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ALBERTO VIEIRA

CANAVIAIS, AÇÚCAR
E AGUARDENTE NA MADEIRA
SÉCULOS XV A XX

R E G I Ã O A U T Ó N O M A D A M A D E I R A
CANAVIAIS, AÇÚCAR
E AGUARDENTE NA MADEIRA
SÉCULOS XV A XX

ALBERTO VIEIRA
CANAVIAIS, AÇÚCAR
E AGUARDENTE NA MADEIRA
SÉCULOS XV A XX
AUTOR: Alberto Vieira

TÍTULO: Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira. Séculos XV a XX

1ª Edição Outubro de 2004

COLECÇÃO HISTÓRIA DO AÇÚCAR Nº. 3 ALBERTO VIEIRA


EDIÇÃO

CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DO ATLÂNTICO


RUA DOS FERREIROS, 165, 9004-520 FUNCHAL
TELEF. 291-214970/FAX: 291-223002
Email: ceha@nesos.net.
Webpage: http://www.ceha-madeira.net

TIRAGEM: 2000 exemplares

IMPRESSÃO: Printer Portuguesa

DEPÓSITO LEGAL: 214 787/04

ISBN: 972-8263-V3-0
SECRETARIA REGIONAL DO TURISMO E CULTURA
CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DO ATLÂNTICO
2004
ABREVIATURAS

ARM-Arquivo Regional da Madeira

ANTT-Arquivo Nacional da Torre do Tombo/Arquivos Nacionais

AHU- Arquivo Histórico Ultramarino Cofinanciado pelo FEDER

AF- Afândega do Funchal A presente publicação enquadra-se nas actividades do Projecto “Atlântica. O Açúcar
e a Cultura nas Ilhas Atlânticas”. Programa de Iniciativa Comunitária Interreg III
DA- Documentos Avulsos B. Espaço Açores-Madeira-Canárias.

Cx- caixa
Sócios intervenientes no Projecto:
JRC- Julgado dos Resíduos e Capelas
• Centro de Estudos de História do Atlântico
CMF- Câmara Municipal do Funchal • Ayuntamiento de Los Lanos de Aridane
• Ayuntamiento de la Villa de El Ingenio
Ob.cit.- obra citada • Universidad de Las Palmas de Gran Canaria
• Universidad de La Laguna
RGCMF- Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal • Saturno
• Direcion General de Património Histórico/Viceconsejaria de Cultura y Deportes
PJRFF- Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Índice

ABREVIATURAS 6
APRESENTAÇÃO 15

CAP 1. INTRODUÇÃO- para a história do açúcar 17


Da Papua Nova Guiné à Madeira 19
A Beterraba e o Açúcar 22
Cronologia 33
Bibliografia Fundamental 36
A Historiografia e a questão Açucareira na Madeira 49
Mitos e Teses da História do Açúcar 57
A Madeira e o Açúcar no Mundo Insular 63
A projecção da Madeira no mundo açucareiro 65
A tradição cultural do açúcar 71

AGRICULTURA MADEIRENSE 75
A economia da madeira e a evolução do quadro natural 77
A cana-de-açúcar e meio ambiente 82
Rotas de migração: homens, plantas e mercadorias 83
O madeirense e o meio natural 85
A Cana-de-açúcar devora a paisagem 88
O regime de propriedade da terra e da água 98
O contrato de colonia 105
O poder da água 109
Uso e abuso da água 112
Formas de Exploração e domínio 121

DOS CANAVIAIS AO ENGENHO 136


Os canaviais nos séculos XVII e XVIII 143
Os canaviais nos séculos XIX e XX. O Regresso e Nova Esperança 150
Canaviais e Plantação 163
A questão Hinton 173
O Hinton e a Indústria do Açúcar e do Álcool 178
Açúcar mascavado a secar. Santa Catarina (Brasil) 2003 Legislação sobre o Açúcar e Derivados da Cana 183
ANEXOS: João Higino Ferraz 193

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

CAP. 2. A AGRO-INDÚSTRIA 197 CAP.4: O MERCADO DO AÇÚCAR, ÁLCOOL E AGUARDENTE 319


Os engenhos madeirenses 201 O Consumo do Açúcar 321
As Serras de Água 222 As Conservas e Doçaria 336
O Engenho 224 O dispêndio do Açúcar dos direitos 342
O Engenho e a época da Revolução industrial 231 As Formas de troca 343
O fabrico de açúcar, álcool e aguardente 233
A Família Hinton: Engenhos e Açúcar 249 CAP. 5 ROTAS E MERCADOS 347
O preço do engenho 255 As formas de troca 362
O fabrico do açúcar 260 Os preços do Açúcar 363
Organização espacial do engenho 261 O Comércio Atlântico e o Açúcar 366
ANEXOS: apanha da cana 266 O Açúcar do Brasil 373
O engenho ou casa de moer 267 Diogo Fernandes Branco - um caso exemplar. 381
Casa das Caldeiras 271 O comércio de açúcar com a Europa 382
Limpeza e purificação do caldo 274 Os mercadores do açúcar 383
O cozer e bater do melado 275 Os Italianos 387
O temperar do melado 276 A comunidade Sefardita da Madeira e o Açúcar no Atlântico 398
As formas e a purga 277 O Açúcar Madeirense nos séculos XVIII e XX 401
A Casa de Purgar 278
O tirar, mascavar e secar 280 CAP.6. AÇÚCAR E PATRIMÓNIO 411
As etapas de povoado a cidade 413
CAP.3: AÇÚCAR COM E SEM ESCRAVOS
Escravos com e sem açúcar 285 CAP. 7: ADMINISTRAÇÃO E DIREITOS 431
Proprietários de escravos, canaviais e engenhos 296 Finanças Públicas e o Açúcar 439
A evolução do açúcar e dos escravos 299 Encargos fiscais 444
Trabalho para escravos e libertos 304 ANEXO: Sumários da legislação 445
ANEXO: Ofícios ligados ao açúcar 312

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Interior de engenho em Cuba,


