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Boletim 56 / junho 2014 9

Ísis Faria25

1. Introdução Acre. Aí ele já não é somente o símbolo de Letra e música: César Farias e Bab Franca).
uma cultura, participando ativamente de De acordo com Michol, “Bumba-meu-

A
ntes de nos atermos a uma análise sua invenção, para ser também símbolo da -boi, tem o significado de Bate, meu boi!
reflexiva sobre a presença do “Bum- ampla resistência que caracterizaria o Brasil Chifra, meu boi! Avante, meu boi […]”
ba” no folguedo Jabuti-Bumbá e no diante da possibilidade de destruição e de (CARVALHO, 1995, p. 39). Ao deslocar o
Bumba-meu-boi, bem como suas referên- expropriação das práticas e dos recursos na- termo “Bumba” do âmbito restrito da festa e
cias visuais e culturais, apresentamos breve turais e culturais no contexto das mutações inseri-lo no âmbito ampliado da vida social e
considerações sobre os dois folguedos e sua econômicas envolvidas na globalização. política enfatiza-se o sentido de luta, de per-
importância, da perspectiva relevante para Já no folguedo do Boi suas primeiras severança como elemento de expressão de
o presente artigo. aparições remontam ainda à época da escra- resistência cultural, em que usos e práticas
O Marupiara Jabuti-Bumbá, nasceu em vatura brasileira. Foi através do estado do tradicionais se mesclam numa pluralidade
2005, criado por uma família de artistas na Maranhão que o folguedo, que homenageia de contaminações para batizar aquilo que
cidade de Rio Branco, no Acre. Essa mani- São João e os demais santos juninos tomou o ‘povo’ nomeia (RAPOSO, 2004).
festação cultural emerge como um folguedo força e se espalhou por todo o Brasil, prin- Todavia é preciso ressaltar que o cam-
híbrido, com o elemento forte e catalisador cipalmente pelas regiões Norte e Nordeste. po cultural projetado pelo Jabuti-Bumbá
de culturas (indígena, ribeirinha) presentes No Maranhão, os Bumba-bois são divididos é muito diverso daquele projetado pelo
em suas referências históricas. A partir em sotaques, que representam as suas Bumba-meu-boi, assim como o são as trans-
do ano de 2009, o folguedo Jabuti-Bumbá variações conforme o ritmo, as danças, os formações experimentadas por ambos. Se
dar origem a outras vertentes de atuação, instrumentos, a indumentária, as toadas; inicialmente a longevidade do folguedo do
espalhando-se por diferentes localidades já os personagens, segundo Vasconcelos, Boi em muito ultrapassa aquela do Jabuti, a
agregando novos brincantes, adereços e fundamentam essa divisão “[…] resultando importância de ambos residiria na potência
alegorias. Estas vertentes também levam em semelhanças e diferenças de um grupo dos folguedos para agregar os elementos
o nome, as músicas, as práticas e a figura em relação a outro […]” (VASCONCELOS, diversos fundamentais para a afirmação
do Jabuti-Bumbá. Entre as alegorias de 2007, p. 19). A literatura consagrada divide da identidade de um povo, de uma região,
mais destaque estão: o Jabuti Carumbé e o os sotaques da seguinte forma: Zabumba, de um grupo, ressignificando os motivos
Marupiara Jabuti-Bumbá (hoje localizado Matraca ou da Ilha, Pindaré e Orquestra. da violência simbólica que preside o seu
na vila de Santo Antônio de Olhos D´Água- Todavia, a diversidade de manifestações do surgimento (índios e negros para o Boi,
Goiás, onde vive atualmente umas das Bumba-meu-boi no Maranhão é tanta que ribeirinhos e índios para o Jabuti). A con-
fundadoras). O Jabuti-Bumbá, ao contrário não se limita ao que está registrado como tinuidade entre essas diferenças poderia
do Bumba-Boi, não é focado em um auto; estilo ou quantidade, há também aqueles então ser sintetizada na expressão “Bumbá”
sua apresentação, sua brincadeira acontece que não se enquadram na divisão de sota- compartilhada por ambos. É ela que permi-
em forma de cortejo. Neste folguedo, não ques referidos acima. te a eles habitarem o mesmo universo – o
é São João o Padroeiro da brincadeira, mas Nesse folguedo encontramos uma ver- do folguedo em que o homem, ao dançar/
sim Nossa Senhora Seringueira (uma apa- dadeira fusão de elementos cristãos com brincar com o bicho, extrai dele a força
rição do imaginário popular da fronteira aqueles provenientes dos terreiros com a necessária para seguir em frente.
