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As imagens da memória

Yeats... Proust... Beckett


Gabriela Borges ∗

Índice The Tower, by William Butler Yeats, and


the concepts of voluntary and involuntary
1 Elementos estéticos 2 memory explored by Beckett through his
2 Beckett & Yeats 5 analysis of Marcel Proust’s Le Temps Re-
3 Beckett & Proust 6 trouvé. ...but the clouds... was first broadcast
4 Bibliografia 8 on the 17th April 1977 at The Lively Arts
BBC2 programme under the title Shades,
Resumo along with Ghost trio and the adaptation of
the play Not I.
Este artigo analisa os elementos estéticos
constituintes da tele-peça ...but the clouds... O dramaturgo Samuel Beckett, apesar de
a partir de seu diálogo com o poema The ser mais conhecido pelos seus trabalhos li-
Tower, de William Butler Yeats, e os concei- terários e teatrais, possui uma extensa obra
tos de memória voluntária e involuntária ex- para os meios eletrônicos, destacando-se as
plorados por Beckett na análise da obra Em suas peças de rádio, o seu único filme de-
busca do tempo perdido de Marcel Proust. nominado Film e as suas tele-peças. Entre
...but the clouds... estreou em 17 de ab- os anos 1966 e 1986 o autor escreveu as se-
ril de 1977 no programa The Lively Arts da guintes tele- peças: Eh Joe, Ghost trio, ...but
BBC2, sob o título de Shades, juntamente the clouds..., Quad e Nacht und träume para
com Ghost trio e a transcriação da peça de a rede pública de televisão britânica British
teatro Not I. Broadcasting Corporation (BBC) e para a te-
levisão pública do sul da Alemanha, Süd-
Abstract deustcher Rundfunk (SDR).
A sua colaboração foi diferenciada em
This paper analyses the aesthetic elements cada uma delas. Na BBC, escreveu os ro-
of Samuel Beckett’s television play ...but teiros e supervisionou a produção de quase
the clouds..., its dialogue with the poem todas as tele-peças, dirigindo apenas Quad.

Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC- Entre os fatores que permitiram Beckett tra-
SP. Professora Facom –Faap. Este artigo foi publi- balhar com a BBC destaca-se a criação da
cado na Revista FACOM do curso de Comunicação BBC2 a partir das recomendações do Pil-
da FAAP, N˚ .12, 1˚ semestre 2004, 29-36.
2 Gabriela Borges