Cantero y Paplante, 1857

L’índustrie sucrière est une dês plus compliquées et


aussi des plus belles que lón puisse étudier, car elle s’étend
sur les questions agricoles, chimiques, mécaniques,
économiques et commerciales, et qui la connait bien doit
savoir toutes les sciences à la fois.
(P. Horsin-Déon, Le Sucre et L’Industrie sucrière, Paris, 1894, p.5)

L’industrie sucrière a compris ume des premières tout le


parti quélle pouvait tirer de ses usines dês laboratoires
pour l’essai chimique dês matières premières dês produits
dês différents phases de la fabrication ainsi que dês
matières auxiliaires dont elle fait usage. En controlânt sci-
entifiquement toutes ses opérations industrielles, la fabri-
cant de sucre inevitable, à regler les conditions de l’épura-
tion du jus et de la cristallisation des produits concentres.
[D. Sidersky, Manuel du Chimiste de Sucrerie, Paris, 1909.]
Moenda a vapor tipo Stewart

La industria azucarera es una industria universal que


constituye la base economica de muchos paises, en la cual
Libran la subsistencia millares de obreros y técnicos azu-
careros.
[F. A. Lopez Ferrer, Fabricación de Azúcar de Caña Mieles y
Siropes Invertidos com su Control Técnico-Quimico, Habana, 1948,
p.V]

The sugar industry, like many others of such complex


nature, is one of great specialization.
[Andrew Van Hook, Sugar its Production, Technology and uses, Panela de Vacuo
N. York, 1969, p.III]

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Escravos na safra.
J. Vilanova y Piera, 1872

APRESENTAÇÃO
A Europa sempre se prontificou a apelidar as ilhas de acordo com a oferta de produtos ao seu
mercado. Deste modo, sucedem-se as designações de ilhas do pastel, do açúcar e do vinho. O açú-
car ficou como epíteto da Madeira e de algumas das Canárias, onde a cultura foi a varinha de
condão que transformou a economia e vivência das populações. Também do outro lado do oceano
elas se identificam com o açúcar, uma vez que serviram de ponte à passagem do Mediterrâneo para
o Atlântico. Daqui resulta a relevância que assume o estudo do caso particular destas ilhas, quan-
do se pretende fazer a reconstituição da rota do açúcar. A Madeira é o ponto de partida, por dois
tipos de razões. Primeiro, porque foi pioneira na exploração da cultura e, depois, porque jogou
papel fundamental na expansão ao espaço exterior próximo ou longínquo, incluídas as Canárias.
A rota do açúcar, na transmigração do Mediterrâneo para o Atlântico, tem na Madeira a prin-
cipal escala. Foi na ilha que a planta se adaptou ao novo ecosistema e deu mostras da elevada quali-
dade e rendibilidade. Deste modo a quem quer que seja que se abalance a uma descoberta dos
canaviais e do açúcar, na mais vetusta origem no século XV, tem obrigatoriamente que passar pela
ilha. Foi aqui que se definiram os primeiros contornos desta realidade, que teve plena afirmação
nas Antilhas e Brasil. A cana-de-açúcar iniciou a diáspora atlântica na Madeira. Aqui surgiram os
primeiros contornos sociais (a escravatura), técnicos (engenho de água) e político-económicos (trilo-
gia rural) que materializaram a civilização do açúcar. Por tudo isto torna-se imprescindível uma
análise da situação madeirense, caso estejamos interessados em definir, exaustivamente, a civiliza-
ção do açúcar no mundo atlântico.
A história do açúcar na Madeira confunde-se com a conjuntura de expansão europeia e dos
momentos de fulgor do arquipélago. A sua presença é multissecular e deixou rastros evidentes na
sociedade madeirense. Dos séculos XV e XVI ficaram os imponentes monumentos, pintura e a
ourivesaria que os embelezou e que hoje jaz quase toda no Museu de Arte Sacra. Do século XIX e
do primeiro quartel da nossa centúria perduram ainda a maioria dos engenhos da nova vaga de cul-
tura dos canaviais. Aqui, a cana diversificou-se no uso industrial, sendo geradora do álcool,
aguardente e, raras vezes, o açúcar. Foi certamente neste momento que surgiu a tão afamada pon-
cha, irmã do ponche de Cabo Verde e da caipirinha no Brasil.
O açúcar é de todos os produtos que acompanharam a diáspora europeia aquele que moldou,
com maior relevo, a mundividência quotidiana das novas sociedades e economias que, em muitos
casos, se afirmaram como resultado dele. A cana sacarina, pelas especificidades do cultivo, espe-
cialização e morosidade do processo de transformação em açúcar, implicou uma vivência particu-

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Alberto Vieira

lar, assente num específico complexo sócio-cultural da vida e convivência humana. Gilberto Freyre1 Escultura com elementos da
maquinaria da Fábrica Hinton.
foi o primeiro em 1971 a chamar a atenção dos estudiosos para esta realidade, quando definiu as Danilo Matos e José João Garcês,
bases daquilo que designou de Sociologia do Açúcar: A publicação em 1933 de “Casa-Grande & 1987

Senzala” foi o prelúdio de nova preocupação e domínio temático para a Sociologia e a História.
A cana-de-açúcar é de todas as plantas domesticadas pelo Homem a que mais implicações tive-
ram na História da Humanidade. Até hoje são evidentes as transformações operadas na agricul-
tura, técnica, química e siderurgia, por força da cultura da cana sacarina, beterraba e da produção
de açúcar, mel, aguardente, álcool e rhum2. O percurso multissecular, desde a descoberta remota
na Papua (Nova Guiné) à 12.000 anos, evidência esta realidade. A chegada ao Atlântico, no século
XV provocou o maior fenómeno migratório, que foi a escravatura de milhões de africanos, e teve
repercussões evidentes na cultura literária, musical e lúdica. Foi também no Atlântico que a cultura
atingiu a plena afirmação económica, assumindo uma posição dominante no sistema de trocas.
Fernand Braudel define de modo claro a forma de intervenção do açúcar no capitalismo:
“Devastadora do antigo equilíbrio, a cana é tanto mais perigosa quanto é apoiada por um capita-
lismo poderoso, que, no século XVI, Provem tanto de Itália, como de Lisboa ou de Antuérpia, e ao
qual ninguém consegue resistir. “3 A isto Vitorino Magalhães Godinho Acrescenta que “a génese
do mundo atlântico está pois, em grande parte, ligada àquilo a que Fernand Braudel chama muito
apropriadamente dinâmica do açúcar.” 4
Recuperar os momentos de fulgor da cultura dos canaviais e das indústrias subsequentes do açú-
car, destilação, ou fabrico de conservas e casquinha, eis o objectivo que presidiu a esta incursão na
História do Açúcar no mundo atlântico, que tem na Madeira a primeira expressão. Para tornar
mais acessível a compilação reunimos um conjunto de gravuras e fotografias que permitem uma
adequada ilustração da realidade.

