Você está na página 1de 6

Entre Faulkner e Guimarães Rosa

[ou como a tradução torna-se traição]


Ana Godoy1

O propósito deste artigo não é debater as questões que envolvem a tradução de


textos literários, e sim tomar sensível ao leitor a concepção blanchotiana da tradução no
que concerne à sua ligação com o futuro. Deste modo o que se pretende é propiciar uma
experimentção do movimento do Tempo por meio do qual a língua produz um outro
dela mesma de maneira que a tradução concerne as virtualidades não de um texto, mas
de uma língua que não pertence a nenhum povo porque ela mesma é a produção de um
povo cuja estrangeiridade não cessa de se afirmar.

sul

Não se lê Faulkner sem se dispor ao risco, seja o de um mergulho, de uma falta


de ar ou de uma obscuridade invencível – sem lançar-se ao labirinto. Lê-lo exige abrir a
escuta à iminência de um desastre, mas também experimentar e dispor da história como
quem conta a si mesmo histórias a respeito de histórias, dispondo-se à ficção para
tornar-se, neste processo, ficção. A dispersão do relato faulkneriano é um combate ao
pensamento preguiçoso, pois quando se começa a lê-lo as referências dadas para as
funções e para os juízos são obliteradas; falta uma origem, não há retrospecto ou volta
ao passado que nos restitua a causa primeira, nenhum privilégio sobre a história. Em
Faulkner, não há começo ou fim para as histórias, tampouco para as personagens: seu
leitor pega o relato pelo meio.
“As frases duram páginas, as páginas duram horas, horas que passam mais
depressa do que os segundos”2. Nessa narrativa, a pontuação sacode a tirania da frase:
os travessões funcionam como encaixes, dois pontos sempre encalhados em meio a
elevações criadoras de volumes nas quais as perspectivas se multiplicam, os parênteses

1
Pós-doutoranda no Dept. de Filosofia e História da Educação da UNICAMP
2
Monique Nathan em Faulkner, p. 6.
cavam vales, os quais modulam os pontos de vista, que ganham e perdem velocidade.
Em meio à acumulação interminável de adjetivos distribuídos para todos os lados como
pequenos braços de rio, em meio a períodos monótonos intermináveis que desenham
uma imensa planície, Faulkner constrói uma narrativa dispersa na qual se entra por
qualquer lugar, pois o Sul já está por toda parte.
“Nasci nesta região em 1826, de uma escrava negra e de um aligátor” 3. Faulkner
é uma ficção, qualquer um poderia tê-la escrito, e, ao avançar-se na leitura de qualquer
uma de suas obras, será esta a mais violenta experiência, o mundo como ficção: sem
origem, sem fundamento, sem verdade. A escrita faulkneriana não presta contas do que
subtrai, toma emprestado ou rouba de cada um e de todos a fim de ser escrito o que se
quer escrever. Desta forma, lê-lo é subverter-se, pois não haverá nunca um uso
adequado das funções, sejam elas narrativas ou não, pois as personagens faulknerianas
nunca estão em conformidade, não correspondem às expectativas do mundo, nem às de
seus encargos ou missões, nem às da comunidade, tampouco às da família, assim como
a própria escrita de Faulkner subverte as funções gramaticais. Ao fazê-lo, se escuta o
entorno ruidoso da voz natural – a voz consoante à razão e ao uso, voz do Falsário
cósmico, do Jogador, do Regente, do Credor –, entorno de som e fúria que a arrasta num
uivo animal e cósmico.
Não há o homem faulkneriano, muito menos um herói, pois cada nome próprio
designará tão-somente relações que não cessam de variar. Em Faulkner, a pluralidade de
nomes para uma personagem corresponde à pluralidade de relações por ela entretecidas
com o meio. Pode-se afirmar toda a obra de Faulkner como a intricada construção de
uma topologia para a qual o Sul é antes uma intensidade4.

travessias

3
William Faulkner apud Monique Nathan, Faulkner, p. 27.
4
Michel Butor, a propósito da novela O Urso, dirá que, de modo geral, a identidade do
nome só se produz no seio da família e implica a existência de um único modo de
comunicação dando-se o inverso em Faulkner. Apud Monique Nathan, Faulkner, p.
90.
“...às vezes quase acredito que eu mesmo,
João, sou um conto contado por mim
mesmo. É tão imperativo...".

Na introdução a Tutaméia, Guimarães Rosa comenta que “a estória não quer ser
história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um
pouco parecida à anedota”. Tal não seria possível se a linguagem não fosse ela mesma
uma maquinação capaz de engendrar estranhas maquinarias, puro jogo cujo nome
poderia bem ser travessia, em que se é levado a sair das margens e dos códigos
estabelecidos, das convenções dominantes.
A língua dobra-se para todos os lados e o tempo presente da narrativa se põe
como tempo de ruptura, ele mesmo fendido. Rosa dirá que “é preciso distendê-la,
destorcê-la, obrigá-la a fazer ginástica, desenvolver-lhe músculos. Dar-lhe precisão,
exatidão, agudeza, plasticidade, calado, motores” embolando-a num corpo a corpo, e
assim enfrentar o atual estado de coisas e todos aqueles que o promovem: “os
apressados, preguiçosos, vaidosos e impacientes”5.
Experimenta-se a travessia na leitura de Rosa. Atravessa-se uma região, um
continente, um mar, um rio, e permanece-se na travessia, isto é, na distância entre
margens dadas. Para tanto, é preciso apropriar-se, aqui e ali, de outras línguas, palavras
ou objetos com os quais se brinca. Este trecho ou entre-trecho desabitado será povoado
pelas mais estranhas coisas. A travessia é o jogo das crianças, cujas regras são sempre
móveis, tornando o próprio jogo movediço, pois na travessia “as idéias de gente muito
grande (...) por aí, desapareciam, esfiapadas”6.
Desta forma, os contos roseanos exigem sempre um audaz navegante, capaz de
descobrir os outros lugares, mas também capaz de fazer, do “cocô de cachorro no tapete
de um salão” - a literatura, mas também a vida -, um Outro “colorido e estrambótico,