kington Report, em 1962, e a liberdade cria- meço ao fim. O primeiro deles denomina-
tiva dada aos escritores, além da escassez se M , um plano médio do personagem M
de material original para ser produzido pelo de costas, sentado num banco invisível, de-
meio televisual, que levou a emissora britâ- bruçado sobre uma mesa também invisível e
nica a procurar dramaturgos e escritores de vestido com um roupão e uma touca de cor
renome para escrever roteiros especialmente cinza claro. Esta é uma imagem que, apesar
para o meio. de descrita pelo autor, é bastante difícil de
Na SDR, o autor dirigiu todas as suas tele- ser identificada na tela de vídeo. Ela se ma-
peças. A sua colaboração deveu-se princi- terializa como o espaço do santuário em que
palmente ao fato do Diretor de Dramatur- M está relembrando e querendo rever a sua
gia da televisão alemã, Dr. Reinhart Müller- amada, mas ela não é vista claramente, pois
Freienfels, ser admirador do seu trabalho e o santuário se situa na zona de escuridão ao
estar interessado em patrocinar autores de norte do círculo. M1 é um plano geral de M
renome internacional para a série Der Au- no set, vestido com chapéu e sobretudo es-
tor aus Regisseur. Esta experiência foi fun- curos ou com roupão e touca claros; o outro
damental para Beckett apurar o seu senso plano é um close-up da mulher amada redu-
estético como autor e diretor e desenvolver zido aos olhos e à boca que se denomina W e
a sua poética tecnológica pois, além da qua- o quarto é o plano geral do set, seja vazio ou
lidade técnica dos equipamentos, a equipe com M1, que é denominado S. As passagens
de produção procurava fazer com que as de um plano ao outro são feitas gradualmente
imagens criadas pelo autor fossem efetiva- por meio da fusão.
mente visualizadas no meio eletrônico. M é o personagem masculino que se move
de um lado para o outro do círculo numa
coreografia indicada detalhadamente no ro-
1 Elementos estéticos
teiro. De cada uma das posições até o cen-
A tele-peça ...but the clouds... prima pelo tro ele dá cinco passos, pára na posição de
uso da luz. O cenário consiste de um foco permanência, vira-se e segue para a posição
de luz de 5 metros de diâmetro no centro da seguinte. Os movimentos de M , como de
tela rodeado por uma zona de escuridão. A F em Ghost trio, são inexpressíveis e sem
iluminação é gradual entre a completa escu- vitalidade como os movimentos de uma ma-
ridão ao redor do círculo e o máximo de luz rionete e algumas vezes chegam até mesmo
no centro. O roteiro indica que os três lados a ser cômicos. V é a voz interior de M , que
deste foco de luz são denominados: 1. oeste, se expressa na tele-peça como uma voz fe-
ruas; 2. norte, santuário; 3. leste, armário e minina em off.
o centro do círculo é denominado 4. posição Comparando com as duas tele-peças an-
de permanência. teriores, ...but the clouds... apresenta algu-
A câmera, diferentemente de sua atuação mas diferenças significativas em sua gênese.
em Eh Joe e Ghost trio, está imóvel durante Apesar de todas elas terem sido escritas para
toda a tele-peça e posicionada ao sul do cír- um personagem masculino na tela e uma voz
culo de luz. Ela enquadra quatro planos que, feminina em off, em Eh Joe há dois persona-
ao aparecerem, são mantidos fixos do co- gens, Joe, visto na tela e Voice, a voz em off

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que pode ser tanto a voz interior do persona- Todos estes movimentos passam pelo centro,
gem como a voz de uma das suas amantes, onde M pára, vira-se e segue.
ainda mais que ela é feminina. Voice ator- O espaço da ação que é visto na tela, no
menta Joe, que vive uma espécie de purgação qual M se movimenta de um lado ao ou-
e somente imagina os momentos em que pas- tro do círculo de luz, corresponde ao seu
sou com suas amantes. Por sua vez, Ghost imaginário, ao falar consigo mesmo, relem-
trio apresenta um diálogo entre F , o perso- brando os momentos em que esperava pela
nagem masculino e V , a voz que comanda os aparição da amada e aqueles em que ela efe-
seus movimentos enquanto espera pela che- tivamente reapareceu na sua lembrança.
gada da amada. Porém, a imagem da amada V descreve, no presente, as ações de M
nunca chega a se materializar, seja em voz ou ao tentar relembrar as aparições da amada
imagem. no passado, ou seja, é como se M estivesse
Em ...but the clouds... V é uma voz suave repetindo para si mesmo o caminho que co-
que traz à lembrança de M os momentos em stumava percorrer para que a amada reapa-
que a amada apareceu para ele, porém ela recesse. Após cada descrição, V afirma: “É
não é só imaginada, ela aparece efetivamente isso”, concordando que foi daquela maneira
na tela. Como M e V são corpo e voz do que ele tinha agido quando conseguiu ver a
mesmo personagem, ...but the clouds... pode amada na sua imaginação e pede para que
ser considerado um monólogo, no entanto, as ações sejam repetidas novamente ao afir-
é um monólogo de natureza bastante pecu- mar: “Let us now make sure we have got it
liar, pois a voz está separada do corpo. Além right.” e “Let us now run through it again.”
disso, a voz age no tempo presente e no (Beckett, 1990:419-21)1
tempo passado, mas as imagens de M apa- V e M intercambiam a sua existência
recem apenas no passado. entre o presente e o passado. Ainda no pre-
M repete sempre os mesmos movimen- sente, V afirma: “Let us now distinguish
tos. Ele entra pelo lado oeste, ou seja, pe- three cases.” (Beckett, 1990:420)2 e, no
las ruas adjacentes vestindo chapéu e casaco, passado, descreve as ações de M no círculo
pára no centro do círculo de luz e dirige-se de luz, que é o palco da memória. V des-
para o lado leste, onde está o armário em creve quatro casos mais comuns, três em que
que guarda suas vestimentas e veste o roupão a amada aparecia e um caso nulo. No pri-
e a touca, reaparecendo no centro do cír- meiro caso, ela apareceu e desapareceu num
culo de luz para dirigir-se ao seu santuário, suspiro. No segundo, ela apareceu e deixou-
localizado ao norte. No santuário escuro, se ficar com aqueles olhos vagos que ele
onde não pode ser visto por ninguém, adota tanto suplicara para que olhassem para ele
a posição M e começa a relembrar os mo- enquanto vivos. E no terceiro caso, ela apa-
mentos em que esperava pela aparição da receu e depois de um momento os seus lábios
amada. Quando deixa o seu santuário, ele 1
“Agora vamos ter certeza de que conseguimos fa-
faz os mesmos movimentos em sentido con- zer isto corretamente.” e “Agora vamos repassar tudo
trário, ou seja, vai do santuário para o ar- isto novamente.” (todas as traduções são de minha
mário, troca de roupa e dirige-se para a rua. autoria)
2
“Agora vamos distinguir três casos.”