Funchal-Recife-Itu. 2003-2004

1 . “Contribuição Brasileira para uma Sociologia do Açúcar”, in Sociologia do Açúcar, Recife, 1971, pp. 9-12.
2 . Existe um conjunto variado de textos que valoriza o papel da cana como motor do progresso em vários sectores:Luiz del Castilho, A Fabricação
do Assucar de Canna. Notas e formulas…, Rio de Janeiro, 1893, p.5; P. Horsin-Déon, Le Sucre et L’Industrie sucrière, Paris, 1894, p.5 ; D.
Sidersky, Manuel du Chimiste de Sucrerie, Paris, 1909 ; IDEM, Aide-Mémoire de Sucrerie, Paris, 1936, pp.3 ; F. A. Lopez Ferrer, Fabricación
de Azúcar de Caña Mieles y Siropes Invertidos com su Control Técnico-Quimico, Habana, 1948, p.V; IDEM, Maquinaria y aparatos en los
Ingenios de Azucar de Caña, La Habana, 1949 ; A. C. Barnes, Agriculture of the Sugar-Cane, Londres, 1954, p. IX ; Andrew Van Hook, Sugar
its Production, Technology and uses, N. York, 1969, p.III .
3 . O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico, Lisboa, 1983 [1ª edição em 1966], p.178
4 . Mito e Mercadoria Utopia e Prática de Navegar. Séculos XIII-XVIII, Lisboa, 1990, p.478

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CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO

para a história do
AÇÚCAR
Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Da Papua Nova Guiné à Madeira

Normalmente associa-se o açúcar à cana sacarina. Foi assim durante muito tempo, mas a partir
do século XVIII isto deixou de ser assim com a possibilidade de fabrico do mesmo a partir da
beterraba. Já em 1575 François Olivier de Serres (1539-1619) em “Theatre dell’Agriculture” referia
a possibilidade de extrair açúcar a partir da beterraba, mas só em1745 Frederico O Grande da
Prússia ordenou aos químicos que investigassem a forma de retirar sacarose.
Em 1747 o Barão Andreas Sigismond Marggraf [1709- 1782], da Academia de Ciências de
Berlim, confirmou que o açúcar existente na Beterraba era igual ao da cana sacarina. E em 1786
Carl Franz Achard a partir de um estudo sistemático sobre a beterraba e montou a primeira fábri-
ca de açúcar de beterraba. A partir daqui a beterraba avança na batalha para suplantar o açúcar o
que irá conseguir a partir de 1880. Foi o colapso do mercado do mercado açucareiro que só as duas
guerras mundiais do século XX puseram um travão5.

5 . Ware, Lewis Sharpe, 1851-Sugar beet seed; a work for farmers, seedsmen, and chemists, containing historical, botanical, and theoretical data, com-
bined with practical directions for the production of superior sugar beet seed. Chicago, New York [etc.] Orange Judd company [1898]; Ware, Lewis
Sharpe, 1851-The sugar beet: including a history of the beet sugar industry in Europe, varieties of the sugar beet, examination, soils, tillage, seeds
and sowing, yield and cost of cultivation, harvesting, transportation, conservation, feeding qualities of the beet and of the pulp, etc. Illustrated
with ninety engravings. Philadelphia, H.C. Baird & co., 1880; SAILLARD Emile. Betterave et sucrerie de betterave. Paris J.B. Baillère 618 pages
illustrées. Encyclopédie agricole 1913 ; Bridges, Archibald. Sugar beet in France, Belgium, Holland and Germany, by A. Bridges and R.N. Dixey.
Oxford, The Clarendon Press, 1928 La culture de la betterave, législation, technologie, Cambrai, Imprimerie de ligne, 1900 Palmer, Truman
Garrett,, Sugar beets in New England and free sugar bill of the House of Representatives. Letter of Truman G. Palmer... concerning the produc-
tion in 1837 at Northampton (Mass.) of the first beet sugar produced in America... Washington: Government printing office, 1912; IDEM, 1858-
Sugar beet seed, history and development, 1st ed.New York, John Wiley & sons, inc.; [etc., etc.] 1918; Palmer, Truman Garrett,,Sugar beets in New
England and free sugar bill of the House of Representatives. Letter of Truman G. Palmer... concerning the production in 1837 at Northampton
(Mass.) of the first beet sugar produced in America... Washington: Government printing office, 1912; IDEM-Sugar beet seed, history and devel-
opment, 1st ed.New York, John Wiley & sons, inc. [etc., etc.] 1918.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

na expansão da cultura e do aparecimento de novas variedades de cana, fruto da actividade de


estações agrícolas experimentais, criadas em Mauritius (1840), Brasil (1860), Puerto Rico (1872). A
cana crioula deu lugar uma variedade, como a otaheiti, bourbon, …8
O Açúcar pode muito bem ser considerado uma conquista do mudo islâmico e budista9, tal
como o pão e o vinho o são do cristianismo. O factor religioso foi fundamental na afirmação e divul-
A BETERRABA E O AÇÚCAR gação do produto, daqui resultará a cada vez maior afirmação a partir dos primeiros séculos da
nossa era. A cana sacarina (saccharum officinarum) terá sido domesticada há cerca de 12.000 anos
na Papua (Nova Guiné). Entre 1500 AC e 500 DC a cultura espalhou-se pela Polinésia e Melanésia,
1575 François Olivier de Serres (1539-1619) em “Theatre dell’Agriculture”, refere que se pode mas foi na Índia que adquiriu maior importância, expandindo-se entre o século I e VI DC. Foi aí
extrair açúcar da beterraba. que os europeus tomaram contacto com o produto e cultura, começando o comercio e depois com
1745 Frederico O Grande da Prússia ordena aos químicos que investiguem a forma de retirar o transplante da cultura para os vales dos rios Tigre e Eufrates. Aqui, os árabes tiveram conheci-
sacarose de frutos. mento da cultura e levaram-na consigo para o Egipto, Chipre, Sicília, Marrocos e Valência. Foi no Trapiche horizontal, com esteira para deslizar a