Acre-Bolívia), ligada ao passado histórico de presença dos caboclos em alguns grupos É a partir deste elemento, de suas ex-
luta pela tomada do território das mãos dos de Bois. Assim é que independentemente pressões concretas, dos fazeres cotidianos,
bolivianos. Desse modo, o Jabuti-Bumbá de o Boi ser da Ilha, de terreiro ou sem que é possível apreender os cruzamentos e
carrega em sua formação dois elementos de sotaque definido, a presença da resistência contaminações aos quais Raposo (2004) se
afirmação da cultura e da identidade acria- ligada à fé, por meio da mistura de práticas refere. Deste modo, o Boi e o Jabuti são in-
na. O primeiro relacionado ao seu passado religiosas, nesse folguedo, é uma marca da separáveis – não sendo explicáveis um pelo
histórico, com a presença do nordestino, violência cultural e simbólica que preside outro e tampouco apreensíveis um sem ou
que traz em sua bagagem cultural as festivi- sua origem, e incessantemente atualizada outro. Neste ponto, recorremos novamente
dades (entre elas o Bumba-meu-boi), e pela nos fazeres de todas as pessoas envolvidas a Paulo Raposo quando ele coloca que as
musicalidade da doutrina do Santo Daime, com a festa do Bumba-meu-boi. políticas da memória e a afirmação identi-
fundada pelo maranhense Irineu Serra no A complexidade dos dois bichos, dos tária implicam em como os grupos e os seus
Acre. O segundo elemento relacionado dois folguedos, pode ser percebida na responsáveis definem, selecionam a sua
à contemporaneidade, que chamaríamos própria trajetória , de modo que, o que nos “cultura”, a sua memória coletiva partilha-
de presente histórico, em que o boi se faz interessa no presente artigo é o que faz da, sustentando dessa maneira sua própria
presente mais uma vez, mas como elemento dançar esses dois bichos. definição de “cultura” (RAPOSO, 2002).
desagregador da cultura acriana, o boi como Há uma letra de música do Jabuti- Por esta razão, caberia aqui discutir a
modelo econômico (pecuária), símbolo da -Bumbá com os seguintes versos: “Jabuti relação entre os folguedos do Jabuti e do
destruição da floresta para formação de pas- bailou com o boi / Bumba boi do Maranhão Boi através da importância dos modos de
tos. O caráter eminentemente combativo e […] / Jabuti olhou pro boi / E antes do boi fazer e de adotar essas perspectivas como
resistente do folguedo ocupa todo o círculo perguntar / Jabuti foi respondendo / Eu elemento de resistência presente nestas
festivo e o faz ultrapassando as fronteiras do também sou um Bumbá” (Cipó Escada. festas populares e como isso se relaciona

25 Mestre em Antropologia/Cultura Visuais pela Universidade Nova de Lisboa. isisfariasster@gmail.com


Este artigo foi elaborado a partir da dissertação Jabuti-Bumbá e Bumba-meu-boi: referências visuais e circulação de formas culturais, realizada em Lisboa e
defendida em 2013 sob a orientação do professor Doutor João Aires de Freitas Leal.