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4 Gabriela Borges

moveram-se e disseram, inaudivelmente, as sto, mas ao mesmo tempo, suplicava para


palavras “...clouds ...but the clouds... of the que aqueles olhos vagos e sonhadores que
sky...”, V então murmura as palavras “...but ele se recordava tão bem, olhassem para ele.
the clouds...”3 , sincronizadamente com os lá- No roteiro final consta ainda um quarto
bios da amada. caso, ou caso nulo, em que M suplicava em
No seu santuário, onde não podia ser vi- vão. Este era o mais comum, pois aconte-
sto por ninguém, a amada reaparece e M su- cia “(...) in the proportion say of nine hun-
plica: “Look at me” e então ela repete as pa- dred and ninety-nine to one, or nine hun-
lavras “...clouds... but the clouds... of the dred and ninety-eight to two (...) (Beckett,
sky...” que são murmuradas por V . Quando 1990:421)”7 . Ele lamenta que se ela não ti-
os lábios se calam, V implora: “Speak to vesse aparecido nenhuma das vezes em que
me” (Beckett, 1990:421). 4 Diferentemente suplicou, ele não teria ficado esperando “(...)
de Eh Joe, em que Joe queria que Voice deep down into the dead of night, until I wea-
se calasse e sumisse, V diz para a amada: ried, and ceased,” e teria “busied myself with
“Fala comigo” e “Olha para mim”. Porém, something else, more... rewarding, such as...
como ela só existe na imaginação de M , ela such as... cube roots, for example, or with
não fala nem olha para ele, somente aparece nothing...”(Beckett, 1990:421)8 .
de relance, como uma visão, uma miragem. Para Kirkley (1992:610), o que é visto no
No manuscrito MS1533-15 consta um quarto vídeo não é o presente fluxo de consciência
caso que foi retirado do roteiro final, em que de M , o personagem que faz e pensa, por-
se lê: “she comes and after a moment – (...) que a sua voz, V , é separada do seu corpo ao
begins to speak till all... seem but the clouds descrever as suas ações no tempo passado.
of the sky, when the horizon fades...”6 , que Neste sentido, V não é a voz daquele que
são os versos retirados do poema de William a audiência vê na tela da televisão, V é
Butler Yeats, The Tower (1927). Como o a voz daquele que escuta e observa o seu
personagem Oem Film, M não quer ser vi- passado. É como se houvesse várias in-
sto por ninguém mas, ao mesmo tempo, su- stâncias do mesmo ser, ou como se a con-
plica para que a amada olhe para ele. É como sciência de M tivesse vários níveis: o pre-
se somente ela tivesse o direito de compartil- sente, expresso pela voz em off de M falando
har com ele aquele lugar e aquele momento sobre o passado; e o passado, que é tanto
de solidão em que eles conseguiam, de certa aquele mostrado no vídeo, ou seja, as ações
forma, se comunicar. Ele não queria ser vi- de M na tentativa de rever a amada, quanto
3
um passado mais longínquo da convivência
“...nuvens... como as nuvens... do céu...” e
“...como as nuvens...” dos dois amantes, que não se sabe ao certo
4
“Olha para mim”, “...nuvens... como as nuvens... 7
“(...) acontecia na proporção de novecentos e
do céu...” e “Fala comigo.” noventa e nove para um ou de novecentos e noventa e
5
Os manuscritos da tele-peça estão arquivados no oito para dois”.
Beckett Archive na University of Reading, Inglaterra. 8
6 “(...) até altas horas da madrugada, (quando)
“ela chega e depois de um momento – (...) co-
cansava e parava” e teria “se ocupado com alguma
meça a falar.” (...) “...até que tudo ...se pareça com as outra coisa, mais... recompensadora como... como...
nuvens do céu, quando o horizonte se esvanece...” calcular raízes cúbicas, por exemplo, ou com nada”.

