou o tenente.
- Escrevo acerca da guerra - disse.
- É americano?
- Não, sou inglês.
- Trata-se de um encontro insignificante, mas se quer vir connosco... - Começou a tirar o
capacete de aço.
- Não, não - disse-lhe. - Isso é para os combatentes.
- Como preferir.
Contornámos a retaguarda da igreja em fila indiana, com o tenente à cabeça, e
parámos por momentos à beira do canal para que o soldado com o emissor portátil
contactasse as patrulhas dos dois flancos. As balas dos morteiros rasgavam o ar sobre as
nossas cabeças e explodiam fora do nosso alcance. Tínhamos anexado mais alguns
homens na parte detrás da igreja e agora éramos uns trinta. O tenente explicou-me em
voz baixa, apontando com um dedo para o mapa:
- Nesta aldeia aqui a estimativa é de trezentos. Talvez com o intuito de se juntarem
para esta noite. Não sabemos. Ainda ninguém os conseguiu encontrar.
- A que distância?
- Cento e cinquenta metros.
Pela rádio vinham chegando notícias e nós avançámos em silêncio. À nossa direita
havia o canal em linha recta, à esquerda o mato rasteiro e campos e mais mato. «Tudo
em ordem», murmurou o tenente, ao mesmo tempo que fazia um gesto tranquilizador
quando recomeçámos a avançar. Vinte metros depois abria-se à nossa frente outro canal,
com o que restava de uma ponte: uma só prancha sem balaustrada. O tenente fez-nos o
sinal de desdobrar e nós agachámo-nos com as caras viradas para o território
desconhecido à nossa frente, a uns dez metros, do outro lado da prancha. Os homens
olharam para a água e depois, como que devido a uma palavra de comando,
simultaneamente, desviaram os olhos. Por momentos não consegui ver o que eles esta-
vam a observar, mas quando vi, não sei porquê, pensei no Chalet e nos homens
disfarçados de mulher e nos jovens soldados que assobiavam e Pyle que dizia: «Isto não
é nada próprio para se ver»,
O canal transbordava de cadáveres: fez-me pensar num guisado com carne em
excesso. Os corpos sobrepunham-se: uma cabeça cinzenta cor de foca, anónima como
um convicto com o couro cabeludo rapado, boiava na água. Não havia sangue:
provavelmente fora arrastado

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pela água já há muito. Não faço ideia de quantos seriam: deviam ter sido apanhados
num fogo cruzado quando tentavam regressar, e tenho a impressão de que cada um de
nós, ali na margem do canal, pensava: -Dois podem brincar àquele jogo». Desviei os
olhos; não queremos que nos lembrem o pouco que valemos, a rapidez, a simplicidade e
o anonimato da morte. Embora racionalmente eu desejasse a morte, tinha medo do acto,
tal como uma virgem. Gostaria que a morte chegasse com aviso prévio, de modo a que
eu pudesse preparar-me. Para quê? Não sabia. A menos que fosse para varrer com os
olhos o pouco que deixava.
O tenente estava sentado ao lado do homem com o emissor portátil e fitava o chão
entre os pés. O aparelho começou a crepitar instruções e, com um suspiro, como se o
tivessem acordado, o tenente levantou-se. Os movimentos daqueles homens tinham uma
estranha camaradagem, como se fossem todos iguais e estivessem ocupados numa tarefa
que já haviam realizado juntos vezes sem fim. Ninguém esperava que lhes dissessem o
que fazer. Dois dos homens dirigiram-se à prancha e tentaram atravessá-la, mas o peso
dos braços desequilibrava-os e foram forçados a escarranchar-se e avançar aos poucos e
poucos. Outro encontrara uma barcaça escondida entre uns arbustos, junto do canal, e
empurrou-a até junto do tenente. Seis meteram-se na barcaça e ele, à vara, começou a
dirigi-la para a outra margem, mas esbarrámos com um montão de cadáveres e
encalhámos. Ele desviou a barcaça com a vara, introduzindo-a no lodo humano, e um
dos cadáveres desprendeu-se e veio flutuar, completamente estendido, junto da barcaça,
como um banhista estendido ao sol. Depois ficámos novamente libertos e logo que
chegámos à outra margem apressámo-nos a sair, sem mesmo olharmos para trás. Não
houve tiros: estávamos vivos. A morte recuara provavelmente até ao próximo canal.
Ouvi alguém por detrás de mim dizer, muito a sério: «Cott sei dank». Exceptuando o
tenente, eram quase todos alemães.
À nossa frente havia um grupo de. dependências de uma quinta: o tenente foi o
primeiro a entrar, agarrando-se ao muro, e nós seguimo-lo, em fila indiana, intervalados
de dois metros. Depois os homens, novamente sem qualquer ordem, dspersaram pela
quinta. Estava abandonada: nem uma simples galinha fora esquecida, embora nas pa-
redes do que fora a sala de estar houvesse duas horrendas oleografias do Sagrado
Coração e da Mãe com o Filho, que emprestavam um aspecto europeu àquele grupo de
edifícios em ruínas. Sabia-se que aquela gente acreditava, embora não
compartilhássemos das suas crenças;

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eram seres humanos e não simplesmente cadáveres ressequidos e cinzentos.


Grande parte da guerra consiste em estar sentado sem fazer nada, esperando por
alguém. Dado que não existe qualquer garantia do tempo de vida que ainda nos resta,
não vale a pena começar a pensar seja no que for. Como tantas outras vezes, as
sentinelas avançaram. O que quer que se movesse agora à nossa frente era considerado
inimigo. O tenente marcou o mapa e comunicou pela rádio a nossa posição. O silêncio
do meio-dia envolveu-nos; os próprios morteiros estavam silenciosos e não se viam
aviões no céu. Um homem escarafunchava com um pequeno tronco no esterco do pátio.
Passado algum tempo era como se tivéssemos sido esquecidos pela guerra. Assim
Phuong se não tivesse esquecido de mandar limpar os meus fatos. Um vento frio agitou
a palha do pátio e um homem foi pudicamente aliviar-se atrás de um celeiro. Tentei
lembrar-me se pagara ao cônsul inglês em Hanói a garrafa de uísque que me cedera.
Dispararam dois tiros e eu pensei: Agora é que é. Vai começar». Não precisava de
outros avisos. Esperei, com uma sensação de alegria, que chegasse a tal coisa
permanente.
Mas nada aconteceu. Mais uma vez eu tinha preparado demasiadamente o
acontecimento». Passados uns longos minutos entrou uma das sentinelas e comunicou
ao tenente qualquer coisa. Apanhei as palavras: …Deux civils».
- Vamos ver o que se passa - disse-me o tenente. - E, seguindo a sentinela, fomos
avançando por um carreiro coberto de erva, enlameado, aberto entre dois campos. A dez
metros das dependências da quinta, numa vala estreita, encontrámos o que
procurávamos: uma mulher com um rapazinho. Estavam nitidamente mortos. Na testa
da mulher havia uma pequena pasta de sangue e a criança dir-se-ia que dormia. Tinha
cerca de seis anos e parecia um feto no útero, com os pequenos joelhos ossudos
encolhidos.
- Malchance - disse o tenente.
Abaixou-se e virou a criança. Tinha ao pescoço uma medalha que representava um
santo e eu pensei: .0 feitiço não dá resultado». Sob o seu corpo havia um pedaço de pão
já trincado. Pensei: «Detesto a guerra».
- Acha que já chega o que viu? - interrogou o tenente. Falava com fúria, quase como
se eu fosse o responsável daquelas mortes: aos olhos do soldado o civil é possivelmente
o homem que o contratara para matar, que inclui o remorso do crime no ordenado e se
livra de

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responsabilidades. Voltámos à quinta e sentámo-nos mais uma vez sobre a palha, em


silêncio, abrigados do vento que, como um animal, parecia saber que a noite estava
próxima. O homem que escarafunchara no esterco fora aliviar-se e aquele que se
aliviara estava a escarafunchar. Pensei que naqueles momentos de calmaria, depois de
as sentinelas terem tomado as respectivas posições, aquela gente devia ter pensado que
não havia perigo em sair da vala. Quanto tempo teriam lá estado? O pão estava muito
duro. Provavelmente moravam nesta quinta. O rádio recomeçou a dar sinal. O tenente
informou, com ar cansado: - Vão bombardear a aldeia. Estão a chamar patrulhas para a
noite. Pusemo-nos de pé e iniciámos a nossa viagem de regresso, de novo desviando-
nos com a vara do montão de cadáveres e passando em fila pela igreja. Não nos
havíamos afastado muito e no entanto parecia-nos um percurso suficientemente grande
para ter como único resultado a morte daqueles dois seres. Os aviões andavam
novamente lá por cima e à nossa retaguarda recomeçou o bombardeamento.
Quando cheguei aos alojamentos dos oficiais, onde ia passar a noite, já escurecia. A
temperatura era de um grau acima de zero e o único calor existente era o do mercado em
chamas. Uma das paredes fora destruída por uma bazooka, e as portas trancadas e as
cortinas de lona não conseguiam evitar as correntes de ar. O dínamo eléctrico não fun-
cionava e tivemos de improvisar barricadas de caixotes e livros para manter as velas
acesas.
Joguei ao Quatre vingt-et-un com um certo capitão Sorel, a troco de dinheiro
comunista. Porque eu era um convidado não podia jogar a troco de bebidas. A sorte
passava monotonamente de um lado para o outro. Abri a minha garrafa de uísque numa
tentativa de nos aquecer um pouco e os outros juntaram-se em redor da nossa mesa.
- É o primeiro copo de uísque que bebo desde que saí de Paris. - disse o coronel.
Entrou um tenente que acabara a ronda às sentinelas.
- É possível que tenhamos uma noite calma - disse.
- Não atacarão antes das quatro - disse o coronel. - Tem uma pistola? - perguntou-me.
-Não.
- Vou-lhe arranjar uma. Guarde-a debaixo da almofada. - E acrescentou cortesmente:
- Vai achar o colchão bastante duro. E às três e meia começam os morteiros. Nós
tentámos dispersar quaisquer concentrações.
- Quanto tempo vai durar ainda?

69

- Quem sabe? Não podemos distrair mais tropas de Nam Dinh. Isto não passa de uma
diversão. Se nos conseguirmos aguentar só com o auxílio que nos deram há dois dias
poderemos considerar o caso uma vitória.
O vento soprava novamente e tentava entrar. A cortina de lona entufou (lembrei-me
de Polónio, apunhalado por trás da tapeçaria) e a chama da vela estremeceu. As sombras
eram espectaculares. Podíamos ser uma daquelas companhias de actores que
representam em celeiros.
- Os vossos postos têm-se aguentado?
- Tanto quanto sabemos, têm. - E continuou com um ar de imenso cansaço: - Isto não é
nada, percebe? É uma escaramuça sem importância em comparação com o que se está a
passar a cem quilómetros, em Hoa Binh. Isso é que é uma batalha.
- Mais um copo, coronel?
- Não, obrigado. O vosso uísque inglês é óptimo, mas é preferível guardar um pouco
para a noite; pode vir a ser preciso. Parece-me que, se me derem licença, vou tentar
dormir umas horas. Capitão Sorel, deixo ao seu cuidado certificar-se de que o senhor
Foulair tem tudo o que necessita: uma vela, fósforos, um revólver. - E foi para o quarto.
Foi o sinal para todos nós. Tinham posto um colchão para mim no chão, num
pequeno armazém, e eu estava rodeado de caixotes. Fiquei pouco tempo acordado - a
dureza do chão era como que um descanso.
Perguntei-me, mas sem ciúmes, se Phuong estaria em casa. Nesta noite, a posse de
um corpo parecia qualquer coisa de muito insignificante - talvez eu tivesse visto durante
o dia muitos corpos que não pertenciam a ninguém, nem mesmo a eles próprios. Todos
nós nos gastávamos. Quando adormeci sonhei com Pyle. Dançava sozinho num palco,
muito direito, com os braços estendidos para um par invisível, e eu estava sentado num
banco semelhante aos dos músicos e observava-o, com uma pistola na mão, não fosse
alguém interferir no seu bailado. Um programa suspenso no palco, como nos números
de music-hall, dizia: «A Dança do Amor. Certificado de 1.a classe... Houve alguém que
se moveu lá atrás no palco e agarrei a pistola com mais força. Depois acordei.
Tinha a mão na pistola que me haviam emprestado e no vão da porta, com uma vela
na mão, estava um homem. Tinha um capacete de aço cuja sombra lhe escondia os
olhos e só percebi que se tratava de Pyle quando lhe ouvi a voz. Disse com timidez:
- Lastimo imenso tê-lo acordado. Disseram-me que podia dormir aqui.

70

Eu ainda não estava completamente desperto.


- Onde foi arranjar esse capacete? - perguntei.
- Oh, emprestaram-mo - disse com um ar vagaroso. Arrastava uma mochila militar e
começou a tirar lá de dentro um colchão-saco forrado de lã.
- Você está muito bem equipado - disse-lhe, tentando lembrar -me da razão que
levava qualquer de nós a estar ali.
- É uma mochila de viagem vulgar das nossas equipas de auxílio médico. Emprestaram-
ma em Hanói.
Sacou de um termo e de uma pequena lamparina de álcool, de uma escova de cabelo,
de apetrechos para a barba e de uma lata de provisões. Olhei para o relógio: eram quase
três horas.

71
2

Pyle continuou a tirar as suas coisas da mochila. Empilhou alguns caixotes, sobre os
quais colocou o espelho de fazer a barba e mais objectos.
- Duvido que consiga arranjar água - disse-lhe.
- Tenho que chegue no termo para de manhã.
Sentou-se sobre o colchão-saco e começou a descalçar as botas.
- Como diabo conseguiu chegar até aqui? - perguntei-lhe.
- Deixaram-me passar até Nam Dinh, para ver a nossa equipa contra o tracoma e depois
aluguei um barco.
- Um barco?
- Uma espécie de barcaça, não sei como lhe chamam. Para lhe dizer a verdade, fui
forçado a comprá-la. Não custou muito cara.
- E desceu o rio sozinho?
- Não foi muito difícil, sabe? A corrente estava a meu favor. - Você é doido.
- Oh, não. O único perigo foi ao desembarcar.
- Ou ser morto por uma patrulha naval, ou por um avião francês. Ou aparecer um
vietcongue que lhe cortasse o pescoço.
Riu timidamente.
- Em todo o caso, aqui estou.
- Porquê?
- Oh, por duas razões. Mas não quero privá-lo de dormir.
- Não tenho sono. Os canhões vão começar a disparar dentro de pouco tempo.

73

- Importa-se que ponha a vela noutro sítio? A luz está demasiada mente viva. -
Parecia nervoso.
- Qual é a primeira razão?
- Há dias você levou-me a pensar que este sítio tinha bastante interesse. Lembra-se,
quando estávamos com o Granger e com... Phuong?
- Sim, e depois?
- Pensei que não era má ideia vir até cá ver o que se passava. Para lhe dizer a
verdade, estava ligeiramente envergonhado com o Granger.
- Percebo. Não é difícil.
- Na realidade não havia qualquer dificuldade, não acha? Começou a brincar com os
atacadores e houve um silêncio prolongado.
- Não estou a ser perfeitamente honesto - disse por fim.
- Não?
- A verdade é que vim para o ver.
- Você veio até aqui para me ver?
- É verdade.
- Porquê?
Ele desviou os olhos dos atacadores e olhou-me, angustiosamente embaraçado.
- Tinha de lhe dizer... Apaixonei-me pela Phuong.
Eu ri. Não consegui dominar-me. Ele era tão imprevisível e tão sério...
- Não podia esperar que eu regressasse? Na próxima semana estarei em Saigão -
disse-lhe.
- Você podia morrer. Não era decente. Além de que não sei se seria capaz de não
procurar Phuong durante esse tempo.
- Quer com isso dizer-me que «conseguiu» não a procurar?
- Com certeza. Você não pensa que eu seria capaz de lhe dizer
sem que você soubesse!
- Há muita gente que o faz. Quando é que isso aconteceu? - Creio que foi naquela noite
no Chalet, quando dancei com ela.
- Não me pareceu que se tivesse apaixonado suficientemente por ela.
Ele olhou-me com um ar de perplexidade. Se o seu comportamento me parecia de um
louco era óbvio que o meu lhe era inexplicável.
- Sabe? Parece-me que foi ao ver todas aquelas raparigas naquela casa. Eram tão
bonitas. Ela podia ser uma delas. Quis protegê-la - disse.

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- Não creio que ela precise de ser protegida. A menina Hei já o convidou para sair
com elas?
- Já, mas eu não fui. Tenho-me mantido afastado. - E disse com um ar lúgubre: -
Tem sido horrível. Sinto-me um canalha, mas peço-lhe que acredite que se fossem
casados... eu nunca me intrometeria entre vocês.
- Você parece estar bastante seguro de que vai «conseguir» intrometer-se.
Pela primeira vez irritara-me.
- Fowler, eu não sei o seu nome de baptismo...
- Chamo-me Thomas. Porquê?
- Posso chamar-lhe Tom, não posso? Sinto que de certo modo isto nos aproxima.
Refiro-me ao facto de gostarmos da mesma mulher.
- Que tenciona fazer em seguida?
Ele sentou-se entusiasticamente e encostou-se aos caixotes.
- Agora que você já sabe tudo, as coisas têm um aspecto diferente. Vou pedi-la em
casamento, Tom.
- Prefiro que me chame Thomas.
- Ela terá de escolher entre nós. É bastante leal.
Mas seria efectivamente leal? Senti pela primeira vez o arrepio premonitório da solidão.
Era fantástico, e no entanto, no entanto... Ele podia ser um fraco amante, mas eu era o
homem pobre. Ele tinha na mão a infinita fortuna da respeitabilidade.
Começou a despir-se e eu pensei: «Ele também tem a seu favor a juventude». Como
era triste invejar Pyle...
- Eu não posso casar-me com ela. Tenho mulher em Inglaterra. Nunca consentiria no
divórcio. Pertence à Igreja anglicana... caso isso lhe diga alguma coisa - disse-lhe.
- Lastimo imenso, Thomas. E a propósito, chame-me Alden, caso queira...
- Prefiro continuar a chamar-lhe Pyle. É com este nome que pen so em si.
Ele meteu-se no saco-cama e estendeu a mão em direcção à vela.
- Safa! Sinto-me feliz por este assunto estar arrumado, Thomas. Tenho andado
muito aborrecido com esta história.
Era absolutamente óbvio que já o não estava.
Quando a vela se apagou eu mal distinguia o contorno do seu cabelo, cortado muito
curto, destacando-se à luz das chamas lá fora..

75
- Boa noite, Thomas. Um sono descansado - e mal pronunciou aquelas palavras, tal
como uma deixa numa má comédia, os morteiros abriram fogo, zumbindo, gritando,
explodindo.
- Santo Deus - disse Pyle - É um ataque?
- Tentam evitar um ataque.
- Bom, então já não vamos poder dormir.
- Não. Acabou-se.
- Thomas, quero que você saiba o que eu penso sobre o modo como aceitou tudo isto...
acho que você foi estupendo, estupendo, não há outra palavra para o classificar.
- Obrigado.
- Você já viu tanta coisa por esse mundo fora que eu ainda não vi... Sabe? Boston é em
muitos aspectos, ligeiramente... sufocante, mesmo quando se não é um Lowell ou um
Cabot. Gostaria que você me aconselhasse, Thomas.
- Acerca de quê?
- De Phuong.
- Se fosse a si não confiaria muito nos meus conselhos. Sou parcial. Quero ficar com
ela.
- Oh, mas eu sei que você é honesto, absolutamente honesto, e, acima de tudo,
queremos ambos o seu bem.
Subitamente, não consegui suportar por mais tempo a sua infantilidade.
- Não me interessa o seu bem. Pode ficar com ele. Só quero o seu corpo. Quero-a na
cama comigo. Prefiro destruí-la e dormir com ela, a ter de... de zelar pelo seu maldito
bem - disse-lhe, com irritação.
- Oh! - ouvi numa voz fraca, na escuridão.
Continuei:
- Se você só se interessa pelo seu bem, então, por amor de Deus, deixe Phuong em paz.
Tal como as outras mulheres, ela prefere uma boa... - o estampido do morteiro veio
impedir os ouvidos bostonianos de ouvir a palavra anglo-saxónica.
Mas em Pyle havia a qualidade do implacável. Tinha decidido que eu me estava a portar
bem e eu não o podia desiludir.
- Eu sei o que você está a sofrer, Thomas.
- Eu não sofro.
- Oh, sim, você sofre. Eu sei bem o que passaria se fosse forçado a abdicar de Phuong.
- Mas eu não abdiquei.
- Thomas, eu também dou muita importância à parte física, mas perderia todas as
esperanças se soubesse que Phuong era feliz.

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- Ela é feliz.
- Não pode sê-lo; nunca na situação em que está. Sente a falta de filhos. .
- Você acredita em todos aqueles disparates que a irmã...
- Muitas vezes uma irmã percebe melhor...
- Ela tentava simplesmente impingir-lhe essa teoria, Pyle, porque pensa que você tem
mais dinheiro do que eu. E não há dúvida que o conseguiu.
- Só tenho o que ganho.
- Mas pelo menos o câmbio é-lhe favorável.
- Não esteja azedo, Thomas. São coisas que sucedem. Só desejava que tivessem
acontecido com qualquer outra pessoa e não consigo. Estes morteiros são nossos?
- Sim, são nossos. Você fala como se ela me fosse deixar, Pyle.
- Evidentemente que pode acontecer que ela escolha ficar consigo - disse-me, sem
convicção.
- Que faria você nesse caso?
- Pediria uma transferência.
- Porque não se vai embora, Pyle, sem ocasionar complicações?
- Não seria justo para ela, Thomas - disse-me muito a sério. Nunca conheci um homem
cujos motivos para provocar complicações fossem tão bons. E acrescentou: - Parece-me
que você não compreende Phuong muito bem.
E ao acordar naquela manhã, meses mais tarde, com Phuong a meu lado, eu pensei:
"E você compreendeu-a? Teria conseguido antecipar esta situação? Phuong, que dorme
feliz a meu lado, e você morto?. O tempo traz as suas vinganças, mas a vingança
parece-nos muitas vezes amarga. Não seria preferível que não tentássemos
compreender, que aceitássemos a realidade de que não é possível um ser humano
compreender outro, a mulher o seu marido, o amante a amante, os pais os filhos? Talvez
seja por esta razão que os homens inventaram Deus - um ser capaz de compreender.
Talvez que se eu quisesse ser compreendido, ou compreender, me enganasse a mim
próprio para conseguir acreditar. Mas sou um repórter: Deus só existe para os escritores
de artigos de fundo.
- Tem a certeza que há alguma coisa a perceber? Por amor de Deus, bebamos um
uísque. Há muito barulho para uma discussão.
- É um pouco cedo - disse-me Pyle.
- É muito tarde.

77

Enchi dois copos e Pyle levantou o seu e olhou a luz da vela através do uísque.
Todas as vezes que se ouvia uma detonação a mão tremia-lhe, e no entanto fizera aquela
viagem disparatada desde Nam Dinh.
- É estranho que nenhum de nós possa desejar ao outro felicidades - disse-me. E por
isso bebemos em silêncio.

78
Capítulo V

Pensara que só me ausentaria de Saigão uma semana, mas passaram-se quase três até
eu poder regressar. Em primeiro lugar foi mais difícil sair da região de Phat Diem do
que entrar. A estrada entre Nam Dinh e Hanói estava cortada e não podiam dispensar
transporte aéreo para um repórter que nem mesmo devia ali estar. Depois, quando che-
guei a Hanói, os correspondentes tinham para ali sido enviados de avião para resumirem
a última vitória e no aparelho que os reconduzia não havia lugar para mim. Pyle saíra de
Phat Diem na mesma manhã em que chegara: levara a cabo a sua missão - falar-me
acerca de Phuong - e nada mais o prendia. Deixei-o a dormir quando o fogo dos
morteiros cessou, às cinco e meia, e quando regressei à cantina para beber uma xícara
de café e comer umas bolachas ele já não estava.
Presumi que fora dar uma volta: quem desce o rio desde Nam Dinh não se assusta
com alguns atiradores emboscados; era-lhe tão impossível imaginar a dor que podia
sofrer ou o perigo que podia correr como lhe era impossível conceber a dor que podia
causar aos outros. Em dada ocasião - isto passou-se meses depois - não me contive e
pisei-o propositadamente para que tomasse contacto com a dor e recordo-me de que ele
virara a cara e olhara para o sapato sujo com perplexidade dizendo: "Preciso de
engraxar os sapatos antes de falar com o ministro». Eu sabia que ele já começara a
formar as frases segundo o estilo que aprendera com o York Harding. Contudo, à sua
maneira, ele era sincero: era pura coincidência que os sacrifícios fossem todos feitos
pelos outros até àquela última noite sob a ponte do Dakow.

81

Só depois de regressar a Saigão, enquanto bebia café, é que soube como Pyle
conseguira convencer um jovem oficial da marinha a levá-lo numa barcaça de
desembarque, a qual, depois de uma patrulha rotineira, o deixou sub-repticiamente em
Nam Dinh. A sorte estava com ele e regressou a Hanói com a sua equipa contra o
tracoma vinte e quatro horas antes de a estrada ser oficialmente dada como cortada.
Quando cheguei a Hanói ele já partira em direcção ao Sul, e deixara-me 'uma carta
entregue ao barman dos alojamentos da imprensa.
«Meu caro Thomas» , escrevera, «não sou capaz de lhe dizer quanto o achei
estupendo naquela noite. Devo dizer-lhe que quando entrei naquela casa tinha o coração
muito pequenino. (Como estaria o seu coração durante todo o percurso pelo rio abaixo?)
Não existem muitos homens capazes de encarar o caso com tanta calma. Você foi
estupendo e eu já não me sinto tão vil como me sentia antes de falar consigo». (Seria ele
o único que interessava?, perguntei-me raivosamente. E contudo sabia não ser isto o que
ele queria dizer. Para ele o problema passava a ser muito mais fácil logo que deixasse de
se sentir vil: eu sentir-me-ia mais feliz, Phuong sentir-se-ia mais feliz, o mundo inteiro
seria mais feliz, incluindo o adido económico e o ministro. A Primavera chegara à
Indochina logo que Pyle cessou de se sentir vil.) «Esperei aqui por si durante vinte e
quatro horas, mas se não partisse hoje não conseguiria regressar a Saigão antes de uma
semana, e todo o meu trabalho está no Sul. Disse aos rapazes que trabalhavam nas
equipas de tracoma para entrarem em contacto consigo; você vai gostar deles. São uns
tipos formidáveis e estão a realizar um trabalho de grande envergadura. Não se
preocupe com o facto de eu chegar a Saigão antes de si. Prometo-lhe não ver Phuong até
você chegar. Não quero pensar um dia que por alguma razão não fui leal. Cordialmente,
Alden.»
De novo aquela suposição calma de que «um dia» quem perderia Phuong seria eu.
Basear-se-á a confiança na taxa do câmbio? Costumávamos falar em qualidades
esterlinas. Teremos agora de falar em amor dólar? Um amor dólar, evidentemente,
incluiria o casamento e os dias do júnior e da mãe, embora mais tarde pudesse incluir
Reno ou as Ilhas Virgens ou qualquer outro sítio aonde hoje em dia eles vão consumar
os seus divórcios. Um amor dólar tinha boas intenções, uma consciência tranquila, e
para o diabo o resto do mundo. Mas o meu amor não tinha intenções: conhecia o futuro.
Tudo quanto se podia fazer era tentar tornar o futuro menos duro, segurá-lo suavemente
quando chegasse, e o próprio ópio tinha o seu valor num caso como este. Mas nunca
previ que o primeiro futuro que eu teria de apresentar a Phuong fosse a morte de Pyle.

82

Eu fui - porque nada melhor tinha a fazer - à conferência da imprensa.


Evidentemente que Granger estava lá. Presidia um jovem coronel francês
demasiadamente belo. Falou na sua língua e um oficial subalterno traduziu. Os
correspondentes franceses estavam sentados uns junto dos outros como se pertencessem
à equipa de futebol rival. Foi-me difícil concentrar-me no que o coronel dizia; pensava
constantemente em Phuong e se Pyle tivesse razão e eu a perdesse? O que
aconteceria então?
O intérprete disse:
- O coronel informa-vos que o inimigo sofreu uma dura derrota e teve perdas
consideráveis: equivalentes a um batalhão completo. Os últimos destacamentos tentam
atravessar o rio Vermelho em jangadas improvisadas. São constantemente
bombardeados pelas forças aéreas.
O coronel passou a mão pelo seu elegante cabelo amarelo e, agitando o ponteiro,
bamboleou-se ao longo dos mapas na parede. Um correspondente americano perguntou:
quais eram as perdas dos Franceses?
O coronel percebeu perfeitamente o significado da pergunta (era normal fazê-la
quando a conferência chegava a este ponto) mas parou, o ponteiro apontado para cima,
com um sorriso simpático, que lembrava o de um professor estimado, até que lha
traduzissem. Então o intérprete respondeu com ambiguidade paciente:
- O coronel diz que as nossas perdas não foram importantes. Não se conhece ainda o
número exacto.
Ei-lo, o sistemático sinal de complicação iminente. Poder-se-ia pensar que mais cedo
ou mais tarde o coronel acabasse por encontrar um processo de lidar com esta classe
refractária, ou que o reitor nomeasse outro membro do seu corpo docente mais eficiente
em manter a ordem.
- Será possível que o coronel nos queira fazer acreditar que teve tempo para contar os
mortos do inimigo e não o teve para contar os seus? - perguntou Granger.
O coronel teceu pacientemente a sua teia de evasão, apesar de saber perfeitamente que
logo em seguida iria ser destruída por nova pergunta. Os correspondentes franceses
estavam mergulhados num silêncio lúgubre. Se os correspondentes americanos
conseguissem forçar o coronel a uma declaração, eles aproveitá-la-iam imediatamente
mas não faziam coro quando se tratava de lançar uma armadilha a um compatriota.
- O coronel diz que estamos a obrigar as tropas inimigas a recuar.

83
É possível contar os mortos à retaguarda da linha de fogo, mas enquanto se estiver a
travar batalha não devem esperar que as unidades francesas apresentem números.
- Não se trata do que "nós» esperamos - disse Granger, mas sim do que o état-major
sabe ou não. Será possível que nos queira convencer de que os pelotões não transmitem
as suas perdas pelos emissores portáteis à medida que se vão dando?
A paciência do coronel começava a esgotar-se. Eu pensei que teria sido preferível
que ele se tivesse desmascarado de princípio e nos dissesse com firmeza que conhecia o
número de mortos mas que o não diria. Afinal de contas a guerra era deles e não nossa.
Não tínhamos direitos especiais no que respeitava às informações. Não éramos forçados
a lutar com os deputados das esquerdas em Paris ao mesmo tempo que lutavam contra
as tropas de Ho Chi Minh entre os rios Vermelho e Negro. Nós não morríamos.
Repentinamente o coronel disparou a informação de que as perdas francesas haviam
sido numa proporção de uma para três, e depois voltou-nos as costas e olhou
furiosamente para o mapa. Aqueles homens que tinham morrido pertenciam-lhe, eram
seus camaradas do Exército, tinham frequentado a mesma classe em Saint-Cyr - não
eram números, como para Granger.
- Agora sim, agora podemos chegar a uma conclusão - disse Granger; e varreu, com
um olhar de triunfo idiota, os seus colegas; os franceses, de cabeça baixa, tomavam as
suas tristes notas.
- Já se não pode dizer o mesmo no caso da Coreia - disse eu, com deliberada
incompreensão; mas tudo o que consegui foi dar uma nova ideia a Granger.
- Pergunte ao coronel - disse Granger - qual vai ser a próxima atitude dos Franceses.
Ele diz que o inimigo tenta atravessar o rio Negro...
- O rio Vermelho - corrigiu o intérprete.
- A cor do rio não me interessa. O que queremos saber é qual vai ser a atitude dos
Franceses.
- O inimigo foge.
- O que vai acontecer quando atingirem a outra margem? O que farão vocês então?
Irão simplesmente ficar quietos na margem oposta e considerar o assunto arrumado?
Os oficiais franceses escutavam com paciência e tristeza a voz insolente de Granger.
Hoje em dia também se exige humildade aos soldados.

84

- Vocês vão mandar-lhe cartões de boas-festas?


O capitão interpretava cuidadosamente, até ao pormenor de cartes de Noi?!. O coronel
concedeu-nos um sorriso frígido.
- Não mandaremos cartões de boas-festas - disse.
Creio que a juventude e a beleza do coronel irritavam Granger. O coronel não era - pelo
menos segundo a maneira de ver de Granger - um homem cem por cento.
- Vocês não lhes mandam muito mais - disse.
Subitamente o coronel começou a exprimir-se em inglês, em bom inglês:
- Se já tivessem chegado os armamentos prometidos pelos Americanos nós teríamos
mais a oferecer-lhes.
Apesar da sua elegância, era um homem simples. Acreditava que um correspondente
tinha mais amor à honra do seu país do que às notícias.
Granger disse secamente (ele era eficiente: tinha as datas bem arrumadas na cabeça):
- Quer com isso dizer que ainda não chegou um só dos fornecimentos prometidos
para o princípio de Setembro?
- Exactamente.
Granger conseguira a notícia que queria; começou a escrever.
- Lastimo - disse o coronel - mas esta notícia não é para publicação: serve simplesmente
para vos dar uma ideia do que se passa.
- Mas, coronel - protestou Granger -, é uma notícia de interesse. Podemos mesmo ajudá-
lo.
- Não, trata-se de um assunto para os diplomatas.
- Mas qual o mal que daí pode advir?
Os correspondentes franceses estavam perplexos; falavam muito pouco inglês. O
coronel infringira as regras. Murmuravam entre eles com um ar furioso.
- Eu não sou juiz - disse o coronel. - Os jornais americanos podiam dizer: «Ora, os
Franceses estão sempre a protestar, sempre a pedir». E em Paris os comunistas fariam a
acusação de que «os Franceses derramam o seu sangue pela América e a América nem
sequer lhes manda um helicóptero em segunda mão». Não resultaria daí qualquer
benefício. Continuávamos a não ter helicópteros, e o inimigo lá estaria, a vinte e cinco
quilómetros de Hanói.
- Pelo menos posso publicar isso, não posso? Que vocês têm grande necessidade de
helicópteros?

85

- Pode dizer - disse o coronel - que há seis meses tínhamos três helicópteros e que
hoje só temos um. Um - repetiu, com um misto de amargura e espanto. - Pode dizer que
quando nesta guerra um soldado fica ferido, não com ferimentos graves, mas
simplesmente ferido, sabe que é muito provável que passe à categoria dos mortos. Doze
horas, ou talvez vinte e quatro, numa maca até à ambulância, transportado por maus
caminhos, depois um colapso, talvez uma emboscada, e a gangrena. É preferível morrer
imediatamente.
Os correspondentes franceses debruçaram-se para a frente numa tentativa de
compreensão.
- Podem escrever isso - disse, a beleza a acentuar-lhe mais o ar venenoso. -
Interprétez - ordenou, e saiu da sala, deixando ao capitão a tarefa pouco comum de
traduzir de inglês para francês.
- Toquei-lhe na ferida - disse Granger com satisfação, e foi para um canto do bar
escrever o seu telegrama. O meu não levou muito tempo a redigir: nada havia que eu
pudesse enviar de Phat Diem que os censores deixassem passar. Se o assunto fosse
suficientemente importante poderia ter-me metido num avião até Hong Kong e tê-lo en-
viado de lá, mas porventura existiam notícias suficientemente importantes para que eu
me arriscasse à expulsão? Tinha as minhas dúvidas. Ser expulso significava o fim de
toda uma vida; significava a vitória de Pyle, e quando regressei ao hotel lá estava de
facto a sua vitória, que me esperava no cacifo da correspondência, o fim - o telegrama
de congratulações pela minha promoção. Dante nunca se lembrou deste suplício para os
seus amantes condenados. Paolo jamais alcançou o Purgatório.
Subi ao quarto nu e servi-me da torneira da água fria, que pingava (em Hanói não
havia água quente), e sentei-me na beira da cama, sob a trouxa do mosquiteiro, que
parecia uma nuvem inchada. Eu passava a ser o novo redactor da secção de assuntos
estrangeiros. Chegaria todas as tardes às quinze e meia àquele edifício tristonho, perto
da estação de Blackfriars, com uma placa de lord Salisbury junto do elevador. Tinham-
me enviado a boa nova de Saigão, e perguntei-me se já teria chegado aos ouvidos de
Phuong. Nunca mais seria um repórter. Teria de ter opiniões, e em troca deste parco
privilégio despojavam-me da última esperança que me restava na competição com Pyle.
À sua candura eu tinha a contrapor a experiência, e a idade no jogo sexual é tão bom
trunfo como a juventude. Mas agora eu já nem tinha a oferecer-lhe o limitado futuro de
mais doze meses, e o futuro representava um trunfo. Invejei o oficial que, tão saudoso
da sua terra, estava condenado a correr o risco de morte. Teria gostado de conseguir
chorar,

86

mas os canais estavam tão secos como os canos da água quente. Oh! Eles podiam ficar
com a Inglaterra - eu só desejava o meu quarto da Rua Catinat.