1747 O Barão Andraeas Sigismond Marggraf [1709-1782], da Academia de Ciências de Berlim, culminar na expansão árabe no Ocidente que a Madeira serviu de trampolim da cultura para o cana. Cuba, século XIX.

confirma que o açúcar existente na Beterraba é igual ao da cana sacarina Atlântico, situação que foi o início da fase mais importante da História do açúcar.
Beterraba, N. Basset,
1786 Carl Franz Achard fez um estudo sistemático sobre a beterraba e montou a primeira fábri- O açúcar é, entre todos os produtos que no Ocidente se atribuiu valor comercial, o que foi alvo
1889 de maiores inovações no seu fabrico. Note-se que no caso do vinho a tecnologia pouco ou nada
ca de açúcar de beterraba
1799 Franz Carl Achard anuncia a obtenção de açúcar em larga escala, construindo uma fábri- mudou desde o tempo dos Romanos. Várias condicionantes favoreceram a necessidade de perma-
ca na Silésia e presenteou Frederico III da Prússia com um pão de açúcar de beterraba nente actualização, situação que se tornou mais clara no século XVIII com a concorrência da
1812 Construção da primeira fábrica para açúcar de beterraba em França beterraba. Mesmo assim ainda hoje persistem em alguns recantos do Mundo, na China, Índia ou
1866 Jules Robert desenvolveu o processo de difusão para extrair o açúcar da beterraba. Brasil, onde a tecnologia da revolução industrial ainda não entrou.
1880 A beterraba conduz a inovações na indústria química, enquanto o seu açúcar, suplanta o O fabrico do açúcar está limitado pela situação e ciclo vegetativo da planta. A cana sacarina tem
da cana e conduz ao colapso do mercado. um período útil de vida em que a percentagem de sacarose era mais elevada. A cana estava pronta
1914-19 destruição campos beterraba na Europa, com a guerra para ser colhida e a partir daqui um dia que passasse era uma perda para o produto. Acresce que
1937-58 Acordo reduziu competição com cana a cana depois de cortada tem pouco mais de 48 horas para ser moída e cozida, pois caso contrário
começa a perder sacarose e inicia o processo de fermentação. Daqui resulta a necessidade de ace- Trapiche hidráulico horizontal,

A beterraba conduziu a inovações na indústria e química do fabrico do açúcar. A nova tecnolo- lerar o processo de fabrico do açúcar através de constantes inovações tecnológicas que cobrem o Jean Baptiste Labat, 1722

gia usada desintegrou o sistema de fabrico de açúcar. A beterraba conduziu a uma transformação processo de corte esmagamento e cozedura. A isto junta-se o aumento da mão-de-obra, que se faz
Equipamento para fábrica de açúcar de
do sistema de produção de açúcar, com o aparecimento das fábricas e laboratórios. O sucesso à custa de escravos africanos. A cana-de-açúcar não está na origem da escravidão africana mas no
beterraba. Compagnie Five-Lille, 1879
beterraba deveu-se aos métodos avançados em termos tecnológicos e quimicos. processo de afirmação a partir da Madeira.
O açúcar está ainda disponível numa variedade de frutos, mas sem valor industrial, apenas no Enquanto a cultura se fazia em pequenas parcelas a maior parte das questões não se colocavam,
sorgo6 e acer7 se conhecem algumas tentativas de sucesso no fabrico do açúcar. No arquipélago fi- mas quando se avançou para uma produção em larga escala houve necessidade de encontrar
zeram-se algumas tentativas de plantação no Porto Santo e Norte da ilha da Madeira, mas apenas soluções capazes de debelar a situação. A viragem aconteceu a partir de meados do século XV na
para fabrico de aguardente. Madeira e deverá ter implicado mudanças radicais na tecnologia usada e na afirmação da escra-
Até 1858, com as primeiras experiências em Barbados, a reprodução da cana para cultivo fazia- vatura dos indígenas das Canárias e dos negros da Costa da Guiné. É por isso que se assinala a par-
se apenas pelo caule. A segunda metade do século XIX é o momento de afirmação das sementes tir da Madeira importantes inovações tecnológicas no sistema de moenda da cana com a genera-