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com a difusão de elementos culturais e ale- à tendência do trabalho do pesquisador


góricos dos folguedos no Brasil – a profusão para ser uma expressão de sua experiência 2. A visualidade e a resistência
de elementos que fazem “bumba” os dois de pesquisa ou mais exatamente daquilo cultural no Bumba
folguedos, os elementos que os fazem dançar que sua experiência de pesquisa lhe deu.
e resistir ao tempo. São estes cruzamentos, Parafraseando Turner (1975), sempre so- Dawsey nos lembra que no lugar do
contaminações e seleções conjunturais que mos afetados pelos poderes simbólicos que grande espelho mágico dos rituais, temos
possibilitam a criação e a reinvenção de novas tornamos presentes nas investigações de contemporaneamente “ uma multiplicidade
manifestações, propiciando a releitura e o campo conduzidas por nós. de fragmentos e estilhaços de espelhos, com
diálogo de folguedos e de práticas tradicionais Na esteira de Victor Turner, Dawsey efeitos caleidoscópicos, produzindo uma
com elementos e práticas contemporâneas, (2006) pontua que a antropologia da per- imensa variedade de cambiantes, irrequie-
formando um imenso caldeirão híbrido de formance apresenta-se como “uma parte tas e luminosas imagens [...]” (DAWSEY,
manifestações culturais, onde o Jabuti do Acre essencial da antropologia da experiência” 2006, p. 20). Como ressignificar o mundo
e o Boi do Maranhão se implicam de formas (DAWSEY, 2006, p. 19), e seria através da que se estilhaça? Como dar sentido para
as mais diversas. performance que essa experiência pode ser a existência e luta de uma cultura, de um
grupo? Parecem ser estas perguntas que
Com isso em mente, reunimos neste revivida, revelando-se. Trata-se não apenas
subjazem à performance do Jabuti e dos
artigo uma série de autores provenientes de pensar a performance enquanto expres-
Bois; performance que refletiria, em parte, a
da Antropologia da Performance, da An- são, mas também de pensar a expressão
busca por “uma experiência coletiva, vivida
tropologia Visual e da Antropologia Social, enquanto momento culminante de uma
em comum, passada de geração em geração
destacando aspectos de seus pensamentos experiência.
e capaz de recriar um universo social e
para abordar a relação entre os dois bichos. Turner privilegia, na sua antropologia simbólico pleno de significado” (DAWSEY,
Deste modo, buscamos possibilitar a abertu- da performance, um olhar que se dirige para 2006, p. 20), e em parte refletiria os ruídos
ra para uma compreensão das coisas feitas as coisas não resolvidas da vida social, dessa e as incoerências de um contexto em que
pelos homens e dos homens que criam as perspectiva o folguedo do Boi e do Jabuti a tradição se despedaça e a experiência se
coisas, uma vez que, em meio à profusão de importariam imediatamente por colocarem empobrece.
coisas, os símbolos, as imagens, os temores em movimento símbolos que instigam a Quando pensamos o “Bumba” como
e sonhos reinam e são imprescindíveis, ação. É esta dimensão do agir, do fazer, e expressividade que dá existência à experi-
compondo o cotidiano da existência (AN- sua ligação com o contexto, sua abertura ência, é preciso antes refletir sobre o signi-
DRADE, 2002). para a mudança, a sociedade em ato que ficado da experiência, uma vez que “[…] é
Assim, quando olhamos para o Jabuti e melhor contempla os folguedos do Boi e do na festa que tomamos consciência de coisas
o Boi, imensas alegorias que são, pousamos Jabuti nesta análise. Como coloca Richard gratificantes e dolorosas […]” (DA MATTA,
o olhar sobre as coisas e olhamos então para Schechner (2006, p. 30), “To treat any 1984, p. 81), que compreendemos o modo
o lugar das coisas que pertencem ao fluxo object, work or product ‘as’ performance como as coisas são feitas, de que maneira
da experiência vivida e que solicitam o olhar [...] means to investigate what the object a dimensão material da existência fornece
de um outro. does, how it interacts with other objects or recursos para a ação, mas também de que
Considerando o Jabuti e o Boi como beings, and how it relates to other objects or modo a seleção e a recriação de aspectos
folguedos visualmente expressivos, preci- beings. Performances exist only as actions, da história e da experiência vivida funcio-
samos nos reportar a alguns autores que se interactions and relationships”. nam como elementos que possibilitam aos
dedicaram a pensar a performance dentro da Desta maneira, não somente a festa é agentes se reconhecerem. Aqui o “botar26
Antropologia. Ao tomarmos a Antropologia levada em consideração, mas também o que ”, tanto no Jabuti quanto no Boi, se dá no
da Performance privilegiamos aspectos podemos chamar de “os bastidores” destas nível que empreende o esforço de novas
que interessam mais imediatamente a este festas, aquilo que compõem a intimidade invenções, da criação e da formação de uma
artigo, trazendo elementos de constituição da festa, aquilo que antecede a performan- identidade, onde a festa e o cotidiano são
desse campo que provêm tanto de Richard ce, que faz os elementos visuais saltarem elementos fundamentais que celebram a
Schechner (1993) quanto de Victor Tuner resistência cultural.