***

Em Hanói, depois do escurecer, vinha o frio e as luzes eram mais fracas do que as de
Saigão, mais de acordo com os vestidos sombrios das mulheres e o estado de guerra.
Subi a Rua Gambetta até ao Bar Pax - não queria beber no Metrópole com os oficiais
franceses, com as suas mulheres e namoradas - e quando cheguei ao bar apercebi-me de
um troar distante de canhões vindo dos lados do Hoa Binh. Durante o dia o barulho do
tráfico amortecia-o, mas agora, exceptuando as campainhas das bicicletas que os
condutores de trishaws tocavam em procura de passageiros, reinava o silêncio. Pietri
estava sentado no seu lugar do costume. Tinha um crânio estranho, alongado, que lhe
assentava nos ombros tal uma pera sobre um prato; era oficial da Sureté e tinha-se
casado com uma tonquinesa engraçada, a quem pertencia o Bar Pax. Era mais um
daqueles a quem não interessava grandemente voltar à sua terra. Era corso, mas preferia
Marselha, e a Marselha preferia ainda o seu bánco na Rua Gambetta. Perguntei-me se
porventura já conheceria o conteúdo do meu telegrama.
- Quatre vingt-et-un? - perguntou.
- Porque não?
Começou a jogar e pareceu-me impossível que eu alguma vez pudesse ter uma outra
vida, longe da Rua Gambetta e da Rua Catinat, do gosto insípido do vermute cassis, do
barulho confortável dos dados e do ruído dos canhões deslocando-se como um ponteiro
de relógio ao longo do horizonte.
- Vou-me embora - disse-lhe.
- Para casa? - perguntou-me Pietri enquanto fazia quatro-dois-um.
- Não. Para Inglaterra.

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SEGUNDA PARTE

Capítulo I

Pyle convidara-me para aquilo a que ele chamava uma bebida, mas eu sabia muito
bem que ele não bebia. Passadas algumas semanas aquele fantástico encontro em Phat
Diem parecia inacreditável: os próprios detalhes da conversa apresentavam-se menos
nítidos. Eram como as letras desaparecidas num túmulo romano, sendo eu o arqueólogo
que tentava preencher as lacunas com a parcialidade que o meu diploma me conferia.
Chegou-me a ocorrer que ele estivesse a entrar comigo e que a conversa não tivesse
passado de uma máscara humorística e complicada para atingir o seu verdadeiro intuito,
dado que já corria em Saigão que ele estava ocupado num daqueles serviços tão inepta-
mente intitulados secretos. Talvez estivesse a fornecer armas americanas a uma terceira
força - à fanfarra do bispo, ao que restava dos seus jovens e apavorados recrutas sem
salário. O telegrama que me esperara em Hanói ficou no meu bolso. Não fazia sentido
mostrá-lo a Phuong. Seria estragar com lágrimas e zangas os poucos meses que nos
restavam. Com receio de que ela tivesse um parente na secção de emigração eu só
pediria a autorização de saída à última hora.
- O Pyle vem cá às seis - disse-lhe.
- Vou ver a minha irmã - respondeu-me.
- Tenho a impressão que ele gostaria de te ver.
- Ele não gosta de mim nem da minha família. Quando estiveste fora ele nem uma só
vez foi ver a minha irmã, embora ela o tivesse convidado. Ela ficou muito magoada.
- Mas não tens necessidade de sair.

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- Se ele tivesse interesse em estar connosco ter-nos-ia convidado para irmos com ele
ao Majestic. Só quer falar contigo... sobre assuntos de negócio.
- Em que negoceia ele?
- Dizem que ele importa muitas coisas.
- Que coisas?
- Medicamentos, drogas...
- São para as equipas de tracoma, no Norte.
- Talvez. A Alfândega não pode abrir os pacotes. Pertencem ao correio diplomático.
Mas já houve um engano e despediram o homem que o originou. O primeiro-secretário
ameaçou fazer parar todas as im portações.
- E que havia no caixote?
- Plástico.
- Para que queriam eles o plástico? - perguntei negligentemente.
Depois de Phuong sair escrevi para minha casa. Dentro de alguns dias partia um homem
para Hong Kong e podia enviar daí a carta. Sabia que nada tinha a esperar do meu
apelo, mas não queria acusar-me um dia de não ter feito tudo o que me era possível.
Escrevi ao redactor principal e disse-lhe que o momento era inoportuno para se proceder
a uma mudança de correspondente. Em Paris o general De Lattre estava moribundo; os
franceses estavam prestes a abandonar completamente Hoa Binh; e o Norte nunca
estivera em tão forte perigo. Eu não servia - disse-lhe - para redactor de uma secção de
assuntos estrangeiros; era um repórter, não tinha opiniões firmes acerca do que quer que
fosse. Na última página cheguei ao ponto de lhe fazer um apelo pessoal, embora fosse
pouco provável que alguma simpatia humana conseguisse sobrepor-se às luzes fortes, às
palas verdes e às frases estereotipadas: «o bem do jornal», «a situação requer...».
Escrevi: «Por razões particulares desagrada-me sair do Vietname. Não me parece
que consiga realizar um bom trabalho em Inglaterra, onde me esperam não só problemas
económicos como também familiares. Na realidade, se me fosse possível, preferia
demitir-me a voltar a Inglaterra. Menciono isto para lhe mostrar a força da minha
objecção. Não creio que tenha tido razões para me achar um mau correspondente, e é o
primeiro favor que lhe peço.» Depois reli o meu artigo sobre a batalha de Phat Diem,
para que seguisse para Hong Kong. e ali fosse metido no correio. Os franceses já não
fariam grandes objecções; o cerco fora levantado, uma derrota podia transformar-se
numa vitória. Depois rasguei a última página da minha carta; não valia a pena. As

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razões de «ordem particular» transformar-se-iam num motivo de graçolas à boca calada.


Partiam do princípio de que todos os correspondentes tinham a sua rapariga indígena; o
redactor-chefe diria a sua graça ao redactor da noite, que levaria a sua inveja até à sua
vivenda em Streatham, se deitaria com ela ao lado da mulher fiel, que há anos e anos
trouxera de Glasgow. Eu conseguia imaginar tão bem o género de casa onde não existe
clemência: no vestíbulo havia uma bicicleta escangalhada, alguém partira o cachimbo
predilecto, e na sala havia uma camisa de criança à espera que lhe pregassem um botão.
«Razões de ordem pessoal»: quando eu estivesse a tomar uma bebida no Clube da
Imprensa não quereria que as suas piadas me lembrassem Phuong.
Bateram à porta. Abri-a e Pyle entrou com o seu cão preto à frente. Olhou por cima
do meu ombro e não viu mais ninguém.
- Estou só - disse-lhe. - Phuong está com a irmã. - Ele corou. Reparei que vestia uma
'camisa havaiana, mas bastante discreta na cor e no desenho. Fiquei surpreso. Dar-se-ia
o caso que o tivessem acusado de actividades não americanas?
- Espero que não tenha vindo interromper... - disse.
- De maneira alguma. Quer uma bebida?
- Obrigado. Tem cerveja?
- Desculpe. Nós não temos geleira; mandámos buscar gelo. E se for um uísque?
- Mas pequeno, se faz favor. As bebidas fortes não são muito do meu agrado.
- Só com gelo?
- Com muita soda, se a tiver.
- Não o via desde Phat Diem.
- Recebeu a minha carta, Thomas?
Logo que usou o meu nome de baptismo foi como que uma declaração de que não
fora uma graça, de que não estava a encobrir qualquer outra coisa, de que estava
efectivamente aqui para me levar Phuong. Reparei que cortara recentemente o cabelo;
dar-se-ia o caso que a camisa havaiana tivesse a função da plumagem de macho?
- Recebi a sua carta. O que eu devia fazer era pregar-lhe uma sova.
. - Você tem toda a razão, Thomas. Mas eu fiz boxe e sou muito mais novo.
- Tem razão, não seria grande táctica.
- Sabe, Thomas, e estou certo de que você sente o mesmo, não gosto de falar em
Phuong sem ela estar presente. Pensei que ela estivesse em casa.

95
- Então que assunto acha que devemos discutir... sobre plásticos?
- Não contava surpreendê-lo.
- Você já sabe disso?
- Foi Phuong quem me falou no assunto.
-Mas como pode ela...?
- Pode estar certo de que a notícia já correu a cidade. Mas é assim tão importante? Você
vai meter-se a fabricar brinquedos?
- Não gostamos que se saibam os detalhes da nossa campanha de auxílio. Você conhece
a nossa Assembleia. Além disso somos visitados por senadores. Tivemos uma grande
complicação com as equipas de tracoma porque estavam a empregar determinado
medicamento, e não um outro.
- Continuo a não perceber o assunto do plástico.
O cão preto estava sentado no chão, ofegante, ocupando demasiado espaço. A sua
língua parecia uma bolacha queimada. Pyle disse com um ar vago:
- Sabe? Nós pretendemos desenvolver umas quantas indústrias locais e somos
forçados a tomar precauções com os franceses. Eles querem que tudo seja comprado em
França. .
- Não os censuro. As guerras precisam de dinheiro.
- Você gosta de cães?
- Não, não gosto.
- Sempre pensei que os Ingleses gostassem muito de cães.
- Nós pensamos que os Americanos gostam de dólares, mas há certamente excepções.
- Não sei o que faria sem o Duke. Sabe? por vezes sinto-me tão só...
- Você tem muitos companheiros entre os seus camaradas.
- O primeiro cão que tive chamava-se Príncipe. Dei-lhe este nome em memória do
Príncipe Negro. Você lembra-se, o tipo que...
- Chacinou todas as mulheres e crianças em Limoges.
- Não me lembro disso.
- Os compêndios de história passam por cima do assunto.
Estava-me reservado ver repetidamente aquele olhar de dor e desapontamento, que lhe
transformava os olhos e a boca, sempre que a realidade não condizia com as ideias
românticas que ele alimentava, ou quando alguém que admirava ou de quem gostava
descia abaixo do nível inacessível que ele marcara. Lembro-me de que uma vez apanhei
York Harding num erro crasso e depois vi-me forçado a consolá-lo: «Errar é humano».
Ele riu com nervosismo e disse: «você deve achar que eu sou parvo, mas.» pensava que
ele era quase infalível».

96

E acrescentou: «O meu pai ficou muito entusiasmado com ele na única vez que lhe
falou, e o meu pai é muito exigente».
O enorme cão preto chamado Duke, depois de ter estado ofegante o tempo suficiente
para se achar com direito a mais ar, começou a agitar-se pelo quarto.
- Importa-se de dizer ao seu cão que esteja quieto?
- Desculpe. Duke. Duke. Senta-te, Duke.
O Duke sentou-se e começou a lamber ruidosamente o sexo. Enchi os copos e
consegui, ao passar por ele, interromper-lhe a toilette. O sossego pouco durou; começou
a coçar-se.
- O Duke é muito inteligente - disse Pyle.
- E o que aconteceu ao Principe?
- Nós estávamos numa quinta em Connecticut e foi atropelado.
- Você teve pena?
- Ah, tive muita pena. Gostava imenso dele, mas é preciso ser-se realista. Não era
possível ressuscitá-lo.
- E se você perder Phuong também vai ser realista?
- Certamente. Espero sê-lo. E você?
- Tenho as minhas dúvidas. Pode mesmo acontecer que perca o juízo. Já pensou
nisso, Pyle?
- Gostaria que você me chamasse Alden, Thomas.
- Prefiro não o chamar assim. Pyle tem... associações. Já pensou no assunto?
- Claro que não pensei. Você é o tipo mais decente que jamais encontrei. Quando me
lembro da sua atitude ao chegar a...
- Recordo-me de ter pensado antes de adormecer quanto seria conveniente que
houvesse um ataque e você morresse. A morte de um herói. Pela democracia.
- Não faça troça, Thomas.
- Mudou a posição das pernas, pouco à vontade. - Devo parecer-lhe um tanto ou
quanto parvo, mas sei perceber quando você está a brincar.
- Mas não brinco agora.
- Eu sei, se você quiser dizer a verdade, que só deseja o bem dela.
Foi então que ouvi os passos de Phuong. Desejara vezes sem fim que ele tivesse
partido antes de ela chegar. Ele também os ouviu e reconheceu. Disse: «Ei-la», embora
só tivesse tido uma noite para lhe aprender os passos. Até o cão se pôs de pé junto da
porta, que eu deixara aberta para entrar o fresco, como se já a considerasse um membro
da família de Pyle. Eu não passava de um intruso.
- A minha irmã não estava em casa - disse Phuong, e olhou cautelosamente para
Pyle.

97

Perguntei-me se estaria a falar verdade ou se a irmã lhe teria ordenado que voltasse
rapidamente para casa.
- Lembras-te do senhor Pyle? - disse-lhe.
- Enchantée. - Mostrava as suas melhores maneiras.
- Tenho imenso gosto em tornar a vê-la - disse ele corando.
- Comment?
- Ela não fala muito inglês - disse eu.
- E eu falo pessimamente o francês. Mas estou a ter lições. E percebo... se a menina
Phuong falar lentamente.
- Servirei de intérprete - disse-lhe. - O, sotaque local é de difícil assimilação. Vamos,
que quer dizer? Senta-te, Phuong. O senhor Pyle veio aqui para falar contigo. Tem a
certeza - acrescentei, dirigindo-me a Pyle - que não quer que os deixe sós?
- Quero que você ouça tudo o que tenho a dizer-lhe. De outro modo não seria leal.
- Então vamos a isso.
Ele disse solenemente, como se tivesse decorado um papel, que tinha um imenso
amor e respeito por Phuong. Começara a senti-lo na noite em que com ela dançara.
Fazia-me ligeiramente pensar num mordomo que mostra o «grande palácio» a um grupo
de turistas. O grande palácio era o seu coração, e só nos consentiam uma olhadela sub-
reptícia. Eu traduzia meticulosamente o que ele dizia - soava ainda pior - e Phuong tinha
as mãos no colo, como se estivesse atenta no cinema.
- Ela percebeu isto? - perguntou-me.
- Tanto quanto me é possível dizer, acho que sim. Você não quer que eu acrescente uns
floreados, pois não?
- Oh, não, traduza simplesmente. Não pretendo influenciá-la emocionalmente.
-Ah!
- Diga-lhe que quero casar com ela.
Eu disse-lhe.
- Que respondeu ela? .
- Perguntou-me se você falava seriamente. Eu disse-lhe que você era um tipo sério.
- A situação deve ser estranha. O facto de eu lhe pedir para você traduzir.
- Bastante estranha.
- E no entanto parece-me tão natural.. Não nos devemos esquecer de que você é o
meu maior amigo.

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-Agradeço a honra.
- Se estivesse em apuros seria a si que eu iria procurar.
- E estar apaixonado pela minha companheira é como estar em apuros?
- Com certeza. Quem me dera que isto fosse com outra pessoa, Thomas.
- Então, o que se segue agora? Que você não pode viver sem ela?
- Não, isso é demasiadamente emocional. E não é perfeitamente verdadeiro. Ser-me-
ia necessário partir daqui, mas tudo passa.
- Enquanto você pensa no que quer dizer importa-se que eu meta umas
palavrinhas a meu respeito?
- Com certeza que não, Thomas. É perfeitamente justo.
- Então, Phuong, vais deixar-me? Ele casa contigo. Eu não posso. Sabes porquê?
- Vais partir? - perguntou-me, e eu pensei na carta do redactor-chefe, dentro do meu
bolso.
-Não.
- Nunca?
- Como pode alguém prometer uma tal coisa? Nem ele o pode. O casamento
desmancha-se. Muitas vezes desmancha-se mais rapidamente do que uma ligação como
a nossa.
- Eu não quero ir - disse-me, mas a frase não era reconfortante:
continha um «mas» não expresso. Pyle interrompeu-nos:
- Parece-me que devo pôr as cartas na mesa. Não sou rico. Mas quando o meu pai
morrer herdarei cerca de cinquenta mil dólares. A minha saúde é boa - tenho um
certificado médico de há dois me ses e posso dizer-lhe qual foi a minha última
contagem de glóbulos.
- Não sei traduzir isso. Para que serve?
- Para nos assegurar de que poderemos ter filhos.
- É assim que vocês amam na América? Baseando-se nos rendi mentos e na contagem
de glóbulos?
- Não sei, é a primeira vez que me acontece. Se eu estivesse em casa talvez a minha
mãe falasse com a mãe dela.
- Sobre as vossas respectivas contagens de glóbulos?
- Não faça troça, Thomas. Reconhece que sou bota-de-elástico. Você sabe bem que
eu me sinto perdido no meio desta situação.
- E eu também o estou. Não acha preferível acabarmos com isto e jogar aos dados
para ver qual de nós fica com ela?
- Você agora está a tentar armar em forte, Thomas. Sei muito bem que, a seu modo,
você gosta tanto dela como eu.

99

- Então vamos a isso, Pyle, continue.


- Diga-lhe que eu não espero que ela passe imediatamente a gostar de mim. Isso virá
com o tempo, mas afianço-lhe que o que lhe ofereço é a segurança e o respeito. Não são
coisas muito excitantes à primeira vista, mas talvez valham mais do que a paixão.
- Ela pode sempre sentir isso com o seu chauifeur quando você estiver no
escritório a trabalhar.
Pyle corou. Pôs-se de pé com um ar embaraçado e disse:
- Isso é uma piada imunda. Oponho-me a que a insultem. Você não tem o
direito...
- Ela ainda não é sua mulher.
- Que pode você oferecer-lhe? - perguntou-me, furioso. - Quando partir para
Inglaterra, algumas centenas de dólares, ou vendê-la-á juntamente com os móveis?
- Os móveis não me pertencem.
- Nem ela. Phuong, quer casar comigo?
- E quanto à contagem de glóbulos? E ao certificado de saúde? Você vai certamente
precisar do dela. Talvez também lhe deva dar o meu. E o seu horóscopo? Não, isso é um
costume indiano.
- Quer casar comigo?
- Fale-lhe em francês. Diabos me levem se vou continuar a servir-lhe de intérprete.
Pus-me de pé e o cão rosnou. Fiquei furioso.
- Diga ao seu maldito Duke que esteja calado. Esta casa é minha e não dele.
- Quer casar comigo? - repetiu.
Dei um passo em direcção a Phuong e o cão rosnou novamente. - Diz-lhe que se vá
embora e leve o cão - disse a Phuong. - Venha comigo agora - disse Pyle. - Avec Moi.
- Não - disse Phuong. - Não vou.
Subitamente toda a raiva que ambos sentíamos desapareceu: o problema era
perfeitamente simples, podia resolver-se com uma palavra de três letras. Senti um
imenso alívio. Pyle tinha a boca ligeiramente aberta e a sua cara mostrava
perplexidade.
- Ela disse que não - expliquei.
- Ela sabe inglês que chegue para dizer isso.
Agora apetecia-me rir: como tínhamos sido parvos um com o outro. Disse-lhe:
- Sente-se e beba outro uísque, Pyle.
- É preferível ir-me embora.

100

- Só mais um para o caminho.


- Não lhe devo beber o uísque todo. - Gaguejou.
- Consigo arranjar todo quanto quero através da legação.
Dirigi-me para a mesa e o cão arreganhou-me os dentes.
Pyle disse furioso:
- Para baixo, Duke. Está quieto. - Limpou o suor da testa.
- Thomas, peço-lhe imensa desculpa se porventura disse qualquer coisa menos
conveniente. Não percebo o que me está a acontecer. Pegou no copo e disse com um ar
amargo de quem tem pena: - Sempre acabou por ganhar o melhor de entre nós. Mas não
a abandone, Thomas.
- Claro que nunca a abandonarei - disse-lhe.
Phuong perguntou-me:
- Acha que ele gostaria de fumar um cachimbo?
- Apetece-lhe um cachimbo?
- Não, obrigado. Eu nunca fumo ópio e nós temos regulamentos muito rígidos. Bebo
isto e depois vou andando. Desculpe o Duke, que é geralmente muito sossegado.
- Fique para jantar.
- Se não se importa, prefiro estar só. - Sorriu de uma forma pouco firme. - Se isto se
viesse a saber diriam que nós nos comportámos de um modo bastante estranho. Gostaria
imenso que você pudesse casar com ela, Thomas.
- Ah, sim?
- Sim. Desde que vi aquela casa (sabe a qual me refiro, a casa perto do Chalet) tenho
tido um medo terrível.
Bebeu rapidamente o uísque, a que não estava habituado, sem olhar para Phuong, e
quando se despediu não lhe tocou na mão e fez uma cortesia pouco firme, desajeitada.
Reparei que ela o seguiu com o olhar até à porta e quando passei pelo espelho olhei para
a minha imagem: o primeiro botão das calças desabotoado, a barriga a desenvolver-se.
Lá fora ele disse-me:
- Prometo não tornar a vê-la, Thomas. Isto não vai afectar as nossas relações, pois
não, Thomas? Quando terminar esta missão vou pedir que me transfiram.
- E quando é isso?
- Dentro de cerca de dois anos.
Voltei para o quarto e pensei: "para quê tudo isto? Talvez tivesse sido preferível que eu
lhes tivesse dito que me ia embora». Ele só teria de transportar o seu coração esfacelado
durante algumas semanas... A minha mentira até serviria para lhe tranquilizar a
consciência.

101

- Queres que te prepare um cachimbo? - perguntou-me Phuong.


- Quero, mas espera um momento. Preciso de escrever uma carta. Era a segunda carta
daquele dia, mas a esta não rasguei folhas, embora as esperanças de uma resposta
fossem reduzidas. Escrevi:

Querida Helen: volto para a Inglaterra em Abril próximo para ocupar o lugar de
redactor da secção de assuntos estrangeiros. Podes imaginar como isto me desagrada.
A Inglaterra é o palco do meu falhanço. Era minha intenção que o nosso casamento
fosse duradouro, tão duradouro como se eu partilhasse a tua fé cristã. Ainda hoje não
consigo estar bem certo do que aconteceu para que tudo se estragasse (só sei que
ambos tentámos todo o possível), mas creio que foi o meu génio. Sei bem quanto o meu
génio pode ser mau e cruel. Parece-me que está um pouco melhor agora - o Oriente
fez-me este favor - talvez não seja mais doce, mas está certamente mais moderado. Tal-
vez a causa se encontre nos cinco anos que tenho a mais - numa altura em que cinco
anos representam muito em relação ao que resta para viver. Tens sido extremamente
generosa comigo e nunca me censuraste desde a nossa separação. Será possível que
consigas ser ainda mais generosa? Sei bem que antes do nosso casamento me
preveniste de que nunca aceitarias um divórcio. Eu aceitei o risco e não devo queixar-
me. Contudo, é o divórcio que te venho pedir agora.

Phuong, junto da cama, disse-me que tinha o tabuleiro pronto.


- Só um momento.

Podia enfeitar o ramalhete - escrevi - e dar ao problema um ar mais honroso e digno


dizendo-te que se tratava do bem de outra pessoa. Mas não se trata, e sempre foi nosso
costume dizermos a verdade um ao outro. E para meu bem, só para meu bem. Gosto
muito de alguém; há mais de dois anos que vivemos juntos. Ela tem-me sido muito leal,
mas sei bem que lhe não sou essencial. Se eu a deixar creio que se sentirá um pouco
infeliz , mas não será uma tragédia. Casar-se-á com outro homem, constituirá família.
É uma estupidez da minha parte estar a dizer-te tudo isto. Estou a pôr a resposta na tua
boca. Mas porque nunca te menti, talvez me creias se te disser que perdê-la será para
mim o princípio da morte. Não te peço que sejas razoável - a razão está toda do teu
lado - ou que sejas clemente. Clemência é uma palavra demasiadamente forte para a
minha situação, além de que eu não a mereço. Creio que o que tento pedir-te é que te
comportes agora subitamente, irracionalmente, de um modo oposto ao que te é
habitual. Quero que sintas... - hesitei quanto à palavra a empregar e depois não escolhi
melhor - afeição e

102

que actues antes de teres tempo para pensar. Sei bem que isto é mais fácil ao telifone
do que a uma distância de mais de cinco mil quilómetros. Se fosses capaz de me
telegrafar «Concordo»!

Quando terminei senti-me como se tivesse corrido durante muito tempo e magoado
músculos pouco exercitados. Deitei-me na cama, enquanto Phuong me arranjava o
cachimbo.
- Ele é novo - disse a Phuong.
- Quem?
- Pyle.
- Isso não é muito importante.
- Se me fosse possível casava-me contigo, Phuong.
- Eu acredito, mas a minha irmã acha que não.
- Estive a escrever à minha mulher. Pedi-lhe o divórcio. É a primeira vez que o tento.
Tudo é possível.
- Muito possível?
- Não muito. Mas é possível.
- Não te preocupes. Fuma.
Inspirei o fumo e ela começou a preparar-me o segundo cachimbo. Perguntei-lhe
novamente:
- A tua irmã não estava realmente em casa, Phuong?
- Já te disse, tinha saído.
Era absurdo submetê-la a este amor pela verdade, um amor ocidental, tal como o
amor pelo álcool. O uísque que eu bebera com Pyle atenuou o efeito do ópio.
- Menti-te, Phuong. Recebi ordens de voltar para Inglaterra - disse-lhe.
Ela pousou o cachimbo.
- Mas não vais?
- Se eu recusasse, de que iríamos nós viver?
- Eu podia ir contigo. Gostaria de ver Londres.
- Sem estarmos casados não te irias sentir feliz.
- Mas pode acontecer que a tua mulher concorde com o divórcio.
- Pode.
- Irei contigo em qualquer dos casos - disse-me. E era sincera, mas eu já lhe lia nos
olhos o rumo dos pensamentos quando ela levantou novamente o cachimbo e começou a
aquecer a pasta do ópio.
- Em Londres há arranha-céus?
A ingenuidade da sua pergunta enterneceu-me. Ela era capaz de mentir por cortesia, por
medo, até mesmo para seu proveito, mas nunca teria a astúcia suficiente para manter
escondida a sua mentira.

103

- Não, não há. Para os veres tens de ir à América.


Ela deitou-me uma olhadela fugidia por cima do cachimbo e registou o engano. Depois,
enquanto amassava o ópio, começou a falar ao acaso da roupa que usaria em Londres,
da casa onde viveríamos, do metropolitano que ela conhecia através de uma novela, dos
autocarros de dois andares.
- E iríamos de avião ou de barco?
- E' a estátua da Liberdade?.. - perguntou-me. - Não, Phuong, também é americana.

104
Capítulo II

Os caodaístas, pelo menos uma vez por ano, realizam um festival na Santa Sé, em
Tanyin, a oitenta quilómetros a noroeste de Saigão. Este festival celebra o ano tal da
libertação, ou da conquista, ou é simplesmente uma festa budista, confuciana ou mesmo
cristã. O caodaísmo era o meu capítulo preferido nas conversas com os visitantes. O
caodaismo, a invenção de um funcionário público de Cochim, é uma síntese das três
religiões. A Santa Sé fica em Tanyin. Há um papa e cardeais do sexo feminino.
Profecias por meio de uma planchet*1. Santo Vítor Hugo, Cristo e Buda, que nos olham
do telhado da catedral, numa espécie de fantasia de Walt Disney sobre o Oriente, com
dragões e cobras em technicolor. Os recém-chegados ficam invariavelmente encantados
com a descrição. Como explicar-lhes a tristeza de tudo aquilo: o exército privado,
constituído por cinco mil homens armados de morteiros feitos dos tubos de escape de
velhos carros, ex-aliados dos Franceses, que se declararam neutrais no momento de pe-
rigo. O papa convidava para estas celebrações, que ajudavam a manter os camponeses
sossegados, membros do Governo (que compareciam se os caodaístas estivessem na mó
de cima) e o corpo diplomático (que enviava alguns segundos-secretários com as
respectivas mulheres ou namoradas) e o comandante-chefe das tropas francesas, que
destacava um dos seus generais de duas estrelas para o representar.

1 Prancha em forma de coração, assente sobre rodízios e com um lápis adaptado,


que dizem traçar palavras quando sobre ela se apoiam levemente os dedos.

107

Ao longo da estrada para Tanyin deslocava-se apressadamente uma torrente de


carros oficiais e do corpo diplomático, e nos troços de estrada mais expostos os
soldados da Legião Estrangeira vigiavam os arrozais.
Para os altos comandos franceses aquele era invariavelmente um dia de certo modo
inquietante. Para os caodaístas trazia provavelmente uma certa esperança. Que poderia
existir de mais fácil para evidenciar a sua lealdade do que o facto de alguns convidados
importantes serem abatidos a tiro fora do seu território?
De quilómetro em quilómetro elevava-se, acima dos campos chãos, uma pequena
torre de vigia feita da lama, que lembrava um ponto de exclamação; e de dez em dez
quilómetros havia um forte, de maiores dimensões, guarnecido de um pelotão de
legionários, marroquinos ou senegaleses. Tal como em Nova Iorque, os carros
mantinham-se à mesma velocidade, e também como em Nova Iorque tinha-se a sensa-
ção de impaciência fiscalizada, de se vigiar o carro da frente e, pelo espelho, o de trás.
Todos queriam chegar a Tanyin, ver o espectáculo e voltar para casa o mais depressa
possível: o toque de recolher era às sete.
Passava-se dos arrozais dominados pelos franceses para os arrozais dos hoa-haos e
depois para os dos caodaístas, que geralmente estavam em guerra com os hoa-haos: só
as bandeiras das torres de vigia mudavam. Nos campos irrigados viam-se rapazitos nus
montados em búfalos enterrados na lama até ao sexo; onde quer que os arrozais doura-
dos estivessem prontos a colher, camponeses, com chapéus lembrando lapas, joeiravam
o arroz de encontro a pequenos abrigos curvos de bambu entrelaçado. Os carros
passavam rapidamente, pertencendo a um outro mundo.
Agora grande foco de atracção dos forasteiros em cada aldeia eram as igrejas dos
caodaístas, estucadas de azul-pálido e cor-de-rosa, com um enorme olho de Deus sobre
a porta. As bandeiras aumentavam: ranchos de camponeses avançavam pela estrada.
Aproximavam-se da Santa Sé. À distância, a montanha sagrada elevava-se acima de
Tanyin, lembrando um chapéu de coco verde - era ali que se aquartelava o general Thé,
o dissidente chefe do estado-maior que proclamara recentemente ser sua intenção
combater franceses e vietcongues. Os caodaístas não faziam qualquer tentativa para o
capturar, embora ele já . tivesse raptado um cardeal. Corria o boato de que ele o fizera
com a conivência do papa.

108

aEm Tanyin parecia estar sempre mais calor do que em qualquer outra região do
delta do Sul; talvez fosse a ausência de. água, talvez a lembrança das intermináveis
cerimônias nos fizessem transpirar por simpatia: suor pelas tropas perfiladas enquanto
se desenrolavam longos discursos numa língua que não percebíamos; suor pelo papa,
com as suas pesadas vestes orientais. Os cardeais femininos eram os únicos que na
claridade escaldante, com as suas calças de seda branca, conversando com os padres de
capacete, nos conseguiam transmitir uma certa sensação de frescura: tinha-se a
impressão de que as dezanove horas, os cocktails no terraço do Majestic e a brisa do rio
Saigão nunca mais chegariam.
Depois da parada entrevistei o deputado do papa. Não tinha esperança em arrancar-
lhe qualquer coisa de jeito e não me enganava: não passou de mero acto convencional.
Fiz-lhe algumas perguntas sobre o general Thé.
- É um homem irreflectido - respondeu-me, e mudou de assunto.
Começou o seu discurso pré-preparado, esquecendo-se de que eu o ouvira havia dois
anos. Fazia-me lembrar os discos que eu punha a tocar para os recém-chegados: o
caodaísmo era uma síntese de religiões... a melhor entre todas... Já tinham enviado
missionários até Los Angeles... os segredos da Grande Pirâmide. Vestia uma longa
sotaina branca e acendia uns cigarros nos outros. Havia qualquer coisa nele de astuto e
corrupto: a palavra «amor» surgiu muitas vezes. Eu estava certo de que ele sabia que
todos nós nos encontrávamos ali para troçarmos do seu movimento; o nosso ar de
respeito era tão falso como a sua falsa hierarquia, mas éramos menos astutos. A nossa
hipocrisia de nada nos servia - nem mesmo para conseguirmos um aliado digno de con-
fiança -, enquanto a dele trouxera armas, abastecimentos, até mesmo dinheiro.
- Obrigado, eminência.
Levantei-me para sair. Ele veio acompanhar-me à porta, espalhando a cinza do cigarro.
- Que Deus abençoe o seu trabalho - disse com voz untuosa. - Lembre-se de que
Deus ama a verdade.
- Que verdade?
- Na fé caodaísta conciliam-se todas as verdades, e a verdade é amor.
Trazia um enorme anel e quando me estendeu a mão tive a sensação nítida de que
esperava que eu o beijasse. Mas não sou um diplomata.

109

À luz do sol vertical vi Pyle: tentava em vão arrancar o Buick. Não sei porquê, mas
nas duas últimas semanas, no bar do Continental, na única livraria decente, na Rua
Catinat, por toda a parte eu dava a par e passo de cara com Pyle. E agora, mais do que
nunca, ele acentuava a amizade que desde o início me impusera. Os seus olhos tristes
interrogavam-se mudamente sobre Phuong, enquanto os lábios expressavam, ainda com
maior fervor, a força da sua afeição e da admiração - que Deus me perdoe - por mim.
Junto do carro estava um comandante caodaísta. Falava rapidamente. Quando me
aproximei calou-se. Reconheci-o - fora um dos assistentes de Thé antes de o general se
ter refugiado nas montanhas.
- Olá, comandante - disse-lhe. - Como vai o general?
- Que general? - perguntou-me com um sorriso tímido.
- Parece-me que na religião caodaísta se conciliam todos os generais - respondi-lhe.
- Não consigo fazer com que este carro ande, Thomas - disse-me Pyle.
- Vou arranjar um mecânico - disse o comandante, e depois deixou-nos.
- Eu vim interrompê-los.
- Oh, não teve importância. Ele queria saber quanto custava um Buick. Esta gente,
desde que a tratemos bem, é extremamente simpática. Parece-me que os franceses
não sabem manejá-la.
- Os franceses não confiam neles.
Pyle disse com voz solene:
- Os homens tornam-se merecedores de confiança sempre que mostramos confiar neles.
Parecia uma máxima caodaísta. Comecei a sentir que o ar de Tanyin era
demasiadamente ético para os meus pulmões.
- Vamos beber qualquer coisa - disse Pyle.
- Boa ideia. É exactamente do que eu estou a precisar.
- Trouxe um termo com sumo de lima.
Debruçou-se sobre a parte de trás do carro e começou a investigar o conteúdo de um
cesto.
- Há por acaso gim?
- Não, desculpe, mas não tenho. Sabe? - disse-me, como para me animar. - O sumo de
lima, num clima como este, faz muito bem. Tem... não sei bem que vitaminas. -
Estendeu-me uma chávena e eu bebi.

110

- Pelo menos é um líquido - disse-lhe.