6 . H. S. Olcott, Sorgo and Imphee, the chinese and african sugar canes…, Noa York, 1858; Adrien Sicard, Monographie de la Canne à Sucre de la 8 . Cf. S. Pruthi, History of Sugar Industry in Índia, N. D. 1995, pp.99-126; W. Kelleher Storey, Science and Power in colonial Mauritius, Rochester,
Chine dite Sorgho à Sucre. Culture, employs, etudes diverses, Paris, 1861. 1997, pp.5, 45, 71-151; Daniel Bégot, Le Sucre de l’Antiquité à son Destin antillais, Paais, 2000, pp.55, 58, 138; Dillewijn, C. van. Botany of sug-
7 . Trelease, William, 1857-1945. The sugar maples, with a winter synopsis of all North American maples. [n.p., 1894], Fox , William F. (William arcane, Waltham, Mass.: Chronica Botanica, 1952; Stubbs, Wm. C. Sugar cane. A treatise on the history, botany and agriculture of sugar Moenda de cilindros em triângulo.
Freeman), 1840-1909. The maple sugar industry / by William F. Fox and William F. Hubbard; with a discussion of the adulterations of maple cane...[n.p., n.d.]; Zitkowski, Herman E. The seeding method of graining sugar, by H.E. Zitkowski ... Read at the tenth annual meeting of the G. Spencer, 1945
products. IWashington, D.C.: U.S. Dept. of Agriculture, Bureau of Forestry, 1905; Sugar maple ecology and health proceedings of an international American Institute of Chemical Engineers, Gorham and Berlin, N.H., June 19-22, 1918. [n.p., 1918]
symposium, June 2-4, 1998, Warren, Pennsylvania / edited by Stephen B. Horsley, Robert P. Long ; sponsored by USDA Forest Service, 9 . Sucheta Mazumbar, Sugar and Society in China, Londres, 1998, pp.21-27; Christian Daniels, Agro-Industries: Sugarcane Technology, in Joseph
Northeastern Research Station ... [et al.]. Radnor, PA (5 Radnor Corp Ctr, Suite 200, Radnor 19087-4585) : The Station, [1999] Needham, Science & Civilisation in China, vol. VI, part. III, Nova Iorque, 1996, pp-61-62, 278, 192

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

lização do sistema de cilindros. inventor sai do anonimato e afirma-se como um herói na imprensa, como alimenta o ego através de
A história Tecnológica evidencia que a expansão europeia condicionou a divulgação de técnicas memórias descritivas dos inventos11. É nos Estados unidos da América que encontramos o maior
e permitiu a invenção de novas que contribuíram para revolucionar a economia mundial. Os número de patentes, mas foi na Inglaterra e em França que surgiram as grandes fábricas de indús-
homens que circularam no espaço atlântico foram portadores de uma cultura tecnológica que divul- tria pesada, especializadas em equipamentos e na montagem dos engenhos de açúcar12. As
garam nos quatro cantos e adaptaram às condições dos espaços de povoamento agrícola. Aos exposições universais da segunda metade da centúria oitocentista foram momentos privilegiados
madeirenses foi atribuída uma missão especial nos primórdios do processo. de exibição destes inventos.
Na Madeira, um dos aspectos mais evidente, da revolução tecnológica iniciada no século XV As mudanças ocorridas a partir de finais do século XVIII, com a plena afirmação da máquina
prende-se com a capacidade do europeu em adaptar as técnicas de transformação conhecidas a cir- a vapor, conduziram a uma transformação radical do complexo açucareira que assume a dimensão
cunstâncias e às exigências de culturas e produtos tão exigentes como a cana e o açúcar. O tributo espacial de uma fábrica, onde todas as operações se executam em série apenas numa planta. A re-
foi evidente. Ao vinho foi-se buscar a prensa, ao azeite e aos cereais a mó de pedra. Por outro lado volução industrial legou-nos a fábrica, fez aparecer o laboratório, uma peça chave no fabrico do açú-
Engenho mecanizadode Rillieux: máquina a vapor,
defecadora, evaporador horizontal, 1845 estamos perante uma permuta constante de processos tecnológicos e formas de aproveitamento das car, e obrigou a uma especialização dos técnicos envolvidos. O mestre de engenho dá lugar ao
diversas fontes de energia. A tracção animal, a força motriz do vento e da água foram usadas em engenheiro químico. Paulatinamente o processo de transformação da cana sacarina em açúcar
simultâneo com os cereais e cana sacarina. Por vezes a mesma estru- retirou espaço à presença de mão-de-obra escravo, fazendo-a substituir por emigrantes europeus,
tura assume uma dupla função. Sucedeu assim na Madeira, com o indianos e chineses. Note-se que no inventário industrial da Madeira de 1907 é assinalado apenas
engenho da Ribeira Brava, hoje Museu Etnográfico, onde a estrutu- um químico na fábrica do Torreão, com o salário mais elevado de todos os técnicos. Mesmo supe-
ra de aproveitamento da força motriz da água servia um engenho de rior aos engenheiros e cozedores, mantendo as demais 43 uma estrutura funcional da época pré-
cana e um moinho de cereais10. industrial13.
Também no Brasil, em Santa Amaro da Imperatriz, no Resort & Até ao advento do açúcar de beterraba em princípios do século XIX a tecnologia de moenda e