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quando ocorreu. A única indicação de que Beckett. Ao afirmar que a poesia era o seu
viveram juntos, ou passaram momentos fe- único amor, W cria uma ambigüidade, pois
lizes juntos, aparece quando V fala que su- o intercâmbio entre presente e passado volta
plicava para que aqueles olhos vagos olhas- a aparecer com a indagação de quem seja
sem para ele quando eram vivos. Na lín- ela, W no presente ou no passado. Por ou-
gua inglesa, este verso é ambíguo pois ao tro lado, se for considerado que esta é a voz
usar a palavra alive,9 não se sabe se era do autor, seria então Beckett afirmando, por
quando M estava vivo ou a amada estava meio da personagem W , que a poesia é o seu
viva. Neste sentido, M éaquele que se vê no único amor. Além disso, esta frase também
vídeo pensando sobre o seu passado, ou seja, explica, de certa forma, a intertextualidade
aquele que está na memória do personagem entre a tele-peça e o poema de Yeats. Os
M,assim como o personagem M da voz em versos do poema inspiraram não somente o
off no presente, que tenta relembrar como é nome da tele-peça e o seu tema, mas tam-
que a amada aparecia. bém o nome do programa intitulado Shades
A amada aparece oito vezes durante a tele- (Sombras)11 , em que as tele-peças ...but the
peça. Algumas vezes ela aparece fortuit- clouds..., Ghost trio e Not I foram exibidas.
amente por dois segundos, em outras ela Em The Tower, Yeats elabora sobre o
fala, inaudivelmente, as palavras “... but the tema do envelhecimento e da expectativa da
clouds... but the clouds of the sky... when the morte, quando o corpo está ficando fraco e a
horizon fades...” e em outras ela fala, tam- circulação começa a parar lentamente. Cam-
bém de modo inaudível, os últimos versos pos (1998:3-4) explica que o poema é uma
do poema The Tower: “... but the clouds... espécie de testamento do poeta, pois no fim
but the clouds of the sky... when the horizon da sua vida Yeats escreveu muito sobre a vel-
fades... or a bird’s sleepy cry... among the hice, inclusive, ao reler os seus versos, ele
deepening shades...” (Beckett, 1990:422)10 . mesmo achou seu poema um tanto amargo.
O poema é dividido em três partes, na intro-
dução o poeta expõe a sua indignação com a
2 Beckett & Yeats
degeneração da idade, depois evoca os fan-
De acordo com o manuscrito MS1553-2, o tasmas da torre para indagar sobre a sua in-
primeiro título da tele-peça era Poetry only dignação e rememora o vigor da juventude.
love. No manuscrito pode-se ler as seguintes Por fim, ele expõe o seu credo e transmite o
frases: “W: Poetry was her only love” e seu legado, enquanto sua vida se esvanece.
“Poetry (was my) only love”, os quais po- No começo do poema há uma referência
dem se referir tanto à personagem W , que à musa e o poeta lembra-se de que quando
nas primeiras versões da tele-peça recitava era moço não se importava com ela e lhe
os últimos versos do poema, quanto ao poeta, mandava embora, preferindo Platão e Plotino
9
como amigos. A imaginação e a memória
“With those unseeing eyes I so begged when
alive to look at me.” (Beckett, 1990:420) são dois temas presentes no poema que tam-
10
“... como as nuvens... como as nuvens do céu... 11
O título foi retirado do último verso do poema
quando o horizonte se esvanece... ou como um lento The Tower: “among the darkening shades”.
cantar de um pássaro... no escurecer das sombras”.