- Quer uma sanduíche? São muito boas. Têm um novo recheio chamado Vit-Saúde. Foi
a minha mãe quem mo mandou.
- Obrigado, mas não tenho fome.
- Tem um gosto semelhante ao da salada russa, mas ligeiramente mais seco.
- Obrigado, mas não me apetece.
- Importa-se que eu coma uma?
- Não, com certeza que não.
Deu uma grande dentada e a sanduíche estalou com a mastigação. À distância, o Buda
todo de pedra branca e rosa afastava-se da sua casa ancestral, e o seu criado - outra
estátua - seguia-o correndo. Os cardeais femininos encaminhavam-se para casa e o olho
de Deus vi giava-nos no topo da porta da catedral.
- Sabe que nos preparam um almoço?
- Achei melhor não me arriscar. Sabe? Com este calor é preciso. Ter cuidado com a
carne.
- Você não correria perigo. São vegetarianos.
- Talvez não haja realmente perigo, mas prefiro saber o que estou a comer. - E encheu
de novo a boca com a sanduíche de Vil-Saúde.
- Você acha que eles têm mecânicos de confiança?
- Sabem o suficiente para transformar o tubo de escape do seu carro num morteiro.
Creio que os melhores morteiros são feitos com escapes dos Buicks.

***

O comandante voltou, e com uma continência elegante disse que mandara vir um
mecânico do quartel. Pyle ofereceu-lhe uma sanduíche Vil-Saúde, que ele recusou
delicadamente. E disse, com um ar de homem do mundo:
- Nós temos tantos regulamentos no que respeita a comida...
Falava inglês maravilhosamente.
- É tão disparatado. Mas sabem o que acontece na capital de uma religião. Creio que
deve acontecer o mesmo em Roma ou em Cantuária - acrescentou, ao mesmo tempo que
me dirigia uma cortesia elegante e simples.
Depois ficou silencioso. Tive a sensação nítida de estar a mais. Não consegui resistir
à tentação de arreliar o Pyle - é a arma dos fracos e

111

eu sentia-me fraco. Não tinha juventude, seriedade, integridade, futuro. Disse:


- Parece-me que sempre vou comer uma sanduíche.
- Com certeza - disse Pyle. - Mas com certeza. - Fez uma pau sa antes de se debruçar
sobre o cesto.
- Não, de maneira alguma - disse-lhe. - Estava simplesmente a brincar. Vocês
querem estar sós.
- Não pense nisso - respondeu-me Pyle. Era o mentiroso menos eficiente que eu
jamais conhecera; tratava-se de uma arte à qual, como saltava à vista, ele nunca se
dedicara. Explicou ao comandante:
- O Thomas é o meu melhor amigo.
- Eu já conhecia o senhor Fowler - disse o comandante.
- Vê-lo-e i antes de partir, Pyle. - E afastei-me em direcção à catedral. Lá, pelo menos,
haveria um pouco de frescura.
Passei pelo Santo Vítor Hugo, com o uniforme da Academia Francesa e uma auréola
em redor do chapéu de três bicos, apontando para um pensamento nobre que Sun Yat
Sen gravara numa placa, e depois cheguei à nave. Excluindo a cadeira papal, em torno
da qual se enroscava uma cobra de gesso, nada mais havia onde alguém se pudesse
sentar. o chão de mármore reluzia como água e as janelas não tinham vidros - nós
construímos as gaiolas com interstícios para dar entrada e o homem constrói a gaiola
para a sua religião de um modo muito semelhante: com dúvidas em aberto para o tempo
e para as crenças, com possibilidade de inúmeras interpretações. A minha mulher
encontrara a sua gaiola com buracos, e eu por vezes invejava-a. Existe um conflito entre
o sol e o ar: eu vivia demasiadamente ao sol.
Caminhei pela nave deserta - esta não era a Indochina de que eu gostava. Os dragões
com cabeças lembrando leões trepavam pelo púlpito; no tecto Cristo exibia o coração
ensanguentado. o Buda estava sentado, como sempre, sem nada no colo: a escassa barba
de Confúcio descia como uma cascata durante o tempo seco. Isto era representar. o
grande globo sobre o altar era a ambição. O cesto de tampa movível de dentro do qual o
papa tirava as suas profecias era impostura. Se esta catedral existisse há cinco séculos e
não simplesmente há duas décadas ter-se-ia dado o caso que tivesse adquirido uma
espécie de poder de convencimento nascido dos traços deixados pelos pés e da erosão
praticada pelo tempo? Seria possível que alguém fácil de convencer como a minha
mulher encontrasse ali a fé que não conseguia sentir pelos seus semelhantes? E se eu
efectivamente tivesse desejado

112

ter fé, tê-la-ia encontrado naquela sua igreja nonnanda? Mas eu nunca quisera ter fé. A
função de um repórter é revelar e registar. Em toda a minha carreira nunca descobrira o
inexplicável. O papa levava a 'cabo as suas profecias com um lápis inserto numa tampa
móvel e os homens acreditavam. Numa visão em qualquer parte lá estava a planchette.
Eu não tinha visões ou milagres no reportório da minha memória. Folheei ao acaso as
minhas recordações, como se folheiam os retratos de um álbum: uma raposa que vira, à
luz do fogo inimigo, em Orpington, correr junto de um galinheiro, longe da sua toca nos
campos vizinhos. O cadáver de um malaio morto à baioneta, que uma patrulha gurkha
trouxera de camião até uma mina em Pahang, com os camponeses chineses em redor,
rindo com o choque nervoso, enquanto outro malaio lhe colocava uma almofada sob a
cabeça sem vida. Um pombo sobre uma prateleira de um quarto de hotel preparando-se
para o voo. A cara da minha mulher, à janela, quando vim a casa para lhe dizer adeus
pela última vez. Os meus pensamentos haviam começado e terminado com ela. Devia
ter recebido a minha carta há mais de uma semana e o telegrama que eu não esperara
não viera. Mas diz-se que se um júri se ausenta por muito tempo o prisioneiro pode ter
alguma esperança. Se dentro de mais uma semana não chegasse uma carta, dar-se-ia o
caso de eu poder começar a ter esperança? Dei-me conta de que os carros dos soldados e
dos diplomatas começavam a movimentar-se: a festa acabara, até ao próximo ano.
Começava a fuga para Saigão, tocava o recolher. Saí em procura de Pyle.
Estava de pé, numa pequena sombra, com o comandante. E ninguém fazia o que
quer que fosse ao seu carro. A conversa parecia ter terminado - qualquer que tivesse
sido - e estavam silenciosos, constrangidos pela cortesia mútua. Juntei-me a eles.
- Bom - disse. - Vou andando. E se você quer chegar antes do recolher também deve
partir.
- O mecânico ainda não apareceu.
- Não deve tardar - disse o comandante. - Ele estava na parada.
- Você podia passar cá a noite - disse a Pyle. - Há uma missa especial. É uma
cerimónia que se não deve perder. Dura três horas.
- Devo regressar hoje.
- Você precisa de partir imediatamente para chegar a tempo.
E acrescentei contra minha vontade:
- Se quiser dou-lhe uma boleia e o comandante pode encarregar-se de lhe enviar
amanhã o carro a Saigão.

113

- Dentro do território caodaísta não é preciso preocupar-se com o recolher - disse o


comandante com um ar afectado. - Mas fora dele... Não tenho dúvidas em enviar-lhe
amanhã o seu carro.
- Com o escape intacto - disse-lhe, e ele sorriu com um ar alegre, elegante, eficiente,
uma abreviatura militar de um sorriso.

114
2

Quando por fim partimos a procissão de carros levava uma boa dianteira sobre nós.
Acelerei, numa tentativa de os ultrapassar, mas já tínhamos saído da Zona caodaísta e
entrado na dos hoa-haos e ainda se não via nem mesmo uma nuvem de poeira. O
mundo, naquele fim de tarde, estava plano e vazio. A região não sugeria emboscadas, e
contudo, nos campos alagados, a poucos metros da estrada, um ho mem podia enterrar-
se até ao pescoço. Pyle tossiu. Era o sinal de que se aproximava o momento das confi-
dências.
- Phuong está bem de saúde? - perguntou-me.
- Nunca a conheci doente.
Uma torre de vigia afundou-se atrás de nós e uma outra apareceu. Lembravam pesos
numa balança.
- Vi ontem a irmã de Phuong a fazer compras.
- Ela não o convidou para a visitar?
- Por acaso convidou-me.
- Não desiste de ter esperança.
- Esperança?
- De que você se case com Phuong.
- Ela disse-me que você vai partir.
- O mundo está cheio de boateiros.
- Você não seria capaz de me enganar, pois não, Thomas?
- De o enganar?
- Pedi que me transferissem. Não gostaria que ela ficasse aqui só, sem um de nós.

115

- Pensava que você ficava até terminar a sua missão.


- Cheguei à conclusão de que me seria impossível aguentar-me disse-me, sem intenção
de se lastimar.
- Quando é que parte?
- Não sei. Eles acham que dentro de seis meses devo conseguir alguma coisa.
- E aguenta seis meses?
- Não tenho outra solução.
- Que razões é que você apresentou?
- Disse ao adido económico (você conhece-o), disse ao Joe mais ou menos o que se
passava.
- Ele deve achar que pelo facto de eu não consentir que você me roube a rapariga
sou um patife.
- Oh, não, ele tomou o seu partido.
O carro engasgou-se, estremeceu. Creio que já estava assim desde há um minuto
sem que eu me desse conta: estivera a analisar a pergunta inocente de Pyle: «Você não
seria capaz de me enganar?» Pertencia a um mundo psicológico cheio de simplicidade,
um mundo onde se fala de democracia e honra à maneira antiga, emprestando-lhes
significado idêntico ao que aquelas palavras tinham para os nossos pais.
- Acabou-se a gasolina - disse-lhe.
- Acabou-se?
- Havia bastante. Enchi o depósito antes de partir. Aqueles malandros em Tanyin
tiraram-na com um sifão. Eu devia ter reparado. É mesmo coisa deles deixarem-nos a
gasolina suficiente para sairmos da zona.
- Que vamos fazer agora?
- Parece-me que devemos conseguir chegar até à próxima torre de vigia. Talvez que eles
tenham alguma gasolina.
Mas não estávamos em maré de sorte. O carro chegou até quinze metros da torre e
depois parou. Fomos a pé até junto da torre e eu gritei em francês aos guardas que
éramos amigos, que íamos subir. Não era meu desejo apanhar um tiro de uma sentinela
vietnamita. Não obtive resposta. Ninguém espreitou.
- Você tem uma pistola? - disse a Pyle.
- Nunca ando armado.
- Nem eu.
As últimas cores do pôr do Sol, verde e ouro como os arrozais, escoavam-se no
horizonte do mundo plano. A torre, com o fundo cinzento neutro do céu, parecia negra
como tinta. A hora do recolher devia estar próxima. Dei novo grito e ninguém me
respondeu.

116

- Lembra-se por quantas torres passámos desde o último forte?


- Não prestei atenção.
- Nem eu. - O próximo forte devia ficar a pelo menos seis quilómetros: uma hora de
caminhada a pé. Gritei pela terceira vez, e a resposta foi a continuação do silêncio.
- Parece estar deserta - disse. - Vou subir e ver o que se passa. - A bandeira amarela
com riscas vermelhas, já desbotadas numa cor alaranjada, indicava que estávamos fora
do território dos hoa-haos, já em zona do exército vietnamita.
- Não lhe parece que se esperarmos aqui pode passar um automóvel? - disse Pyle.
- Pode, mas eles podem aparecer antes disso.
- E se voltássemos ao carro e acendêssemos as luzes? À laia de sinal.
- Santo Deus! Nem pensar nisso. - A escuridão já era suficiente para tropeçar
enquanto procurava as escadas. O meu pé fez estalar qualquer coisa. Imaginei o ruído
propagando-se através dos arrozais. Quem o ouvira? pyle perdera a nitidez e não era
mais do que uma mancha à beira da estrada. Quando a noite caía era como o cair de
uma pedra.
- Fique aqui até eu chamar - disse-lhe. Perguntei-lhe se o guarda não teria içado a
escada, mas lá a encontrei. Apesar de o inimigo também a poder galgar, representava o
único processo de fuga. Comecei a subir.
Li muitas descrições dos pensamentos que surgem nos momentos de grande medo:
Deus, a família, uma mulher. Admiro-lhes a presença de espírito. Eu em nada pensei,
nem mesmo no alçapão lá no alto. Durante aqueles segundos deixei de existir. Eu era o
medo, nada mais. No cimo da escada bati com a cabeça porque o medo não sabe contar
degraus, nem ouvir, nem ver. Em seguida, a minha cabeça atravessou o chão de terra,
ninguém disparou, e o medo foi-se escoando lentamente.

117
3

Sobre o chão ardia uma pequena lamparina de óleo. Encostados à parede estavam
dois homens acocorados, olhando-me. Um tinha uma metralhadora e outro uma
espingarda, mas mostravam um medo igual ao que eu sentia.
Pareciam colegiais, mas quando se trata de vietnamitas a juventude desaparece como
o sol: são rapazes e logo a seguir transformam-se em velhos. Regozijei-me com que a
cor da minha pele e o formato dos meus olhos fossem por si sós como um passaporte.
Agora nem o medo os faria disparar.
Subi para o pavimento superior enquanto, falando para os tranquilizar, lhes dizia que
tinha o carro na estrada, que se me acabara a gasolina. Que eles talvez tivessem alguma
que eu pudesse comprar-lhes, o que não me pareceu provável logo que dei uma vista de
olhos em redor. Aquela pequena sala redonda nada mais tinha do que uma caixa de
munições para a metralhadora, uma minúscula cama de madeira e duas mochilas
penduradas na parede. Frigideiras com restos de arroz e pauzinhos indicavam que
tinham estado a comer sem grande apetite.
- Nem mesmo que nos chegue para atingirmos o próximo forte? Um dos homens - o que
tinha a espingarda - abanou a cabeça. - Então teremos de passar a noite aqui.
- C'est défendu.
- Por quem?
- O senhor é um civil.
- Não há quem me possa obrigar a ficar sentado na estrada à espera que me cortem o
pescoço.

119

- É francês?
Só um dos homens é que falara. O outro tinha a cabeça virada para o outro lado e fitava
a vigia. Não lhe era possível ver mais do que uma nesga de céu. Parecia escutar e eu
pus-me também a ouvir. O silêncio tornou-se pleno de sons: de ruídos indefiníveis.
Estalar, ranger, qualquer coisa a arrastar-se, uma espécie de tosse e alguém a segredar.
Depois ouvi Pyle. Devia estar no começo da escada.
- Você está bem, Thomas?
- Suba - gritei-lhe. - Ele começou a subir a escada e o soldado silencioso mudou a
posição da metralhadora. Não creio que tivesse ouvido o que nós tínhamos acabado de
dizer: não era mais do que a reacção desajeitada de alguém que se assustou. Percebi que
o medo o paralisara. Gritei-lhe asperamente, à laia de sargento:
- Largue essa arma! - E empreguei aquele género de obscenidades francesas que me
parecia não lhe serem estranhas. Obedeceu-me automaticamente. Pyle entrou na sala.
- Ofereceram-nos este abrigo até ao amanhecer - disse-lhe.
- Óptimo. - A voz de Pyle mostrava ligeira perplexidade. – Um destes tipos não devia
estar de sentinela?
- Preferem não se arriscar a apanhar um tiro. Quem me dera que você tivesse trazido
uma bebida um pouco mais forte do que sumo de lima.
- Para a outra vez creia que não me esquecerei.
- Temos uma longa noite à nossa frente. - Depois de Pyle chegar eu já não ouvia os
ruídos. E os dois soldados pareciam menos tensos.
- O que acontece se os vietcongues os atacam? - perguntou-me Pyle.
- Disparam e depois dão uma corrida. Lê-se isto todas as manhãs no Extrême-Orient:
«Foi ontem à noite temporariamente ocupado pelos vietcongues um posto a sudoeste de
Saigão».
- É uma perspectiva pouco agradável.
- Daqui até Saigão há quarenta torres iguais a esta. Há sempre a probabilidade de o
azar cair sobre outros.
- As sanduíches agora faziam-nos jeito - disse Pyle. - Acho que um destes
tipos devia estar lá fora a ver o que se passa.
- Têm medo que uma bala venha ver o que se passa cá dentro.
Depois de nos termos sentado os vietnamitas pareciam mais calmos. Inspiravam-me
certa compaixão: não era tarefa fácil para dois homens mal treinados ficarem ali
sentados, noite após noite, sem nunca saberem quando os vietcongues iriam atravessar
os arrozais e alcançar a estrada.

120

- Você acha que eles sabem que estão a lutar pela democracia? Devíamos ter aqui o
York Harding para lhes explicar do que se trata - disse a Pyle.
- Você está sempre a fazer troça de York.
- Faço troça de todos aqueles que desperdiçam tanto tempo a escrever sobre coisas que
não existem: conceitos mentais.
- Para eles existem. Você não os tem? Deus, por exemplo?
- Não tenho quaisquer razões que me levem a crer em Deus. E você tem-nas?
- Eu tenho. Sou unitário.
- Em quantos centos de milhões de deuses acreditam os homens? O deus dos próprios
católicos difere consoante estão assustados ou felizes ou famintos.
- Se Deus realmente existe, talvez seja tão vasto que se apresente diferente a cada um
de nós.
- Como o grande Buda em Banguecoque - respondi-lhe. – Não se consegue ver todo
de uma vez. Pelo menos esse fica quieto.
- Parece-me que você está simplesmente a tentar fazer-se forte. Tem de haver uma
coisa em que acredite. Ninguém pode viver sem acreditar em qualquer coisa.
- Oh, não sou discípulo de Berkeley. Acredito que tenho as costas encostadas a
esta parede. Acredito que está ali uma metralhadora.
- Não era a isso que me referia.
- Até acredito nos meus comunicados, o que não acontece com a maior parte dos
seus correspondentes.
- Quer um cigarro?
- Só fumo ópio. Dê um aos guardas. Sempre é bom estarmos de boas relações com
eles. - Pyle levantou-se, acendeu-lhes o cigarro e voltou para o seu lugar.
- Quem me dera que os cigarros tivessem um significado simbólico, como o sal -
disse-lhe.
- Você não tem confiança neles?
- Não existe um único oficial francês a quem agradasse passar a
noite numa destas torres a sós com dois guardas assustados. Há mesmo casos de
pelotões entregarem os seus oficiais. Os vietcongues têm frequentemente mais sorte
com um megafone do que com uma bazooka. E acho que têm razão. Eles também não
acreditam no que quer que seja. Você e outros tipos do seu género tentam fazer uma
guerra com a ajuda de indivíduos que não estão de todo interessados no assunto. - Eles
não querem o comunismo.
121

- Mas querem arroz. Não querem morrer com um tiro. Querem que os dias sejam
todos iguais. Não querem que uns tipos de pele branca lhes digam quais são as
coisas que devem querer.
- Se a Indochina se for...
- Eu conheço o disco. O Sião vai-se. A Malaia vai-se. A Indonésia
vai-se. E o que significa .ir»? Se eu acreditasse no seu Deus e numa vida no além
apostava a harpa que me estaria destinada contra a sua coroa dourada que dentro de
quinhentos anos tanto Nova Iorque como Londres podem deixar de existir, mas que
estes continuarão a cultivar arroz nos campos, a transportar os seus produtos até ao
mercado pendurados nos extremos de uma longa vara que põem ao ombro e a usar
chapéus bicudos. Os rapazes irão sentados nos búfalos. Eu gosto dos búfalos, mas eles
não gostam do nosso cheiro, do cheiro do europeu. E não esqueça: do ponto de vista do
búfalo você também é europeu. - Eles serão forçados a acreditar no que se lhes
disser. Não poderão ter ideias próprias.
- Ter ideias é um luxo. Você acha que um camponês, quando chega à noite à sua
casa feita de lama, pensa em Deus e na democracia?
- Você fala como se em todo o país nada mais houvesse do que camponeses. E a
classe culta? Acha que vai ser feliz?
- Ah, não, não acho. Nós educámo-los segundo as nossas ideias. Ensinámos-lhes
jogos perigosos e é por isso que estamos aqui à espera, na esperança de que nos não
cortem o pescoço. Merecíamos que o fizessem. Quem me dera que o seu amigo York
também aqui estivesse. Gostaria de saber até que ponto apreciaria a situação.
- York Harding é um homem extremamente corajoso. Imagine que na Coreia...
- Não se alistou, pois não? Tinha bilhete de regresso. Quando se tem um bilhete de
regresso a coragem transforma-se num exercício intelectual, tal como as flagelações de
um monge. Até que ponto serei capaz de aguentar? Estes pobres diabos não podem
meter-se num avião e ir para casa. Olá - gritei-lhes - como se chamam vocês? Pensei
que o facto de lhes conhecermos os nomes os aproximaria da nossa conversa. Não me
responderam. Limitaram-se a fazerem-se mais pequenos por detrás das pontas dos
cigarros.
- Pensam que somos franceses - disse.
- Esse é o fulcro da questão - disse Pyle. - Você não devia ser contra York. Devia ser
contra os Franceses. Representam o colonialismo.
- Os ismos e as cracias. Prefiro os factos. Um proprietário de uma

122

plantação de borracha bate nos trabalhadores. Óptimo, sou contra ele. O Ministério das
Colónias não lhe deu ordens nesse sentido. É provável que em França batesse na
mulher. Já vi um padre, tão pobre que nem mesmo tinha uma muda de calças, trabalhar
quinze horas por dia durante uma epidemia de cólera, só comendo arroz e peixe salgado,
dizendo missa com uma xícara velha de madeira. Não creio em Deus e contudo sou pelo
padre. Porque não chamar também a isto colonialismo?
- E é colonialismo. York diz que é muitas vezes culpa dos bons administradores ser
tão fácil acabar com os maus sistemas.
- Há uma coisa que se não pode considerar um conceito mental: não há dúvidas de
que todos os dias morrem uns quantos franceses. Eles não tentam levar esta gente com
meias mentiras, como o fazem os seus políticos e os nossos. Já estive na Índia, Pyle, e
conheço o mal que os liberais conseguem fazer. Nós já não temos um partido liberal: o
liberalismo infectou todo\, os partidos. Somos todos quer conservadores liberais quer
liberais socialistas: todos temos a consciência limpa. Prefiro ser o explorador que luta
pelo que tenta explorar e morre lutando. Olhe para a história de Burma. Nós invadimos-
lhes o país e as diferentes tribos dão-nos apoio. Saímos vitoriosos. Mas, tal como vocês,
os Americanos, nesse tempo não éramos colonialistas. Oh, não. Fazíamos a paz com o
rei e tornávamos a oferecer-lhe a sua província e abandonávamos os nossos aliados,
consentindo que os crucificassem e serrassem a meio. Estavam inocentes. Pensavam
que nós íamos ficar. Mas éramos liberais e não queríamos ficar com uma má acção na
consciência.
- Isso passou-se há muito tempo.
- Faremos o mesmo aqui. Dar-lhes-emos estímulo e deixar-lhes -emos algum
equipamento e uma indústria de brinquedos.
- Que indústria de brinquedos?
- Os seus plásticos.
- Ah, sim, já percebi.
- Não sei porque estou a falar sobre política. É um assunto que
me não interessa e sou repórter. Não estou engagé.
- Não está?
- Só para termos um assunto de conversa. Simplesmente para
conseguirmos passar esta maldita noite. Eu não tomo partido. Ganhe quem ganhar,
continuarei a fazer as minhas reportagens.
- Se eles ganharem, as suas reportagens serão mentiras.
- Há sempre processos e nunca reparei que os nossos jornais tivessem grande
consideração pela verdade.

123

Creio que o facto de estarmos ali os dois sentados a conversar deu ânimo aos dois
soldados: talvez tivessem pensado que o som das nossas vozes brancas - porque as
vozes também têm a sua cor: as amarelas cantam, as negras gargarejam, enquanto as
nossas só falam - daria uma sensação de número e assustasse os vietcongues. Pegaram
nas caçarolas e começaram a comer, agarrando os grãos de arroz com os pauzinhos,
vigiando-nos por sobre o rebordo da caçarola.
- Então a sua opinião é que estamos perdidos.
- O problema não é esse. Não tenho grande desejo de vos ganhar. Gostaria de ver
aqueles dois desgraçados felizes, é tudo. Gostaria que não fossem obrigados a estar
sentados na escuridão, à noite, cheios de medo.
- É preciso lutar pela liberdade.
- Não tenho visto por cá americanos a fazê-lo. E, quanto à liberdade, desconheço o
significado dessa palavra. Pergunte-lhes. - Gritei-lhes em francês. - La liberté, qu'est ce
que c'est la liberté? - Eles conti nuaram a sorver o arroz, olharam-nos, e ficaram
calados.
Pyle disse:
- Você quer que toda a gente seja construída segundo o mesmo molde? Está a discutir
pelo prazer da discussão. É um intelectual. Tal como York ou como eu, você é pela
importância do indivíduo.
- E por que razão só descobrimos isso agora? Há quarenta anos ninguém
falava nesses termos.
- É que nessa altura o indivíduo não estava ameaçado.
- Quer você dizer que nós não estávamos ameaçados. Mas quem
se preocupava com a individualidade do homem no arrozal? E quem se preocupa hoje
em dia? O único homem que os trata como gente é o comissário político. Esse vai até à
choça onde eles vivem, pergunta-lhes como se chamam e ouve-lhes as queixas;
concede-lhes uma hora todos os dias, ensina-os. Não interessa o que lhes ensina: trata-
os como gente, como se valessem alguma coisa. Não vá pelo Oriente papagueando esse
queixume sobre a ameaça ao espirito individual. Acabará por se aperceber de que tomou
o partido errado. Eles representam o indivíduo e nós representamos simplesmente o
soldado n.º 23 987, uma unidade no meio da estratégia global.
- Você não acredita nem sequer em metade do que me tem esta do a dizer.
- Talvez acredite em três quartas partes. Já aqui estou há muito tempo. Sabe? É uma
sorte eu não estar engagé. Porque não me sentiria tentado a fazer certas coisas. Porque
aqui no Oriente... não gosto do

124

Ike. Gosto destes dois que aqui estão. Este país é deles. Que horas são? O meu relógio
parou.
- Pouco passa das vinte e trinta.
- Mais dez horas e podemos pôr-nos a caminho.
- Vai fazer bastante frio - disse Pyle, ao mesmo tempo que estremecia com um arrepio. -
Não estava a contar com isto.
- Há água por todos os lados. Dentro do carro tenho um cobertor. Chegar-nos-á.
- Acha que é seguro?
- Ainda é cedo para os vietcongues.
- Deixe-me ir.
- Estou mais habituado à escuridão.
Quando me pus de pé os dois soldados pararam de comer. Disse-lhes: «le reviens,
tout de suite». Balancei as pernas sobre o alçapão, encontrei a escada e desci. É estranho
quanto uma conversa pode dar tranquilidade, especialmente se os assuntos forem
abstractos: parece tornar normais os ambientes mais estranhos. Já não me sentia assusta-
do: era como se tivesse deixado um quarto para onde voltaria, a fim de continuar uma
conversa. A torre de vigia era a Rua Catinat, o bar do Majestic, ou mesmo um quarto
junto do Gordon Square.
Fiquei junto da torre durante um minuto até conseguir adaptar-me à escuridão. Havia
estrelas, mas não havia luar. O luar lembra-me uma morgue, uma laje de mármore
lavada pela luz fria de uma lâmpada nua. Mas a luz das estrelas é viva e nunca está
quieta. É como se alguém, na vastidão do espaço, tentasse comunicar uma mensagem
amistosa, porque até os nomes das estrelas sugerem amizade. Vénus é qualquer mulher
que se ame, as Ursas são os ursos da nossa infância, e creio que o Cruzeiro do Sul, para
aqueles que, como minha mulher, crêem em Deus, pode representar um hino preferido
ou uma prece junto da cama. Tive um arrepio tal como Pyle tivera há momentos. A
noite estava bastante quente, mas os lençóis de água pouco profunda a cada lado da
estrada davam uma espécie de travo glacial à temperatura. Encaminhei-me para o carro
e durante alguns momentos tive a sensação de que já lá não estava. Fiquei abalado,
embora me lembrasse de que tinha parado a uns quinze metros da torre. Foi-me
impossível caminhar com as costas direitas: dobradas, sentia-me menos vulnerável.
Para tirar o cobertor precisei de abrir o porta-bagagens, e no silêncio da noite o dique
e o ranger assustaram-me. Não me agradava a ideia de representar o único ruído na
noite plena de gente.
125

Com o cobertor às costas baixei a tampa do porta-bagagens com mais cuidado do que a
tinha levantado e, exactamente no momento em que senti fechar-se, o céu do lado de
Saigão acendeu-se e pela estrada fora retumbou o estrondo de uma explosão. Ouvi uma
metralhadora cuspir mais e mais fogo e depois ficar calada, mesmo antes de o retumbar
ter cessado. Pensei: «Há quem já tenha a sua conta», e muito ao longe ouvi vozes
gritarem de dor ou de medo ou mesmo de triunfo. Não sabia porquê, mas pensara
sempre que o ataque viesse de trás, da estrada por onde tínhamos passado, e por
momentos tive a sensação de que não era justo que os vietcongues estivessem entre nós
e Saigão.
Era como se inconscientemente nos estivéssemos a dirigir para o perigo e não a fugir
dele, tal como agora me acontecia ao encaminhar-me de novo para a torre. Ia a passo
porque correr fazia mais barulho, mas o meu corpo queria correr.
Quando cheguei à escada gritei a Pyle: «Sou eu, Fowler». (Mesmo num momento
como aquele não era capaz de usar o meu nome de baptismo quando se tratava dele.) O
ambiente mudara dentro da torre. As caçarolas com arroz estavam novamente no chão;
um dos homens encostara a espingarda à anca e estava sentado, encostado à parede, fi-
tando Pyle, que estava ajoelhado junto da parede oposta, com os olhos fitos na
metralhadora colocada entre ele e o segundo guarda. Dava a impressão de que começara
a rastejar em direcção à arma e fora obrigado a parar. O segundo guarda tinha o braço
estendido para a metralhadora: ninguém lutara ou fizera ameaças. Parecia aquele jogo
de crianças no qual, se somos apanhados a mudar de posição, nos mandam de novo para
o coito a fim de recomeçarmos.
- Que aconteceu? - perguntei.
Os dois guardas olharam para mim e Pyle precipitou-se, arrastando a metralhadora para
o seu lado.
- A que jogo se entregam vocês?
- Se eles vierem não tenho confiança nele com a metralhadora na mão.
- Já trabalhou com uma destas metralhadoras?
- Nunca.
- Óptimo. Nem eu. Espero que esteja carregada. Nunca seríamos capazes de a carregar.
Os guardas tinham aceitado a perda da metralhadora com resignação. O que
empunhava a espingarda baixou-a e colocou-a sobre as coxas; o outro acocorou-se de
encontro à parede e fechou os olhos, como uma criança que se julga invisível na
escuridão. Muito ao longe

126

ouviu-se novamente a metralhadora: três rajadas e depois silêncio. O segundo guarda


fechou os olhos com mais força.
- Eles desconhecem que nós não sabemos servir-nos dela – disse Pyle.
- Mas eles estão do nosso lado.
- Julguei que você não tinha lado.
- Touché. Quem me dera que os vietcongues julgassem o mesmo. - Sabe o que se está a
passar lá ao longe?
Eu citei mais uma vez o Extrême-Orient de amanhã: «Ontem à noite os rebeldes do
Vietminh atacaram e capturaram temporariamente um posto a cinquenta quilómetros de
Saigão».
- Você acha que estaríamos mais seguros nos campos?
- Ficaríamos muito molhados.
- Você não parece preocupado.
- Estou cheio de medo, mas as coisas podiam ser piores. Não costumam atacar mais
do que três postos na mesma noite. A probabilidade de não sermos atacados aumentou.
- Que é isto?
Era o ruído de um veículo pesado que se aproximava, dirigindo-se para Saigão. Fui
espreitar à vigia e vi passar um tanque.
- É a patrulha - disse.
O canhão deslocava-se de um lado para o outro na torre blindada. Apetecia-me
chamá-los, mas para quê? Não tinham espaço lá dentro para dois civis.
Quando passaram o chão de terra estremeceu, e depois desapareceram. Olhei para o
relógio: vinte horas e cinquenta e um minutos. Fiquei à espera, esforçando-me por ver
novamente as horas quando a luz batesse. Era como estar a avaliar a distância da faísca
pelo tempo que levava até se ouvir o trovão. Passaram-se quase quatro minutos até que
o canhão disparasse. Pareceu-me distinguir a resposta de uma bazooka e depois fez-se
novamente silêncio.
- Quando eles voltarem podíamos pedir-lhes uma boleia até ao acampamento - disse-
me Pyle.
O chão estremeceu com uma explosão.
- Se porventura voltarem - disse-lhe. - Isto pareceu-me uma mina. - Quando olhei
novamente para o relógio já passava das vinte e uma e quinze e o tanque não regressara.
Não se ouvira mais fogo.
Sentei-me ao lado de Pyle e estendi as pernas.
- Devemos tentar dormir - disse-lhe. - Nada mais podemos fazer.

127

- Não me sinto feliz com estes guardas - disse Pyle.


- Eles são inofensivos. A menos que apareçam os vietcongues.
- Ponha a metralhadora debaixo da perna, como medida de segurança.
Fechei os olhos e tentei imaginar que estava noutro sítio: sentado num daqueles
compartimentos de 4.ª classe que havia nos comboios alemães antes de Hitler subir ao
Poder, no tempo em que era novo e conseguia passar uma noite sentado sem sentir
melancolia, em que os sonhos do acordar estavam cheios de esperança e não de medo.
Era a hora a que Phuong costumava preparar-me os cachimbos. Teria uma carta à minha
espera? Tinha esperança que não, porque sabia o que a carta diria e enquanto não
chegasse eu sempre podia sonhar com o impossível.
- Está a dormir? - perguntou-me Pyle.
-Não.
- Não acha melhor içarmos a escada?
- Começo a perceber a razão por que eles não a içam. É a nossa única saída.
- Quem me dera que o tanque voltasse.
- Já não volta.
Tentei olhar para o relógio em intervalos espaçados, mas os intervalos nunca eram tão
espaçados como me pareciam. Vinte e uma e quarenta, vinte e duas e cinco, e dez, e
trinta e dois, e quarenta e um.
- Está acordado? - perguntei a Pyle.
- Estou.
- Em que está a pensar?
Ele hesitou.
- Em Phuong.
- E então?
- Estava a pensar no que ela estará a fazer.
- Posso dizer-lho. Já chegou à conclusão de que vou passar a noite em Tanyin. Não é a
primeira vez que acontece. Está deitada na cama e tem um pau de goma a arder para
afastar os mosquitos. Folheia um velho Paris Match. Tal como os Franceses, tem uma
paixão pela família real.
- Deve ser maravilhoso saber tudo - disse ele com um ar triste, e eu imaginei, no
escuro, a expressão dos seus olhos meigos de cão. Deviam ter-lhe dado o nome de Fido,
e não de Alden.
- Não posso saber ao certo, mas é muito provável que tenha acertado. Quando nada
podemos fazer não vale a pena ter-se ciúmes. «Não há barricadas para uma barriga.»

