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Ísis Faria25
1. Introdução Acre. Aí ele já não é somente o símbolo de Letra e música: César Farias e Bab Franca).
uma cultura, participando ativamente de De acordo com Michol, “Bumba-meu-
A
ntes de nos atermos a uma análise sua invenção, para ser também símbolo da -boi, tem o significado de Bate, meu boi!
reflexiva sobre a presença do “Bum- ampla resistência que caracterizaria o Brasil Chifra, meu boi! Avante, meu boi […]”
ba” no folguedo Jabuti-Bumbá e no diante da possibilidade de destruição e de (CARVALHO, 1995, p. 39). Ao deslocar o
Bumba-meu-boi, bem como suas referên- expropriação das práticas e dos recursos na- termo “Bumba” do âmbito restrito da festa e
cias visuais e culturais, apresentamos breve turais e culturais no contexto das mutações inseri-lo no âmbito ampliado da vida social e
considerações sobre os dois folguedos e sua econômicas envolvidas na globalização. política enfatiza-se o sentido de luta, de per-
importância, da perspectiva relevante para Já no folguedo do Boi suas primeiras severança como elemento de expressão de
o presente artigo. aparições remontam ainda à época da escra- resistência cultural, em que usos e práticas
O Marupiara Jabuti-Bumbá, nasceu em vatura brasileira. Foi através do estado do tradicionais se mesclam numa pluralidade
2005, criado por uma família de artistas na Maranhão que o folguedo, que homenageia de contaminações para batizar aquilo que
cidade de Rio Branco, no Acre. Essa mani- São João e os demais santos juninos tomou o ‘povo’ nomeia (RAPOSO, 2004).
festação cultural emerge como um folguedo força e se espalhou por todo o Brasil, prin- Todavia é preciso ressaltar que o cam-
híbrido, com o elemento forte e catalisador cipalmente pelas regiões Norte e Nordeste. po cultural projetado pelo Jabuti-Bumbá
de culturas (indígena, ribeirinha) presentes No Maranhão, os Bumba-bois são divididos é muito diverso daquele projetado pelo
em suas referências históricas. A partir em sotaques, que representam as suas Bumba-meu-boi, assim como o são as trans-
do ano de 2009, o folguedo Jabuti-Bumbá variações conforme o ritmo, as danças, os formações experimentadas por ambos. Se
dar origem a outras vertentes de atuação, instrumentos, a indumentária, as toadas; inicialmente a longevidade do folguedo do
espalhando-se por diferentes localidades já os personagens, segundo Vasconcelos, Boi em muito ultrapassa aquela do Jabuti, a
agregando novos brincantes, adereços e fundamentam essa divisão “[…] resultando importância de ambos residiria na potência
alegorias. Estas vertentes também levam em semelhanças e diferenças de um grupo dos folguedos para agregar os elementos
o nome, as músicas, as práticas e a figura em relação a outro […]” (VASCONCELOS, diversos fundamentais para a afirmação
do Jabuti-Bumbá. Entre as alegorias de 2007, p. 19). A literatura consagrada divide da identidade de um povo, de uma região,
mais destaque estão: o Jabuti Carumbé e o os sotaques da seguinte forma: Zabumba, de um grupo, ressignificando os motivos
Marupiara Jabuti-Bumbá (hoje localizado Matraca ou da Ilha, Pindaré e Orquestra. da violência simbólica que preside o seu
na vila de Santo Antônio de Olhos D´Água- Todavia, a diversidade de manifestações do surgimento (índios e negros para o Boi,
Goiás, onde vive atualmente umas das Bumba-meu-boi no Maranhão é tanta que ribeirinhos e índios para o Jabuti). A con-
fundadoras). O Jabuti-Bumbá, ao contrário não se limita ao que está registrado como tinuidade entre essas diferenças poderia
do Bumba-Boi, não é focado em um auto; estilo ou quantidade, há também aqueles então ser sintetizada na expressão “Bumbá”
sua apresentação, sua brincadeira acontece que não se enquadram na divisão de sota- compartilhada por ambos. É ela que permi-
em forma de cortejo. Neste folguedo, não ques referidos acima. te a eles habitarem o mesmo universo – o
é São João o Padroeiro da brincadeira, mas Nesse folguedo encontramos uma ver- do folguedo em que o homem, ao dançar/
sim Nossa Senhora Seringueira (uma apa- dadeira fusão de elementos cristãos com brincar com o bicho, extrai dele a força
rição do imaginário popular da fronteira aqueles provenientes dos terreiros com a necessária para seguir em frente.