5
Trechos de carta de Guimarães Rosa para Vicente Guimarães Rosa, datada de 11 de
maio de 1947. Cf. Vicente Guimarães em Infância de João Guimarães.
6
Guimarães Rosa em “Os Cimos”, in Primeiras Estórias, p. 227.
folhas e flores, raminhos e gravetos” 7. O audaz navegante lança-se à travessia,
arrebatado pela intensa diversão como prazer no desvio.
Em entrevista a Gunter Lorenz, Rosa disse que escreve na língua que inventou,
“e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos
outros”8, pois nada está terminado, seja a língua ou as pessoas – elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam.
A travessia, com seus atravessamentos, nos afasta de qualquer possibilidade de
unidade e coesão, pois aí, onde nada está terminado, os territórios são instáveis e
provisórios, mundo sem origem e fundamento – tanto quanto os “pastos carecem de
fecho” -, mundo sempre inacabado, sempre por vir, de lá. Terceira margem, que é
silêncio, cujo murmúrio não cessamos de ouvir.

“o tempo é o mágico
de todas as traições...” 9

Escavacar as palavras já porque se cavaca nos troncos os ocos da canoa, escavar


até abrir-lhes um vão, tal qual espaço aberto num muro, um intervalo.
Das mil maneiras por meio das quais se lê Faulkner ou Guimarães Rosa
experimenta-se sempre o desconcerto. Vai-se por este ou por aquele caminho, e são
sempre descaminhos, nos quais termina-se embaraçado e atordoado. Porém, já assim o
desconhecido nos afeta, pois “a literatura é esse lugar de acontecimento na fronteira da
linguagem, lugar em que a linguagem (...) comunica-se com seu próprio fora”10.
Os contos e romances de Faulkner e Rosa tornam-se um corpo vivo e
desbordante, cuja fúria indomesticada rompe diques e margens arrastando para o

7
Guimarães Rosa em “A partida do audaz navegante”, in Primeiras Estórias p. 175.
8
Gunter Lorenz em "Diálogo com Guimarães Rosa", in Guimarães Rosa (Coleção
Fortuna Crítica).
9
Guimaeães Rosa em “O espelho”.
10
Lucia Castello Branco em “O silêncio do exterior: Deleuze, Lacan, a literatura e a
vida”, in Nietzsche e Deleuze: pensamento nômade, p. 148.
imprevisível - essa coisa informe e desnaturalizada sem pátria, sem nação, sem casa -,
que ameaça introduzir-se, esse Outro, o intruso, o estrangeiro, fazendo soar a inquietude
das personagens que nunca são o que são - são sempre uma outra coisa a ser
surpreendida rio acima ou rio abaixo.
Tanto um como outro, não desenvolvem propriamente uma estória, mas cavam
brechas, esmagando, extirpando e berrando, dando-se e dando-nos a experimentar o
próprio movimento de invenção da língua no trabalho da linguagem poética,
implicando-nos com sua violência, aquela exigida pela invenção: “destelhar casas”.
A língua dobra-se para todos os lados e o tempo presente da narrativa se põe
como tempo de ruptura, ele mesmo fendido. Rosa dirá que “é preciso distendê-la,
destorcê-la, obrigá-la a fazer ginástica, desenvolver-lhe músculos. Dar-lhe precisão,
exatidão, agudeza, plasticidade, calado, motores” embolando-a num corpo a corpo, e
assim enfrentar o atual estado de coisas e todos aqueles que o promovem: “os
apressados, preguiçosos, vaidosos e impacientes”11. O mesmo combate a indolência e ao
entorpecimento instaura Faulkner por meio de sua composição anárquica.
Em ambos trata-se, sobretudo, de romper com a narratividade, de fazê-la fugir
bem como aquilo que é dado. É neste combate e por este combate que se afirmam as
forças de futuro, de um futuro não-dimensionável, incalculável. Destelhar casas, tanto
em Faulkner quanto em Rosa, é processo e procedimento e refere-se, sobretudo, ao
próprio desmanche da forma narrativa e da linguagem, para liberar nelas as vibrações e
sensações que persistem nos acontecimentos. Processo e procedimento, que já são
também uma força de futuro. Assim, o sul em Faulkner remete a uma zona de vibrações
e sensações, de intensidades móveis; e a travessia em Rosa às passagens entre as
intensidades numa zona. É nesse sentido que traduzir diz menos respeito a códigos a
serem decifrados, mas aos modos pelos quais se extrai as forças que permitem a
sustentação deste processo, deste procedimento em sua abertura, e, é somente nesta
perspectiva que a tradução se afirma como traição.

Trechos de carta de Guimarães Rosa para Vicente Guimarães Rosa, datada de 11 de


11

maio de 1947. Cf. Vicente Guimarães em Infância de João Guimarães.


.

Você também pode gostar