128

- Por vezes detesto a maneira como você fala, Thomas. Sabe como eu a vejo? Vejo-a
fresca como uma flor.
- Pobre flor. Com tanta erva daninha em redor.
- Onde a conheceu?
- Quando dançava no Grand Monde.
- Dançava?! - exclamou, como se a ideia lhe fosse dolorosa. - É uma profissão
perfeitamente respeitável. Não é razão para que fique preocupado.
- Você tem tanta experiência da vida, Thomas...
- Tenho muitos anos. Quando chegar à minha idade...
- Nunca tive uma rapariga. Não como deve ser. Aquilo a que se chama uma experiência.
- Parece-me que vocês desperdiçam grande parte da vossa energia a assobiar.
- Nunca disse isto a ninguém.
- Você é novo. Não é coisa que o deva envergonhar.
- Você já teve muitas mulheres, Fowler?
- Não sei bem qual é o significado de muitas. Só quatro mulheres tiveram alguma
importância na minha vida e eu na vida delas. As outras quarenta e tantas... não
percebemos por que o fizemos. Por uma noção de higiene e por obrigação social,
ambas erradas.
- Você acha que são erradas?
- Gostaria de recuperar essas noites. Continuo apaixonado, Pyle, e não passo de uma
casa em ruínas. Oh, também houve orgulho. É preciso muito tempo para já não nos
sentirmos orgulhosos com o facto de nos desejarem. E quando olhamos em nossa volta
e vimos todos aqueles que também são desejados, sabe Deus porque sentimos orgulho.
- Você não acha que eu sou anormal, pois não, Thomas?
- Não, não acho, Pyle.
- Não significa que eu não tenha necessidade, Thomas, exactamente como os outros.
Não sou... esquisito.
- Não é tão necessário como se diz. Há uma grande dose de autoconvencimento. Eu,
por exemplo, sei que só preciso de Phuong. Mas éuma coisa que se aprende com o
tempo. Se ela não existisse eu era ca paz de passar um ano inteiro sem uma noite de
insónia.
- Mas ela existe - disse-me, tão baixo que mal consegui ouvi-lo. - Começamos por ser
promíscuos e acabamos, como os nossos avós, fiéis a uma mulher.
- Devemos parecer muito ingénuos quando começamos pelo fim...
129

-Não.
- Isto não vem no Relatório Kinsey.
- Por isso. mesmo não parece ingénuo.
- Sabe, Thomas, é bom estar aqui a falar consigo sobre estes assuntos. Já nem o perigo
me parece tão grande.
- Durante a guerra tínhamos a mesma sensação quando chegava um período de
calma. Mas acabavam sempre por voltar.
- Se alguém lhe perguntasse qual tinha sido a sua experiência sexual mais profunda,
que responderia você?
Era uma pergunta a que eu sabia responder: estar deitado de manhã cedo observando
uma mulher com roupão vermelho a escovar o cabelo.
- O Joe disse-me que a dele foi estar na Cama com uma chinesa e uma negra ao
mesmo tempo.
- Quando tinha vinte anos talvez também tivesse pensado assim.
- O Joe tem cinquenta.
- Pergunto-me que idade mental lhe atribuem na guerra.
- Phuong era a rapariga com o roupão vermelho?
Gostaria que ele não me tivesse feito esta pergunta.
- Não, não era, essa mulher foi há mais tempo. Quando deixei a minha mulher.
- E que aconteceu?
- Também a deixei.
- Porquê?
- E porque não? Quando amamos comportamo-nos como uns idiotas. Tinha o pavor de a
perder. Pareceu-me que estava diferente. Não sei se realmente o estava, mas não
consegui suportar a incerteza por mais tempo. Precipitei-me para um fim tal como um
covarde se precipita para o inimigo e ganha uma batalha. Queria acabar com a morte.
- Com a morte?
- Era uma espécie de morte. Depois vim para o Oriente.
- E conheceu Phuong?
-Sim.
- Mas com Phuong não tem a mesma sensação?
- Não é igual. A outra amava-me. Eu receava perder o amor. Agora tenho simplesmente
medo de perder Phuong. - Por que razão teria eu dito uma tal coisa? Ele não
precisava que o encorajasse.
- Mas ela gosta de si, não gosta?
- Não da mesma maneira que a outra. Não está na sua índole. Chamar-lhes crianças não
passa de um cliché. Mas há um ponto em

130

que são crianças. Elas gostam de nós pela bondade, a segurança, os presentes que lhes
oferecemos. Odeiam-nos quando lhes batemos ou cometemos uma injustiça. Não
percebem que se possa entrar numa sala e ficar apaixonado por uma desconhecida. Para
um homem que já não é novo, Pyle, traz segurança: só nos fugirá de casa se a casa não
for feliz.
Não tivera intenção de o magoar. Percebi que o fizera quando me disse, tentando
abafar a cólera:
- Pode acontecer que ela prefira maior segurança ou mais bondade.
- Talvez.
- E você não receia que isto se dê?
- Não do mesmo modo que receava a outra.
- Você gosta dela?
- Oh, sim, Pyle, gosto. Mas da outra maneira só gostei uma vez.
- Apesar das quarenta e tantas mulheres - disse-me exaltadamente.
- Estou certo de que fiquei abaixo da média apresentada por Kinser. Sabe, Pyle? As
mulheres não gostam de virgens. E não estou certo de que «nós» gostemos, a menos que
sejamos um caso patológico.
- O que eu disse não significa que seja virgem.
As minhas conversas com Pyle tomavam sempre um rumo grotesco. Seria a
sinceridade que as fazia sair dos caminhos usuais? Na conversa dele nunca havia
desvios.
- Podemos ter tido cem mulheres e continuarmos a ser virgens, Pyle. A maior parte
dos vossos G.I. *1, que durante a guerra foram enforcados por violação, era virgem.
Nós, na Europa, não temos tantos. E regozijo-me porque assim seja. Fazem muito mal.
- Não consigo percebê-lo, Thomas.
- Não vale a pena explicar-lhe. E já estou maçado com o assunto. Cheguei à idade
em que o sexo não tem a mesma importância que a velhice ou a morte. Acordo
preocupado com estes problemas e não com o corpo de uma mulher. Quero
simplesmente não viver só durante a década que me resta, e é tudo. Não sei em que iria
pensar durante todo o dia. Prefiro ter uma mulher de quem não goste. Mas se Phuong
me deixasse, teria porventura energia para encontrar outra?
- Se ela não significa mais do que isso para si...
- Mais do que isto? Espere que chegue o momento em que você

*1 Soldado americano.

131

tenha medo de viver sozinho durante dez anos, tendo à sua frente uma casa de saúde.
Vai ver que correrá numa direcção qualquer, fugirá mesmo da rapariga de roupão
vermelho na ânsia de encontrar alguém, quem quer que seja, que o não abandone até
você morrer.
- Então porque não volta para a sua mulher?
- Não é fácil viver-se com alguém que lesámos.
Ouviu-se uma longa rajada de metralhadora. Não devia ter sido a mais de dois
quilómetros. Talvez uma sentinela nervosa disparando para as sombras. Talvez tivesse
começado novo ataque. Assim fosse um ataque: aumentariam as possibilidades de
sermos bem sucedidos.
- Está assustado, Thomas?
- Claro que estou. Completamente assustado. Mas por raciocínio sei que é melhor
morrer desta maneira. Foi por isso que vim para o Oriente. A morte fica connosco.
Olhei para o relógio. Já passava das vinte e três horas. Uma noite de oito horas e
depois podíamos sossegar. Disse:
- Parece-me que já falámos de quase tudo, exceptuando de Deus. É melhor deixá-lo
para a madrugada.
- Você não é crente, pois não?
-Não.
- Para mim, sem Ele nada teria sentido.
- E para mim, com Ele nada o tem.
- Li uma vez um livro...
Nunca soube que livro Pyle lera (presumivelmente não era de York Harding ou de
Shakespeare ou uma antologia de versos contemporâneos ou a Fisiologia do
Casamento. Talvez fosse o Triunfo da Vida). Pela torre entrou uma voz. Parecia falar
das sombras, através do alçapão: uma voz cava e megafónica, que dizia qualquer
coisa em vietnamita.
- Começou a complicação - disse a Pyle.
Os dois guardas escutavam, com as caras viradas para a abertura na parede e as bocas
escancaradas.
- O que aconteceu? - perguntou Pyle.
Caminhar para a abertura era como que atravessar a voz. Olhei rapidamente para fora:
nada vi. Nem conseguia distinguir a estrada, e quando tornei a olhar para dentro da sala
a carabina apontava não sei bem se para mim se para a abertura. Mas quando me
desloquei ao longo da muralha a carabina moveu-se, hesitou, manteve-me coberto. A
voz continuou a repetir a mesma coisa. Sentei-me e ele baixou a carabina.
- Que está ele a dizer? - perguntou Pyle.

132

- Não sei. Provavelmente encontraram o carro e estão a dizer a estes tipos que nos
entreguem. É melhor pegar nessa metralhadora antes que tomem uma decisão.
- Ele dispara.
- Ainda não decidiu. Quando decidir disparará, aconteça o que acontecer.
Pyle mudou a posição de uma perna e a carabina subiu.
- Vou andar ao longo da muralha - disse a Pyle. - Quando vir que ele desvia os olhos,
pegue na metralhadora.
Quando me levantei a Voz parou de falar: o silêncio fez-me dar um pulo. Pyle disse
asperamente:
- Largue a carabina. - Só tive tempo de pensar se a metralhadora estaria carregada
(não me dera ao cuidado de verificar) e o homem largou a carabina.
Atravessei a sala e apanhei-a do chão. Depois a voz recomeçou; pareceu-me que não
houvera alteração nem numa só sílaba. Talvez usassem um disco. Quando terminaria o
ultimato?
- E agora? - perguntou-me Pyle, como um aluno que assiste a uma demonstração no
laboratório. Dava a impressão de que nada daquilo era com ele.
- Talvez uma bazooka ou talvez um vietcongue.
Pyle examinou a metralhadora.
- Não me parece que isto tenha qualquer mistério. Acha que dispare uma rajada?
- Não, deixe-os hesitar. Preferem ocupar o posto sem haver fogo e dá-nos algum
tempo. É melhor sairmos daqui o mais rapidamente possível.
- Podem estar à nossa espera lá em baixo.
- Podem.
Os dois homens observaram-nos. Escrevo homens, mas duvido de que os dois
conseguissem somar quarenta anos.
- E estes? - perguntou Pyle, e depois acrescentou sem rodeios, chocantemente: -
Acha que os mate?
Talvez quisesse experimentar a metralhadora.
- Não nos fizeram mal.
- Queriam entregar-nos.
- E porque não? Nada temos a ver com isso. Esta terra é deles. Descarreguei a carabina
e pousei-a no chão.
- Você não lhes vai deixar isso, pois não? - perguntou-me Pyle.
- Estou velho de mais para correr com uma carabina na mão. E esta guerra não é minha.
Vamos.

133

A guerra não era minha, mas gostaria que aqueles homens mergulhados na escuridão
o soubessem. Apaguei a lamparina e pendurei as pernas no alçapão, procurando a
escada. Ouvia os guardas segredar na sua linguagem cantante.
- Corra em frente - disse a Pyle - em direcção ao arroz. Lembre-se de que há água.
Com que profundidade, não sei. Está pronto?
- Estou.
- Obrigado pela companhia. - É sempre um prazer.
Ouvi os guardas mexerem-se: perguntei-me se teriam facas. A voz megafónica falou
peremptoriamente, como que a oferecer-nos uma última possibilidade. Na escuridão,
sob os nossos pés, houve qualquer coisa que se deslocou suavemente; podia ser um
rato. Hesitei.
- Quem me dera ter qualquer coisa para beber - segredei. - Vamos.
Alguém subia a escada. Eu nada ouvia, mas a escadaria tremia sob os meus pés.
- Porque não avança - perguntou-me Pyle.
Não sei por que razão aquela aproximação silenciosa e furtiva me sugeria uma coisa. Só
um homem seria capaz de subir a escada, e no entanto não me era possível pensar que
fosse um homem como eu. Era como se um animal avançasse para matar, muito
silenciosamente. e com a desumanidade de um outro tipo de ser vivo. A escada tremia e
tremia e eu imaginei que lhe via os olhos a brilhar. Subitamente, não consegui suportar
a situação por mais tempo e dei um salto e nada mais havia que o chão esponjoso, que
me prendeu o tornozelo e o torceu como se fosse uma mão. Ouvi o Pyle descer a escada;
percebi que me portara como um pobre e assustado idiota, que nem mesmo era capaz de
reconhecer a sua própria tremura. E eu, que sempre pensara ser corajoso e não ter
imaginação, tal como competia a um observador fiel e a um bom repórter... Pus-me de
pé e quase caí com a dor. Encaminhei-me para o arrozal, arrastando o pé, e ouvi o Pyle
seguir-me. Depois ouviu-se a explosão da bazooka e dei novamente com a cara no chão.

134
4

- Está ferido? - perguntou-me Pyle.


- Bati com a perna. Nada de grave.
- Então vamos - incitou-me Pyle.
Conseguia vê-lo porque estava coberto com uma poeira branca muito fina. Depois
desapareceu, como uma fita no ecrã quando se fundem as lâmpadas do projector, mas a
parte sonora continua. Ajoelhei-me com cautela sobre o joelho bom e tentei levantar-me
sem fazer força com o tornozelo esquerdo, mas fui de novo ao chão, ofegante com a dor.
Não se tratava do tornozelo: acontecera qualquer coisa à perna esquerda. Não estava
preocupado: a dor aniquilava a preocupação. Fiquei muito quieto no chão, na esperança
de que a dor não viesse novamente castigar-me. Contive a respiração, como se faz com
as dores de dentes. Não pensei nos vietcongues, que dentro em breve fariam uma busca
às ruínas da torre. Houve nova explosão: estavam a assegurar-se de que o campo estaria
livre antes de se aproximarem.
Quando a dor diminuiu pensei que matar alguns seres humanos custa muito dinheiro: é
incomparavelmente mais barato matar cavalos. Não devia estar absolutamente
consciente, porque comecei a pensar que entrara por engano no pátio de um esfola dor
de cavalos, o terror da minha infância na pequena cidade onde nasci. Pensávamos
sempre que ouvíamos os cavalos relinchar de medo e depois a explosão do matador sem
dor. Já passara algum tempo e a dor não se repetira. Eu estava deitado, imóvel, sustendo
a respiração, o que me parecia muito importante.

135

Perguntei-me, com bastante lucidez, se não seria preferível arrastar-me na direcção dos
campos. Podia acontecer que os vietcongues não tivessem tempo para procurar em sítios
mais distantes. Já devia haver nova patrulha tentando localizar o primeiro tanque. Mas
receava mais! a dor do que os vietcongues e deixei-me ficar quieto. Não ouvia Pyle.
Devia ter alcançado os campos. Depois ouvi chorar. O pranto vinha do lado da torre,
daquilo que fora a torre. Não parecia o choro de um homem: parecia o choro de uma
criança com medo da escuridão, mas receando gritar. Pensei que devia ser um dos dois
rapazes: talvez o companheiro tivesse morrido. Talvez assim os vietcongues não lhe
cortassem o pescoço. As guerras não se deviam fazer com crianças, e veio-me à
memória um pequeno corpo enroscado numa vala. Fechei os olhos. Ajudava-me a
afastar a dor. E fiquei à espera. Uma voz gritou qualquer coisa que não compreendi.
Quase senti que me seria possível dormir na escuridão, solidão e ausência de dor.
Então ouvi Pyle segredar-me:
- Thomas, Thomas.
Aprendera rapidamente o processo de andar sem fazer ruído: não o ouvira regressar.
- Vá-se embora - segredei-lhe em resposta.
Ele deu comigo e deitou-se a todo o comprimento a meu lado.
- Porque não veio? Está ferido?
- É a perna. Parece-me que a parti.
- Foi uma bala?
- Não, não. Foi um tronco ou uma pedra. Qualquer coisa lá na torre. Não sangra.
- Tem de fazer um esforço.
- Vá-se embora, Pyle. Eu não quero ir, dói-me muito.
- Qual é a perna?
- A esquerda.
Arrastou-se até junto de mim e içou-me o braço até ao seu ombro. Apetecia-me
chorar como o rapaz da torre e depois fiquei zangado, mas era difícil expressar zanga
em segredo.
- Com um raio, Pyle, deixe-me em paz. Quero ficar aqui.
- Mas não pode.
Puxava-me para cima do seu ombro e a dor era insuportável.
- Não arme em herói. Eu não quero ir.
- Você tem de dar uma ajuda ou apanhar-nos-ão a ambos.
- Você...
- Cale-se. Podem ouvi-lo.

136

Chorava de vexame. Era impossível empregar uma palavra mais forte: Dependurei-
me, encostado a ele, e fiquei com a perna esquerda a balouçar. Éramos como que
concorrentes desastrados numa corrida de três pernas e nunca teríamos a mínima
possibilidade de êxito se uma metralhadora não tivesse começado a fazer fogo, em
rajadas curtas e rápidas, para os lados da estrada, na direcção da próxima torre. Podia
ser uma patrulha a aproximar-se, podia ser que tivessem completado a conta normal das
três torres a destruir. Cobria o ruído da nossa fuga, lenta e desajeitada.
Não estou certo de ter estado sempre consciente: creio que durante os últimos dez
metros Pyle deve ter suportado quase todo o meu peso.
- Cuidado agora. Vamos entrar - disse Pyle.
À nossa volta o arroz seco sussurrava e a lama baixou e depois tornou a subir.
Quando Pyle parou a água chegava-nos à cintura. Estava ofegante e qualquer coisa na
sua respiração fazia lembrar uma rã gigante.
- Desculpe - disse-lhe.
- Não podia abandoná-lo.
A primeira sensação foi de alívio: a água e a lama sustinham-me a perna, meiga e
firmemente, como uma ligadura, mas dentro em breve começámos a bater os dentes de
frio. Perguntei-me se já passaria da meia-noite: se os vietcongues não viessem podíamos
ter mais umas seis horas de tormento.
- Pode mudar ligeiramente de posição durante uns minutos? pediu-me Pyle.
Voltou-me a irritação injusta, que só a dor conseguia justificar. Não pedira que me
salvassem ou que me adiassem a morte por um processo tão doloroso. Pensei com
nostalgia na terra seca e dura onde estivera deitado. Fiquei como um guindaste, sobre
um só pé, esforçando-me por aliviar Pyle, e quando me mexi os pés de arroz fizeram-me
cócegas, arranharam-me e estalaram.
- Você 'salvou-me a vida... - disse a Pyle, e ele tossiu para dar a resposta
convencional, mas eu continuei: - ...para que eu venha morrer aqui. Prefiro terra seca.
- É melhor não falar - disse Pyle, como se se dirigisse a um inválido. - Precisamos de
poupar as forças.
- Quem lhe pediu que me salvasse a vida? Vim para o Oriente para morrer. Só a sua
maldita impertinência...
Cambaleei na lama e Pyle levantou-me o braço e colocou-o sobre o seu ombro.

137

- Acalme-se - disse-me.
- Você tem visto muitos filmes de guerra. Nós não pertencemos à marinha e você não
pode ser condecorado com uma medalha.
- Chiú, chiú!
Ouvi passos vindos do extremo do campo. A metralhadora na estrada deixou de fazer
fogo e os únicos ruídos eram os passos e o ligeiro sussurrar do arroz cada vez que
respirávamos. Depois os passos estacaram: tive a sensação de que estavam do outro
lado de uma sala. Senti a mão de Pyle empurrar-me lentamente, do meu lado bom, para
baixo; afundámo-nos na lama, muito lentamente, por forma a que o arroz se agitasse o
menos possível. Dobrado sobre um só joelho, com a cabeça toda para trás, mal
conseguia manter a boca 'fora da água. Voltei a sentir a dor no joelho e pensei: «Se
desmaio afogo-me». Sempre detestara e temera a ideia de morrer afogado. Por que
razão não nos é dado podermos escolher a nossa morte?
Agora não se ouvia qualquer ruído; talvez eles estivessem a dez metros de nós e não
esperassem mais do que um murmúrio, um tossir, um espirro... «Oh, Santo Deus»,
pensei, «vou espirrar». Se ele me tivesse deixado sozinho eu só teria a responsabilidade
da minha própria vida e não da dele. E ele queria viver. Premi o lábio superior com três
dedos, como me ensinaram em criança quando brincávamos às escondidas, mas o
espirro continuou pronto a rebentar, e os outros, silenciosos, no meio da escuridão,
esperavam por ele. Estava a aproximar-se, a aproximar-se, e ei-lo...
Mas no mesmo instante em que espirrei os vietcongues lançaram uma rajada de
metralhadora, traçando uma linha de fogo no arrozal, que envolveu o meu espirro no
barulho estridente semelhante ao de uma máquina de perfuração de aço. Respirei fundo
e mergulhei; instintivamente evitámos a coisa amada: temos coquetismos com a morte
idênticos ao da mulher que exige ser violada pelo amante. O arroz açoutou-nos as
cabeças e a tempestade passou. Emergimos simultaneamente para respirarmos e
ouvimos os passos afastarem-se em direcção à torre.
- Estamos salvos - disse Pyle.
No meio do meu sofrimento pensei se estaríamos nós salvos. À minha frente a velhice, a
cadeira de redactor, a solidão. E, quanto a ele, sabe-se agora que falou prematuramente.
Preparámo-nos então para a vigia ao frio. Na estrada para Tanyin acendeu-se uma
fogueira. Ardia alegremente, como que a celebrar um acontecimento.
- Lá vai o meu carro - disse a Pyle.

138

- É uma pena, Thomas. Detesto ver a destruição de qualquer coisa.


O depósito devia ter simplesmente a gasolina suficiente para o incendiarem. Você
tem tanto frio como eu, Pyle?
- Não posso ter mais frio.
- E se saíssemos daqui e nos deitássemos na estrada ao comprido?
- Esperemos mais meia hora.
- É você quem suporta o fardo.
- Eu aguento. sou novo.
A sua intenção fora dizer uma graça, mas acertou-me como chapada de lama fria. Eu
tencionara pedir-lhe desculpa pela forma como a minha dor se exteriorizara, mas ela
manifestou-se novamente.
- É certo que você é novo. É-lhe ainda possível esperar, não é verdade?
- Não percebo onde quer chegar, Thomas.
Passáramos juntos noites que mais pareciam semanas e ele conti nuava a
compreender-me tão mal como o francês.
- Teria sido preferível que você me tivesse deixado lá ficar - disse-lhe.
- Nunca conseguiria encarar Phuong.
E o nome dela ficou a pairar, como o lanço de um banqueiro. Eu peguei onde ele
largou:
- Então foi por ela que você o fez?
O que tornava mais absurdo e humilhante o meu ciúme era o facto de ser necessário
exprimi-lo no mais ténue murmúrio: não tinha entonação, e o ciúme gosta de
histriónica.
- Você pensa que a vai conquistar com estes actos heróicos. Mas está completamente
enganado. Se eu tivesse morrido ela pertencer-lhe-ia.
- Não era isso que eu queria dizer - disse-me Pyle. – Quando se está apaixonado
deseja-se ser justo. É tudo.
E eu pensei que era verdade, mas não com a intenção inocente que ele emprestara à
frase. Estar apaixonado é ver-se a si próprio como a outra pessoa nos vê, é estar-se
enamorado de uma imagem nossa, falsificada e engrandecida. Em coisas de amor somos
incapazes de honradez: o acto de coragem nada mais significa do que representar um
papel para uma audiência de dois espectadores. Era possível que eu já não estivesse
apaixonado, mas ainda me recordava.
- Se eu estivesse no seu lugar tê-lo-ia abandonado.
- Oh, não, você não seria capaz de o fazer, Thomas.

139

E acrescentou, com um ar de complacência insuportável:


- Conheço-o melhor do que você a si próprio.
Furioso, tentei afastar-me dele e carregar com o meu próprio peso, mas a dor voltou a
bramir como um comboio num túnel e encostei-me a ele com mais força antes de
começar a afundar-me na água. Ele segurou-me com os dois braços e depois, centímetro
por centímetro, começou a arrastar-me em direcção à berma da estrada.
Quando chegámos deitou-me ao comprido na lama pouco profunda do extremo do
campo, e logo que a dor principiou a afastar-se e eu abri os olhos e deixei de suster a
respiração tudo o que os meus olhos abrangiam era a complicada cifra das constelações:
uma cifra estrangeira, que me era impossível ler. As estrelas não eram as do meu país. A
cara dele deslizou sobre a minha, fazendo desaparecer as estrelas.
- Vou atingir a estrada à procura de uma patrulha, Thomas.
- Não seja parvo. Matá-lo-ão antes mesmo de saberem de quem se trata. Isso se os
vietcongues o não apanharem.
- É a nossa única solução. Você não pode ficar aí na água mais seis horas.
- Então ponha-me na estrada.
- Acha que a metralhadora lhe pode ser útil? - perguntou-me com um ar de dúvida.
- Claro que não pode. Se a todo o preço quer ser um herói, pelo menos caminhe
lentamente por entre o arroz.
- Nesse caso a patrulha podia passar e eu não ter tempo de a chamar.
- Você não fala francês.
- Gritarei Je suis français. Não se preocupe, Thomas. Terei muito cuidado.
Antes que eu tivesse tempo para lhe responder já ele estava fora do alcance do
segredar. Avançava com o mínimo de ruído que lhe era possível, parando
frequentemente. Via-o à luz do carro em chamas, mas não se ouviu qualquer detonação;
depois, passou para lá das chamas e então o silêncio tomou o lugar das pegadas. Ah,
sim, ele mostrava a sua cautela como a mostrara quando descera o rio até Phat Diem, a
cautela de um herói numa história de aventuras para rapazes, de um herói tão orgulhoso
da sua cautela como se ela fosse um emblema de escuteiro e absolutamente inconsciente
do absurdo e irreal da sua aventura.
Deitado, pus-me à escuta dos tiros dos vietcongues ou de uma patrulha de
legionários, mas nada ouvi. Ser-lhe-ia precisa uma hora ou

140

mais para alcançar uma torre, se porventura conseguisse lá chegar. Voltei a cabeça de
modo a conseguir ver os restos da nossa torre, um montão de lama, de bambu e de
escoras que parecia afundar-se à medida que se afundavam as chamas do carro. Quando
a dor desaparecia vinha a paz: uma espécie de dia do armistício dos nervos. Apetecia-
me cantar. Pensei como era estranho que os homens da minha profissão só dedicassem
duas linhas a uma noite como esta. Não passava de uma noite igual a todas as outras: o
único elemento estranho era eu. Depois ouvi, vindo do que restava da torre, um choro
baixo. Um dos guardas devia ainda estar vivo.
Pensei: «Pobre diabo, se o nosso carro não tivesse parado junto do seu posto ele ter-
se-ia rendido, como quase todos o faziam, ou fugido logo que se ouvira o megafone pela
primeira vez. Mas nós estávamos lá e eles não se atreveram a fazer o mínimo
movimento. Quando partimos era tarde de mais. A responsabilidade daquela voz que
chorava na escuridão cabia-me: orgulhara-me do meu desprendimento, de não fazer
parte desta guerra, mas tinha tanta responsabilidade naqueles ferimentos como se tivesse
feito fogo com a metralhadora, como Pyle quisera fazer.»
Fiz um esforço para me içar até à estrada. Queria reunir-me àquele homem. Tudo
quanto podia fazer era compartilhar da sua dor. Mas a minha própria dor empurrava-me
para trás. Deixei de o ouvir. Fiquei quieto, só conseguindo ouvir a minha dor, pulsando
como um coração imenso. Contive a respiração e fiz uma prece ao Deus no qual não
acreditava: «Fazei com que eu morra ou desmaie. Fazei com que morra ou desmaie». E
então creio que desmaiei e nada mais senti até sonhar que as pálpebras se me haviam
gelado e pegado uma à outra e que alguém introduzira um escopro para as separar e eu
queria prevenir esse alguém que não danificasse o globo ocular, mas não conseguia falar
e o escopro entrou e vi brilhar à minha frente uma lanterna de algibeira.
- Estamos salvos, Thomas - disse-me pyle.
Lembro-me disto mas não me recordo do que mais tarde Pyle descreveu aos outros:
que eu apontei com o braço numa direcção errada e lhes disse que havia na torre um
homem de que era preciso que eles se ocupassem. Fosse como fosse, eu nunca seria
capaz de fazer uma suposição tão sentimental como a de Pyle. Conheço-me e sei até que
ponto sou egoísta. Não consigo sentir-me à vontade (e sentir-me à vontade é o que mais
ambiciono) se alguém sofre e eu vejo ou ouço ou sinto o sofrimento. Os inocentes, por
vezes, pensam erradamente que esta minha atitude representa ausência de egoísmo,
quando tudo

141

o que eu faço é sacrificar um pequeno bem por um bem maior (neste! caso deixar para
mais tarde cuidarem do meu ferimento), por uma paz de espírito, num momento em que
podia só pensar em mim e não nos outros.
Eles voltaram e disseram-me que o rapaz estava morto. E fiquei feliz. A própria dor
foi desaparecendo depois da ferroada da injecção de morfina. .
142
Capítulo III

Subi lentamente as escadas do meu prédio na Rua Catinat, parando no primeiro


patamar para descansar. As velhas, como sempre, tagarelavam, acocoradas no chão à
porta do urinol, o destino marcado nas rugas da cara tal como as outras pessoas o têm
marcado na palma da mão. Quando passei ficaram silenciosas e pensei no que me
poderiam contar, se eu conhecesse o seu idioma, sobre o que se passara enquanto eu
estivera no hospital da Legião, na estrada para Tanyin. Perdera as chaves, quer na torre
quer nos campos, mas mandara um recado a Phuong, que ela já devia ter recebido, se
porventura ainda estivesse em casa. Este «se» representava a medida da minha
incerteza. Não soubera notícias dela no hospital, mas Phuong tinha dificuldade em
escrever francês e eu não sabia ler vietnamita. Bati à porta, que se abriu imediatamente,
e pareceu-me que tudo estava na mesma. Observei-a atentamente enquanto ela me
perguntava como me sentia, tocava na perna estilhaça da e me oferecia o ombro para me
apoiar, como se alguém pudesse apoiar-se com segurança a uma planta tão tenra.
- Como é bom voltar para casa - disse eu.
Ela confessou-me que tivera saudades minhas. Era isto que eu queria ouvir: dizia-me
sempre o que me era grato ao ouvido tal como os cólis ao responderem às nossas
perguntas, a não ser por acidente. E agora eu aguardava o momento do acidente.
- Divertiste-te?
- Oh, passei muito tempo com a minha irmã. Ela arranjou um emprego nos Americanos.

145

- Ah, sim? O Pyle ajudou a arranjá-lo?


- Não foi o Pyle. Foi o Joe.
- Quem é esse Joe?
- Tu sabes quem é. O adido económico.
- Ah, sim, já sei, o Joe.
Era um homem de quem ninguém se lembrava. Nem mesmo hoje seria capaz de o
descrever. Tudo quanto recordo dele é a gordura, as faces barbeadas e empoadas e as
gargalhadas fortes. O resto da sua identidade varreu-se-me e só ficou o nome de Joe. Há
homens cujos nomes são sempre abreviados.
Estendi-me na cama com a ajuda de Phuong.
- Tens ido ao cinema?
- Vi uma fita engraçada no Catinat - e começou imediatamente a contar-me
detalhadamente o argumento, enquanto eu procurava com os olhos um sobrescrito que
pudesse conter um telegrama. Enquanto eu não perguntasse podia sempre pensar que ela
se esquecera de me dizer, e ele podia ali estar sobre a mesa, junto da máquina de
escrever, ou no guarda-fato, ou, por medida de segurança, na gaveta do armário onde ela
guardava a colecção de lenços de pescoço.
- O administrador dos Correios (creio que era o administrador, mas é possível que
fosse o presidente da Câmara) seguiu-os até casa, pediu uma escada emprestada ao
padeiro e subiu à janela de Corrine, mas ela fora para outro quarto com François e ele
não ouviu chegar Madame Bompierre e ela entrou e viu-o no topo da escada e pensou...
- Quem era Madame Bompierre? - perguntei-lhe, virando a cabeça para olhar o
lavatório, onde por vezes ela empoleirava, entre loções, coisas de que se não queria
esquecer.
- Eu disse-te. Era a mãe de Corrine e andava à procura de um ma rido porque era
viúva...
Sentou-se na cama e pôs-me a mão dentro da minha camisa.
- Foi muito divertido - disse-me.
- Beija-me, Phuong.
Não conhecia a coquetaria. Fez imediatamente o que lhe pedi e continuou com a
história do filme. Se lhe tivesse pedido teria praticado o amor da mesma forma, tirando
as calças sem uma pergunta e retomado depois o fio da história de Madame Bompierre e
dos apuros do administrador dos Correios.
- Veio alguma coisa para mim?
- Veio.

146

- Porque não me deste?


- Ainda é cedo para começares a trabalhar. Deves ficar deitado e descansar.
- Mas pode não se tratar de um assunto de trabalho.
Ela entregou-me a carta e eu vi que já fora aberta. «Precisamos de quatrocentas palavras
sobre a situação militar e política provoca da pela partida de Lattre», dizia.
- Tens razão - disse-lhe. - É mesmo trabalho. Como o sabias? Porque abriste a carta?
- Pensei que fosse da tua mulher. Tinha esperança que se tratasse de uma notícia
agradável.
- Quem ta traduziu?
- Levei-a à minha irmã.
- Se fossem más notícias, ter-me-ias deixado, Phuong?
Ela esfregou a mão pelo meu peito, para me sossegar, sem se aperceber de que naquele
momento eu precisava de palavras, por mais falsas que fossem.
- Apetece-te fumar um cachimbo? Há uma carta para ti. Creio que deve ser dela.
.
- Também a abriste?
- Eu não abro as tuas cartas. Os telegramas são públicos. Até os empregados dos
Correios os lêem.
Este sobrescrito estava entre os lenços de pescoço. Tirou-o cautelosamente e
colocou-o sobre a cama. Reconheci a letra.
- Se se tratar de uma má notícia, que vais tu...
Eu sabia que só podia ser má. Se se tratasse de um telegrama podia significar um
acto súbito de generosidade; uma carta só podia representar explicações, justificações...
e por isso interrompi a minha pergunta,. porque não era honesto pedir uma promessa
que de antemão se sabe nunca poder ser cumprida.
- Que receias? - perguntou-me Phuong, e eu pensei: «Receio a solidão, o Clube da
Imprensa e o quarto que simultaneamente é sala de estar, receio Pyle».
- Arranja-me um brande com soda. - Olhei para o princípio da carta: «Querido
Thomas», e para o fim: «Afectuosamente, Helen> e fiquei à espera do brande.
- É mesmo dela?
- É. - Antes de começar a leitura perguntei-me se deveria mentir ou dizer a verdade a
Phuong.

147

Querido Thomas:
Não me surpreendeu receber a tua carta e saber que não estás só. Não és homem
para ficar sozinho durante muito tempo, não é verdade? Agarras-te a uma mulher como
a poeira se agarra a um casaco. Talvez conseguisse compadecer-me mais do teu
problema se não sentisse que te será muito mais fácil consolares-te logo que chegares a
Londres. Sei que não me acreditarás, mas o que me faz ponderar e evita que eu te
telegrafe um simples -não» é a pobre rapariga. Nós, as mulheres, ficamos geralmente
mais comprometidas do que vocês.

Bebi um gole de brande. Nunca pensei que as feridas sexuais ficassem abertas
durante tantos anos. Descuidadamente, sem escolher as palavras que empregara, eu
fizera de novo sangrar as dela. Quem a poderia condenar de, por sua vez, procurar as
minhas cicatrizes? Quando nos sentimos infelizes magoamos os outros.
- É mau? - perguntou-me Phuong.
- Um tanto ou quanto dura. Mas ela tem todo o direito... Continuei a ler:

Acreditei sempre que tinhas gostado de Anne mais do que de qualquer de nós até ao
momento em que fizeste as malas e desapareceste. Agora dás-me a impressão de que
tentas abandonar outra mulher, porque da tua carta deduz-se que não esperas uma
resposta favorável». -Terei feito todo o possível» - não é nisso que estás a pensar? Que
farias se te telegrafasse: -Sim»? Casar-te-ias com ela? (Tenho de escrever -ela» porque
não me disseste o seu nome.) Talvez casasses. É possível que, como todos nós, estejas a
envelhecer e não te agrade viver sozinho. Eu própria, muitas vezes, sinto uma imensa
solidão. Soube que Anne encontrou outro companheiro. Mas deixaste-a a tempo.

Ela encontrara a crosta seca. Bebi novo gole. Lembrei-me da frase: «Um fluxo de
sangue.»
- Deixa-me preparar-te um cachimbo - disse Phuong.
- Tudo o que queiras, tudo o que queiras.

148

Esta é uma das razões porque devia dizer «Não». (Não precisamos de tocar na
razão religiosa porque nunca a compreendeste ou nela acreditaste.) O casamento não
te impede de abandonar uma mulher, não é verdade? Só retarda o processo e seria
muito injusto para esta rapariga se vivesses com ela durante tanto tempo como viveste
comigo. Trazê-la-ias para Inglaterra, onde ela se sentiria perdida e estranha, e quando
a deixassem sentir-se-ia terrivelmente abandonada. Ela sabe servir-se de um gaifo e de
uma faca ou não? Estou a ser rude porque neste momento penso mais no bem dela do
que no teu. Mas, meu querido Thomas, também me lembro do teu.

Comecei a sentir-me mal. Há muito que não recebia carta de minha mulher. Forçara-
a a escrevê-la e sentia a sua dor em todas as linhas. O sofrimento dela chocou com o
meu: recomeçáramos o velho jogo de nos magoarmos um ao outro. Se ao menos fosse
possível amar sem fazer mal... A fidelidade não chega: eu fora fiel a Anne e contudo
magoara-a. Magoar é inerente ao acto de posse: somos demasiado mesquinhos de ideias
e de corpo para possuirmos outra pessoa sem a humilharmos. De certo modo
regozijava-me porque minha mulher viesse ferir-me mais uma vez. Havia já muito que
esquecera a sua dor e era a única recompensa que podia dar-lhe. Infelizmente os
inocentes metem-se sempre em complicações. Existe invariavelmente, onde quer que
seja, uma voz que chora numa torre.
Phuong acendeu a lamparina para o ópio.
- Ela consente que te cases comigo?
- Ainda não sei.
- Ela não fala nisso?
- Leva muito tempo a explicar o que tem a dizer.
E eu pensei: «Como te orgulhas de ser dégagé, de seres o repórter e não o escritor de
artigos de fundo, e quantas asneiras fazes por detrás da tua fachada! A outra guerra é
mais inocente do que esta. O morteiro faz menos estragos».