aos olhos. São esses elementos que tanto
(1975). diferenciam quanto assemelham as duas
2.1 O Bumba e a visualidade
Em The Future of Ritual (1993), Sche- alegorias, e estão relacionados aos materiais
chner colocará que a performance, em utilizados e às suas referências históricas,
No folguedo do Jabuti-Bumbá, a cabeça
qualquer uma de suas variedades (seja a do que participam do processo pelo qual os
do Jabuti é moldada em isopor, seus olhos
entretenimento, ou para assinalar ou modi- valores e as expressões de grupos diversos se
e boca desenhados com papel machê e seu
ficar a identidade, ou para criar uma comu- mostram, mas também iluminam aquilo que pescoço revestido de borracha com cilindros
nidade, ou para convencer e persuadir, ou para estes grupos já se tornou comum. Os feitos de canos. O grande corpo do Jabuti é
para curar etc.) visa a transformação, isto folguedos são expressivos na mesma medida feito de espuma EVA que reveste canos de
é, o acionamento da habilidade do homem em que os materiais se tornam expressivos, PVC modelando o grande casco. Pequenos
para criar a si mesmo, para mudar, para compondo uma visualidade que age sobre pedaços de espelhos associados à pintura
se tornar o que ele habitualmente ou até as emoções e a sensibilidade daqueles que com tinta acrílica formam um imenso mo-
então não era. É por meio da performance participam dos folguedos (brincantes ou saico desenhando as divisões do casco. Por
que alguma coisa é criada, modificada, espectadores), e daqueles que os concebem fim, a grande saia do Jabuti é feita com re-
celebrada ou finalizada. Para Schechner, a e os produzem ao longo do tempo, pois os talhados de tecidos coloridos de cetim, para
performance é, assim, a apresentação de um liga a uma experiência histórica vivida (en- o corpo da saia, e de chita, para suas bordas.
ato praticado. No entanto, a determinação tendida como origem dos folguedos) como Há também pequenos desenhos aplicados
do ato, dentro do conjunto de atos que pre- forma de estabelecer sua identidade social na saia trazendo elementos da natureza. O
cedem a performance, diz respeito também e cultural. movimento da alegoria é realizado sempre

26 O termo “botar” é bastante utilizado pelos brincantes do Bumba-meu-boi referente a “Botar uma brincadeira de boi na rua […] Organizar, coordenar, arrumar patrocínio
e outras coisas que faz o boi urrar!” (REIS, 2008, p. 43).
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por duas pessoas que a fazem dançar. Os manda bordar […] os desenhos a gente cialmente quando se dão à margem dos
brincantes utilizam ainda sementes como faz de acordo com os acontecimentos… grandes financiamentos, quando então a
apoio aos adornos, e as cores mais presentes por exemplo, esse ano a gente mandou
autonomia do trabalho é também um traço
bordar a foto de uma senhora chamada
são o verde, o amarelo, o branco, vermelho Aliete Marques, uma folclorista muito distintivo da produção artística visual. Ao
e azul. amiga da gente [...] ela tinha um pre- nos aproximarmos destes Bumbas, o traço
sépio… mandei fazer um presépio de da visualidade salta. Aplicando-se tanto ao
um lado e de outro a Nossa Senhora de Jabuti quanto ao Boi, é ele que deixa claro
“[...] sou uma figura rara, gigante e
Fátima, que era a Santa que ela tinha de que se tem “gente do Jabuti” e que também
cascudão feito à mão com muito amor
proteção, era devota [...] As coisas que ela
e devoção, a cabeça tem expressão da se tem “gente do Boi”, onde a brincadeira
fazia e gostava. Então eu mandei bordar
alegria, talhada no isopor e coberta com nasce, vive e morre todos os anos. Desse
no couro do boi… e a foto dela […].”