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bém são recorrentes no trabalho de Beckett. A produção alemã de ...but the clouds...,
Yeats escreve que no fim do dia, quando os dirigida pelo próprio Beckett para a Süddeut-
últimos raios de sol se escondem, a imagi- scher Rundfunk em 1977, usou os últimos
nação se solta e as imagens e memórias são doze versos do poema de Yeats, pois Beckett
evocadas. Em Beckett, M evoca a presença considerou que a audiência alemã não te-
de sua amada, que se revela e se esconde, no ria conhecimento prévio do poema, enquanto
final do dia, quando se dirige para o seu san- que para os ingleses ficaria muito óbvio e re-
tuário e suplica para que ela apareça na escu- petitivo se fossem usados mais do que quatro
ridão. M , por intermédio de V,afirma que em versos do poema no final da tele-peça.
algumas noites suplicava em vão para que a
amada aparecesse e que, em outras, ela apa-
3 Beckett & Proust
recia na sua imaginação.
O poeta pergunta ainda se a imaginação No ensaio crítico que escreveu sobre a
discorre mais sobre um amor conquistado ou obra Em busca do tempo perdido, de Mar-
sobre um amor perdido e explica que se ela cel Proust, Beckett (1999:11) afirma que a
discorrer mais sobre um amor perdido, foi memória e o hábito são os dois atributos do
câncer do tempo, que é um monstro de duas-
“por mera covardia ou por orgulho, cabeças, tanto da maldição quanto da sal-
pseudoconsciência ou sutileza vaga, vação. Em ...but the clouds..., o autor lida
refugiste de um grande labirinto, com as duas instâncias, seja na repetição ha-
E se a memória volve o sol é extinto bitual das mesmas ações ou nas imaginações
Por um eclipse e o dia já se apaga” (Cam- criadas pela memória.
pos, 1998:7). A tele-peça enfatiza a repetição das ações
cotidianas, descreve a vida de M dia após
No final, o poeta afirma que preparou a dia, desde a aurora até o anoitecer, quando
sua paz, no sentido de sua morte, com as ele se fecha em seu santuário para implorar
cultas culturas italiana e grega, com a ima- à amada que apareça novamente. Ao repetir
ginação do poeta, as memórias das palavras sempre os mesmos movimentos, na sua ima-
das mulheres e dos amores, ou seja, com ginação e na sua lembrança, M explicita um
tudo o que o homem precisa “para o seu hábito e uma monotonia da vida cotidiana.
sobre-humano sonho-espelho de ser” (Cam- Para Beckett (1999:28), a vida é um hábito,
pos, 1998:8). Nos últimos versos que são o qual é um acordo entre o indivíduo e o seu
usados em ...but the clouds..., ele prepara a meio, cuja obrigação é ser perpetuado. O há-
sua alma, lamenta a morte dos amigos e dos bito oscila entre o sofrimento e o tédio. O
olhares que lhe fizeram prender a respiração, sofrimento representa a omissão do dever de
“como as nuvens do céu, quando o horizonte perpetuação, ele abre uma janela para o real
se esvanece”, referindo-se mais uma vez ao e é a condição principal da experiência ar-
crepúsculo, que é uma metáfora não somente tística. O tédio, por sua vez, representa o
da imaginação e da memória, mas também cumprimento do hábito que deve ser tolerado
da morte como o “lento cantar de um pássaro pois é o mais duradouro de todos os males
(que) ressoa no escurecer das sombras”. humanos.