Se não seguir a minha convicção e disser "Sim», será bom para «ti»? Dizes que te
chamaram a Inglaterra e sei bem quanto vais detestar voltar e que farás tudo para
suavizar a situação. És capaz de te casar e beberes um copo a mais. Quando foi da
primeira vez nós fizemos uma tentativa honesta - tanto tu como eu - e falhámos. Ao
tratar-se de uma segunda vez não nos esforçámos tanto. Dizes que perder esta rapariga
será o fim da tua vida. Houve tempo em que empregaste exactamente a mesma frase no
meu caso - podia mostrar-te a carta, ainda a tenho - e é possível que tenhas dito o
mesmo a

149

Anne. Afirmas que sempre tentámos dizer a verdade um ao outro. Mas, Thomas, a
verdade, quando se trata de ti, é sempre tão temporária... De que serve discutir contigo
ou tentar chamar-te à razão? É mais fácil tomar a atitude ditada pela minha fé, dado
que a tua maneira de pensar é desrazoável, e escrever-te simplesmente: eu não acredito
no divórcio, a minha religião proíbe-o, e portanto a resposta, Tbomas, é não, não.

Havia ainda mais meia página, que eu não li, antes de «Afectuosamente, Helen».
Creio que me dava notícias do tempo e de uma tia velha de quem eu gostava. Não tinha
razão para me lastimar; eu esperava esta resposta. Tinha muito de verdade. Desejaria
que ela não tivesse pensado em voz alta, naquela carta tão longa, em que os
pensamentos a magoavam a ela e a mim.
- Ela diz que não?
Eu respondi, praticamente, sem hesitação:
- Não tomou ainda uma decisão. Continua a haver esperança. Phuong riu.
- Dizes essa esperança com uma cara tão séria.
Ela estava sentada aos meus pés, como um cão no túmulo de um cruzado, preparando o
ópio, e comecei a pensar no que devia dizer a Pyle. Depois de qua:tro cachimbos senti-
me mais apto a encarar o futuro e disse-lhe que a esperança que nós podíamos ter era
bastante boa porque a minha mulher ia consultar um advogado. Dentro de breves dias
devia chegar o telegrama de libertação.
- Isso não tem grande importância. Podias fazer-me uma doação
- disse-me Phuong, e pareceu-me ouvir falar a irmã.
- Não tenho economias - respondi-lhe. - Não poderei nunca cobrir o lanço de Pyle.
- Não te preocupes. Tudo pode acontecer. Há sempre processos. A minha irmã diz
que tu podias fazer um seguro de vida e eu pensei quanto era realista da sua parte não
diminuir a importância do dinheiro e não fazer grandes e comprometedoras declarações
de amor.
Perguntei-me como iria Pyle suportar, com o decorrer do tempo, este espinho.
Porque Pyle era um romântico; mas claro que no caso dele havia um dote razoável e o
espinho podia deixar de picar, tal como um músculo que se não exercita logo que
desaparece a necessidade da sua existência. Os ricos estavam invariavelmente por cima.
Naquela tarde, antes do fechar das lojas da Rua Catinat, Phuong comprou mais três
lenços de seda para o pescoço. Sentou-se na cama e estendeu-os para eu ver, largando
exclamações quanto à viveza das

150

cores, enchendo um vácuo com a sua voz cantante, e depois, dobrando-os


cuidadosamente, colocou-os na gaveta, juntamente com a restante dúzia. Era como se
colocasse os alicerces de um dote modesto. E eu preparei os meus loucos alicerces
escrevendo nessa mesma noite a Pyle, com a clareza e perspicácia que o ópio nos
proporciona, mas que não merecem confiança. Eis a carta que lhe escrevi: encontrei-a
há dias dentro da Função do Ocidente, de York Harding. Ele devia ter estado a ler o
livro quando recebeu a carta. Talvez a tivesse usado para marcar a página e depois
continuasse a ler.
Meu caro Pyle escrevi, e foi a única vez que me senti tentado a escrever Meu caro
Alden, porque, no fundo, se tratava de uma carta de negócios de certa importância,
pouco diferindo das outras cartas do mesmo tipo pelo facto de encerrar uma mentira.

Meu caro Pyle: Tenciono escrever-lhe do hospital para lhe dizer muito obrigado por
aquela noite. Não há dúvida de que você me salvou de um fim desagradável. Já me vou
mexendo com a ajuda de uma bengala: parece que a fractura se deu em bom sítio e a
idade ainda não me atingiu os ossos tornando-os quebradiços. Temos de celebrar o
caso brevemente com uma paródia.

(A caneta emperrou na palavra celebrar e depois, tal como uma formiga que encontra
um obstáculo, roqeou-a e seguiu outro caminho.)

Tenho outra coisa a celebrar e sei que você também se sentirá satisfeito,
dado que sempre afirmou que o que ambos desejávamos era o bem de Phuong. Quando
cheguei esperava-me uma carta de minha mulher. Está praticamente decidida a
conceder-me o divórcio. Assim, você já não precisa de se preocupar com Phuong.

A frase era cruel, mas só me apercebi da sua crueldade quando reli a carta e então já
não estava a tempo de a alterar. Se eu riscasse a frase era preferível rasgar a carta.
- De que lenço gostas mais? - perguntou-me Phuong. - Eu gosto muito do amarelo.
- Sim, do amarelo. Olha, vai ao hotel deitar-me esta carta no correio. Ela olhou para a
morada.
- Podia levá-la à legação. Poupavas um selo.

151

- Prefiro que a leves ao correio.


Depois deitei-me para trás e, com aquele relaxamento nervoso que o ópio dá, pensei:
"Pelo menos, deste modo ela não me deixará antes de eu partir e talvez amanhã, depois
de uns quantos cachimbos, eu consiga encontrar um processo para ficar».

152
2

A vida de todos os dias não pára, o que tem salvo muita gente da loucura. Tal como
durante um ataque aéreo se verificou não ser possível estar-se constantemente
apavorado, assim sob o bombardeamento das tarefas rotineiras, dos encontros de acaso,
das ansiedades impessoais se perdem durante horas a fio os nossos medos pessoais. Os
pensamentos de Abril já próximo, de deixar a Indochina, do futuro vago sem Phuong
eram afectados pelos telegramas, pelos boletins da imprensa vietnamita e pela doença
do meu assistente, um indiano chamado Domínguez (a sua família viera de Goa, via
Bombaim), que me substituía nas conferências de imprensa de menor importância, tinha
os ouvidos alerta em tudo o que tocava a boatos e opiniões e me levava as mensagens à
censura e à secção de telegramas. Para meu benefício, e com a ajuda de comerciantes
indianos, em especial do Norte, em Haiphong, Nam Dinh e Hanói, ele montara o seu
próprio serviço de espionagem e creio que ele conhecia com mais exactidão do que os
altos comandos franceses a posição dos batalhões vietcongues no delta de Tonquim.
E, porque nós só nos servíamos dessas informações desde que tivessem categoria de
notícias e nunca levávamos os nossos relatórios ao Serviço Secreto francês, ele tinha a
confiança e a amizade de vários agentes vietcongues escondidos em Saigão-Cholon. O
facto de ser um asiático, apesar do apelido, constituía indubitavelmente uma ajuda.
Eu gostava de Domínguez. Ao passo que normalmente os homens têm o orgulho à
superfície, como uma doença de pele, e são sensíveis

153

ao mínimo toque, ele tinha o seu profundamente escondido e reduzido ao mínimo de


que um ser humano é capaz. Nos contactos diários com Domínguez só encontrávamos
brandura, humildade e um amor absoluto da verdade. Para se lhe descobrir o orgulho
seria preciso ser-se casado com ele. Talvez a verdade e a humildade caminhem juntas;
há tantas mentiras que resultam do nosso orgulho... Por exemplo, na minha profissão o
orgulho do repórter leva-nos a querer publicar uma história melhor do que a do parceiro.
E era sempre Domínguez quem me ajudava a não me importar, a resistir a todos aqueles
telegramas de Inglaterra perguntando-me por que razão eu não suplantara a história de
fulano ou sicrano ou o relatório de um outro, que eu sabia não representarem a verdade.
Só me apercebi de quanto lhe devia depois de ele adoecer. Domínguez chegava ao
ponto de verificar se o depósito do meu automóvel estava cheio de gasolina, sem
contudo, nem uma só vez, ter invadido a minha vida particular. Creio que era católico,
mas esta minha hipótese só se baseava no seu nome e país de origem. Pelas conversas
que tínhamos tanto podia adorar Krishna como fazer peregrinações anuais, flagelado por
uma armação de arame, às caves de Batu. A sua doença foi misericordiosa, afastando-
me temporariamente das torturas da ansiedade. Era eu quem agora tinha de assistir às
monótonas conferências de imprensa e coxear até à mesa do Continental para conversar
com os colegas; mas não tinha o jeito de Domínguez para distinguir a verdade da
mentira, e assim criei o hábito de o visitar no fim da tarde para discutirmos o que eu
ouvira. Por vezes encontrava um dos seus amigos indianos sentado junto da cama
estreita de ferro na casa que Domínguez compartilhava com outros, situada numa das
ruas mais sórdidas perto do Boulevard Galliéni. Estava invariavelmente sentado sobre
os calcanhares, muito direito, de modo que tínhamos a sensação de estar a ser recebidos
por um rajá ou um padre, e não por um homem doente. Por vezes, quando a febre era
alta, o suor escorria-lhe pela cara, mas nunca perdia a clareza de pensamentos. Era
como se a doença estivesse a atacar o corpo de outra pessoa e não o dele. A senhoria
colocava junto da cama um jarro de sumo de lima, mas nunca o vi beber. Talvez achasse
que beber seria admitir que a sede lhe pertencia, que era o seu corpo que sofria.
De todos os dias em que o visitei recordo um particularmente. Deixara de inquirir
como se sentia, com medo que a pergunta lhe parecesse uma censura, mas era sempre
ele quem se interessava, com grande ansiedade, pela minha saúde, lamentando as
escadas que eu era forçado a subir.

154

- Gostaria que conhecesse um amigo meu. Ele sabe uma história que devia ouvir - disse-
me.
- Sim?
- Escrevi o seu nome, porque sei que o senhor tem dificuldade em se recordar dos
nomes chineses. Evidentemente que não devere mos usá-lo. Ele tem um armazém de
sucatas de ferro no Quai Mytho.
- É assunto importante?
- Pode sê-lo.
- Pode dar-me um lamiré?
- Preferia que ouvisse a história da sua boca. Há qualquer coisa de estranho, mas eu não
consigo perceber o que é.
O suor escorria-lhe pelas faces, mas ele deixava-o correr como se as gotas tivessem
vida e fossem sagradas: tinha muito de hindu e nunca seria capaz de pôr em perigo a
vida de uma mosca.
- Até que ponto é que conhece o seu amigo Pyle?
- Não o conheço bem. Os nossos caminhos têm-se cruzado, é tudo. Desde aquela vez,
em Tanyin, que o não vejo.
- Onde trabalha ele?
- Na Missão Económica, mas esta designação abrange um sem-fim de pecados. Creio
que se interessa pelas indústrias locais, nunca esquecendo, evidentemente, os interesses
americanos. Não me agrada a maneira como eles, por um lado, vão alimentando os
Franceses na guerra e por outro os correm dos seus antigos negócios.
- Ouvi-o falar, há dias, numa recepção dada pela legação aos congressistas que
estavam aqui de visita. Tinha recebido instruções para os pôr a par da situação actual.
- Que Deus se compadeça do Congresso! Ele ainda aqui não está há seis meses.
- Falou das velhas potências coloniais - a Inglaterra e a França - e quanto vos era
impossível ter esperança em ganhar a confiança dos Asiáticos. E então aqui entrava a
América, com as mãos limpas.
- Pois: Honolulu, Porto Rico, Novo México.
- Houve então alguém que lhe perguntou quais eram as possibilidades do Governo
local de conseguir vencer os vietcongues, e ele respondeu que com uma terceira força
isso seria possível. Que era sempre possível arranjar-se uma terceira força, isenta do
comunismo e da mancha do colonialismo: uma democracia nacional, como ele lhe cha-
mou. Era simplesmente necessário encontrar um chefe e mantê-lo fora do alcance das
velhas potências coloniais.

155

- Tudo isso são coisas do York Harding. Ele leu os seus livros antes de vir para a
Indochina. Falou nesse mesmo assunto durante a primeira semana após a sua chegada e
nada aprendeu depois disso.
- Pode dar-se o caso de ter encontrado o tal chefe - disse-me Domínguez.
- Acha que isso teria grande importância?
- Não sei. Desconheço o que ele faz. Mas vá falar com o meu amigo, que vive no
Quai Mytho.
Fui a casa deixar uma nota a Phuong e depois desci num carro, ao pôr do Sol, até ao
porto. No cais, ao lado dos navios e dos barcos de guerra cinzentos, havia mesas e
cadeiras, e as pequenas cozinhas portáteis fumavam e ferviam. No Boulevard de la
Somme os cabeleireiros exerciam a sua actividade sob as árvores, e os adivinhos, com
baralhos de cartas imundos, acocoravam-se encostados aos muros. Quando se penetrava
em Cholon era como que entrar numa cidade diferente, onde o trabalho começava com
o pôr do Sol em vez de com ele findar. Era como que entrar num teatro de pantomima:
os longos panos chineses, as luzes vivas e a multidão de figurantes conduziam-nos aos
bastidores, onde de repente tudo era mais sombrio e sossegado. Um desses bastidores
conduziu-me de novo ao cais e à confusão dos barcos chineses, onde os armazéns se
espreguiçavam na sombra e não se via vivalma.
Tive dificuldade em encontrar a casa que procurava, e foi quase por mero acidente
que a descobri. O portão do armazém estava aberto e vi os contornos picassianos das
pilhas de ferro-velho iluminados por um velho candeeiro. Camas, banheiras, caçarolas
para cinza, capots de automóveis, manchas de cores desbotadas onde quer que a luz
incidisse. Desci por uma passagem estreita e aberta nos despojos de ferro e chamei pelo
Sr. Chou, mas não obtive resposta. Ao fundo do armazém havia uma escada que devia
provavelmente conduzir à casa do Sr. Chou. A direcção que me tinha sido dada
correspondia certamente às traseiras. Domínguez devia ter as suas razões. Até na escada
havia ferro-velho, pedaços de sucata que podiam ser úteis neste ninho de gralhas. No
patamar havia um quarto grande, onde estavam sentados ou deitados todos os membros
da família, dando-nos a impressão de um acampamento que espera a todo o momento
ser atacado. Espalhadas por toda a parte viam-se xícaras de chá, numerosas caixas de
papelão cheias de objectos impossíveis de identificar e malas de fibra já com as correias
apertadas. Havia uma senhora idosa sentada sobre uma grande cama, dois rapazes e
duas raparigas, um bebé que gatinhava pelo

156

chão, três mulheres de meia-idade vestidas com velhas calças e jaquetas castanhas à
maneira dos camponeses, e dois velhos, a um canto, com casacos de mandarim de seda
azul, jogando o mab-jong.
Ignoraram-me quando entrei: continuaram a jogar com rapidez, identificando as
peças pelo tacto, e o ruído era semelhante ao dos seixos na praia quando a onda recua.
Todos os outros me ignoraram do mesmo modo. Só um gato é que saltou para cima de
uma caixa de papelão e um cão magro cheirou-me e depois afastou-se.
- Senhor Chou? - perguntei.
As duas mulheres abanaram as cabeças e todos os outros continuaram a ignorar-me.
Uma das mulheres passou uma xícara por água e encheu-a com o chá de um bule que
uma caixa forrada de seda conservava quente. Sentei-me aos pés da cama, junto da
senhora idosa, e uma das raparigas trouxe-me a xícara: foi como se tivesse sido absorvi-
do pela comunidade, tal como o gato e o cão. Talvez estes tivessem entrado pela
primeira vez de uma maneira tão furtiva como eu. O bebé gatinhou até onde eu estava,
puxou-me pelos atacadores e ninguém o repreendeu - no Oriente não se repreendem as
crianças. Nas paredes havia três calendários comerciais, cada um deles com uma ra-
pariga de faces muito rosadas, vestindo um alegre vestido chinês. Havia um grande
espelho, no qual, por qualquer mistério, se lia Café de la Paix. Talvez tivesse acabado
na sucata por engano: até eu me sentia já pertencendo a ela.
Bebi lentamente o chá verde e amargo, mudando constantemente a xícara sem pega
de uma para a outra mão porque o calor me queimava os dedos, e perguntei-me quanto
tempo iria ali ficar. Fiz uma tentativa em francês, perguntando à família quando voltava
o Sr. Chou, mas ninguém me respondeu: provavelmente não me compreenderam. Logo
que esvaziei a xícara elas tornaram a enchê-la e depois prosseguiram com as suas
ocupações: uma mulher passava a ferro, uma rapariga cosia, os dois rapazes faziam os
seus trabalhos escolares, a velha olhava para os pés, os minúsculos, aleijados pés da
velha china. E o cão olhava para o gato, que continuava em cima das caixas de papelão.
Comecei a avaliar o que Domínguez precisava de enfrentar para ganhar a sua parca
vida.
Um chinês extraordinariamente magro entrou na sala: parecia quase não ocupar
espaço. Lembrava um dos pedaços de papel vegetal que separam os biscoitos dentro da
caixa. O seu volume estava todo no que o pijama de flanela às riscas lhe emprestava.
- Senhor Chou? - perguntei.

157

Olhou-me com o olhar indiferente do fumador: as faces encovadas, os pulsos de


recém-nascido, os braços de rapariguinha... Quantos anos e quantos cachimbos tinham
sido necessários para o reduzirem a estas dimensões?
- O meu amigo senhor Domínguez disse-me que o senhor tinha qualquer coisa para
me mostrar. Estou «mesmo.. a falar com o senhor Chou, não estou? - interroguei.
- Ah, sim - respondeu-me. Era o Sr. Chou, e depois indicou-me cortesmente que me
sentasse. Era evidente que o objecto da minha visita se perdera algures nos corredores
do seu crânio, que o fumo varrera. Queria mais uma xícara de chá? A minha visita
constituía para ele uma grande honra. Passaram por água nova xícara e colocaram-na,
como uma brasa, nas minhas mãos: o ordálio do chá. Fiz uma observação sobre a
extensão da sua família.
Olhou em redor, com uma ligeira surpresa, como se nunca a tivesse visto neste
aspecto.
- A minha mãe, a minha mulher, a minha irmã, o meu irmão, os meus filhos e os
filhos da minha tia.
O bebé rolara dos meus pés e estava agora deitado de costas, esperneando e dando
gritos de alegria. Perguntei-me a quem pertenceria. Nenhuma daquelas pessoas me
parecia suficientemente jovem ou suficientemente idosa - para o ter produzido.
- O senhor Domínguez disse-me que se tratava de um assunto importante.
- Ah, o senhor Domínguez. Espero que esteja bem de saúde.
- Tem estado com febre.
- Esta época do ano é pouco saudável.
Eu não me convencera ainda de que ele se recordava quem era o Domínguez. Começou
a tossir e, sob o casaco do pijama, a que faltavam dois botões, a pele esticada vibrou
como um tambor.
- O senhor também devia consultar um médico.
Um homem recém-chegado aproximou-se de nós: não o vira entrar. Era um jovem
cuidadosamente vestido à europeia. Disse em inglês: .
- O senhor Chou só tem um pulmão.
- Peço imensa desculpa...
- Fuma todos os dias cento e cinquenta cachimbos.
- Isso parece-me imenso.
- O médico diz que lhe fazem um mal terrível, mas o senhor Chou sente-se muito mais
feliz quando fuma.

158

Dei um gemido de compreensão.


- Se me permite, apresento-me: sou o gerente do senhor Chou.
- Chamo-me Fowler. Venho da parte do senhor Domínguez. Ele disse-me que o senhor
Chou tinha uma informação a dar-me.
- A memória do senhor Chou está muito enfraquecida. Quer uma xícara de chá?
- Obrigado, já bebi três.
A conversa lembrava as perguntas e respostas de um dicionário de frases.
O gerente do Sr. Chou tirou-me a xícara da mão e estendeu-a a uma das raparigas, a
qual, depois de deitar novamente os restos para o chão, a tornou a encher.
_ Não está suficientemente forte - disse, e pegou na xícara, provou o chá, passou
cuidadosamente a xícara por água e tomou a enchê-la com chá de um outro bule. - Este
está melhor? - perguntou-me.
- Muito melhor.
O Sr. Chou tossiu como que para falar, mas foi simplesmente para expectorar
abundantemente num escarra dor de lata, decorado com flores cor-de-rosa. O bebé
rolava sobre os resíduos do chá e o gato saltou de uma caixa para uma mala.
- Talvez seja preferível falar comigo - disse o jovem. - Chamo-me Heng.
- Se não se importasse...
- Vamos para o armazém - disse-me o Sr. Heng. – Estaremos mais sossegados.
Estendi a mão ao Sr. Chou, que a deixou ficar entre as suas com um olhar perplexo;
relanceou depois os olhos pelo quarto apinhado, como se procurasse tentar saber qual
era o meu papel no meio de toda aquela gente. O murmurar de seixos foi desaparecendo
à medida que descíamos as escadas.
O Sr. Heng disse-me:
- Cuidado. Falta o último degrau - e acendeu uma lanterna de bolso para me guiar.
Estávamos de novo rodeados pelas camas e banheiras e o Sr. Heng conduziu-me por
uma passagem lateral. Quando tinha dado uns vinte passos parou e fez incidir a luz da
lanterna sobre um pequeno tambor de ferro.
- Vê isto? - disse-me.
- De que se trata?

159

Fez rodar o tambor e mostrou-me a marca de fábrica: Diolacton.


- Continuo a não perceber do que se trata.
- Eu tinha aqui dois destes tambores. Vieram no meio de outra sucata da garagem do
senhor Phan Van Muoi. Conhece-o?
- Creio que não.
- A mulher é da família do general Thé.
- Continuo a não perceber bem...
- Sabe o que é isto? - perguntou-me o Sr. Heng, abaixando-se e pegando num objecto
comprido e côncavo, semelhante a um pé de aipo, e que à luz da lanterna tinha um
brilho de crómio.
- Pode ser um toalheiro.
- É um molde - disse o Sr. Heng. Era evidente tratar-se de um homem que se tornava
enfadonho pelo prazer de dar informações. Fez uma pausa para que eu mostrasse de
novo a minha ignorância. - Percebeu o que quero dizer com a palavra molde?
- Ah, sim, certamente, mas continuo a não ver...
- Este molde foi fabricado nos Estados Unidos. Diolacton é uma marca americana.
Começa a perceber?
- Com toda a franqueza, não.
- Este molde tem um defeito. Foi por isso que o deitaram fora. Mas nunca devia ter sido
misturado com a sucata. Nem o molde nem o tambor. Foi um engano. O gerente do
senhor Muoi veio pessoalmente aqui. Não consegui encontrar o molde mas dei-lhe o
outro tambor. Disse-lhe que era tudo o que eu tinha e ele explicou-me que os tambores
lhe faziam falta para guardar produtos químicos. Evidentemente que não me perguntou
pelo molde - isso seria desmascarar-se ingenuamente - mas fez uma busca minuciosa.
Mais tarde o senhor Muoi passou pela legação americana e pediu para falar com o
senhor Pyle.
- O senhor tem um serviço secreto bem montado - disse-lhe.
Continuava a não perceber do que se tratava.
- Pedi ao senhor Chou para contactar o senhor Domínguez.
- Quer com isso dizer que conseguiu estabelecer uma relação qualquer entre o Pyle e o
general? Essa relação é muito fraca e não constitui uma novidade. Nesta terra toda a
gente se dedica à espionagem.
O Sr. Heng bateu com o tacão do sapato no tambor de ferro pintado a preto e o som
transmitiu-se às camas.
- Senhor Fowler: o senhor é inglês. É neutro. Tem sido decente connosco. Consegue
perceber que entre nós há gente cujas convicções são fortes, independentemente do lado
a que essa gente possa pertencer.

160

- Se tenta dizer-me que é comunista ou vietcongue, não se preocupe. Eu não me


molesto. Não tenho partido.
- Se acontecer qualquer coisa desagradável em Saigão as culpas cair-nos-ão em cima.
O meu comité gostaria que o senhor ficasse com uma ideia justa do que se passa. É por
esta razão que lhe mostrei isto e mais isto.
- O que é o Díolacton? - perguntei-lhe. - Tem um nome que faz lembrar leite
condensado.
- Tem alguma coisa de comum com o leite. - O Sr. Heng fez incidir o foco da
lanterna no interior do tambor. No fundo, como se fosse poeira, havia uma pequena
quantidade de pó branco. - É um plástico americano. .
- Ouvi dizer que Pyle estava a receber plásticos para fazer brinquedos. - Peguei no
molde e olhei para ele. Tentei adivinhar-lhe o formato. O objecto não teria este aspecto:
o molde era a imagem num espelho, invertida.
- Não se destina a brinquedos - disse o Sr. Heng. - É como que uma parte de uma barra.
- O formato é pouco vulgar.
- Não consigo aperceber-me da sua aplicação.
O Sr. Heng virou-me as costas.
- Só quero que se lembre do que viu - disse, enquanto se dirigia
para as sombras projectadas pelas pilhas de sucata. - Talvez chegue o
dia em que lhe seja necessário escrever sobre este assunto. Mas nunca
deve dizer que viu o tambor aqui. - Nem o molde? - perguntei. - O molde muito menos.
161
3

O primeiro encontro com alguém que nos salvou a vida (como é costume dizer-se)
não é fácil. Eu não vira Pyle enquanto estivera no hospital da Legião, e a sua ausência e
o seu silêncio, facilmente explicáveis (dado que se embaraçava mais facilmente do que
eu), preocupavam-me muitas vezes sem razão, tendo como consequência que à noite,
ainda não acalmado pela habitual pastilha para dormir, eu imaginava que ele subia as
escadas, me batia à porta, se deitava a dormir na minha cama. Fora injusto com ele, e
consequentemente juntava às minhas outras obrigações mais formais um sentimento de
culpa. E havia ainda o remorso nascido da minha carta. (A que antepassados longínquos
caberia a responsabilidade desta minha estúpida consciência? Certamente a não tinham
quando violavam e matavam no seu mundo paleolítico.)
Por vezes perguntava-me se deveria ou não convidar para jantar o homem que me
salvara, se não deveria antes sugerir um encontro no bar do Continental para tomarmos
ambos uma bebida. Era um problema social pouco usual, dependente talvez do valor
que cada um atribui à sua própria vida. Uma refeição e uma garrafa de vinho ou um
uísque duplo? Isto preocupava-me havia alguns dias quando o problema foi resolvido
pelo próprio Pyle, que veio ter comigo e me chamou do outro lado da porta. Naquela
tarde quente eu dormia, exausto com o esforço que fizera pela manhã para usar a perna,
e não o ouvi bater.
- Thomas, Thomas. - O grito caiu no meio de um sonho em que eu estava
mergulhado: caminhava por uma longa estrada, procurando

163

uma transversal que nunca mais aparecia. A estrada desenrolava-se como uma fita de
telégrafo, com uma uniformidade que nunca se teria alterado se o sonho não fosse
interrompido. De princípio uma voz que chora de dor numa torre e depois,
repentinamente, a voz que fala comigo:
- Thomas, Thomas.
- Vá-se embora, Pyle. Não se aproxime. Não quero que me salve - disse em voz baixa.
- Thomas. - Batia à minha porta, mas eu fiquei quieto, como se mais uma vez estivesse
no arrozal e se tratasse de um inimigo. De repente dei-me conta de que já não batiam,
que alguém falava lá fora em voz baixa e outra pessoa respondia. Falar em voz baixa é
perigoso.
Eu sabia quem falava. Levantei-me da cama com cuidado, e com a ajuda da bengala
cheguei até à porta do outro quarto. Talvez me tivesse deslocado com lentidão
demasiada e eles me tivessem ouvido porque lá fora fez-se o silêncio. O silêncio, como
as plantas, deita rebentos: parecia crescer sob a porta e espalhar as folhas pelo quarto
onde eu estava. Era um silêncio de que eu não gostava e rasguei-o abrindo abruptamente
a porta: Phuong estava no corredor e o Pyle tinha as mãos sobre os seus ombros: a
atitude de ambos sugeria que se tinham afastado depois de dar um beijo.
- Que surpresa - disse-lhe. - Entre, entre.
- Não conseguia que você me ouvisse - disse-me Pyle.
- De princípio estava a dormir e depois não me apetecia ser perturbado. Mas como «já»
o fui é melhor entrar. - Disse em francês a Phuong: - Onde o encontraste?
- Aqui. No corredor - respondeu-me. - Ouvi bater e corri cá acima para lhe abrir a porta.
- Sente-se. Quer uma chávena de café? - disse a Pyle.
- Não. E nem mesmo me quero sentar, Thomas.
- Pois eu sou forçado a sentar-me. A minha perna cansa-se com facilidade. Recebeu a
minha carta?
- Recebi. Preferia que você não a tivesse escrito.
- Porquê?
- Porque não passa de um chorrilho de mentiras. Eu tinha confiança em si, Thomas.
- Quando existe uma mulher no meio nunca se deve confiar em quem quer que seja.
- Então é melhor que você deixe de ter confiança em mim. Vou passar a vir aqui à
socapa, sempre que você não estiver em casa; escrever-lhe-ei cartas com sobrescritos à
máquina. Talvez eu esteja a

164

crescer, Thomas. - Mas tinha lágrimas na voz e parecia mais novo do que nunca. - Não
lhe era possível ganhar sem mentir?
- Não. Isto é comparável à duplicidade europeia, Pyle. Somos forçados a compensar
de qualquer maneira a nossa falta de abastecimentos. Contudo, devo ter sido pouco
hábil. Como conseguiu você descobrir as mentiras?
- Foi a irmã dela. Agora trabalha com o Joe. Venho de estar com ela. Sabe que o
mandaram voltar a Inglaterra.
- Se é só isso... - disse-lhe, sentindo alívio. - Phuong também o sabe.
- E a carta da sua mulher? Phuong também sabe o que ela dizia. A irmã leu-a.
- Como foi isso?
- Ela veio aqui ontem com Phuong quando você tinha saído, e Phuong mostrou-lha.
Você não consegue enganá-la. Ela lê inglês.
- Agora percebo. - Não valia a pena ficar zangado. Era por demais evidente que o
ofensor fora eu e Phuong provavelmente só tinha mostrado a carta por uma espécie de
jactância: mas não se tratava de uma prova de falta de confiança.
- Ontem à noite já sabias tudo isto? - perguntei a Phuong.
-Já.
- Reparei realmente que estavas bastante calada. - Toquei-lhe no braço. - Podias ter sido
terrível, mas és a Phuong: não tens mau génio.
- Precisava de pensar - disse-me, e eu lembrei-me de como me apercebera pela
irregularidade da sua respiração, ao acordar de noite, que ela não dormia. Estendera-lhe
o braço e perguntara-lhe: - Le cauchemar? - Ela costumava ter pesadelos quando veio
para a Rua Catinat, mas ontem à noite abanara a cabeça perante a minha pergunta.
Estava de costas viradas para mim e eu encostei uma perna ao seu corpo: o primeiro
passo no ritual das relações sexuais. E mesmo então não me apercebi de que havia
qualquer coisa que não estava bem.
- Não me pode explicar, Thomas, porque...
- É suficientemente evidente. Queria ficar com ela.
- Qualquer que fosse o preço que ela tivesse de pagar?
- Sim, qualquer que fosse o preço.
- Isso não é amor.
- Talvez não seja o amor que você conhece, Pyle.
- Eu quero protegê-la.
- Pois eu não quero. Ela não precisa de protecção. Quero-a perto de mim, quero-a na
cama comigo.

165

- Contra sua vontade?


- Ela nunca ficaria contra vontade, Pyle.
- Depois disto ela não vai poder gostar de si.
As ideias de Pyle tinham esta simplicidade. Virei-me para ver onde Phuong estava. Fora
para o quarto e endireitava a colcha sobre a qual eu estivera deitado. Depois tirou uma
das suas revistas da prateleira e sentou-se na cama, como que absolutamente indiferente
à nossa conversa. Eu sabia de que revista se tratava: a história, por meio de fotografias,
da vida. da rainha. Eu conseguia ver, voltado para cima, o coche a caminho de
Westminster.
- A palavra amor é uma invenção do Ocidente. Nós empregamo-la por razões
sentimentais ou para com ela encobrirmos a nossa obcecação por uma mulher. Esta
gente não tem obcecações. Se você não se acautelar, Pyle, vai sofrer muito.
- Se não fosse a sua perna ter-lhe-ia dado uma sova.
- Você devia estar-me grato e estar grato à irmã de Phuong. Agora pode seguir o seu
caminho sem escrúpulos. E você é muito escrupuloso, não é? A menos que se trate de
plásticos.
- De plásticos?
- Queira Deus que você saiba o que está a fazer. Ah, sim, eu sei que as suas razões são
boas. São-no sempre. - Tinha um ar perplexo e desconfiado. - Desejaria que você, por
vezes, tivesse algumas razões que fossem más. Talvez conseguisse perceber melhor os
seres humanos. E isto também se aplica ao seu país, Pyle.
- Quero dar-lhe uma vida decente. Esta casa... fede.
- Nós encobrimos o cheiro com paus de goma. E você vai oferecer-lhe um frigorífico,
um automóvel para ela guiar e o último modelo de aparelho de televisão e...
- E filhos - disse Pyle.
- Espertalhaços cidadãos americanos, prontos a depor.
- E você, que lhe vai dar? Não tenciona levá-la para Inglaterra.
- Não, não sou tão cruel como isso. A menos que tenha o dinheiro suficiente para lhe
comprar um bilhete de regresso.
- Vai continuar a guardá-la para ter alguém com quem ir para a cama até à sua
partida.
- Ela é um ser humano, Pyle. É perfeitamente capaz de tomar decisões.
- Baseando-se em premissas falsas. Além de não passar de uma criança.

166

- Ela não é uma criança. É mais dura de roer do que você alguma vez o será.
Conhece aquele tipo de polimento que não risca? Pois Phuong é assim. É capaz de
sobreviver a uma dúzia de tipos como nós. Envelhecerá, mas é tudo. Pode sofrer com
partos, com fome, com frio e com reumatismo, mas nunca ficará risca da, ir-se-á
simplesmente definhando. - Mas ao fazer este discurso, enquanto observava Phuong,
que virara a página (um grupo de família, com a princesa Anne), eu já sabia que estava
a inventar uma personalidade, exactamente como Pyle o fizera. E recordei o primeiro
ano tormentoso em que tentara tão fortemente compreendê-la, em que lhe implorara que
me dissesse no que pensava e a assustara com a fúria absurda que os seus silêncios me
provocavam. Até o meu desejo servira de arma, com aquela esperança que se tem de
que, ao apontar-se a espada às entranhas da nossa vítima, ela se desconcerte e comece a
falar.
- O que você disse já chega - disse a Pyle. - Sabe tudo o que tem a saber. Faça o
favor de se ir embora.
- Phuong - chamou Pyle.
- Monsieur Pyle? - perguntou, levantando os olhos do Castelo de Windsor. E o seu
formalismo num momento como aquele era simultaneamente cómico e tranquilizante.
- Ele enganou-a.
- Je ne comprends pas.
- Vá-se embora. Volte para a sua terceira força e para o York Harding e para a Função
da Democracia. Vá brincar com os plásticos.
Mais tarde vi-me forçado a admitir que ele tomara à letra as minhas instruções.