papel, [...] a saia de tecido colorido com modo, os elementos privilegiados nos dois
(Seu Zeca, Boi Lírio de São João, 2011,
mosaicos que lembram a Amazônia
informante). folguedos fazem da visualidade a própria
seus rios e seu povo. O brinquedo tem
também um jabuti tipo burrinha, o explicitação do traço que os distingue não
casco feito de papelão e pintado com as Visualmente, a performance do Jabuti como folguedo, mas como processos sociais
formas dos `Kenês´ indígena, a saia de e do Boi nos convida a ir do centro para a e culturais em que valores e arranjos simbó-
chita. [...] A construção do brinquedo licos distintos são performatizados.
margem, e, na margem, a olhar os elementos
tem referências no tradicional e busca Assim, seus criadores, tanto os do Jabuti
no moderno seu próprio estilo.” (Silene arredios e suprimidos que a performance
revela: as minúsculas expressões da resistên- como os dos Bois, escolhem materiais e
Farias, Jabuti-Bumbá, 2014).
temas cujos significados implicam mais ou
menos a experiência histórica vivida e cuja
fixidez ou variação simbolizam a dinâmica
cultural e política que exprimem.
Esses materiais e temas participam do
cotidiano e remetem diretamente ao modo
como as coisas são feitas, de maneira que as
práticas são inseparáveis dos procedimen-
tos. É preciso então dar atenção à intimi-
dade das coisas e das pessoas, mostrando
o nascimento precário desses Bumbas e
a luta cotidiana para fazê-los viver e para
mantê-los vivos, a necessidade e o esforço
de “botá-los”. Aí, Bois e Jabuti fazem mais
uma vez o seu encontro.

2.2 O Avesso do Boi e do Jabuti


À esquerda: O Bumba do Jabuti. Marupiara Jabuti-Bumbá. Foto: Edunira Assef,
Rio Branco, Acre, 2005. À direita: O Bumba do Boi. Boi da Madre Deus.
Foto: Ísis Farias, São Luís, Maranhão, 2011.
É no avesso, na intimidade das festas,
das coisas e das pessoas, nos fazeres, no
cotidiano, nas relações dos homens com os
Já no Bumba-Boi, geralmente a alegoria cia que passam despercebidas ao espectador homens, com os materiais, com os bichos,
do Boi, tanto o corpo como a cabeça, é feita mais apressado, em que a força e riqueza do com a história de cada material escolhido
de madeira, o Buriti. O Boi é revestido de Bumba revela-se no e manuseado que os dois bichos dançam e
veludo, geralmente de cor preta, e o seu que se criam novos brinquedos: as práticas
couro é rico em cores, presentes nos borda- “sempre querer ir pra frente”, com o que e aquilo que as mantêm, o que dá sentido
dos de vidrilhos. Sua cabeça também leva há nisso de prazer e de dor, de tristeza, aos valores e ideias, os atos que precedem
apliques de vidrilhos, assim como os olhos e de alegria e de fé, tal como aparece na e presidem a performance.
a boca. Os chifres do Boi geralmente são fei- fala de Seu Marcelino: “Minha fé é muito
tos de chifres de bois de verdade, enfeitados segura para com Deus e o Santo… eu não
“[…] depois que nós fazemos o esqueleto
aprendi a desistir eu sempre quero ir pra
com fitas coloridas. A saia do Boi também frente com o Boi.” (Marcelino Azevedo,
desses objetos, aí de noite nós fecha a
varia de grupo para grupo, mas geralmente casa, vamos aqui para o barracão chama
Boi de Guimarães, 2011, informante).
é feita de cetim colorido, trazendo sempre os meninos e vamos ensaiar eles [...] quem
vai andar dentro de urubu, quem vai se
temas bastante variados – homenagens deitar pra ele beliscar, quem vai dançar,
Seja como performatização do jogo en-
aos santos, ao Maranhão, ao padrinho do ensinar o menino dançar… não é no dia
tre o animal e o homem, em que o homem
Boi, a figuras de relevância política – es- do ensaio (ensaio do Boi), aqui ninguém
incita o animal e o animal, Boi ou Jabuti,
tampados em seu corpo, mudando a cada sabe como vai ser nossa comédia, é uma
leva o homem à ação criadora, sempre em traição[…] só os cantores que sabem
ano e de acordo com cada grupo de Boi.