Spa Plaza, fomos encontrar uma estrutura semelhante partilhada por fabrico do açúcar não sofreu muitas modificações. Ao nível da moagem da cana houve necessidade
um moenda de cana e um engenho de mandioca. Sabemos que neste de compatibilizar as estruturas com a expansão da área e o volume de cana moída, avançando-se
município e vizinhos persistem outras mais estruturas idênticas em assim dos ancestrais sistemas para a adaptação dos cilindros. Entre os séculos XV e XVII as ino-
funcionamento, algumas delas usadas também para o arroz e o café. vações mais significativas ocorrem aqui. Os cilindros passam a dominar todos os sistemas, de
Já nas Antilhas podemos encontrar idêntica partilha com a força tracção animal, humana, vento e água, destronando o pilão, o almofariz e a mó. Do simples meca-
motriz do vento para a cana e os cereais. nismo de cilindros duplos horizontais, evolui-se para os verticais, que no século XVII passam a ser
A dupla funcionalidade dos engenhos revela que no processo de de três, o que permite uma maior capacidade de moenda e aproveitamento do suco da cana. Com
evolução tecnológica estamos perante um processo de adaptação de os dois cilindros poder-se-á aproveitar apenas 20% do suco da cana, enquanto com três até 35%. A
fontes de energia e técnicas. A prensa que teve uma presença domi-
nate no fabrico do vinho, acaba também por se associar ao azeite e
depois à cana-de-açúcar. A mó, a conhecida como mó olearia, surgiu
no fabrico do açúcar, mas o mundo açucareiro mediterrânicoadap- 11 STEWART, j., A Description of a Machine or Invention to Grind Sugar-canes by the power of a fire Engine, Kingston, 1768; Basset, Nicholas,
tou-o à cana sacarina, chegando até à Madeira.Os cilindros 1824- Guide pratique du fabricant de sucre: contenant l’étude théorique et technique des sucres de toute provenance, la saccharimétrie chimique
et optique, la description et l’étude culturale des plantes saccharifères, les procédés usuels et manufacturiers de l’industrie sucrière et les moyens
começaram por ser usados na laminação de metais e no retirar dos d’améliorer les diverses parties de la fabrication, avec de nombreuses figures intercalées dans le texte Paris: E. Lacroix, 1861. Bessemer, Henry,
Evaporador horizontal Rillieux,
caroços do algodão, passando depois para a moenda da cana. Sir, 1813-1898. Sir Henry Bessemer, F.R.S. An autobiography. With a concluding chapter. London, Offices of “Engineering,” 1905. Bessemer,
Henry, Sir, 1813-1898. On a new system of manufacturing sugar from the cane: and its advantages as compared with the method generally used
Eduardo Paplante, 1856. Até ao século XVIII torna-se difícil atribuir a paternidade das inovações que acontecem no fab- in the West Indies: also, some remarks on the best mode of insuring its general and simultaneous introduction into the British colonies London:
rico do açúcar. Estamos perante inventores anónimos que apenas se comprazem pelos benefícios Printed by W. Tyler, [1852?]Bessemer, Henry, Sir, 1813-1898. On a new system of manufacturing sugar from the cane: and its advantages as com-
pared with the method generally used in the West Indies: also, some remarks on the best mode of insuring its general and simultaneous intro-
económicos da sua capacidade inventiva. Mas, a partir de então tudo parece ter mudado. O espíri- duction into the British colonies London: Printed by W. Tyler, [1852?], BURGH. Nicholas Procter, A Treatise on Sugar Machinery: including the
to nacionalista e independentista favoreceram a paternidade dos inventos. Os Estados Unidos da process of producing sugar from the cane, refining moist and loaf sugar, etc., E. & F. N. Spon: London, 1863. Bühler, Friedrich Adolf, 1869- Filters
and filter presses for the separation of liquids and solids, from the German of F. A. Bühler, with additional matter relating to the theory of fil-
América foram o principal promotor desta politica e valorização da capacidade inventiva. As tration and filtration in sugar factories and refineries, by John Joseph Eastick. London, N. Rodger, 1914. Tromp, Lucas Andreas, 1892- Machinery
patentes sucedem-se em catadupa e os autores são heróis recebidos triunfalmente pela imprensa. O and equipment of the sugar cane factory; a textbook on machinery for the cane sugar industry, London, Eng., N. Rodger, 1936.
12 . Compagnie de Fives-Lille pour constructions Mécaniques et enterprises. Matériel de Sucrerie, Paris, 1878; John a. Heitmann, the Modernization
of the Louisiana Sugar Industry. 1830-1910, Baton Rouge, 1987, p.143
13 . Victorino José dos Santos, Relatorio dos Serviços da Secção Technicos de Industria no Funchal no anno de 1907, in Boletim do Trabalho
10 . Jorge Valdemar Guerra, O Hospício Franciscano e a Capela de S. José da Ribeira Brava, in Islenha, nº.19, 1996, 61-94. Industrial, nº.24, 1909, p.19