167
TERCEIRA PARTE

Capítulo I

Só passados quase quinze dias sobre a morte de Pyle é que tornei a ver Vigot. Subia
o Boulevard Charner quando o ouvi chamar-me do Le Clube. Naqueles tempos era o
restaurante preferido pelos membros da Sareté; Como que numa atitude de desafio
perante aqueles que os detestavam, eles almoçavam e bebiam no rés-do-chão enquanto
o restante público comia no andar superior, fora do alcance de um bandoleiro com uma
granada de mão. Juntei-me a Vigot e ele mandou vir um vermute cassis. - Quer jogá-lo?
- Se quiser - e tirei os dados do bolso para jogarmos o ritual quaIre vingt-et-un.
Como estes números e os dados me fazem relembrar os anos de guerra na Indochina!
Em qualquer ponto do mundo, sempre que vejo dois homens a jogar aos dados, volto às
ruas de Hanói ou de Saigão ou aos edifícios bombardeados de Phat Diem. Vejo os pára-
quedistas, protegidos como as lagartas pelas suas estranhas manchas, vigiando os
canais, ouço os morteiros a aproximarem-se, ou vejo uma criança morta.
- Sans vaseline - disse Vigot fazendo quatro-dois-um. Empurrou até mim o último
fósforo. O calão sexual do jogo era comum a toda a Sareté; talvez tivesse sido
inventado por Vigot e depois adoptado pelos seus subalternos, que no entanto não
haviam adoptado Pascal. - Sous-lieutenant. - Cada vez que se perdia um jogo subia-se
de posto: jogava-se até que um dos jogadores chegasse a capitão ou a comandante. Ele
ganhou também o segundo jogo, e enquanto contava os fósforos disse-me:

173

- Encontrámos o cão de Pyle.


- Ah, sim?
- Provavelmente recusara-se a abandonar o corpo. O que é verdade é que lhe cortaram o
pescoço. Estava na lama, a uns vinte metros. Talvez se tivesse arrastado até lá.
- Você continua interessado no assunto?
- O ministro americano continua a maçar-nos. Graças a Deus que não temos a mesma
preocupação quando morre um francês. Mas, evidentemente, a morte de um francês não
tem a importância conferida pela raridade.
Jogámos primeiro a divisão dos fósforos e depois começámos o jogo em si. A
rapidez com que Vigot fazia quatro-dois-um era inacreditável. Reduziu os fósforos a
três e eu fiz a jogada mais baixa que épossível.
- Nanette - disse Vigot, empurrando para mim dois fósforos. Quando se viu livre do
último disse: - Capitaine - e eu chamei o criado para encomendar as bebidas.
- Há alguém, que consiga ganhar-lhe? - perguntei.
- É raro. Quer desforrar-se?
- Fica para a outra vez. Você dava um óptimo jogador, Vigot. Pratica outros jogos de
azar?
Ele sorriu com ar infeliz, e não sei porquê lembrei-me daquela sua mulher loura, que
diziam enganá-lo com os seus subalternos.
- Ora - disse-me -, há sempre o maior de todos.
- O maior?
- «Pesemos os ganhos e as perdas», citou, «ao apostarmos que Deus existe,
avaliemos as duas probabilidades. O que ganhar ganha tudo; o que perder nada perde».
Eu respondi-lhe com outra citação, também de Pascal - era a única que me lembrava.
- «Tanto erra o que escolhe caras como o que escolhe coroas. Ambos estão fora da
verdade. A atitude justa é não apostar.»
- "Sim: mas é-se forçado a apostar. Não é facultativo. Somos lançados na aventura.»
Você não segue os seus princípios, Fowler. Está engagé, exactamente como nós.
- Não no que toca a religião.
- Não estava a referir-me à religião. Para lhe dizer a verdade, estava a pensar no cão
de Pyle.
-Ah!

174

- Lembra-se do que me disse sobre encontrar indícios nas patas, analisar a sujidade,
etc.? .
-Ao que você me respondeu que nem era Maigret nem Lecoq.
- Mas acabei por não me sair muito mal. Pyle costumava levar o cão quando saía,
não costumava?
- Creio que sim.
- Era demasiadamente valioso para vadiar sozinho?
- Não seria muito seguro. Nesta terra comem os chows, não é verdade? - Ele começou a
meter os dados no bolso. - São meus, Vigot.
- Desculpe. Eu estava a pensar...
- Porque me disse que eu estava engagé?
- Qual foi a última vez que viu o cão de Pyle, Fowler?
- Sabe Deus. Eu não tomo nota dos meus encontros com cães.
- Quando volta para Inglaterra?
- Não sei ao certo. Nunca gosto de dar informações à Polícia. É poupar-lhes trabalho.
- Gostaria de lhe fazer uma visita hoje à noite. Pode ser às dez? Isto é, se estiver
sozinho.
- Direi a Phuong que vá ao cinema.
- As suas coisas com ela já estão bem?
-Já.
- É estranho. Tive a impressão que você está... como direi... infeliz.
- Há muitas razões para isso, Vigot - e acrescentei bruscamente: - Você tinha obrigação
de perceber.
-Eu?
- Também não é um homem muito feliz.
- Oh, não tenho razão para queixas. «Uma casa destruída não é desgraçada.»
- De quem é isso?
- Continua a ser do Pascal. É um dos argumentos do orgulho pela desgraça. «Uma
árvore não é desgraçada.»
- O que o levou a ser um polícia, Vigot?
- Houve vários factores. A necessidade de ganhar a vida, uma certa curiosidade sobre as
pessoas, e... gostar de Gaboriau.
- Talvez devesse ter sido padre.
- Naqueles tempos eu não lia autores que me orientassem nesse caminho.
- Você continua a suspeitar que eu esteja implicado no caso, não é?

175
Ele levantou-se e bebeu o resto do vermute cassis.
- Gostaria simplesmente de ter uma conversa consigo. Depois de se ter afastado, pensei
que me olhara com compaixão, como poderia ter olhado um prisioneiro, cuja captura
fosse responsabilidade sua, que estivesse a cumprir prisão perpétua.

176
2

Eu «fora» castigado. Era como se Pyle, ao sair de minha casa, me tivesse condenado
a tantas e tantas semanas de incerteza. Sempre que entrava em casa era na expectativa
de uma calamidade. Acontecia por vezes que Phuong não estava e era-me impossível
concentrar-me em qualquer trabalho até ao seu regresso dado que nunca me sentia segu-
ro de ela voltar. Perguntava-lhe onde tinha estado esforçando-me por que na minha voz
não transparecesse a ansiedade ou a desconfiança e por vezes ela respondia que estivera
no mercado ou nas lojas e mostrava-me um objecto comprovativo (a própria prontidão
com que confirmava a sua história me parecia, naquela altura, pouco natural), e por
vezes fora ao cinema, e lá estava o pedaço de bilhete para o comprovar, ou estivera com
a irmã. E então eu convencia-me de que era lá que ela se encontrava com Pyle. Nesses
dias possuía-a com agressividade, como se a odiasse. Mas o que eu odiava era o futuro.
A solidão deitava-se comigo na cama e quando a noite chegava eu tomava-a nos meus
braços. Ela não se modificara: cozinhava as minhas refeições, preparava-me os
cachimbos, oferecia o seu corpo, com suavidade e doçura, ao meu prazer (mas já não
era um prazer). E tal como nos primeiros tempos eu pretendera conhecê-la intimamente,
agora queria ler-lhe os pensamentos, mas estes escondiam-se atrás de uma língua que eu
não sabia falar. Não queria interrogá-la. Não queria obrigá-la a mentir (enquanto a
mentira não se manifestasse claramente eu podia fazer de conta que continuávamos a
ser um para o outro o que sempre tínhamos sido). Mas subitamente a minha ansiedade
vencia e eu dizia:

177

- Quando viste Pyle pela última vez?


Ela hesitava... ou tentaria efectivamente recordar-se?
- Quando ele esteve aqui - respondia-me.
Comecei, quase inconscientemente, a atacar tudo o que era americano. As minhas
conversas incidiam sobre a pobreza da literatura americana, os escândalos da política
americana, a brutalidade das crianças americanas. Era como se fosse uma nação e não
um homem, que estivesse a roubar-ma. Tudo o que a América fazia estava errado.
Tornei-me um maçador com o assunto da América, mesmo perante os meus amigos
franceses, sempre prontos a compartilhar das minhas antipatias. Era como se tivesse
sido atraiçoado. Mas não se é atraiçoado pelo inimigo.
Foi nessa altura que se deu o incidente das bombas de bicicleta.
Quando saí do Bar Imperial e voltei para a minha casa vazia (ela estaria no cinema ou
com a irmã?) verifiquei haver uma carta metida por debaixo da porta. Era de
Domínguez. Desculpava-se de continuar doente e pedia-me que estivesse à porta da
grande loja à esquina do Boulevard Charner, pelas dez e meia do dia seguinte. Escrevia-
me a pedido do Sr. Chou, mas eu suspeitava que era mais provável que tivesse sido o
Sr. Heng quem reclamava a minha presença.
O assunto, como depois se verificou, não merecia mais do que um parágrafo, e um
parágrafo humorístico. Não tinha qualquer relação com a triste e dura guerra do Norte,
com aqueles canais em Phat Diem obstruídos pelos cadáveres cinzentos com dias e dias,
com o bombardear dos morteiros, com o clarão branco dos napalms. Já esperava junto
de uma bancada com flores havia cerca de um quarto de hora quando vi aproximar-se,
vindo do lado do quartel-general da Silreté, na Rua Catinat, um camião repleto de
polícias, rangendo os travões e fazendo chiar as rodas. Os homens saíram e correram
para a loja, como se se tratasse de um ataque a um motim, mas não havia motim: só
havia uma paliçada de bicicletas. Todos os grandes edifícios de Saigão estão rodeados
de bicicletas: nem nas cidades universitárias do Ocidente há tantos ciclistas. Antes de ter
tempo para preparar a máquina tinham levado a cabo aquela operação cómica e
inexplicável. A polícia abrira caminho por entre as bicicletas e saíra com três delas, que
transportara no ar, sobre a cabeça, até ao boulevard e deixara cair na fonte decorativa. E
voltaram ao camião, afastando-se rapidamente pelo Boulevard Bonnard abaixo, sem que
eu tivesse ocasião de falar com um dos polícias.
- Opération Bicyclette - disse uma voz. Era o Sr. Heng.

178

- De que se trata? De exercícios? Mas para quê? - Espere mais um pouco - disse-me o
Sr. Heng.
Alguns ociosos aproximaram-se da fonte, onde ficara de fora uma roda, à laia de bóia,
como que para assinalar aos barcos que não se deviam aproximar dos restos de
naufrágio ali existentes. Um polícia atravessou a rua, gritando e gesticulando.
- Vamos ver o que se passa - disse ao Sr. Heng.
- É preferível não irmos - respondeu-me, e depois olhou para o relógio. Os ponteiros
marcavam onze horas e quatro minutos.
- Está adiantado - disse-lhe.
- Adianta-se sempre. - E naquele momento a fonte explodiu sobre o pavimento. Um
fragmento do rebordo decorativo bateu numa janela e os vidros caíram, lembrando um
aguaceiro num dia de sol. Ninguém se magoou. Sacudimos a água e os vidros dos fatos.
Na estrada havia uma roda de bicicleta que fez um barulho de pião, vacilou, e de pois
caiu por terra.
- Devem ser agora onze horas - disse o Sr. Heng.
-Mas que diabo...?
- Pensei que lhe interessasse. «Espero» que lhe tivesse interessado. - Vamos beber
qualquer coisa?
- Desculpe, mas não posso. Tenho de voltar para casa do senhor Chou. Mas deixe-me
primeiro mostrar-lhe uma coisa. - Conduziu-me ao parque de estacionamento de
bicicletas e indicou-me a sua.
- Repare com cuidado.
- É uma Raleigh.
- Não se trata disso. Olhe para a bomba. Não lhe faz lembrar qualquer coisa? - Sorriu
com superioridade perante a minha perplexidade e depois afastou-se. Virou-se uma vez,
disse-me adeus com a mão, e depois pedalou em direcção a Cholon e ao armazém de
sucata. Na Súreté, aonde me dirigi para colher informações, percebi ao que ele se
referira. O molde que eu vira no armazém tinha o formato de uma metade de bomba de
bicicleta. Naquele dia, por toda Saigão, verificou-se que as inocentes bombas de
bicicleta não eram senão bombas de plástico, que explodiram ao bater das onze, com
excepção dos sítios em que a polícia, actuando por informações recebidas, e que eu sus-
peitava terem emanado do Sr. Heng, pudera antecipar as explosões. Era tudo bastante
trivial: dez explosões, seis pessoas ligeiramente feridas, e sabe Deus quantas bicicletas
danificadas. Os meus colegas . exceptuando o correspondente do Extrême-Orient, que
lhe chamou um outrage - sabiam que só lhes dariam uma coluna se troçassem do
assunto.

179
Bombas de bicicleta era um bom cabeçalho. Todos eles deitavam as culpas sobre os
comunistas. Fui o único a escrever que as bombas representavam uma manifestação do
general Thé. E a redacção alterou o meu relato. O general já não constituía uma notícia
de interesse. Não valia a pena gastar espaço a identificá-lo. Enviei ao Sr. Heng, através
de . Domínguez, uma mensagem de pesar: fizera o que pudera. O Sr. Heng I mandou-
me uma resposta verbal e delicada. Parecia-me que ele - ou , o seu comité vietcongue -
se havia mostrado demasiadamente sensível. Ninguém culpava os comunistas
nitidamente. De facto, se isso fosse possível, todo aquele assunto poder-lhes-ia
simplesmente atribuir uma certa reputação de sentido do humor. «De que se lembrarão
eles depois disto?», comentavam as pessoas nas festas. E para mim aquele incidente
absurdo ficam imobilizado numa roda de bicicleta rodopiando alegremente, como um
pião, no meio do boulevard. Nunca mencionei a Pyle o que ouvira sobre as suas
ligações com o general. Deixá-lo brincar inofensivamente com plásticos: talvez assim
não pensasse tanto em Phuong. Contudo, porque se deu o acaso de uma tarde eu me en-
contrar nas vizinhanças, porque nada de melhor tinha a fazer, decidi visitar a garagem
do Sr. Muoi.
Era uma casa pequena, desarrumada, não muito diferente de um armazém de sucata,
no Boulevard de la Somme. No meio havia um carro içado, com o capô aberto,
lembrando o molde de um animal pré-histórico, de boca escancarada, como os que se
vêem nos museus de província que nunca ninguém visita. Não creio que alguém se
lembrasse de que aquele carro estava ali. O chão estava coberto de aparas de ferro e de
caixotes velhos: os vietnamitas não gostam de deitar fora o que quer que seja, do
mesmo modo que um cozinheiro chinês, ao fazer a divisão de um pato por sete pratos
diferentes, não dispensa sequer uma unha. Perguntei-me qual a razão daquele acto de
desperdício em relação aos tambores vazios e ao molde estragado. Talvez o furto de
algum empregado para ganhar algumas piastras, ou um suborno do. hábil Sr. Heng.
Não vi ninguém e entrei. «Talvez estejam escondidos», pensei, «com medo de uma
visita da polícia. Era possível que o Sr. Heng tivesse os seus contactos na Sureté, mas
mesmo assim era pouco provável que a polícia entrasse em acção. Do ponto de vista
deles era preferível que se ficasse com a ideia de que as bombas eram comunistas».
À parte o carro e a sucata espalhada pelo chão de cimento, nada mais se via. Era
difícil imaginar como podiam ter construído as bombas naquela casa. Não percebia bem
o processo pelo qual se transformava

180

em plástico a poeira branca que eu vira no tambor, mas parecia-me seguro que esse
processo devia ser demasiadamente complicado para ser levado a cabo num sítio
daqueles, onde inclusivamente as duas bombas de gasolina na rua pareciam
abandonadas. Fiquei à porta a olhar a rua. No centro do boulevard, sob as árvores, os
barbeiros exerciam a sua actividade. Um pedaço de espelho pregado a um tronco de
árvore reflectiu o brilho do sol. Uma rapariga, cujo chapéu lembrava uma lapa, com
dois cestos balouçando nos extremos de uma vara, passou a trote. O adivinho acocorado
junto da parede da casa Simon Freres encontrara um cliente: um velho de pêra rala,
como a de Ho Chi Minh, que observava impassivelmente o baralhar e o virar das
vetustas cartas. Que futuro seria o seu para valer uma piastra? No Boulevard de la
Somme vivia-se a descoberto: toda a gente sabia tudo sobre o Sr. Muoi, e contudo a
polícia não conseguia arrancar-lhes confidências. A vida desta gente passa-se num nível
onde não existem segredos, mas não se desce a este nível com a facilidade com que se
desce à rua. Recordei as velhas que segredavam no patamar, junto do lavatório público:
também elas ouviam tudo, e contudo eu não sabia o que elas sabiam.
Voltei à garagem e entrei no pequeno escritório ao fundo. Havia o habitual
calendário comercial chinês e uma secretária desarrumada: preçários, um frasco de cola,
uma máquina de somar, alguns clips, um bule e três xícaras de chá, muitos lápis por
afiar, e, por desconhecidas razões, um bilhete-postal com a Torre Eiffel. York Harding
podia escrever abstracções gráficas sobre uma terceira força, mas era aqui que se
encontrava a chave de tudo: isto era a Indochina. Na parede da frente havia uma porta.
Estava fechada, mas a chave encontrava-se na secretária, juntamente com os lápis. Abri
a porta e entrei.
Era um pequeno barracão com o mesmo tamanho da garagem. Havia uma máquina
que, à primeira vista, parecia uma gaiola feita de varões e de arames com numerosos
poleiros, construída para encerrar uma ave adulta e sem asas. Dava a impressão de ter
sido atada com trapos, mas os trapos deviam muito provavelmente ter servido à sua
limpeza no momento em que o Sr. Muoi e os seus assistentes tinham recebido o aviso
de que deviam partir. Encontrei o nome de um fabricante - alguém de Lyon, com o
número de patente. Patente de quê? Liguei a corrente eléctrica e a velha máquina
despertou: os varões tinham uma finalidade. A maquineta era como um velho que se
esforça por reunir, pela derradeira vez, os destroços do seu vigor batendo com o punho,
batendo... Era uma prensa, embora no mundo das prensas

181

devesse ter pertencido à era do nicke/odeon. Mas neste país, onde nada se desperdiça, e
onde tudo pode um dia vir ter para terminar uma carreira (lembrei-me de ter visto o
velho filme, O Roubo do Grande Comboio, estremecendo no ecrã, conseguindo ainda
entreter o público num cinema de uma ruazita em Nam Dinh), a prensa continuava a ser
utilizável.
Examinei-a mais de perto: vi traços de um pó branco. E pensei: «Dio/acton, um
produto parecido com o leite». Não se viam vestígios de um tambor ou de um molde.
Voltei ao escritório e dirigi-me à garagem. Apetecia-me dar uma pancadinha amigável
no guarda-lama do velho carro: tinha talvez muito que esperar, mas lá chegaria o dia em
que ele...
Tanto o Sr. Muoi como os seus assistentes deviam estar a estas horas escondidos nos
arrozais, a caminho da montanha sagrada onde o general Thé fazia o seu quartel-
general. Quando por fim levantei a voz e chamei: «Monsieur Muoi», consegui imaginar
que estava longe daquela garagem e do bou/evard e dos barbeiros, de novo no meio dos
campos onde me refugiara, na estrada para Tanyin. «Monsieur Muoi!» Via um homem
virar a cabeça por entre os pés de arroz.
Fui para casa a pé, e no patamar as velhas começaram a chilrear como carriças,
linguagem que me era tão incompreensível como o conversar dos pássaros. Phuong não
estava em casa: dela só havia umas linhas dizendo-me que estava com a irmã. Deitei-me
sobre a cama - ainda me cansava facilmente - e adormeci. Quando acordei vi que o
ponteiro luminoso do meu despertador apontava para a uma e vinte e cinco e virei a
cabeça esperando encontrar Phuong adormecida a meu lado. Mas a almofada não estava
amachucada. Ela devia ter mudado o lençol naquele dia - havia vestígios do frio da
lavandaria. Levantei-me e abri a gaveta onde guardava os lenços de pescoço; já lá não
estavam. Fui à prateleira dos livros: a vida ilustrada da família real também
desaparecera. Levara consigo o seu dote.
No instante de choque o pesar é diminuto: a dor principiou cerca das três horas da
madrugada quando comecei a planear a vida que tinha ainda de viver e a relembrar
recordações de modo a, por qualquer forma, poder eliminá-las. As boas recordações são
as piores e eu tentei lembrar as más. Tinha prática. Já vivera tudo isto noutros tempos.
Sabia que seria capaz de fazer o necessário, mas era tão mais velho... senti que a energia
que me restava não chegava para uma reconstrução.

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Fui à legação americana para falar com Pyle. Foi preciso encher um impresso à porta e
dá-lo a um polícia militar.
- O senhor não declarou a razão da sua visita - disse-me.
- Ele sabe-a.
- Então tem uma entrevista marcada?
- Se prefere pôr as coisas nesse pé, tenho.
- Provavelmente deve parecer-lhe uma parvoíce, mas temos de ter muito cuidado.
Aparecem aqui tipos muito estranhos.
- Sim, já ouvi dizer isso. - Mudou a pastilha elástica para a outra bochecha e entrou
no elevador. Esperei. Não sabia o que ia dizer a Pyle. Era o género de cena que eu
nunca representara. O polícia voltou. Disse, de má vontade:
- Pode subir. Sala 12-A. Primeiro andar.
Quando entrei na sala vi que Pyle não estava. Quem estava à secretária era o Joe, o
adido económico. Continuava a não me lembrar do seu apelido. A irmã de Phuong
observava-me da sua secretária de dactilógrafa. Seria triunfo o que eu lia naqueles olhos
castanhos e ambiciosos?
- Entre, entre, Tom - disse-me Joe com um ar jovial. - Gosto muito de o ver. Como
vai a perna? É raro ter-se a honra, cá na casa, de uma visita sua. Sente-se. Dê-me a sua
opinião sobre a nova ofensiva. Vi ontem à noite o Granger no Continental. Vai
novamente até ao Norte. Aquele rapaz é fino. Onde quer que haja notícias a colher lá
está o Granger. Quer um cigarro? Sirva-se. Conhece a menina Hei? Nunca consigo
recordar-me de todos estes nomes: é demasiado difícil para

183

um tipo já com a minha idade. Eu chamo-a com "Olá... e ela gosta. Nada deste
colonialismo tacanho. Que dizem as vozes da terra, Tom? Não há dúvida de que vocês
são uns tipos com bom ouvido. Tive imensa pena quando soube o que lhe aconteceu à
perna. O Alden disse-me que...
- Onde está o Pyle?
- Oh, o Alden não veio hoje ao escritório. Deve estar em casa. Trabalha muito em casa.
- O que ele faz em casa sei eu.
- O rapaz é fino. Hem, que disse você?
- Que pelo menos sei uma das coisas que ele faz em casa.
- Não percebo onde quer chegar, Tom. O Joe Lento: é como me chamam. Sempre fui
assim. Hei-de sê-lo sempre.
- Ele dorme com a rapariga com quem eu vivia: a irmã da sua dactilógrafa.
- Não percebo nada do que está a dizer.
- Pergunte-lhe. Foi ela quem arranjou tudo. O Pyle roubou-me a rapariga com quem
eu vivia. .
- Ouça lá, Fowler, eu pensei que você tinha vindo aqui para tratar de assuntos
profissionais. Sabe que este escritório não é sítio próprio para cenas.
- Vim ver o Pyle. Mas parece-me que ele deve estar a esconder-se.
- Você é a última pessoa com direito a fazer uma observação dessas. Depois de tudo
o que Alden lhe fez...
- Oh, sim, sim, com certeza. Salvou-me a vida, não salvou? Mas eu nunca lhe pedi
que o fizesse.
- Com grande perigo para ele próprio. O rapaz é valente.
- Não estou interessado na sua valentia. Há outras coisas nele que me interessam
mais neste momento, em especial certas partes do seu corpo.
- Fowler, com uma senhora presente não devia fazer alusões dssas.
- Esta senhora e eu conhecemo-nos muito bem. Ela não conseguiu limpar-me, mas
pretende limpar o Pyle. Está bem. Sei que o meu comportamento não é dos melhores,
mas vou continuar a comportar-me mal. É um tipo de situação em que as pessoas se
comportam mal.
- Temos muito trabalho. Há um relatório sobre a produção de orracha...
- Não se preocupe, vou-me embora. Mas diga ao Pyle, se ele telefonar, que estive
aqui. Ele pode achar que seria indelicado não retribuir a visita.

184

Disse à irmã de Phuong:


- Espero que o contrato de doação tivesse sido reconhecido pelo otário, pelo cônsul da
América e pela Igreja.
Saí para o corredor. Em frente havia uma porta onde se lia «omens». Entrei, tranquei
a porta, e sentado, com a cabeça encostada à arede fria, chorei. Não tinha ainda chorado.
Até nas retretes havia ar ondicionado, e passado pouco tempo o ar temperado e seco
secou-me as lágrimas, tal como nos seca o cuspo na boca e a semente no corpo.

185
4

Deixei tudo entregue a Domínguez e pus-me a caminho do Norte. Em Haiphong eu


tinha amigos no Squadron Gascogne e passava horas no bar do aeroporto ou jogando à
bola lá fora, no caminho coberto de areia. Oficialmente eu estava na frente de batalha:
quando queria podia ser tão fino como Granger, mas isso para o meu jornal tinha tanto
valor como a minha excursão a Phat Diem. Mas se a nossa profissão é escrever sobre a
guerra, o respeito que nos devemos impõe-nos que de vez em quando compartilhemos
dos respectivos riscos.
Não era fácil compartilhá-los, por pouco tempo que fosse, dado que de Hanói
haviam ordenado que eu só participasse em incursões horizontais, que nesta guerra eram
tão seguras como andar-se de autocarro, pois que voávamos acima do alcance da
artilharia pesada. Estávamos isentos do perigo de tudo que não fosse um erro do piloto
ou uma avaria do motor. Saíamos a horas certas e chegávamos a horas marcadas. Os
carregamentos de bombas desciam diagonalmente e a espiral de fumo subia dos
cruzamentos de estradas ou da ponte, e depois voltávamos para não perdermos a hora do
aperitivo e atirávamos as bolas de ferro pelo caminho coberto de areia.
Uma manhã, na messe da cidade, enquanto bebia brandes com soda com um jovem
oficial que desejava ardentemente visitar Southern Pier, houve ordem de partida numa
missão.
- Quer vir? - perguntou-me.
Eu disse que queria. Um ataque horizontal também matava o tempo e os pensamentos.
No automóvel, a caminho do aeroporto, ele observou:

187

- É um ataque vertical.
- Pensei que me tinham proibido...
- Conquanto nada escreva sobre o assunto... Vai ver uma região perto da fronteira
chinesa que não deve conhecer, perto de lai Chau.
- Pensei que para esses lados já estava tudo sossegado e nas mãos dos Franceses...
- Estava. Mas recapturaram a região há dois dias. Os nossos pára-quedistas estão a
uma distância de poucas horas. Queremos conservar os viets com as cabeças metidas
nas tocas até termos recapturado o posto. O que significa picar baixo e trabalhar com
metralhadoras. Só podemos dispensar dois aviões: um deles já por lá anda. Assistiu algu
ma vez a algum bombardeamento deste tipo?
- Nunca.
- Quando se não está habituado é um pouco desconfortável. O Squadron Gascogne só
tinha dois pequenos bombardeiros B 26: os franceses chamavam-lhes prostitutas,
porque, como as asas eram curtas, davam a impressão de não terem meios de
sustentação. Sentei-me sobre uma pequena chapa metálica, com as dimensões de um
selim de bicicleta. Os meus joelhos ficaram encostados às costas do piloto. Subimos
lentamente o rio Vermelho, que a esta hora era efectivamente vermelho. Tinha-se a
sensação de se ter recuado no tempo e de o admirar com os olhos dos antigos geógrafos
que lhe haviam dado aquele nome precisamente à hora em que o Sol poente o iluminava
de margem a margem; depois, a 9000 pés, desviámo-nos em direcção ao rio Negro,
verdadeiramente negro, cheio de sombras fora da incidência da luz solar, e a imensa e
majestosa paisagem de gargantas e penhascos e florestas rodou e ficou por debaixo de
nós, perfeitamente vertical. Era impossível largar-se uma esquadrilha naqueles campos
verdes e cinzentos sem que dela houvesse mais vestígios que os deixados por algumas
moedas largadas num campo de trigo. Ao longe, ànossa frente, deslocava-se com
movimentos de meiga um pequeno avião. Nós íamos substituí-lo.
Demos duas voltas sobre a torre e a aldeia rodeada de verdura e depois subimos
helicoidalmente pelo céu deslumbrante. O piloto, que se chamava Trouin, virou-se para
mim e piscou-me o olho. Os botões que controlavam as metralhadoras e a câmara das
bombas estavam no volante. Quando nos preparávamos para picar senti aquela
contracção de vísceras que acompanha qualquer acontecimento que experimentamos
pela primeira vez: o primeiro baile, o primeiro jantar, o primeiro amor.

188

Quando o avião atingiu o ponto mais alto da sua subida lembrei-me do Great Racer,
em Wembley. Era impossível desistir: tínhamos caído na nossa própria armadilha. Tive
somente tempo de ler no mostrador 3000 metros. Depois picámos. Só havia sensações, a
visão desaparecera. Escorreguei até ficar completamente encostado às costas do piloto:
tinha a sensação de ter o peito comprimido por imenso peso. Não me dei conta do
momento em que largaram as bombas; depois ouvi a rajada da metralhadora e fomos
inundados pelo cheiro da cordite e desapareceu-me o peso do peito à medida que
subíamos e o que sentia como que caindo era o estômago, que descia em espirais, como
um suicida, para o chão donde tínhamos vindo. Durante quarenta segundos Pyle deixara
de existir: nem mesmo a solidão existira. A medida que subíamos numa trajectória
curva eu via pela janela lateral o fumo apontado na minha direcção. Antes de picarmos
pela segunda vez senti medo: medo de me sentir humilhado, medo de vomitar sobre as
costas do piloto, medo que os pulmões envelhecidos não resistissem à pressão. Depois
de termos picado pela décima vez só sentia irritação: aquilo já durava há muito tempo,
eram horas de irmos para casa. Mais uma vez subimos a pique até fora do alcance das
metralhadoras, desviámo-nos, e o fumo apontou para o avião. A aldeia estava completa-
mente rodeada de montanhas. Éramos forçados a aproximarmo-nos sempre da mesma
maneira, pela mesma abertura. Não havia processo de variar de ataque. Quando picámos
pela décima quarta vez eu pensei, liberto já do medo da humilhação: .Tudo o que eles
têm a fazer é fixar a posição da metralhadora». Levantámos novamente o focinho para o
ar seguro: talvez nem tivessem uma metralhadora. Aqueles quarenta minutos tinham-me
parecido intermináveis, mas não sentira a angústia dos meus problemas pessoais.
Quando virámos para tomar a direcção de casa o Sol afundava-se: o instante do
geógrafo passara, o rio Negro já não era negro e o rio Vermelho era todo ouro.
Descemos mais uma vez afastando-nos da floresta nodosa e descontínua para nos
encaminharmos para o rio, voando horizontalmente sobre os arrozais abandonados e
dirigindo-nos como balas para um pequeno barco flutuando na água amarela. A
metralhadora largou uma única rajada e o barco explodiu num repuxo de centelhas; nem
nos demos ao trabalho de presenciar os esforços das nossas vítimas para sobreviver.
Subimos e fomos para casa. Pensei de novo como pensara ao ver a criança morta em
Phat Diem: «Odeio a guerra». Aquela escolha súbita e fortuita de uma vítima tinha
qualquer coisa de extremamente chocante: o acaso levara-nos. a passar ali, chegara uma
rajada,

189

não havia ninguém para retribuir o fogo e lá íamos de novo, depois de termos
contribuído com a nossa quota-parte para o número de mortos no mundo. Coloquei os
auscultadores para que o capitão Trouin me pudesse falar.
- Vamos fazer um pequeno desvio. O pôr do Sol sobre o calcaire é maravilhoso.
Você não deve perdê-lo - acrescentou com bondade, tal como um anfitrião que mostra
as belezas da sua propriedade. E durante duzentos quilómetros seguimos o pôr do Sol
sobre a Baie d'Along. A cabeça marciana de capacete olhou pensativamente para fora,
para os pequenos bosques dourados incrustrados nas imensas bossas e arcos da pedra-
pomes. E a ferida do crime deixou de sangrar.

190
5
Naquela noite o capitão Trouin insistiu em me levar à casa de ópio, embora ele não
fumasse. Segundo dizia, agradava-lhe o cheiro e a sensação do sossego para terminar o
seu dia de trabalho. Mas numa profissão como a sua não lhe era permitido ir mais além.
Havia oficiais que fumavam, mas esses pertenciam ao Exército: ele precisava de dormir.
Deitámo-nos num dos pequenos cubículos em fila, como os dormitórios das escolas, e o
proprietário chinês preparou-me os cachimbos. Desde que Phuong me deixara era a
primeira vez que fumava. Do outro lado da sala estava uma linda mestiça, com
maravilhosas pernas compridas, toda enroscada, já tendo fumado os seus cachimbos,
lendo uma acetinada revista feminina. O cubículo ao lado do seu estava ocupado por
dois chineses de meia-idade, que falavam de negócios, bebiam chá e tinham posto os
cachimbos de parte.
- Aquele barco, esta tarde, estava a fazer algum mal?
- Quem pode sabê-lo? Temos ordem de fazer fogo sobre tudo o que nos apareça pela
frente naquela região do rio - respondeu-me Trouin.
Fumei o primeiro cachimbo. Tentei não pensar em todos os cachimbos que fumara
em casa. Trouin disse:
- O que aconteceu hoje... para um tipo como eu não é ainda o pior. Quando
estávamos sobre a aldeia eles podiam ter-nos atingido e feito cair. O risco que nós
corremos era tão grande como o deles. O que detesto são os bombardeamentos com
napalm. A 9000 metros, sem poderem atingir-nos. - Fez um gesto de desespero. - Vê-se

191

a floresta a incendiar-se. Só Deus sabe o que se veria do chão. Os pobres diabos são
queimados vivos, as chamas cobrem-nos como água, Ficam completamente
encharcados no fogo. - E depois continuou, com raiva contra todo um mundo que não
conseguia compreender: - Eu não estou a lutar numa guerra colonial. Você acha que eu
era capaz de fazer tudo isto pelos colonos da Terre Rouge? Preferia ser julgado em
conselho de guerra. Nós estamos a combater nas vossas guerras e vocês só nos deixam
as culpas.
- Quanto àquele barco... - disse-lhe.
- Sim, o barco também. - Ele observava-me, enquanto eu me estendia para fumar o
segundo cachimbo. - Invejo-lhe o processo de fuga.
- Você não sabe do que estou a fugir. Não é da guerra: a guerra não me interessa. Eu
não tenho partido, não estou metido nela.
- Mas há-de estar. Lá chegará o dia.
- Não eu.
- Você ainda coxeia.
- Eles tinham todo o direito de me mandar uma bala, mas nem mesmo era isso o que
estavam a'fazer. Destruíam uma torre. Devíamos sempre evitar patrulhas de demolição.
Mesmo Picadilly.
- Há-de vir o dia em que aconteça qualquer coisa que o obrigará a tomar partido.
- Não, vou voltar para Inglaterra.
- Aquela fotografia que você em tempos me mostrou...
- Oh, já a rasguei. Ela deixou-me.
- Tenho imensa pena.
- A vida é assim. Nós deixamos as pessoas e depois a maré vira. Quase que me faz crer
que existe uma justiça.
- Eu acredito. A primeira vez que fiz fogo com napalm pensei: "foi nesta aldeia que
nasci. É aqui que vive o senhor Dubois, o velho amigo de meu pai. O padeiro... em
criança eu gostava dele; o padeiro vai a fugir por entre aquelas chamas que eu lancei. Os
homens de Vichy não bombardearam o seu próprio país». Eu sentia-me pior do que
eles. - Mas continua na sua tarefa.
- Não passa de um estado de espírito. Só vem com o napalm. De resto penso que
estou a defender a Europa. E você sabe que eles, eles também fazem coisas bastante
monstruosas. Quando, em 1946, foram corridos de Hanói deixaram relíquias terríveis no
meio da sua própria gente, quando suspeitavam de que nos tinham ajudado. Havia uma
rapariga na morgue... não somente lhe tinham cortado os seios, como tinham mutilado o
amante e metido o...

192

- É por tudo isso que eu não quero tomar partido.