Seus brincantes/personagens usam muito aberto, seja como performatização da luta porque nós temos que dizer pra eles
cotidiana contra a expropriação material e […],mas não fala no nome dos objetos
brilho e cores diversas em suas vestimentas que vai sair [...]. Esse ano nós temos é a
e adornos. Há ainda a presença de penas simbólica sempre em curso e sempre pres-
apresentação da Dança do papagaio […]”.
coloridas artificiais e penas de Ema de cor tes a ser revertida, em que o espaço-tempo (Lourenço Pinto, Boi Capricho de União,
natural nos personagens dos índios e nos da festa / do folguedo corre o risco de ser 2011, informante).
caboclos de pena. ocupado por uma outra gramática: a do
“[…] rolou a ideia de fazer o Sarapó por
mercado, a do turismo, a da política. conta da minha infância e do nome do
“[…] O boi, a gente chama ‘Capoeira’ É o caráter doméstico das produções meu grupo musical. Depois comecei a
porque é feito de Buriti, então não chama que as tornam verdadeiras profissões de pesquisar e vi que o sarapó não passava
boi, chamam de ‘capoeira’ […] a gente fé (na mudança, na transformação), espe- de uma isca para os peixes nobres da
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criadores e brincantes, onde as alegorias


manifestam o que é a resistência viva e
dançante destes folguedos. O efeito sobre
os homens na brincadeira com os bichos é
o Bumba, é assim que os homens no mundo
dos homens já não serão mais os mesmos.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Rosane de. Fotografia e


Antropologia – olhares fora-dentro. São
Paulo: Estação Liberdade, 2002.
CARVALHO, Maria Michol Pinho de.
Matracas que desafiam o tempo: é o
Bumba-Boi do Maranhão. Um estudo da
tradição/modernidade na cultura popular.
São Luís: SIOGE, 1995.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do
Cotidiano - Artes de fazer. Trad. Ephraim
Ferreira Alves. 3. ed. Petrópolis, Vozes,
À esquerda: Jabuti. Avesso. Papelão, EVA, isopor, pintura, látex. Jabuti-Bumbá. Foto: Arquivo 1998.
Silene Farias, Olhos D´Água – Goiás, 2013. À direita: Boi. Avesso. Buriti, esponja, vidrilhos,
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil,
bordados, veludo. Boi Capricho de União. Foto: Ísis Farias, Santa Helena, Maranhão, 2011.
Brasil. Rio de Janeiro, Rocco, 1984.
sociedade, e nisso o Sarapó já estava MULLER, 2005). DAWSEY, John Cowart. Turner, Benja-
quase pronto… foi quando eu fui atrás Desta perspectiva, é preciso considerar min e Antropologia da Performance: O
de uma mangueira pra fazer o rabo do lugar olhado (e ouvido) das coisas. Revis-
a expressão “Bumbá”, no Jabuti-Bumbá, não
bicho e por lá achei a Edunira e perguntei ta Campos, v. 7, n. 2, 2006. Disponível
a ela se ela conhecia alguma mangueira somente como uma releitura do folguedo
mais popular do Brasil, “os Bumbas-bois”, em: <http://www.agenciawad.com.br/
que fosse dura e ela me falou que só
conhecia a mangueira de led (daquelas mas como elemento de diálogo e de tensão. clientes/dausp/arquivos/johndaws/prin-
utilizadas no natal) quando ela falou isso Pois se o boi pode ser considerado como o cipais21.pdf> Acesso em: 14 jun. 2012.
o Puraqué veio na minha cabeça, e pra VASCONCELOS, Gisele Soares de. O
elemento antilógico em relação ao jabuti,
mim foi muito bacana. Porque o Puraqué Cômico no Bumba-Meu-Boi. 337f. Dis-
visto sua existência estar ligada diretamente
tem mais enredo e é temeroso, o bicho sertação (Mestrado em Ciências Sociais)
dá choque e tudo mais […] agora temos à destruição da floresta, habitat do jabuti, e,
- Universidade Federal do Maranhão, São
o Jabuti que é da terra e o Puraqué que é ainda, que o boi pertence ao universo cultu- Luís, 2007.