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

técnicas experimentadas na moenda vão no sentido e um maior aproveitamento do suco disponível avanços tecnológicos tem-se em conta esta corrida contra o tempo, criando-se mecanismos capazes
no bagaço da cana. A situação de Cuba na década de setenta do século XIX pode ser elucidativa de moer cana como maior rapidez16.
da realidade14. Segue-se o processo de fabrico do açúcar que se distribui por quatro momentos: purificação da
garapa, evaporação da água e, finalmente a clarificação e cristalização. Até aos inícios do século
XIX o processo poderia durar de
TIPO DE MOENDA PERCENTAGEM DE 50 a 60 dias, mas as aportações
APROVEITAMENTO DO SUCO tecnológicas, conduziram a que o
Moenda de animais 58,5% mesmo se passasse a fazer em
FORÇA Moenda de água e vento 59,3 apenas um mês em 1830 e apenas
MOTRIZ Moenda de vento 56,4 16 horas em 1860, através do
Moenda a vapor 60,9 novo sistema de centrifugação.
DISPOSIÇÃO DOS Horizontais 61,2 As primeiras mudanças ocorrem
CILINDROS Verticais 52,2 ao nível do processo de clarifi-
Prensas hidráulicas 61,8 cação. Em 1805 Guillon, refi-
nador do açúcar em New Orleans
Uma maior capacidade na moenda implica maior disponibilidade de garapa a ser processada preconiza o uso do carvão para
para se poder dispor do melado ou do açúcar. Uma situação empurra a outra conduzindo a purga xarope, em 1812 Edward
soluções cada vez mais avançadas. As dificuldades com a obtenção de lenhas ou os elevados custos Charles Howard constrói a
do transporte até ao local do engenho conduzem a soluções que paulatinamente vão sendo adop- primeira caldeira de vacuum,
tadas por todos. Primeiro reaproveita-se o bagaço da cana e depois através de um mecanismo de conhecida como “howard saccha-
fornalha única consegue-se alimentar as cinco caldeiras de cozimento. O sistema ficou conhecido rine evaporator”, que veio revolu-
por trem jamaicano, por, segundo alguns, ter tido aí origem, mas na verdade temos informação do cionar o sistema de fabrico do
seu uso, não tão apurado na Madeira e Canárias, no século XVI. Em 1530 Giulio Landi descreve açúcar. Três anos depois surge
o sistema de fabrico de açúcar com cinco caldeiras agrupadas. em Inglaterra o sistema de filtros
Jamaica esteve na frente das inovações da tecnologia açucareira a partir da segunda metade do de Taylor. O evaporador de
século XVIII. São os ingleses que dão o passo definitivo para a mudança radical através da intro- múltiplo efeito foi inventado em
dução da máquina a vapor. O primeiro engenho horizontal de tipo moderno foi desenhado em 1754 1830 por Norbert Rillius [1806-
por John Smeaton na Jamaica, recebendo a partir de 1770 o impulso da máquina a vapor. A nova 1894] de New Orleans, sendo
tecnologia, que se aperfeiçoou com o andar dos tempos, poderá acoplar até 18 cilindros em sistema usada nos primeiros engenhos
de tambor, tornando mais rápida e útil a moenda. Com cinco cilindros o aproveitamento do suco desde 183417. Deste modo torna-
pode ir até 90%, enquanto que com os tambores de 18 cilindros quase se atinge a exaustão com 98%. se mais fácil a retirada de cerca
Por outro lado nos engenhos tradicionais a média de moenda por 24 horas não ultrapassava as 125 de 85% de água que existe no
toneladas, enquanto que com o novo sistema a vapor começa por atingir mais de três mil toneladas suco da cana e um maior
caldeira de vácuo.
de cana. aproveitamento do açúcar. As novidades na clarificação e cristalização ocorrem num segundo Fives-Lille, 1878
Outro factor significativo da safra prendia-se com a velocidade a que o processo da moenda da momento. Assim, em 1844 o alemão Schottler aplicou pela primeira vez a força centrífuga na se-
cana deveria ocorrer, mais uma vez no sentido de se rtirar o maior rendimento da cana através da paração do melaço do açúcar branco, mas foi Soyrig quem construiu em 1849 a primeira máquina
sacarose. A cana tem um momento ideal para ser moída e depois de cortada os prazos para a moen-
da são curtos, caso queira evitar-se a fermentação, que é sinónimo de perda de sacarose15. Nos
16 . Cf. Nilo Cairo, O Livro da Canna de Assucar, Curitiba, 1924, pp. 85-86, 109; A.Bernard, A Evolução das Moendas de Canas, Brasil Açucareiro,
XXXVIII, 2, 1951, pp. 73, 76.
17 . Otto Kratz, The Robert Diffusion Process aplied to sugar-cane in Louisiana inthe Years 1873 and 1874. a Report to the President and Directors
14 . João josé Carneiro da Silva, Estudos Agrícolas, Rio de Janeiro, 1872, p.94 of the Julius Robert Diffusion Process Co, Nova Orleans, 1975; The Louisiana Planter and Sugar Manufacture, XIII, Nov. 24, 1894; George Mead,
15 .Cf. J. de Laguarrique d eSurvilliers, Manuel de Sucrerie de Cannes, Paris, 1932, pp. 29. Negro Scientist of slavery Days, in Negro History Bulletin, Abril 1957, pp.159-163.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