- Não se trata de raciocínio ou de justiça. Todos nós, num momento de grande emoção,
somos capazes de tomar partido, e depois já não podemos recuar. A guerra e o amor:
sempre foram comparados.
Olhou tristemente para o outro lado do dormitório, onde a mestiça se alongava
mergulhada na sua imensa paz temporária. Disse-me:
- E não gostaria que as coisas fossem diferentes. Está ali uma rapariga cujos pais a
obrigaram a seguir um determinado caminho. Quando este porto cair, qual será o seu
futuro? A França é só em parte o seu país...
- E crê que vai cair?
- Você é jornalista. Sabe melhor do que eu que não podemos ganhar. Sabe que todas as
noites eles cortam e minam a estrada para Hanói. Sabe que perdemos anualmente todo
um curso de Saint-Cyr. Em 50 quase fomos derrotados. De Lattre concedeu-nos dois
anos de graça: é tudo. Mas somos profissionais. Temos de continuar a lutar até que os
políticos nos dêem ordem de cessar fogo. É provável que se reúnam e concordem numa
paz que. podíamos ter conseguido logo de início. E estes anos de guerra não terão
passado de um absurdo. A sua cara feia, que me piscara o olho antes de picarmos, tinha
como que uma expressão de brutalidade profissional, lembrando uma máscara de Natal
pela qual espreitam, através dos buracos do papel, uns olhos de criança. - Você não
pode compreender esse absurdo, Fow ler. Não está do nosso lado.
- Há outras coisas na vida que transformam os anos num absurdo. Pôs a mão sobre o
meu joelho, num gesto estranho de protecção, como se fosse ele o mais velho.
- Leve-a para casa - disse-me. - É melhor do que um cachimbo.
- E quem lhe diz que ela vem?
- Eu já dormi com ela. E o tenente Perrin. São quinhentas piastras.
- É caro.
- Provavelmente também irá com trezentas. Mas numa situação destas não apetece
regatear.
Mas o seu conselho não foi bom. O corpo de um homem tem uma certa limitação
quanto aos actos que pode praticar, e as recordações haviam congelado o meu. Tudo o
que as minhas mãos tocaram naquela noite podia ser mais belo do que o que eu estava
habituado. Mas nem só a beleza é armadilha. Ela usava o mesmo perfume, e subita-
mente, no momento da penetração, o fantasma do que eu perdera

193
mostrou-se mais poderoso do que o corpo ali estendido ao meu dispor. Afastei-me e
deitei-me de costas e o desejo foi-se escoando.
- Desculpa - disse-lhe, mas mentia. - Não percebo o que tenho.
Ela disse, com imensa doçura e incompreensão:
- Não se preocupe. Acontece muitas vezes. É do ópio.
- Sim, é do ópio. - E quem me dera que tivesse sido.

194
Capítulo II

1o regresso a Saigão sem que pela primeira vez houvesse alguém à minha espera
deu-me uma sensação de estranheza. Quando cheguei ao aeroporto desejei poder dar
outra morada ao condutor do táxi. Não a da Rua Catinat.
A dor será menor do que a que senti quando parti?», pensei. E tentei convencer-me
de que era. Quando cheguei ao patamar reparei que a porta estava aberta. Uma
esperança desrazoável cortou-me a respiração. Caminhei muito lentamente em direcção
à porta. A esperança continuaria viva enquanto lá não chegasse. Ouvi uma cadeira
ranger e quando cheguei à porta vi um par de sapatos. Mas os sapatos não eram de
mulher. Entrei rapidamente, e quem se levantou desajeitada mente da cadeira de Phuong
foi Pyle.
- Olá, Thomas.
- Olá, Pyle. Como conseguiu entrar?
- Encontrei o Domínguez. Vinha trazer o seu correio. Pedi-lhe que me deixasse aqui
ficar.
- Phuong esqueceu-se de qualquer coisa?
- Oh, não, mas o Joe disse-me que você tinha ido à legação. Pensei que seria mais fácil
conversarmos aqui.
- Sobre que assunto?
Ele fez um gesto de desorientação, como um rapaz que é forçado a falar numa reunião
escolar e não consegue encontrar as palavras que as pessoas crescidas empregam.
- Você esteve fora?

197

- Estive. E você?
- Oh, eu tenho viajado por aqui e por ali.
- Continua a brincar com plásticos?
Riu com um ar infeliz e disse:
- As suas cartas estão ali.
Num relance vi que nada havia que de momento me pudesse interessar: uma carta do
escritório, de Londres, várias que tinham todo o ar de contas e mais uma do meu banco.
- Como vai Phuong?
A cara iluminou-se-lhe automaticamente, como aqueles brinquedos eléctricos que se
movimentam com determinados sons.
- Oh, está óptima - disse, e depois cerrou os lábios, como se tivesse dito mais do que
era sua intenção.
- Sente-se, Pyle. Desculpe eu ler isto. É do meu escritório.
Abri a carta. As surpresas podem ser muito inoportunas. O director dizia que tinha
ponderado a minha última carta e que dada a situação confusa em que a Indochina se
encontrava depois da morte do general De Lattre e da retirada de Hoa Binh, concordava
com a minha sugestão. Tinha nomeado um redactor temporário para os assuntos estran-
geiros e gostaria que eu ficasse na Indochina pelo menos mais um ano. «O lugar cá
ficará à sua espera», assegurava-me para me sossegar, com completa incompreensão.
Estava convencido de que eu me importava com o emprego e com o jornal.
Sentei-me em frente de Pyle e tornei a ler a carta, que chegara tarde demais. Durante
alguns momentos senti ilação, como no instante em que se acorda, antes de chegar a
recordação.
- Más notícias? - perguntou-me Pyle.
-Não.
Tentei convencer-me de que não teria tido a mínima importância: um adiamento de um
ano nunca poderia competir com um contrato de casamento.
- Vocês já se casaram? - perguntei-lhe.
- Não. - Corou (corava com muita facilidade). - Tenho estado à espera de obter uma
licença especial. Podermos:..íamos então casar na minha terra, decentemente.
- É mais decente por acontecer na sua terra?
- Bom, pensei... é-me tão difícil falar-lhe nestas coisas... Você é tão cínico, Thomas...
Mas seria uma manifestação de respeito. O meu pai e a minha mãe assistiriam... ela
como que entraria logo na família. É muito importante, dado o passado.

198

- O passado?
- Você sabe ao que me refiro. Não gostaria de a deixar por lá com o menor estigma...
- Você pensa deixá-la?
- Creio que sim. A minha mãe é uma mulher extraordinária... mostrar-lhe-ia a cidade,
apresentá-la-ia às pessoas. Sabe, ajudá-la-ia a adaptar-se, E a preparar a minha casa.
Eu não sabia se devia ou não ter pena de Phuong... ela desejara tanto ver os arranha-
céus e a estátua da Liberdade... Mas mal sabia o que os acompanharia: o professor e a
Sr.ª Pyle, os clubes femininos; ir-lhe-iam ensinar a jogar a canasta? Pensei como a vira
pela primeira vez, no Grand Monde, com o seu vestido branco, movendo-se tão de-
liciosamente sobre os seus pés de dezoito anos. E depois pensei na Phuong de há um
mês, regateando o preço da carne nos talhos do Boulevard de La Somme. Iria ela gostar
daquelas mercearias limpas, alegres, de Nova Inglaterra, onde inclusivamente o aipo
vinha embrulhado em celofane? Talvez gostasse. Eu não sabia. Inexplicavelmente, dei
por mim a dizer o que Pyle podia ter dito havia um mês:
- Tenha cuidado com ela, Pyle. Não force as coisas. Ela é capaz de sofrer
exactamente como você ou como eu.
- Mas certamente, Thomas, certamente.
- Ela parece muito pequena e frágil e diferente das nossas mulheres. Mas não deve
pensar nela como sendo um... como um enfeite,
- Sabe, Thomas, é estranho como tudo acaba sempre por se passar de um modo
diferente do que pensámos. Tenho andado apavorado com a expectativa desta conversa.
Pensei que você iria ser duro de roer.
- Lá no Norte tive tempo para pensar. Havia lá uma mulher... talvez eu tivesse visto
a mesma coisa que você viu naquele prostíbulo. Foi bom que ela tivesse ido consigo.
Podia acontecer que eu acabasse por a deixar aqui com um tipo como o Granger. Para
quem ela não fosse mais do que uma fêmea.
- E podemos continuar amigos, Thomas?
- Com certeza. Simplesmente prefiro não voltar a ver Phuong. O que há dela por aqui já
me chega. Preciso procurar outra casa quan do tiver tempo.
Ele destraçou as pernas e levantou-se.
- Estou tão satisfeito, Thomas. Nem posso dizer-lhe quando o estou, Sei que já o disse,
mas garanto-lhe que preferia que não tivesse sido consigo.

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- Ainda bem que foi você, Pyle.
A entrevista não se passara segundo as minhas previsões: sob as raivosas mas
superficiais maquinações, a um nível mais fundo, o genuíno plano de acção foi
ganhando forma. Cada vez que a sua inocência me inspirara cólera, um juiz dentro de
mim fizera pender a balança para o seu lado, comparara o seu idealismo, as suas ideias
mal alinhavadas sobre os trabalhos de York Harding com o meu cinismo. Oh, sim, eu
tinha razão quanto aos factos, mas não tinha ele também razão em ser jovem e se
enganar, e não seria, de nós os dois, o melhor para compartilhar da vida de uma
rapariga?
Demos um aperto de mão descuidado, mas um medo indefinido fez-me segui-lo até
ao cimo das escadas e chamá-lo. Talvez que naqueles tribunais interiores onde se
tomam as verdadeiras decisões também exista, além do juiz, um profeta.
- Pyle, não vá muito pelo que York Harding diz.
- York! - Do primeiro patamar, onde estava, levantou a cabeça e fitou-me.
- Nós somos os velhos povos coloniais, Pyle, mas aprendemos umas quantas
realidades, aprendemos a não brincar com fósforos. Esta terceira força... é obra de um
livro, e é tudo. O general Thé não passa de um bandido com um milhar de homens: não
é uma democracia nacional.
Dava a impressão de que estivera a olhar através de uma caixa de correio para ver
quem eu era, e que agora, deixando cair a portinhola, impedira a entrada ao intruso
indesejável. Não lhe via os olhos.
- Não percebo onde quer chegar, Thomas.
- Essas bombas de bicicleta. Foram uma boa graça, embora um homem tivesse perdido
um pé. Mas Pyle, você não deve confiar num homem como o Thé. Não serão eles quem
salvarão o Oriente do comunismo. Nós conhecemos o género. .
. - Nós?
- Os velhos colonialistas.
- Pensei que você não tomava partido.
- Eu não tomo, Pyle. Mas se é preciso que alguém faça disparates, nessa organização a
que você pertence, deixe que esse alguém seja o Joe. Vá para a sua terra com Phuong.
Esqueça a terceira força.
- Pode crer que aprecio muito os seus conselhos, Thomas - disse-me, muito formal. -
Bom, até à vista.
- Sim, até à vista.

200

As semanas foram-se passando, mas, não sei porquê, continuava a não procurar
outro alojamento. Não se tratava de não ter tempo. A crise anual da guerra passara
novamente: o quente e húmido crachin assentara no Norte. Os Franceses tinham
deixado Hoa Binh, a campanha do arroz em Tonquim terminara, assim como terminara
a campanha do ópio em Laos. Domínguez podia ocupar-se facilmente de tudo o que era
preciso fazer no Sul. Por fim lá me arrastei para ver um apartamento no chamado
Edifício Moderno (Exposição de Paris de 1934?), no outro extremo da Rua Catinat, para
lá do Hotel Continental. Era o pied-à-ferre em Saigão de um plantador de borracha que
voltava para a sua terra. Queria-o vender completo. Tinha várias gravuras do Salão de
Paris desde 1880 a 1900. O que mais tinham de comum era uma mulher com enormes
seios e penteado extraordinário, envolta em gazes, que deixavam sempre expostas as
imensas nádegas fendidas e escondiam o campo de batalha. No quarto de banho o
plantador fora mais audaz com as reproduções de Reps.
- O senhor gosta de arte? - perguntei-lhe, e ele sorriu-me afectadamente, como se
fizéssemos parte da mesma conspiração. Era gordo, tinha um diminuto bigode negro e
pouco cabelo.
- Os melhores quadros estão em Paris - disse-me.
Na sala de estar havia um cinzeiro extraordinário, alto, representando uma mulher nua
com uma taça sobre o cabelo, e havia bibelôs de loiça representando raparigas nuas
abraçadas a tigres e um outro muito estranho representando uma rapariga, de bicicleta,
nua da cintura

201

para cima. No quarto de dormir, em frente da imensa cama, havia um enorme quadro a
óleo, envernizado, representando duas raparigas a dormir juntas. Perguntei-lhe o preço
do apartamento, excluindo a colecção, mas ele não concordou em separar as duas
coisas.
- O senhor não é um coleccionador? - perguntou-me.
-Não.
- Também tenho alguns livros que não me importaria de incluir, embora tencionasse
levá-los comigo para França. - Abriu uma estante com portas de vidro e mostrou-me a
sua biblioteca: edições ilustradas, caras, de Afrodite e de Nana, a Garçonne e alguns
livros de Paulo de Kock. Senti-me tentado a perguntar-lhe se não se importaria de se
vender, juntamente com a colecção: ficava bem ao seu lado, também ele fazia parte de
uma época.
- Quando se vive sozinho nos trópicos, uma colecção serve de companhia - disse-me.
Pensei em Phuong, só porque ela estava completamente ausente. E assim é sempre:
quando fugimos para o deserto o silêncio grita-nos aos ouvidos.
- Não creio que o meu jornal consinta que eu compre uma colecção de arte.
- Claro que não apareceria no recibo.
Senti-me satisfeito por Pyle não ter visto: aquele homem podia ter-lhe servido de
modelo para o seu imaginário «velho colonialista», que já era suficientemente
repugnante. Quando saí eram quase onze e meia e desci até ao Pavillon para beber um
copo de cerveja gelada. O Pavillon era o ponto de reunião das mulheres europeias e
americanas, onde elas bebiam café, e eu estava certo de que não iria encontrar Phuong.
Na realidade sabia com precisão onde ela estava àquela hora do dia: não era rapariga
que mudasse de hábitos, e portanto, ao vir do apartamento do plantador, eu atravessara a
rua para evitar passar pelo milk bar onde a esta hora do dia ela bebia um batido de
chocolate. Na mesa ao lado estavam duas raparigas americanas, limpas e cuidadas
apesar do calor, comendo gelados. Tinham ambas malas a tiracolo sobre o ombro
esquerdo, perfeitamente iguais, com emblemas de latão representando águias. Também
as pernas de ambas eram idênticas, compridas e esguias, e os narizes ligeiramente
arrebitados. Comiam os gelados com um ar de concentração como se estivessem a levar
a cabo uma experiência no laboratório do liceu. Perguntei-me se seriam colegas de Pyle:
eram encantadoras, e também gostaria de as mandar voltar para a América. Acabaram
os gelados e uma delas olhou para o relógio.

202
- É melhor irmos andando. É mais seguro.
Que entrevista teriam?
- O Warren disse que não devíamos ficar aqui depois das onze e vinte e cinco.
- Já passaram.
- Gostaria imenso de ficar. Não sei do que se trata. Sabes?
- Não sei bem, mas o -Warren disse que era preferível não ficarmos.
- Achas que se trata de uma demonstração?
- Tenho visto tantas demonstrações - disse a outra com um ar cansado, como se fosse
um turista farto de igrejas.
Ela levantou-se e pôs sobre a mesa o dinheiro para os gelados. Antes de sair relance
ou um olhar pelo café e os espelhos reflectiram-lhe o perfil sardento. Só ficou uma
mulher francesa de meia-idade, com ar desleixado, que tentava em vão, mas
cuidadosamente, arranjar a cara. Aquelas duas mal precisavam de se pintar: um rápido
passar de batom, uma penteadela fugidia. Por instantes o olhar de uma delas viera pou-
sar em mim: não se assemelhava ao olhar de uma mulher, mas sim ao de um homem,
muito directo, especulando sobre a atitude a tomar. Depois virou-se rapidamente para a
companheira:
- É melhor irmos andando. .
Ociosamente, observei-as saírem lado a lado para a rua inundada de sol. Era impossível
conceber que qualquer delas pudesse alguma vez ser vítima de uma paixão desordenada:
nada tinham que ver com lençóis amarrotados e suor do sexo... Levariam. para a cama
desodorizantes? Por momentos senti inveja do seu mundo esterilizado, tão diferente do
que eu habitava que súbita e inexplicavelmente se estilhaçou. Dois espelhos fizeram um
voo na minha direcção e depois, a meio caminho, caíram ao chão. A francesa
desmazelada estava de joelhos no meio dos destroços do que haviam sido cadeiras e
mesas. A sua caixa de pó-de-arroz ficara aberta e ilesa sobre o meu colo, e não sei por
que razão estranha fiquei sentado exactamente onde estava, embora a minha mesa se
tivesse juntado aos escombros que rodeavam a francesa. No café havia um som estranho
de jardim: o cair de água de uma fonte. Olhei para o bar e vi filas e filas de garrafas
partidas que se despejavam, formando um rio multicolor: o vermelho do porto, o laranja
do Cointreau, o verde do chartreuse, o amarelo-opalescente do Pastis atravessavam o
chão do café. A francesa levantou-se e procurou calmamente a caixa de pó-de-arroz.
Dei-lha e ela agradeceu-me com um ar formal, sentada no

203

chão. Percebi que a não ouvira muito bem. A explosão dera-se tão perto que os meus
tímpanos necessitavam de se restabelecer do choque da pressão.
Pensei com petulância: .Mais uma graça dos plásticos. E que esperará o senhor Heng
que eu escreva agora?» Mas quando cheguei à Place Garnier as densas nuvens de fumo
demonstravam que agora não se tratara de uma graça. O fumo provinha dos automóveis
incendiados no parque de estacionamento, em frente do Teatro Nacional. Havia pedaços
de automóveis espalhados pela praça e na orla do jardim decorativo estava estendido um
homem, sem pernas, contorcendo-se. Da Rua Catinat e do Boulevard Bonnard chegava
constantemente mais gente. As sereias dos carros da Polícia, as campainhas das
ambulâncias e dos bombeiros atacaram-me, simultaneamente, os tímpanos combalidos.
Durante um instante esquecera-me que Phuong devia estar no mílk bar, do outro lado da
praça. Entre nós pairava o fumo. Os meus olhos não conseguiam penetrá-lo.
Saí para a praça e um polícia mandou-me parar. Tinham formado um cordão em
redor, para evitar que a multidão aumentasse. E as macas começavam a emergir desse
cordão. Implorei ao polícia à minha frente:
- Deixe-me atravessar. Tenho uma amiga...
- Recue. Todos os que estão aqui têm amigos.
Afastou-se para dar passagem a um polícia e eu tentei segui-lo, mas ele puxou-me para
trás.
- Sou jornalista - disse-lhe, e procurei em vão a carteira, onde tinha o meu cartão, não
conseguindo encontrá-la. Dar-se-ia o caso de eu ter saído de casa sem a trazer?
- Pelo menos diga-me o que aconteceu ao milk bar - insisti. O fumo começava a
estar menos denso e tentei ver, mas a multidão
era tão compacta que nada consegui. Ele disse qualquer coisa que não consegui ouvir.
- Que disse?
- Não sei. Recue, está a impedir a passagem às macas - repetiu. Seria possível que eu
tivesse perdido a carteira no Pavillon? Virei-me para lá voltar e dei de cara com Pyle.
- Thomas! - exclamou.
- Pyle, por amor de Deus, onde está o seu passe da legação? Temos de atravessar a
praça. Phuong está no milk bar.
- Não, não, não está.
- Está, Pyle. Tem por costume lá ir, às onze e meia. É indispensável que a encontremos.

204

- Ela não está lá, Thomas.


- Como o sabe? Onde está o seu cartão?
- Preveni-a que não fosse.
Virei-me para o polícia, com a intenção de o empurrar para o lado e tentar atravessar a
praça de uma corrida. Ele podia disparar: tanto me fazia. Mas nesse momento a palavra
«preveni-a» chegou-me ao consciente. Peguei no braço de Pyle:
- Preveniu-a? Que quer você dizer com isso?
- Disse-lhe que não viesse aqui esta manhã.
Então comecei a ver claro.
- E o Warren? Quem é esse Warren? Ele também preveniu as raparigas.
- Não percebo de quem você está a falar.
- É indispensável que entre os mortos não haja americanos não é? Uma ambulância
abriu caminho pela Rua Catinat até à praça, e o polícia que me havia bloqueado o
caminho afastou-se para o lado, a fim de lhe dar passagem. O outro polícia discutia.
Empurrei Pyle para a frente até à praça, sem lhes dar tempo a que nos impedissem a
passagem.
Caímos numa congregação de enlutados. A polícia não podia evitar que mais gente
entrasse na praça; mas não havia conseguido limpá-la dos sobreviventes e daqueles que
tinham conseguido chegar em primeiro lugar. Os médicos estavam demasiadamente
ocupados para se preocuparem com os mortos, e assim o campo ficara livre para os pa-
rentes seus proprietários, porque pode ser-se proprietário de um morto exactamente
como se é dono de uma cadeira. Sentada no chão, uma mulher amparava no colo os
restos do seu filho: por uma espécie de modéstia, cobrira-o com o seu chapéu de palha
de camponesa. Estava imóvel e silenciosa, e o que mais me impressionou foi o silêncio
da praça. Lembrava uma igreja que eu visitara durante a missa; os únicos ruídos eram os
do dizer da missa e de alguns europeus que aqui e além choravam e imploravam e
ficavam novamente silenciosos, como que envergonhados pela modéstia, a paciência e o
decoro do Oriente. Um torso sem pernas à beira do jardim continuava a contorcer-se co-
mo uma galinha de cabeça cortada. A camisa do homem indicava que se tratava
provavelmente de um condutor de trishaw.
- É horrível - disse Pyle.
Olhou para os sapatos molhados e acrescentou, numa voz de alguém que se sente
doente:
- O que é isto?

205

- É sangue. Nunca viu sangue?


- Tenho de os limpar antes de ir falar com o ministro.
Não creio que ele soubesse bem o que estava a dizer. Era a primeira vez que via uma
guerra autêntica: tinha descido o rio até Phat Diem como que numa espécie de sonho
infantil, e a verdade é que aos seus olhos os soldados não contavam.
- Vê agora o que um tambor de Diolacton consegue fazer quando cai em más mãos?
- Forcei-o, colocando a mão sobre o seu ombro, a olhar em redor. - A estas horas o largo
está sempre cheio de mulheres e crianças: é a hora das compras. Porquê, escolher esta
hora?
- Devia ter havido uma parada... - disse ele com voz fraca.
- E você tinha esperança de apanhar alguns coronéis. Mas essa parada foi cancelada
ontem, Pyle.
_ Eu não sabia.
- Não sabia! - Empurrei-o para uma poça de sangue deixada por uma maca. - Você tinha
obrigação de estar mais bem informado.
- Estava fora - disse-me, olhando para os pés. - Eles, deviam ter desistido.
- E perdido uma oportunidade como esta? Acha que o general Thé é homem para
perder uma demonstração destas? Isto é melhor do que uma parada. Numa guerra a
morte de mulheres e crianças constitui uma notícia sensacional, a de soldados não. Isto
vai aparecer em toda a imprensa mundial. O que você tem aí no sapato do pé direito
representa a terceira força e a Nacional Democracia. Vá para casa e conte a Phuong
como se deram estas mortes heróicas: algumas dúzias dos seus compatriotas deixaram
de preocupar-vos. .
Um padre baixo e gordo passou por nós apressadamente, com um prato tapado por
um guardanapo. Pyle estivera silencioso durante bastante tempo e eu nada mais tinha a
dizer. Na realidade já falara de mais. Ele estava pálido, com um ar amachucado, prestes
a desmaiar, e eu pensei: "Não vale a pena. Ele há-de ser sempre inocente e não podemos
culpar os inocentes, eles nunca têm culpa. Tudo o que podemos fazer é fiscalizá-los ou
eliminá-los. A inocência é uma espécie de loucura».
- O Thé nunca teria feito uma coisa destas. Estou absolutamente convencido disso.
Houve algúém que o enganou. Os comunistas... disse Pyle.
As suas boas intenções e a sua ignorância constituíam uma armadura inexpugnável.
Deixei-o na praça e subi a Rua Catinat até àquele ponto em que a catedral horrenda, cor-
de-rosa, bloqueava o caminho.

206

Os fiéis começavam a entrar: devia-os confortar poderem rezar aos mortos pelos
mortos.
Em contrapartida eu tinha razões para me sentir agradecido. Phuong não estava com
vida? Não tinha sido «prevenida»? Mas tudo o que me vinha à ideia era aquele torso lá
na praça, aquele bebé ao colo da mãe. Esses não tinham sido avisados: não eram
suficientemente importantes. Se a parada se tivesse realizado, não estariam todos eles
também lá, por curiosidade, para verem os soldados, para ouvirem os oradores e lhes
atirarem flores? Uma bomba de cem quilos não faz discriminações. Quantos coronéis
mortos serão precisos para justificar a morte de uma criança e a de um condutor de
trishaw quando se está a construir uma frente nacional democrática? Mandei parar um
trishaw motorizado e disse ao condutor que me levasse ao Quai Mytho.

207
QUARTA PARTE

Capítulo I

Tinha dado dinheiro a Phuong para ir com a irmã ao cinema. Era um processo de a
afastar. Fui jantar com Domínguez e depois voltei para casa e fiquei à espera. Vigot
apareceu às dez em ponto. Desculpou-se, mas não ia beber porque estava muito cansado
e podia adormecer. O dia fora muito comprido.
- Crimes, mortes súbitas?
- Não. Pequenos furtos. Alguns suicídios. Esta gente tem a loucura do jogo e quando
não tem mais dinheiro para perder mata-se. Se eu tivesse sabido de antemão o tempo
que teria de passar nas morgues talvez nunca tivesse escolhido a profissão de polícia.
Não gosto do cheiro de amoníaco. Olhe, acho que sempre vou beber uma cerveja.
- Desculpe, mas não tenho frigorífico.
- Ao contrário das morgues. Então um pequeno uísque inglês, se tiver.
Recordei a noite em que fora com ele ao necrotério. Tinham tirado o cadáver de
pyle como se fosse um tabuleiro de gelo.
- Então você já não volta para Inglaterra?
- E você tem andado a investigar a minha vida?
- Sim, tenho.
Estendi-lhe o copo de uísque por forma a que ele pudesse verificar como os meus
nervos estavam calmos.
- Vigot, gostaria que você me dissesse a razão que o leva a pensar que eu estive
envolvido na morte de Pyle. É uma questão de ter um motivo? Porque queria que
Phuong voltasse? Ou acha que foi vingança de a ter perdido?

213

- Não, não acho. Não sou assim tão estúpido. Não é costume ficar-se com um livro
do nosso inimigo para recordação. Está ali, na prateleira, A Função do Ocidente. Quem
é este York Harding?
- É o homem que você procura, Vigot. Foi ele quem matou Pyle, lá de longe.
- Não percebo.
- É uma espécie de superjornalista: chamam-lhes correspondentes diplomáticos. Ele
tem uma ideia e depois altera toda e qualquer situação até que consiga coaduná-la à sua
ideia. O Pyle veio para o Oriente cheio desta ideia do York Harding. Harding tinha aqui
estado em tempos, durante uma semana, quando vinha de Banguecoque e ia a caminho
de Tóquio. Pyle cometeu o erro de pôr em prática essa ideia. Harding falava de uma
terceira força. Pyle arranjou-a: um pequeno impostor, um bandido com dois mil homens
e alguns tigres mansos. E meteu-se numa complicação.
- Isso nunca lhe acontece, não é verdade?
- Tenho evitado que me aconteça.
- Mas falhou, Fowler.
Não sei porquê, pensei no capitão Trouin e naquela noite, que me parecia ter passado há
anos e anos, na casa de ópio em Haiphong. Que me dissera ele? Qualquer coisa acerca
de todos nós acabarmos sempre por tomar partido, num momento de grande emoção. Eu
disse a Vigot:
- Teria dado um óptimo padre. Que tem você que inspira confiança para uma
confissão? Isto é, se porventura alguma coisa houvesse a confessar.
- Nunca desejei confissões.
- Mas já as ouviu?
- De vez em quando.
-Será porque, tal como um padre, o seu ofício impõe, não que se si1nta chocado, mas
que ofereça simpatia humana? «Monsieur Flic, tenho de lhe explicar exactamente as
razões que me levaram a fazer num bolo o crânio daquela velha.» «Sim, Gustave, não se
apresse e explique -me porque o fez.»
- Você tem uma imaginação fantástica. Mas não bebe, Fowler?
- Não acha de má táctica que um criminoso beba na presença de um oficial da Polícia?
- Eu nunca disse que você era um criminoso.
- Mas suponha que o álcool desencadeava, até num tipo como eu, o desejo de confissão?
Na sua profissão não existe o segredo do confessionário.

214

- É raro que um homem que se confessa se preocupe por manter a confissão secreta:
mesmo quando o confessor é um padre. As razões que o levam a confessar-se são
outras.
- Para se purificar?
- Nem sempre. Muitas vezes só pretende ver-se a si próprio com nitidez, tal como é. Por
vezes está simplesmente farto de dissimulações. Você não é um criminoso, Fowler, mas
gostaria de saber o que o levou a mentir-me. Você esteve com Pyle na noite em que
ele morreu.
- O que o leva a pensar isso?
- Não estou de maneira alguma convencido de que você o tivesse morto. Nunca usaria
uma baioneta enferrujada.
- Enferrujada?
- É um dos pormenores que a autópsia revelou. No entanto, já lhe disse que não foi essa
a causa da morte. Foi a lama do Dakow. Estendeu-me o copo para eu lhe servir outro
uísque.
- Vejamos, você às seis e dez estava a beber uma bebida no Continental, não é verdade?
- Estava.
- E às seis e quarenta e cinco esteve a falar com outro jornalista à
porta do Majestic?
- Estive. Com o Wilkins. Já lhe disse tudo isto, Vigot. Naquela noite...
- Eu sei. Desde então dei-me ao trabalho de verificar o seu depoimento. É
extraordinário como consegue lembrar-se de pormenores tão insignificantes.
- Sou repórter, Vigot.
- As horas não são perfeitamente exactas, mas não é possível atacá-lo pelo facto de
você ter errado um quarto de hora aqui e uns dez minutos além. Não havia uma razão
que o levasse a pensar que o tempo era um factor importante. De facto, seria muito mais
suspeito se você tivesse sido perfeitamente preciso.
- Não fui?
- Não. Você esteve a falar com o Wilkins às sete menos cinco.
- Mais outros dez minutos.
- Sim, tal como já lhe tinha dito. E quando chegou ao Continental tinham acabado de
dar as seis.
- O meu relógio anda sempre ligeiramente adiantado. Que horas tem você?
- Dez horas e oito minutos.
_ Pelo meu são dez horas e dezoito. Vê?
215

Não se deu ao trabalho de verificar.


- Então pelo seu relógio você errou vinte e cinco minutos na hora que me indicou como
tendo estado a falar com o Wilkins. É um erro bastante considerável, não acha?
- Talvez eu tivesse automaticamente dado o desconto. Ou talvez tivesse acertado o
relógio naquele dia. Faço-o às vezes.
- O que me interessa... é capaz de me deitar mais soda? Você preparou-me esta
bebida sobre o forte... é o facto de você não estar absolutamente nada zangado comigo -
disse Vigot. - Ser-se interrogado como eu o estou a fazer não é muito agradável.
- A situação desperta-me interesse, tal como um livro policial. E é preciso não
esquecer que, como você já o afirmou, eu não matei o Pyle.
- Eu sei que você não estava presente quando o mataram.
- Não percebo qual é a sua intenção e o que quer provar ao devmonstrar que me enganei
dez minutos aqui e cinco além.
- Fornece-nos uns intervalos, umas lacunas no tempo.
- Intervalos? Para quê?
- Para que Pyle pudesse vir aqui procurá-lo.
- Mas por que razão lhe interessa tanto provar isso?
- Devido ao cão.
- E à lama que ele tinha entre as unhas?
- Não era lama. Era cimento. Ele deve ter andado, enquanto seguia Pyle naquela noite,
sobre cimento ainda fresco. Lembrei-me de que no rés-do-chão deste edifício havia
obras. Ainda as há. Passei por elas hoje à noite, ao entrar. Nesta terra trabalha-se até
tarde.
- E quantas casas haverá que estejam em obras e tenham cimento ainda fresco?
Houve alguém que se lembrasse do cão?
- Claro que lhes fiz essa pergunta. Mas se se lembrassem nada me teriam dito. Eu
represento a Polícia.
Parou de falar e encostou-se para trás na cadeira, fitando o copo. Tive a sensação de
que se lhe deparara qualquer analogia e que estava a quilómetros de distância. Uma
mosca passeou-lhe pelas costas da mão e ele nem se deu ao trabalho de a enxotar,
exactamente como Domínguez nunca o teria feito. Senti-me em presença de uma força
imóvel e profunda. Podia, inclusivamente, estar a rezar.
Levantei-me, afastei as cortinas e entrei no quarto. Nada queria dele. Pretendi
simplesmente afastar-me por momentos daquele silêncio sentado na cadeira. Os livros
de imagens de Phuong estavam novamente na prateleira. Ela colocara entre os seus
cosméticos um telegrama que

216

me fora enviado: uma mensagem insignificante da sede de Londres. Não estava em


estado de espírito para o abrir. Tudo era igual ao que fora antes de Pyle aparecer. Os
quartos não mudam, os ornamentos ficam onde nós os colocamos: só o coração perece.
Voltei à sala de estar e Vigot levou o copo aos lábios.
- Nada tenho a dizer-lhe. Absolutamente nada - disse-lhe.
- Então vou andando. Não creio que seja necessário incomodá-lo de novo.
Junto da porta virou-se para trás, como se lhe custasse abandonar a esperança: a sua
esperança ou a minha.
- É estranho que você tivesse ido ver uma fita daquele gênero. Nunca pensei que
gostasse desses dramas com gente mascarada. Que filme era esse? O Robin dos
Bosques?
- Não, creio que foi Scaramouche. Precisava de passar tempo. E de me distrair.
- De se distrair?
- Todos temos as nossas preocupações, Vigot - disse-lhe com cautela, à laia de
explicação.
Depois de Vigot sair eu ainda tinha uma hora de espera à minha frente. À espera de
Phuong, de companhia com vida. Era estranho como a visita de Vigot me perturbara.
Tinha a sensação de que um poeta me mostrara o seu trabalho para que eu o criticasse e
que eu, com um gesto desastrado, o destruíra. Eu era um homem sem uma vocação. Não
é possível considerar-se o jornalismo como uma vocação. Mas era-me possível
reconhecer as vocações dos outros. Agora que Vigot partira para arquivar o seu dossier
incompleto, desejava ter tido a coragem de o chamar e dizer: "Tem razão. É verdade que
eu vi Pyle na noite em que ele morreu,..