Acre-Bolívia), ligada ao passado histórico de presença dos caboclos em alguns grupos É a partir deste elemento, de suas ex-
luta pela tomada do território das mãos dos de Bois. Assim é que independentemente pressões concretas, dos fazeres cotidianos,
bolivianos. Desse modo, o Jabuti-Bumbá de o Boi ser da Ilha, de terreiro ou sem que é possível apreender os cruzamentos e
carrega em sua formação dois elementos de sotaque definido, a presença da resistência contaminações aos quais Raposo (2004) se
afirmação da cultura e da identidade acria- ligada à fé, por meio da mistura de práticas refere. Deste modo, o Boi e o Jabuti são in-
na. O primeiro relacionado ao seu passado religiosas, nesse folguedo, é uma marca da separáveis – não sendo explicáveis um pelo
histórico, com a presença do nordestino, violência cultural e simbólica que preside outro e tampouco apreensíveis um sem ou
que traz em sua bagagem cultural as festivi- sua origem, e incessantemente atualizada outro. Neste ponto, recorremos novamente
dades (entre elas o Bumba-meu-boi), e pela nos fazeres de todas as pessoas envolvidas a Paulo Raposo quando ele coloca que as
musicalidade da doutrina do Santo Daime, com a festa do Bumba-meu-boi. políticas da memória e a afirmação identi-
fundada pelo maranhense Irineu Serra no A complexidade dos dois bichos, dos tária implicam em como os grupos e os seus
Acre. O segundo elemento relacionado dois folguedos, pode ser percebida na responsáveis definem, selecionam a sua
à contemporaneidade, que chamaríamos própria trajetória , de modo que, o que nos “cultura”, a sua memória coletiva partilha-
de presente histórico, em que o boi se faz interessa no presente artigo é o que faz da, sustentando dessa maneira sua própria
presente mais uma vez, mas como elemento dançar esses dois bichos. definição de “cultura” (RAPOSO, 2002).
desagregador da cultura acriana, o boi como Há uma letra de música do Jabuti- Por esta razão, caberia aqui discutir a
modelo econômico (pecuária), símbolo da -Bumbá com os seguintes versos: “Jabuti relação entre os folguedos do Jabuti e do
destruição da floresta para formação de pas- bailou com o boi / Bumba boi do Maranhão Boi através da importância dos modos de
tos. O caráter eminentemente combativo e […] / Jabuti olhou pro boi / E antes do boi fazer e de adotar essas perspectivas como
resistente do folguedo ocupa todo o círculo perguntar / Jabuti foi respondendo / Eu elemento de resistência presente nestas
festivo e o faz ultrapassando as fronteiras do também sou um Bumbá” (Cipó Escada. festas populares e como isso se relaciona
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26 O termo “botar” é bastante utilizado pelos brincantes do Bumba-meu-boi referente a “Botar uma brincadeira de boi na rua […] Organizar, coordenar, arrumar patrocínio
e outras coisas que faz o boi urrar!” (REIS, 2008, p. 43).
Boletim 56 / junho 2014 11
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por duas pessoas que a fazem dançar. Os manda bordar […] os desenhos a gente cialmente quando se dão à margem dos
brincantes utilizam ainda sementes como faz de acordo com os acontecimentos… grandes financiamentos, quando então a
apoio aos adornos, e as cores mais presentes por exemplo, esse ano a gente mandou
autonomia do trabalho é também um traço
bordar a foto de uma senhora chamada
são o verde, o amarelo, o branco, vermelho Aliete Marques, uma folclorista muito distintivo da produção artística visual. Ao
e azul. amiga da gente [...] ela tinha um pre- nos aproximarmos destes Bumbas, o traço
sépio… mandei fazer um presépio de da visualidade salta. Aplicando-se tanto ao
um lado e de outro a Nossa Senhora de Jabuti quanto ao Boi, é ele que deixa claro
“[...] sou uma figura rara, gigante e
Fátima, que era a Santa que ela tinha de que se tem “gente do Jabuti” e que também
cascudão feito à mão com muito amor
proteção, era devota [...] As coisas que ela
e devoção, a cabeça tem expressão da se tem “gente do Boi”, onde a brincadeira
fazia e gostava. Então eu mandei bordar
alegria, talhada no isopor e coberta com nasce, vive e morre todos os anos. Desse
no couro do boi… e a foto dela […].”
papel, [...] a saia de tecido colorido com modo, os elementos privilegiados nos dois
(Seu Zeca, Boi Lírio de São João, 2011,
mosaicos que lembram a Amazônia
informante). folguedos fazem da visualidade a própria
seus rios e seu povo. O brinquedo tem
também um jabuti tipo burrinha, o explicitação do traço que os distingue não
casco feito de papelão e pintado com as Visualmente, a performance do Jabuti como folguedo, mas como processos sociais
formas dos `Kenês´ indígena, a saia de e do Boi nos convida a ir do centro para a e culturais em que valores e arranjos simbó-
chita. [...] A construção do brinquedo licos distintos são performatizados.
margem, e, na margem, a olhar os elementos
tem referências no tradicional e busca Assim, seus criadores, tanto os do Jabuti
no moderno seu próprio estilo.” (Silene arredios e suprimidos que a performance
revela: as minúsculas expressões da resistên- como os dos Bois, escolhem materiais e
Farias, Jabuti-Bumbá, 2014).
temas cujos significados implicam mais ou
menos a experiência histórica vivida e cuja
fixidez ou variação simbolizam a dinâmica
cultural e política que exprimem.
Esses materiais e temas participam do
cotidiano e remetem diretamente ao modo
como as coisas são feitas, de maneira que as
práticas são inseparáveis dos procedimen-
tos. É preciso então dar atenção à intimi-
dade das coisas e das pessoas, mostrando
o nascimento precário desses Bumbas e
a luta cotidiana para fazê-los viver e para
mantê-los vivos, a necessidade e o esforço
de “botá-los”. Aí, Bois e Jabuti fazem mais
uma vez o seu encontro.
REFERÊNCIAS