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As cenas que explicitam os hábitos vividas. Ao evocar uma ação passada, o que
de M são, na verdade, exercício da sua se vê não é mais do que um eco desta ação,
memória, cujos movimentos são descritos pois é um ato intelectivo e está condicio-
por V . Para Proust, e para Beckett (2003:31), nado pelos preconceitos da inteligência. As-
existem dois tipos de memória, a memória sim, qualquer gesto ou palavra, perfume ou
voluntária e a memória involuntária. A som que não se explique por meio de algum
memória voluntária é descrita como um ál- conceito é rejeitado como ilógico e insignifi-
bum de fotografias, em que as imagens do cante (Beckett,2003:76).
passado, personificadas em imagens cor- Em contraposição ao círculo de luz, o es-
póreas, estão arquivadas, e que não se di- paço do santuário em que M se retira para
ferencia muito da memória de um sonho, não ser visto por ninguém e ativar os me-
pois ela “não tem valor como instrumento canismos da sua memória, encontra-se em
de evocação e mostra uma imagem tão di- completa escuridão. Na obra de Beckett, o
stante do real quanto o mito da nossa ima- espaço da memória é sempre o espaço da es-
ginação” (Beckett, 2003:12-3). Para o au- curidão, contraposto por um foco de luz que
tor, esta memória se apresenta como a forma expressa a imaginação, como nas peças Not
mais monótona de plágio, pois constitui o I (1972), That Time (1974-5) e What Where
plágio de si mesmo. Ao repetir os seus mo- (1982). Este espaço pode ser visto também
vimentos de um lado para o outro no círculo como uma metáfora da mente, que pode ser
de luz, M não faz nada mais do que imitar a ou estar sempre solitária e que se expressa
si mesmo, no presente e no passado, como na tele-peça pela palavra MINE12 . Esta pa-
o personagem Krapp da peça Krapp’s last lavra tem um sentido ambíguo na língua in-
tape ao ouvir novamente os rolos de fita cas- glesa e pode ser entendida tanto como o pro-
sete que contam as memórias da sua vida ao nome pessoal meu, quanto como o substan-
longo dos anos. tivo mina, no sentido de um fonte rica e in-
O círculo de luz é o palco da memória esgotável guardada no labirinto da memória.
voluntária, ou seja, onde ela se materializa Kirkley (1992:610) enfatiza que a palavra
como uma experiência não somente para M está escrita em letra maiúscula para indicar
mas também para o telespectador. Todas que deve ser falada com certa ênfase durante
as vezes que M quer ver a amada, ele entra a performance.
no seu santuário e começa a evocá-la, supli- No santuário, M ativa a memória por força
cando para que ela apareça. Para Beckett do hábito, no entanto, apesar de rever as suas
(2003:30), hábito e memória estão tão liga- imagens no círculo de luz, M não tem con-
dos um ao outro sendo que, em casos extre- trole sobre as aparições da amada, pois elas
mos, a memória é acionada por força do há- ocorrem por meio da memória involuntária.
bito. Como a memória voluntária permite ao Segundo Beckett (2003:32-3), esta memória
indivíduo escolher arbitrariamente quais as é “explosiva, uma deflagração total, imediata
imagens que quer guardar na sua lembrança, 12
“... busied myself with nothing, that MINE, un-
as imagens que M vê no círculo de luz são til the time came, with break of day, to issue forth
as imagens do seu arquivo da memória que again...” (Beckett, 1990:421)
estão disponíveis para serem lembradas e re-