217
Ca pítulo II

A caminho do Quai Mytho cruzei-me com várias ambulâncias que saíam de Cholon
a caminho da Place Garnier. Quase que era possível avaliar a velocidade com que as
notícias se tinham espalhado pela expressão das caras, que de princípio se viravam para
alguém que, como eu, vinha da direcção da praça, com um ar expectante e de especula-
ção. Quando entrei em Cholon vencera a corrida da grande novidade: a vida era normal,
atarefada, contínua. Ninguém sabia de nada.
Dei com o armazém do Sr. Chou e subi as escadas que levavam à sua casa. Nada
mudara desde a minha última visita. O gato e o cão deslocavam-se do chão para as
caixas de papelão, destas para as malas, como peões num jogo de xadrez. O bebé
gatinhava pelo chão e os dois velhos continuavam a jogar mab-Jang. Mas os jovens
estavam ausentes.
Logo que cheguei à porta uma das mulheres começou a deitar chá numa xícara. A
velha estava sentada na cama e olhava para os pés.
- O senhor Heng está? - perguntei. .
Abanei a cabeça ao chá; o meu estado de espírito naquele momento não era de
molde a permitir que eu começasse a ingerir uma nova série de xícaras daquela infusão
trivial e amarga.
- Il faut absalument que je voie Mr. Heng. - Parecia-me impossível fazer-lhes
compreender a importância do meu pedido. Mas creio que o facto de lhes ter recusado o
chá com brusquidão provocou uma certa comoção. Ou talvez eu, tal como Pyle, tivesse
sangue nos sapatos. O que é verdade é que, passado pouco tempo, uma das mulheres
conduziu-me pelas escadas

221

abaixo, por duas ruas barulhentas e embandeiradas, e deixou-me diante de uma casa que
no país de Pyle se deveria chamar «agência funerária», cheia de jarrões de pedra onde
eventualmente se colocam os ossos dos Chineses.
- Queria falar com o senhor Heng - disse a um velho chinês à porta. - Com o senhor
Heng.
Parecia-me um bom local para descansar num dia que havia começado com a
colecção erótica de um plantador e continuado com os cadáveres daquela gente
assassinada na praça. Houve alguém que chamou lá de dentro e o chinês afastou-se para
me dar entrada.
Foi o próprio Heng quem avançou com um ar cordial e me encaminhou para uma
pequena sala interior, rodeada daquelas cadeiras negras, esculpidas, que se vêem em
todas as salas de espera das casas chinesas. Cadeiras pouco confortáveis, nada
acolhedoras, de que ninguém se serve. Mas tive a sensação de que elas tinham acabado
de ser utilizadas, porquanto sobre a mesa havia cinco pequenas xícaras, duas das quais
não estavam vazias.
- Vim interromper uma reunião? - disse-lhe.
- Um mero assunto de negócios sem importância - disse o Sr. Heng, rodeando a
pergunta. - Tenho sempre imenso prazer em o ver, senhor Fowler.
- Venho da Praça Garnier.
- Sim, pensei que devia ser esse o assunto que o trazia aqui.
- Já sabe...
- Houve alguém que me telefonou. Acharam preferível que eu não fosse a casa do
senhor Chou durante algum tempo.
- Mas o senhor nada tem a ver com o caso?
- É obrigação da Polícia encontrar um culpado.
- Foi novamente o Pyle?
- Foi.
- É uma coisa terrível, que se não devia fazer.
- O general Thé não é pessoa com grande poder de autodomínio. - E os plásticos não
são para rapazes de Boston. Quem é o chefe
de Pyle, Heng?
- Tenho a impressão de que o senhor Pyle se chefia a si próprio. -Que 'é ele? O. S. S.?
- As iniciais não têm grande importância.
- E que posso eu fazer, Heng? É indispensável detê-lo.
- Pode publicar a verdade. Mas deixá-lo-ão publicar?
- O meu jornal não se interessa pelo general Thé. Só se interessa pelos seus
compatriotas, Heng.

222

- É sincero quando diz que é preciso impedir Pyle de continuar a fazer destas coisas,
senhor Fowler?
- Gostaria que o tivesse visto, Heng. Disse-me que fora tudo um erro lamentável, que
devia ter havido uma parada. Que precisava de limpar os sapatos antes de falar com o
ministro.
- O senhor podia contar à Policia tudo o que sabe.
- Eles também não se interessam pelo general Thé. E pensa, por ventura, que se
atreveriam a tocar num americano? Tem privilégios diplomáticos. É licenciado pela
Universidade de Harvard. O ministro tem muita estima por Pyle. Heng, vi uma mulher
com um filho... escondia-o debaixo do chapéu de palha. Não consigo deixar de pensar
nisto. E em Phat Diem houve outros.
- Deve esforçar-se por manter a calma, senhor Fowler.
- Que irá ele fazer depois disto? Quantas bombas e crianças mortas se poderão obter
com um tambor de Diolacton?
- Está disposto a ajudar-nos; senhor Fowler?
- Ele chega a esta terra, começa a fazer disparates e morre gente. Quem me dera que
vocês o tivessem apanhado lá no rio, quando vinha de Nam Dinh. Ter-se-iam poupado
muitas vidas
- Concordo consigo, senhor Fowler. É imprescindível detê-lo. Tenho uma sugestão a
fazer-lhe. - Do outro lado da porta houve alguém que tossiu baixinho e depois
expectorou ruidosamente.
- O senhor podia convidá-lo para jantar hoje consigo no Vieux Moulin. Entre as oito e
meia e as nove e meia.
- Mas que resultaria...
- Falaríamos com ele durante o caminho.
- Ele pode estar comprometido.
- Talvez seja preferível pedir-lhe que passe por sua casa às seis e meia. A essa hora está
livre e não faltará. Se porventura ele puder jantar consigo chegue à janela com um livro
na mão, como que à procura de mais luz.
- Mas porque escolheu o Vieux Moulin?
- Está perto da ponte que conduz a Dakow. Creio que não nos será difícil encontrar um
sítio onde possamos conversar sem que nos interrompam.
- Que vai você fazer?
- Não me parece que isso lhe interesse, senhor Fowler. Mas prometo-lhe que actuaremos
com todo o cuidado que a situação nos permitir.
Os amigos invisíveis de Heng deslocavam-se como ratos do outro lado da parede.

223

- Está disposto a fazer-nos isto, senhor Fowler?


- Não sei. Não sei.
- Mais tarde ou mais cedo - disse Heng, e eu lembrei-me do capitão Trouin na casa de
ópio - seremos forçados a tomar partido. Isto é, se pretendemos continuar a pertencer ã
raça humana.

224
2

Deixei na legação uma nota onde eu pedia a Pyle que me procurasse e depois subi a
rua a caminho do Continental para tomar uma bebida. Já tinham limpo os destroços: a
brigada de bombeiros fechara a praça. Naquela altura não tinha a menor ideia da
importância que o tempo e o local iriam ter mais tarde. Cheguei mesmo a pensar em
ficar ali sentado durante todo o fim da tarde e desmanchar o meu encontro. Depois
pensei que se o avisasse do perigo que corria, e que eu desconhecia, talvez conseguisse
assustar Pyle a ponto de o tornar inactivo. E assim acabei de beber a cerveja e fui para
casa; logo que cheguei comecei a ter esperança de que Pyle não aparecesse. Tentei ler,
mas as prateleiras nada tinham que conseguisse prender-me a atenção. Talvez eu
devesse ter fumado um cachimbo, mas não havia quem o preparasse. Pus-me
inconscientemente à escuta de passos e por fim ouvi-os. Bateram. Abri a porta, mas era
Domínguez. .
- Que há, Domínguez?
Olhou-me com um ar surpreendido.
- Que há? - Olhou para o relógio. - É a hora a que costumo vir. Tem telegramas?
- Desculpe. Tinha-me esquecido. Não, não tenho.
- Nem uma notícia sobre a bomba? Não quer mandar uma notícia?
- Oh, arranje-me você uma, Domínguez. Não sei bem porquê, mas creio que o facto de
ter presenciado tudo aquilo me abalou ligeiramente. Não consigo pensar no assunto em
termos de um telegrama. - Dei uma palmada num mosquito que me zumbia ao ouvido e

225

Domínguez encolheu-se instintivamente.


- Não se assuste, Domínguez, não o consegui apanhar. - Ele sorriu tristemente. Não lhe
era possível justificar esta relutância em tirar a vida: porque na realidade era cristão, um
dos que haviam aprendido com Nero o processo de transformar em tochas os corpos
humanos.
- Quer que lhe faça qualquer coisa? - perguntou-me. Não bebia, não comia carne,
não matava: invejava-lhe a brandura de pensamentos.
- Não, Domínguez. Hoje quero simplesmente ficar só. - Da janela vi-o afastar-se e
atravessar a Rua Catinat. Em frente da minha janela estava estacionado um trishaw;
Domínguez tentou ocupá-lo mas o condutor abanou a cabeça. Possivelmente esperava
um cliente que entrara numa loja, dado que o local onde parara não era um parque de
estacionamento para trishaws. Quando olhei para o relógio pareceu-me estranho
verificar que só estava à espera havia pouco mais de dez minutos. Quando Pyle bateu
nem lhe ouvira os passos.
- Entre. - Mas, como de costume, quem entrou em primeiro lu
gar- foi o cão.
- Fiquei satisfeito ao receber o seu bilhete, Thomas... Esta manhã pensei que você
estava furioso comigo.
- Talvez estivesse. Não era um espectáculo muito agradável.
- Você já sabe tanta coisa que não tem importância eu contar-lhe um pouco mais.
Estive esta tarde com o Thé.
- Esteve? Mas ele está em Saigão? Veio provavelmente ver os resultados da bomba.
- Isto fica entre nós. Tratei-o com muita severidade. - Falava como um chefe de uma
equipa escolar que apanhasse um dos rapazes a não praticar os treinos. No entanto
perguntei-lhe com uma certa esperança:
- Desligou-se dele?
- Disse-lhe que se fizesse nova demonstração sem directivas nós nada mais teríamos a
ver com ele.
- Mas você não se desligou dele completamente, Pyle? Empurrei com impaciência o
cão, que me cheirava os tornozelos.
- Não me é possível. (Senta-te, Duke.) No fundo é a nossa única esperança. Se, com
a nossa ajuda, ele conseguisse alcançar o poder nós poderíamos confiar nele...
- Quantas pessoas terão de morrer para que você se compenetre...?
No fundo eu sabia que estava a argumentar em vão.

226

- Me compenetre de quê, Thamas?


- De que em matéria de política nãa existe gratidão.
- Pela menos não nos detestarão como detestam os Franceses.
- Tem a certeza? Nós por vezes sentimos uma espécie de amor pelos nossos inimigos e
de ódio pelos amigos.
- Fala como um europeu, Thomas. Esta gente não é complicada.
- Foi isso o que conseguiu aprender durante estes meses? Não me espanta que dentro em
pouco as classifique de crianças.
- Bom... de certo modo...
- Aponte-me uma criança que não seja complicada, Pyle. Quando se é novo é-se um
emaranhado de complicações. À medida que avançamos nas anos vamo-nos
simplificando. - Mas de que servia falar com ele? As nassas argumentações ressumavam
irrealidade. Eu começava a transformar-me antes de tempo num escritor de artigos de
fundo. Levantei-me e dirigi-me à estante.
- Que procura, Thomas?
- Oh, uma frase que em tempos me agradou. Quer jantar comigo, Pyle?
- Terei imenso gosto, Thomas. Estou imensamente satisfeito por você já não estar
zangado comigo. Sei que não concorda com as minhas ideias, mas podemos discordar e
continuar a ser amigos, não é verdade?
- Não sei. Penso que não é possível.
- É preciso não esquecer que Phuong era muita mais importante de que tudo isto.
- Você acredita plenamente no que está a afirmar?
- Com certeza. Ela é a coisa mais importante do mundo para mim. E para si, Thomas?
- Para mim já não é.
- Esta coisa de hoje abalou-nos imenso, Thomas, mas vai ver que dentro de uma semana
já nos teremos esquecido. Nós estamos também a ocupar-nos das famílias.
- Nós?
- Telegrafámos para Washington. Vamos obter autorização para dispormos de uma parte
dos nossos fundos.
Interrompi-o.
- Na Vieux Moulin? Entre as nove e as nove e meia?
- Onde lhe agradar, Thomas. - Dirigi-me à janela. O Sal descera abaixo dos telhados. O
condutor de trishaw continuava à espera do seu passageiro. Baixei a cabeça para olhar e
ele levantou a cara na minha direcção.

227
- Você está à espera de alguém, Thomas?
- Não, não estou. Procurava simplesmente uma passagem.
A fim de encobrir a minha acção comecei a ler, segurando o livro direito e virado para a
derradeira noite:

Conduzo o meu carro pelas ruas e estou-me nas tintas,


As pessoas olham para mim e perguntam quem sou;
E se por acaso atropelo um pulha,
Posso pagar os danos, quaisquer que eles sejam.
Que bom ter dinheiro, hurra!
Que bom ter dinheiro!

- Esse poema é muito estranho - disse-me Pyle com um ar de censura.


- Foi escrito por um poeta adulto do século XIX. Não havia muitos.
- Olhei novamente para a rua. O condutor do trishaw afastara-se.
- As suas bebidas acabaram?
- Não, mas pensei que você não...
- Talvez esteja a tornar-me mais normal. É da sua influência. Você deve ter um efeito
benéfico sobre mim, Thomas.
Fui buscar a garrafa e os copos: esqueci-me de um copo e depois foi preciso ir
buscar água. Tudo o que eu fiz naquela noite levou muito tempo.
- Sabe?, a minha família é estupenda, mas é possível que seja ligeiramente rígida.
Vivemos numa daquelas velhas casas de Chestnut Street, quando se sobe a encosta, do
lado direito. A minha mãe colecciona objectos de vidro e o meu pai (quando não anda a
desgastar os velhos penhascos) passa o tempo a procurar manuscritos de Darwin e suas
cópias. Como vê, vivem no passado. Talvez fosse por isso que York me causou tanta
impressão. Pareceu-me como que receptivo às condições actuais. O meu pai é um
isolacionista - disse-me.
- Seria muito possível que eu me entendesse com o seu pai. Também sou
isolacionista.
Para um homem habitualmente calado não havia dúvidas de que naquela noite Pyle
estava muito falador. Não ouvi tudo o que ele disse porque os meus pensamentos
estavam algures. Tentei convencer-me de que o Sr. Heng dispunha de meios diferentes
do meio óbvio e cru. Mas eu sabia que numa guerra como esta não há tempo para
hesitações: no caso dos Franceses a bomba de napalm e no caso do Sr. Heng uma bala
ou a faca. Disse-me a mim próprio, já demasiadamente tarde,

228

que não tinha feitio para juiz: deixaria que pyle falasse durante algum tempo e depois
avisá-lo-ia. Ele podia passar a noite na minha casa. Não era natural que viessem aqui
procurá-lo. Creio que falava da velha ama que tivera...
- Eu gostava mais dela do que da minha mãe. E que tortas que ela fazia! - quando o
interrompi.
- Você agora anda armado? Desde aquela noite?
- Não, não ando. Temos ordens da legação.
- Mas você não está numa missão especial?
- De nada serviria. Se quisessem dar cabo de mim ser-lhes-ia sempre possível. Eu nunca
vejo nada. Na escola chamavam-me Morcego porque de noite eu via tão bem como eles.
Em dada ocasião, quando andávamos... - E recomeçou com as suas divagações. Voltei à
janela.
Em frente estava parado um condutor de trishaw. Não tinha a certeza - eles são tão
parecidos - mas pareceu-me que não era o mesmo. Talvez houvesse efectivamente um
cliente. Ocorreu-me que Pyle estaria mais seguro na legação. Em virtude do meu sinal
eles deviam já ter feito os seus planos para mais tarde, planos que envolviam a ponte de
Dakow. Não percebia como nem porquê: não acreditava que ele fosse inconsciente ao
ponto de atravessar a ponte depois do pôr do Sol. E o nosso lado da ponte estava sempre
guardado por polícia armada.
- Só quem fala sou eu - disse Pyle. - Não sei porquê, mas hoje à noite...
- Continue - disse-lhe. - Não me apetece falar, é tudo. Talvez seja melhor desistirmos
do jantar.
- Não, não faça isso. Tenho-me sentido afastado de si desde...bom...
- Desde que você me salvou a vida - disse-lhe, sem conseguir mascarar a amargura
da ferida que eu próprio abrira.
- Não, não era a isso que me referia. Mas é bem verdade que nessa noite não
parámos de falar. Como se se tratasse da nossa última noite. Fiquei a saber muita coisa a
seu respeito, Thomas. Note, não concordo consigo, mas pode acontecer que no seu caso
seja o caminho a seguir. Refiro-me a não tomar partido. Não há dúvida de que você se
tem mantido firme na sua atitude. Continuou neutro, mesmo depois de fracturar a perna.
- Há sempre o momento em que se atinge o ponto de viragem. Num momento de
emoção...
- Você ainda não o atingiu. Duvido de que chegue a atingi-lo. E não creio que me
seja possível mudar. A não ser com a morte acrescentou alegremente.

229

- Nem mesmo com o que aconteceu esta manhã? Não é caso para
fazer alguém mudar de ideias?
- Houve mais uns quantos mortos na guerra. Foi uma pena, mas nem sempre é possível
atingir o alvo. E no fundo morreram por uma causa justa.
- E se se tivesse tratado da sua velha ama, a que fazia as tortas de fruta?
Ignorou este meu argumento fácil.
- De certo modo, podemos dizer que morreram pela democracia - disse-me.
- Não me seria possível traduzir isso em vietnamita. - Subitamente senti-me
extremamente cansado. Desejei que se fosse rapidamente embora para a morte. Eu
poderia então recomeçar a viver: a viver a partir do momento em que ele entrara na
minha vida.
- Você nunca me toma a sério, não é verdade, Thomas? - lamentou-se, com aquela
alegria de colegial que parecia ter reservado exactamente para esta noite. - Ouça,
Phuong está no cinema. Que diz a passarmos a noite juntos? Não tenho mais nada para
fazer. - Dava a sensação que alguém o orientava na escolha das palavras por forma a
roubar-me todas as possíveis desculpas. Continuou: - E se fôssemos ao Chalet? Desde
aquela célebre noite nunca mais lá voltei. A comida que eles servem é tão boa como a
do Vieux Moulin e sempre há música.
- Prefiro não recordar essa noite.
- Desculpe. Por vezes comporto-me como um idiota. E que lhe parece um jantar chinês
em Cholon?
- Para se jantar bem é indispensável encomendar com antecedência. O Vieux Moulin
assusta-o, Pyle? Está bem protegido por arame farpado e na ponte há sempre polícias. E
nunca lhe passaria pela cabeça atravessar a ponte até Dakow, pois não?
- Não se trata disso. - Pensei que seria divertido fazermos uma noitada.
Fez um movimento e tombou o copo, que se estilhaçou no chão. - Boa sorte - disse
mecanicamente. - Desculpe, Thomas. - Comecei a apanhar os pedaços de vidro e a
colocá-los no cinzeiro. - Que diz, Thomas? - O copo partido lembrou-me as garrafas do
Pavillon Bar esvaziando-se. - Avisei Phuong de que provavelmente sairia consigo. -
Que mal escolhida era a palavra «avisar»! Apanhei o último fragmento de vidro:
- Tenho um encontro no Majestic e não estou livre antes das nove.

230

- Então terei de voltar ao escritório. Mas receio sempre que me apanhem lá e que
depois já não possa sair.
Não havia grande mal em lhe oferecer esta oportunidade. - Não se preocupe se por
acaso estiver atrasado. E caso o detenham no escritório passe por aqui mais tarde. Eu
voltarei às dez, se você não aparecer para jantar, e esperarei por si.
- Avisá-lo-ei...
- Não se incomode. Apareça no Vieux Moulin ou então cá por casa.
- Entreguei a decisão àquela entidade em que eu não acreditava: se quisesse, podia
intervir. Um telegrama sobre a secretária, uma mensagem do ministro. A menos que se
tenha o poder de alterar o futuro, a existência não é possível. - E agora vá-se embora,
Pyle. Tenho coisas para fazer. - Senti-me estranhamente exausto ao ouvi-lo afastar-se,
acompanhado pelo pisar das patas do cão.

231
3

Quando saí só encontrei trishaws na Rua d'Ormay. Desci a pé até ao Majestic e parei
algum tempo para contemplar os bombardeiros americanos que estavam a descarregar.
O Sol desaparecera e trabalhavam à luz de lâmpadas de arco. Não pensava em arranjar
um álibi, mas dissera a Pyle que ia ao Majestic e sentia uma repugnância inexplicável
em dizer mais mentiras do que as absolutamente necessárias.
- Boa noite Fowler. - Era o Wilkins.
- Boa noite.
- Como vai essa perna?
- Já não me maça.
- Mandou um bom artigo?
- Deixei isso ao cuidado de Domínguez.
- Ah, disseram-me que você esteve presente.
- E é verdade. Mas hoje em dia há falta de espaço. Eles não querem notícias muito
extensas.
- O prato perdeu o sabor, não é verdade? - disse-me Wilkins. - Devíamos ter vivido
no tempo de Russel e do velho Times. - Mensagens enviadas por meio de balões. Nesses
tempos era possível escreverem-se coisas de jeito. O Russel teria conseguido encher
uma coluna com isto. O hotel de luxo, os bombardeiros, a noite a cair. Hoje a noite
nunca cai. Se lhe parece, com as piastras que nos pagam por palavra. De cima, do alto
do céu, vinha um som ténue de gargalhadas: tal como Pyle, houve alguém que partiu um
copo. O som caiu-nos em cima como pedaços de gelo. - «As luzes brilhavam sobre as
mulheres

233

formosas e homens de valentia» - citou Wilkins com maldade. - Tem alguma coisa de
especial para esta noite? Que diz a irmos comer qualquer coisa?
- Já estou comprometido para jantar. No Vieux Moulin.
- Divirta-se. O Granger também vai. Eles deviam fazer uma propaganda especial nas
noites em que Granger vai lá jantar. Para todos aqueles que gostem de ruídos de fundo.
Dei-lhe as boas-noites e entrei no cinema ao lado: Errol Flyn, ou talvez fosse Tyrone
Power (quando usam trousses não consigo distingui-los) balouçava-se em cordas,
saltava de varandins e andava a cavalo de tronco nu pelo romper do dia em technicolor.
Salvou uma rapariga, matou o inimigo e viveu uma vida de encantamento. Tratava-se de
uma daquelas fitas para rapazes, mas estou certo de que ficariam mais bem preparados
para a vida actual se lhes mostrassem o Édipo saindo do palácio de Tebas com os olhos
escorrendo sangue. Hoje não há vidas encantadas. A sorte estivera com Pyle em Phat
Diem e na estrada de Tanyin, mas a sorte não é eterna e eles tinham duas horas para se
prepararem e eliminarem qualquer possibilidade de um encantamento. A meu lado
estava um soldado francês com a mão da namorada no colo e invejei-lhe a simplicidade
da sua felicidade ou desgraça, qualquer que fosse o caso. Saí antes de a fita acabar e
meti-me num trishawa caminho do Vieux Moulin.
O restaurante estava protegido das granadas com arame farpado e no fim da ponte
havia de serviço dois polícias armados. O dono da casa, que engordara com a suculenta
cozinha da Bargonha, abriu-me passagem por entre o arame. No calor pesado da noite a
casa cheirava a capões e a manteiga derretida.
- Pertence ao grupo do Monsieur Granjair? - perguntou-me.
- Não.
- Mesa para uma pessoa? - foi a primeira vez que pensei no futuro e nas perguntas a que
teria de responder.
- Sim, para uma pessoa - respondi-lhe, e foi quase como se tivesse dito em voz alta que
Pyle morrera.
Só havia uma sala e Granger e o seu grupo de amigos ocupavam uma enorme mesa
ao fundo. Não havia vidraças, com receio dos vidros estilhaçados. Conhecia alguns dos
convidados de Granger e cumprimentei-os com uma inclinação de cabeça antes de me
sentar. Granger desviou os olhos. Havia meses que não o via: desde a célebre noite em
que Pyle se apaixonara só o vira uma vez. Era possível que naquela noite alguma minha
observação ofensiva lhe tivesse penetrado

234

o nevoeiro alcoólico, dado que estava com ar carrancudo sentado àcabeceira da mesa,
enquanto Madame Desprez, a esposa de um oficial, e o capitão Duparc, dos serviços de
ligação da imprensa, baixavam a cabeça em sinal de aprovação e gesticulavam. Havia
um homem alto, que eu cria ser hoteleiro em Pnom penh, uma rapariga francesa que eu
nunca vira e mais duas ou três outras caras que eu só vira pelos bares. Por uma vez
parecia uma reunião sossegada.
Encomendei um pastis porque queria dar tempo a que Pyle chegasse: os planos
podiam alterar-se e enquanto eu não começasse a jantar tinha como que a sensação de
ainda haver tempo para ter esperança. Depois tentei definir aquilo em que eu tinha
esperança. Felicidades aos O. S. S., ou a qualquer que fosse o nome da sua quadrilha?
Uma longa vida às bombas de plástico e ao general Thé? Ou dar-se-ia o caso de eu -
coisa extraordinária - ter esperança num milagre? Um processo de discussão,
conseguido pelo Sr. Heng, que não significasse simplesmente a morte? Teria sido tão
mais fácil se tivéssemos morrido ambos na estrada de Tanyin... Levei vinte minutos a
beber o pastis e depois encomendei o jantar. Pouco faltava para as nove e meia: ele já
não viria.
Contra a minha vontade pus-me à escuta; à escuta de quê? De um grito? De um tiro?
De algum movimento dos polícias lá fora? O que quer que acontecesse era muito
provável que eu não ouvisse porque o grupo de Granger começava a aquecer. O
hoteleiro, de voz agradável, mas não cultivada, começou a cantar, e com o estampido da
abertura de nova garrafa de champanhe os outros fizeram o coro. Só Granger ficou
calado. Iria haver zaragata? Eu não tinha físico para me bater com Granger.
Cantavam uma canção sentimental, e enquanto eu, sem fome, enfrentava um Chapon
Duc Charles pensei em Phuong pela primeira vez desde que soubera que ela estava sã e
salva. Recordei o que Pyle dissera, sentado no chão, enquanto esperávamos que os viets
chegassem: "Ela tem a frescura de uma flor». Ao que eu respondera com petulância:
«Pobre flor». Ela nunca chegaria a ver a Nova Inglaterra ou a aprender os segredos da
canasta. Talvez nunca chegasse a conhecer o significado da segurança. Que direito tinha
eu de considerá-la de menor valor do que os cadáveres lá na praça? O sofrimento não
aumenta com o número: um só corpo pode conter todo o sofrimento sentido pelo
mundo. À maneira de um jornalista, eu julgara em termos de quantidade e atraiçoara os
meus princípios; ficara tão engagé como Pyle e tinha a sensação de que jamais me seria
fácil tomar uma decisão. Olhei para

235
o relógio. Eram quase dez menos um quarto. Talvez ele tivesse acabado por ficar preso
na legação; talvez aquele «alguém» em que ele acreditava tivesse actuado em seu favor,
e Pyle estivesse neste momento no seu gabinete da legação preocupado no decifrar de
um telegrama em código e dentro em breve galgasse as escadas até ao meu quarto da
Rua Catinat. Pensei: «Se ele vier contar-lhe-ei tudo».
Granger levantou-se repentinamente da mesa e aproximou-se de mim. Nem mesmo
viu a cadeira no seu caminho, tropeçou nela e pousou a mão na beira da minha mesa.
- Fowler - disse-me - venha comigo lá fora.
Deixei sobre a mesa o dinheiro suficiente para pagar a conta e segui-o. O meu estado
de espírito não era conforme a lutar com ele, mas naquele momento não me teria
importado se ele me tivesse sovado até à inconsciência. Os processos para mitigar o
remorso eram tão escassos... Debruçou-se sobre o parapeito da ponte e os dois polícias
ficaram
a observá-lo a distância.
- Preciso de falar consigo, Fowler - disse-me.
Aproximei-me até ao alcance da sua mão e fiquei à espera. Não se
mexeu. Parecia uma estátua simbólica de tudo o que eu odiava na América: tão mal
desenhada e tão sem sentido como a estátua da Liberdade.
Disse-me, sem fazer qualquer movimento:
- Você pensa que eu estou «grosso». Mas engana-se.
- Que se passa, Granger?
- Tenho de falar consigo, Fowler. Esta noite não quero ficar ali sentado com aquelas
rãs. Eu não gosto de si, Fowler, mas você fala inglês. Uma espécie de inglês. - Estava
encostado à ponte, volumoso e disforme à meia luz. Um continente inexplorado.
- Que quer, Granger?
- Eu não gosto dos Ingleses. Não percebo como o Pyle o consegue tolerar. Talvez
por ser de Boston. Eu sou de Pittsburgh e orgulho-me disso.
- E porque não?
- Lá está você. - Tentou, sem grande êxito, imitar o meu sotaque. - Vocês falam
como se tivessem a boca cheia. São tão superiores... Estão convencidos de que sabem
tudo.
- Olhe, boa noite, Granger. Eu tenho uma entrevista.
- Não se vá embora, Fowler. Que diabo, você não tem coração? Eu não posso falar
àquelas rãs.
- Você está bêbedo.

236

- Bebi duas taças de champanhe e mais nada. E não acha que no meu lugar também
estaria «grosso»? Tenho de partir para o Norte.
- E que mal há nisso?
- Oh, é verdade, ainda não lhe disse, pois não? Tenho a impressão de que toda a
gente sabe. Esta manhã recebi um telegrama da minha mulher.
- Sim?
- O meu filho está com uma poliomielite. Está mal.
- Lastimo imenso, Granger.
- Não precisa de ter pena. O filho não é seu.
- Não pode meter-se num avião e ir até lá?
- Não posso. Eles querem uma história sobre umas malditas operações militares de
limpeza perto de Hanói e o Connolly está doente. (Connolly era o seu assistente.)
- Lastimo imenso. Gostaria de o poder ajudar.
- Ele faz hoje anos. Pela nossa hora faz oito anos às vinte e duas e meia. Foi por isso
que eu arranjei, antes de saber o que se passava, esta festança com champanhe. Tinha de
dizer isto a alguém, Fowler, e não posso falar com aquelas rãs.
- Actualmente há muitos tratamentos para a paralisia infantil.
- Eu não me importo que ele fique aleijado, Fowler. Só quero que viva. Se se tratasse de
mim, eu aleijado de nada serviria. Mas ele é esperto. Você sabe o que eu tenho feito ali
dentro enquanto aqueles malandros cantam? Estive a rezar. Pensei que se Deus quer
uma vida talvez não se importasse de levar a minha.
- Então você crê em Deus?
- Quem me dera acreditar - disse Granger.
Passou a mão pela cara, como se lhe doesse a cabeça, mas o movimento nada mais
era que um disfarce para limpar as lágrimas.
- No seu caso embebedava-me.
- Oh, não. Não posso embebedar-me. Não quero pensar mais tarde que na noite em
que o meu filho morreu eu estava perdido de bêbedo. A minha mulher não pode beber,
não é verdade?
- Mas não pode dizer ao seu jornal que...
- O Connolly não está doente. Anda lá por Singapura atrás de uma mulher. E eu tenho
de o encobrir. Se soubessem despediam-no. - Endireitou o corpo disforme e continuou: -
Desculpe tê-lo feito perder tempo. Mas precisava de dizer isto a alguém. Agora tenho de
voltar lá para dentro e começar com as saúdes. É estranho que tenha sido consigo, dado
que você não me tolera.

237

- Eu podia fazer-lhe a reportagem. Fingiria ser o Connolly.


- O seu sotaque não engana ninguém.
- Não pense que eu não gosto de si, Granger. Tenho andado cego para muitas coisas...
- Ora, você e eu somos como gato e cão. Mas agradeço-lhe a comiseração.
Seria eu afinal tão diferente de Pyle? Dar-se-ia o caso de também eu só me
aperceber do sofrimento quando me forçavam, me empurravam para as complicações da
vida?
Granger entrou e eu ouvi as vozes elevarem-se para o saudar. Encontrei um trishaw
e fomos para casa a pedalar. Ninguém lá estava; sentei-me e fiquei à espera até à meia-
noite. Depois, já sem esperança, saí e encontrei Phuong.

238
Capítulo lII

- Monsieur Vigot já veio falar contigo? - perguntou-me Phuong.


- Já. Saiu há um quarto de hora. A fita era boa? - Ela já trouxera o tabuleiro para o
quarto e estava a acender a lamparina.
- Era muito triste, mas o colorido era lindo. Que queria Monsieur Vigot?
- Queria fazer-me algumas perguntas.
- Acerca de quê?
- Ora, perguntar-me isto e aquilo. Não creio que tencione maçar-me novamente.
- Gosto mais dos filmes que acabam bem. Estás pronto para começar a fumar?
- Estou.
Estendi-me sobre a cama e Phuong entrou em actividade com a agulha.
- Cortaram a cabeça da rapariga - disse-me.
- Mas que coisa tão estranha para alguém fazer.
- Passou-se durante a Revolução Francesa.
- Ah, já percebo. Uma fita histórica.
- Apesar disso foi muito triste.
- Eu não consigo preocupar-me muito com essa gente de que reza a História.
- E o seu amante voltou para o sótão onde vivia, sentia-se muito infeliz e escreveu uma
melodia. Sabes? Era poeta, e dentro em breve todos aqueles que tinham tido influência
na decapitação da sua namorada cantavam a cantiga que ele escreveu. Chama-se a
Marselhesa.

241

- Não parece lá muito histórico.


- Enquanto eles cantavam ele ficou na orla da multidão com um ar muito amargo e
quando sorriu percebia-se que ainda sentia mais amargura e que estava a pensar nela. Eu
chorei muito e a minha irmã também.
- A tua irmã chorou? Custa-me a acreditar.
- Ela é muito sensível. Aquele homem horrível, o Granger, também lá estava. Bêbedo e
sem parar de rir. Mas não era nada engraçado. Era bem triste.
- Não o censuro. Tem uma coisa importante para celebrar. O filho está livre de perigo.
Disseram-me hoje no Continental. Eu também gosto que as coisas acabem bem.
Depois de fumar dois cachimbos deitei-me para trás com a cabeça encostada na
almofada de cabe daI e pousei a mão no colo de Phuong.
- Sentes-te feliz?
- Claro que me sinto - respondeu-me descuidadamente. Eu não merecia uma resposta
mais reflectida.
- Está tudo na mesma - menti. - Como há um ano.
- Pois está.
- Há muito tempo que não compras um lenço novo. Porque não vais amanhã fazer umas
compras?
- É feriado.
- Tens razão. Tinha-me esquecido.
- Ainda não abriste o telegrama - disse Phuong.
- Não. Já me esquecia disso também. Esta noite não quero pensar em assuntos de
trabalho. E já é muito tarde para mandar o que quer que seja. Diz-me mais coisas sobre
a fita.
- Bem, então o seu amante tentou salvá-la. Introduziu-se na prisão disfarçado com
um fato de rapaz e um boné semelhante ao do carcereiro, mas exactamente no momento
em que ela atravessava o portão o cabelo da rapariga caiu e ouviram-se gritos: Une
aristocrate, une aristocrate. Creio que este pedaço foi um erro. Deviam tê-la deixado
fugir. Então poderiam ambos ter ganho muito dinheiro com aquela cantiga e i.clo para o
estrangeiro, para a América... ou para a Inglaterra - acrescentou, pensando que se estava
a portar com astúcia.
- Talvez não seja má ideia eu ler o telegrama. Só peço a Deus que não me mandem
amanhã para o Norte. Quero ficar aqui sossegado contigo.
Ela tirou o sobrescrito de entre os boiões de creme e deu-mo. Abri-o e li:
Reconsiderei a tua carta stop actuo irracionalmente como era teu

242

desejo stop dei ordens meu advogado começasse tratar divórcio motivo abandono stop
Deus te proteja afectuosamente Helen.
- Tens de partir?
- Não, não tenho. Lê. Tens o que querias: tudo a acabar bem. Ela saltou da cama.
- Mas é maravilhoso. Tenho de ir dizer à minha irmã. Vai ficar tão
contente. Dir-lhe-ei: «Sabes quem sou? Sou a segunda senhora Foulaire».
À minha frente, na estante, A Importância do Ocidente destacava-se como um
retrato: o retrato de um jovem, de cabelo cortado muito curto, com um cão a seguir-lhe
os passos. Já não podia prejudicar ninguém. Eu disse a Phuong:
- Tens muitas saudades dele?
- De quem?
- De Pyle. - Era estranho como mesmo agora, quando falava com ela, me era impossível
tratá-lo pelo nome de baptismo.
- Importas-te que eu vá já? A minha irmã vai ficar muito excitada com a notícia.
- Uma vez, quando dormias, chamaste por ele.
- Nunca me lembro do que sonho.
- Vocês podiam ter feito tantas coisas juntos. Ele era novo.
- Tu não és velho.
- E os arranha-céus? E o Empire State Building?
Ela hesitou ligeiramente e depois:
- Eu quero ver a garganta de Cheddar.
- Não é o Grande Canyon. - Puxei-a para a cama. – Tenho imensa pena, Phuong.
- Pena de quê? É um telegrama maravilhoso. A minha irmã...
- Sim, vai dizer à tua irmã. Mas dá-me primeiro um beijo. - A sua boca excitada
deslizou sobre a minha cara e depois ela saiu.
Pensei no primeiro dia e em Pyle sentado a meu lado no Continental, com os olhos
fixos no bar de batidos do outro lado da rua. Desde que ele morrera a minha vida
passara a correr bem. Mas como desejava que existisse alguém a quem eu pudesse dizer
que tinha pena.

Março, 1952 - junho, 1955.

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