das águas, dois elementos!”. (César Farias, ral do nordestino, cuja via de apropriação se MARUPIARA Jabuti-Bumbá. CD. Rio
Jabuti-Bumbá,2013, informante). dá através da experiência do negro liberto, Branco, Acre. Lei estadual de apoio a
e o jabuti pertence ao universo cultural dos cultura, 2008.
Desse modo, tal como coloca Paulo indígenas, cuja via de apropriação se dá atra- MULLER, Regina Polo. Ritual, Schech-
Raposo (2002, p. 1),“celebrando, reiven- vés do nordestino emigrado, é a expressão ner e performance. Horizontes Antropo-
tando e reimaginando a memória cultural, “Bumba”, como incitamento a seguir em lógicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, 2005.
as expressões performativas afetam e são frente, a não se deixar deter ou abater, que Disponível em: <http://www.scielo.br/
afetadas pela situação social englobante”. torna possível articular simbolicamente a pdf/ha/v11n24/a04v1124.pdf> Acesso
diferença entre essas duas trajetórias cultu- em: 20 jun. 2012.
3. Conclusão rais que constituem o Acre (e os acrianos) e RAPOSO, Paulo. Cultura Popular: Auten-
o Maranhão (e os maranhenses) e que têm ticidade e Hibridização. 2002. Disponível
Nesse artigo, procuramos dar visibilida- como elemento comum a expropriação e a em: <https://sites.google.com/site/pj-
de àquilo que participa do cotidiano dessas resistência. praposo/> Acesso em: 20 set. 2012.
pessoas, o avesso dessas alegorias, os outros Assim a dança entre os dois bichos ______. Pelos Trilhos de O Bando:
bichos com os quais elas se relacionam, se fez possível neste artigo pela forma do Contaminando Tradições. Conferência
apresentada no Aniversário dos 30 anos
àquilo que não está unicamente na festa, e resistir e do existir, pelo empenho na com-
do teatro O Bando, Palmela, 2004.
que não se reduz ao seu momento público. preensão das coisas feitas pelos homens e
REIS, José Ribamar Sousa dos. O ABC do
A resistência, aqui, tem uma conotação dos homens que criam as coisas. A dança
bumba-meu-boi do Maranhão. 2.ed., São
mais ampla e mais forte. Está relacionada do homem com o bicho, tal como se ex- Luís, Fort Gráfica, 2008.
diretamente aos laços afetivos familiares e pressa nos folguedos do Jabuti-Bumbá e do RODRIGUES, Graziela. Bailarino-
coletivos dos fazedores destas festas; estes Bumba-Boi, encena no presente a luta (de -Pesquisador-Intérprete, processo de
laços afetivos são a própria expressão destas um grupo, de uma sociedade, de uma cul- formação. Rio de Janeiro: Funarte, 1997.
festas, dos modos de vida que sustentam tura) para resistir e se constituir enquanto SCHECHNER, Richard. The Future of
estas pessoas e as suas práticas, e que são identidade, para transformar o seu entorno, Ritual: Writings on Culture and Perfor-
reafirmados cotidianamente precedendo a para celebrar sua crença e sua vitalidade, mance. London: Routledge, 1993.
própria perfomance. É a relação imediata para assinalar suas descontinuidades. O ______. Performance studies: An intro-
com essa realidade que possibilita a expe- que se manifesta cantando, dançando e duction. 2nd ed. New York: Routledge,
riência de ruptura por meio da qual se cria recriando é o sentido da própria luta e da 2006.
a linguagem do corpo na sua implicação própria existência, através de elementos os TURNER, Victor. Revelation and Divina-
com a história, com a identidade e com o mais variados e através das relações e das tion among the Ndembu. Ithaca: Cornell
inconsciente coletivo (RODRIGUES, 1997; experiências cotidianas vividas por seus University Press, 1975.

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