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e deliciosa”, que escolhe o seu próprio tempo cialmente ...but the clouds..., apresentam um
e lugar para acontecer. A memória invo- experiência muito rica do meio, pois dialoga
luntária consome o hábito e revela o real, com os seus recursos de um modo muito pe-
o qual a falsa experiência da realidade não culiar. Pountney (1994-5:51) considera que
pode jamais revelar. Neste sentido, W , a o trabalho para a televisão permitiu a Samuel
amada de M , escolhe quando vai aparecer, Beckett experimentar com recursos que eram
intercalando a sua presença com a sua ausên- inimagináveis no teatro e investigar o poten-
cia. No começo da tele-peça, V afirma que cial expressivo da tecnologia disponível na
quando pensava nela era sempre noite e de- época, baseada no sistema de gravação da
pois corrige, afirmando que quando ela apa- câmera de vídeo. As possibilidades apre-
recia era sempre noite, ou seja, a amada apa- sentadas pela câmera, principalmente o uso
recia quando queria e não quando M queria do close-up, e a constante repetição do pro-
que ela aparecesse. cesso de gravação, capturando e preservando
Beckett (2003:79-80) comenta que a ex- uma imagem que pode ser repetida ad infi-
periência da memória involuntária acontece nitum, possibilitaram ao autor deixar a sua
algumas vezes na obra de Proust. Ela pro- visão estética expressa de forma única.
porciona a identificação entre as experiên- Na leitura dos manuscritos é possível per-
cias imediata e passada como, por exemplo, ceber que Beckett estava procurando encon-
a reaparição de uma ação passada ou a sua trar uma forma definitiva de se expressar ar-
reação no presente, consistindo numa “cola- tisticamente, que naturalmente nunca foi en-
boração entre o ideal e o real, entre a ima- contrada. Entretanto, a tecnologia televisual
ginação e a apreensão direta”. Pode-se su- permitiu a elaboração e a expressão de seu
gerir que o mesmo acontece em ...but the projeto abstrato, uma vez que as imagens fo-
clouds..., pois a experiência vivida por M ram gravadas e preservadas da maneira em
é comum ao passado e ao presente. O au- que foram efetivamente imaginadas pelo au-
tor afirma que esta experiência é, ao mesmo tor. Uma evidência disso é que numa entre-
tempo, imaginativa e empírica e transmite vista dada em 1986 Beckett (apud Ben-Zvi,
uma essência extratemporal cujo transmis- 1985:30) afirmou que estava muito mais in-
sor se torna, naquele momento, um ser extra- teressado em trabalhar com a televisão do
temporal. Analisando o personagem M , ele que com o teatro, porque aquele meio apre-
se mostra então como um ser extratemporal sentava mais possibilidades de expressão.
no momento em que revê a sua amada, ex-
perimentando uma breve eternidade. Neste
4 Bibliografia
sentido, as obras de Proust e Beckett consis-
tem numa negação do tempo e conseqüente- BECKETT, Samuel. Manuscritos
mente da morte, pois ela está vinculada ao MS1553/1, MS1553/2, MS1553/3,
tempo. O tempo linear é negado, pois pre- MS1553/4, MS1553/5, MS1537/8 de
sente e passado acontecem a um só e mesmo ...but the clouds... Beckett Archive,
tempo. University of Reading, 1976-77.
Para concluir, é necessário ressaltar que os
trabalhos de Beckett para a televisão, espe- BECKETT, Samuel. The complete dramatic

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As imagens da memória 9

a
works. 2 ed. Londres: Faber and Faber (org.) Amsterdam & Atlanta: Rodopi,
Limited, 1990. n˚ .4, 1994-5, 41-52.

BECKETT, Samuel. Quad et autres pièces YEATS, William Butler. The Tower em
pour la television. Paris: Les Éditions www.online-literature.com/yeats/782
de minuit, 1992. em 18/4/2003.

BECKETT, Samuel. Proust and Three dia-


logues with George Duthuit. Londres,
Montreuil e Nova York: John Calder
Publisher, 1999.

BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Port.


Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac
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BEN-ZVI, Linda. “Samuel Beckett’s media


plays”, em Modern Drama. V. XXVIII,
n˚ . I, mar. 1985, 22-37.

CALDER, John. “The Lively arts: three


plays by Samuel Beckett on BBC2, 17
April 1977”, em Journal of Beckett Stu-
dies, n˚ . 2, verão 1977, 120.

CAMPOS, Augusto de. “A torre e o tempo”,


em Folha de São Paulo, São Paulo, 14
jun. 1998. MAIS!

KIRKLEY, Richard Bruce. “A catch in the


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em Modern Drama, v.XXXV, n˚ .4, dez.
1992, 607-616.

KNOWLSON, James. Damned to fame.


The life of Samuel Beckett. Londres:
Bloomsbury Publishing, 1997.

POUNTNEY, Rosemary. “Beckett and


the camera”’, em Samuel Beckett to-
day/Aujourd’Hui. The savage eye. OP-
PENHEIM, Lois e BUNNING, Marius

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