de centrifugação, que abriu o caminho para o fabrico do primeiro açúcar granulado, em 1859. Este uma fábrica de construção de aparelhos de destilação continua. Nesta empresa passou a trabalhar
sistema vinha sendo utilizado desde 1843 na indústria têxtil. Os equipamentos contribuíram para em 1824 J. F. Cail na qualidade de operário de carvão, que em 4 de Março de 1836 passa à condição
acelerar o processo de purga do açúcar permitindo que se passasse do moroso processo de quase de associado. A sociedade Derosne et Cail19 manteve-se até 1850, altura em que passou a chamar-se
dois meses para apenas 16 horas e hoje em apenas alguns segundos. J. F. Cail et Cie, que em 1861 passou a cooperar com a nova Cie Fives-Lille, especializada no fa-
A segunda metade do século XIX foi o momento da aposta definitiva na engenharia açucareira,
contribuindo para importantes inovações18. O mercado ocidental foi inundado de açúcar de cana e 19 . Avis de M. Richemond ingénieur - arbitre - rapporteur sur les divers chefs de contestation existant entre MM. Grieninger et Bachoux et MM. Cail
beterraba. et Cie extrait textuellement du rapport de M. l’arbitre, 31 octobre 1867, Paris, impr. de Renou et Maulde: 1869; Cail et Cie: Mesures proposées au
Gouvernement pour changer la situation de nos colonies des Antilles, Paris 1860; Cail, F. et C.Derosne: Examen des divers procédés de fabrica-
O desenvolvimento da indústria de construção de equipamentos para o fabrico de açúcar, seja tion de sucre et motifs déterminant de la préférence à accorder aux appareils dans le vide à double effet pour l’application aux colonies. 1843; Cail,
de cana ou de beterraba, aconteceu em países onde esta assumia uma posição significativa na F. et C. Derosne: Note sur les avantages à retirer de l’introduction des sucres bruts à un droit modéré, uniforme quelle que soit leur nuance, 1842;
Cail, J. F., une réussite exceptionnelle Poitiers, Le Picton: 1984; Cail, J.F. et C. Derosne: De la fabrication des sucres aux colonies et des nouveaux
Cristalizador fechado economia. Deste modo a França e a Inglaterra assumiram a posição pioneira no desenvolvimento appareils propres à méliorer cette fabrication.1843; Cail, J.F. et C.Derosne: Mémoire sur les usines centrales à la Guadeloupe,1843; Cail, Jean-
da tecnologia açúcareira. À sua posição no início da indústria do açúcar de beterraba temos a colo- François, Description de l’appareil d’évaporation à triple effet propre à toutes les grandes évaporations de liquides salins et autres, spécialement
utilisable dans les fabriques et raffineries de sucre... (Par J.-F. Cail et Cie.) Paris, impr. de Guiraudet et Jouaust: 1852; -Exploitation agricole des
nial. Os Franceses detinham importantes colónias açucareiras nas Antilhas, enquanto os Alemãs plants appartenant à M. J.-F. Cail. Mémoire pour concourir à la prime d’honneur du département de la Charente en 1868, Paris, librairie agricole
apostavam forte em Java. Os ingleses surgem por força da colonial nas Antilhas e Índia e os Estados de la Maison rustique: (1867); —(Circulaire adressée aux fabricants de sucre par A. Périer, L. Possoz et J.-F. Cail et Cie au sujet de leurs procédés
d’épuration du jus de betterave.) Paris, impr. de J. Bonaventure: 1868; -A S. E. M. le ministre de l’Agriculture et du Commerce, Paris. (Lettre de
Unidos da América com New Orleans e, depois o Havai. Cuba foi um dos espaços açucareiros onde J.-F. Cail et Cie, au sujet du décret du 10 janvier 1870, relativement à l’importation jusque dans les usines des matières destinées aux travaux pour
mais se inovou em termos tecnológicos. As primeiras décadas do século XIX foram de plena afir- l’étranger.) (Paris,), impr. de Haristéguy: (1870) -Tribunal civil de la Seine... Pour la société anonyme des anciens établissements Cail contre les liq-
uidateurs de la Société Cail et Cie. (29 Février 1884.), Paris, imp. de Chaix: 1884; -Notice sur les machines et appareils des établissements Derosne
mação da ilha, que se transformou em modelo para a indústria açucareira. et Cail... figurant à l’exposition universelle de 1865, Paris, imp. de Guiraudet et Jouaust: 1855; Chaussenot, B., Notice sur le calorifère à air chaud,
Em França tudo começou com o químico Charles Derosne (1779-1846) que montou em 1812 inventé par B. Chaussenot... construit exclusivement par Ch. Derosne et Cail,... (Paris,), impr. de L. Bouchard-Huzard: (1841); Cheilus, L., Discours
prononcé par M. L. Cheilus au banquet offert par lui, le 6 janvier 1856, aux gérants et chefs des différents services des établissements Derosne et
Cail, Paris, Impr. de Rival: (s. d.,); Conclusions pour la Société anonyme des anciens établissements Cail contre la société de la sucrerie de
Pithiviers-le-vieil, Paris, imp. de Chaix: 1893; Debonne, Michel: Jean-François Cail à Grenelle (1844 – 1871) et Histoire de la société Cail. Bulletin
18 . C. Stammer, Traité complet théorique et Practique de la Fabrication du Sucre, guide du fabricant, Paris, 1876; James Stewart, Steam engineering
de la Société historique et archéologique du XVe arrondissement de Paris, n° 13 et 14, 1999; Derosne, Charles, Tableaux divers sur la densité des
on sugar plantations, steamships, and Locomotive engines, Nova York, 1867; IDEM, A Description of a Machine or Invention to Work Mills, by
jus et des sirops, la quantité de sucre pur contenue dans les solutions sucrées... Extrait de la publication sur la Fabrication du sucre, par MM. Ch.
the Power of a fire-engine, but Particulary useful and Profitable in grinding Sugar-canes, Londres, 1767; Baeta Neves, Luiz M. Technologia da fab-
Derosne et Cail,... Paris, impr. de Ve Bouchard-Huzard: (s. d.); -Tableau comparatif de divers brevets fondés sur la condensation par évaporation,
ricação do assucar de canna, por Luiz M. Baeta Neves ... Patrocinado pela Associação de usineiros de S. Paulo. S. Paulo [Emp. graph. da “Revista
montrant les emprunts faits par le brevet Reybaud, du 2 novembre 1833, à ceux antérieurement délivrés. [Signé: Ch. Derosne et Cail. 12 avril
dos tribunaes”] 1937. BURGH. Nicholas Procter, A Treatise on Sugar Machinery: including the process of producing sugar from the cane, refin-
1847.] (Paris,), impr. de Ducessois: (1847.); - Notice sur la machine à vapeur à rotule inventée par M. Ch. Faivre... construite... par MM. Ch. Derosne
ing moist and loaf sugar, etc., E. & F. N. Spon: London, 1863.—The Manufacture of Sugar, and the machinery employed for colonial and home
et Cail... impr. de L. Bouchard-Huzard, Paris, 1839, -De la Fabrication du sucre aux colonies, et des nouveaux appareils propres à améliorer cette
Sistema de bombagem purposes. Read before the Society of Arts ... April 4th, 1866.Trubner & Co.: London, [1866.] Bühler, Friedrich Adolf, 1869- Filters and filter press-
fabrication, par MM. Ch. Derosne et Cail,... 2e partie, 2e section. 2e édition... avec un appendice sur la fabrication des sucres de sirops, sur la com-
es for the separation of liquids and solids, from the German of F. A. Bühler, with additional matter relating to the theory of filtration and filtra-
paraison des divers systèmes d’appareils qui peuvent être proposés aux colonies, Paris, impr. de Vve Bouchard-Huzard: 1844; Dolabaratz: Rapport
tion in sugar factories and refineries, by John Joseph Eastick. London, N. Rodger, 1914; Burgh, N. P. (Nicholas Procter) A treatise on sugar machin-
à M. Cail et Cie sur sa mission à l’île de la Réunion, octobre 1873; Du Rieux, P. Notice historique sur les filtres-presses, réponse à MM. A. Périer,
ery: including ... producing sugar from the cane, refining ... sugar ... with rules for the proportions and estimates. London, E. & F.N. Spon, 1863. El
L. Possoz, J.-F. Cail et Cie adressée à MM. les fabricants de sucre par P. Du Rieux et Cie... Lille, impr. de Mme Bayard: 1866; Dureau, Jean-Baptiste, Caldeira de vácuo.
catálogo azucarero. Nueva York, El Mundo Azucarero.1949; DEERR, Noel, classic papers of a sugar cane technologist / compiled by John Howard
Jean-François, Cail, sa vie et ses travaux, Paris, Gauthier-Villars: 1872;Dureau: J.F.,Cail, sa vie et ses travaux, Paris, Gauthier Villars, 1872; Sistema Derosne
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Etablissements Derosne et Cail... Notice sur les objets admis à l’exposition universelle de 1878, Paris, imp. de A. Chaix: 1878; Fabrication du sucre.
Technologie sucriere. -2. ed. completement refondue et considerablement augmentee. - [s.l.]: Lambersart-Lille, 1910 ; Gama, Rui. Engenho e tec-
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sugar engineering / by E. Hugot; translated and revised, with the collaboration of the author, by G.H. Jenkins. - Amsterdam: Elsevier, 1960- 1904-
cien. Procédés de travail. Explication méthodique de tout ce qui se voit et se fait en mécanique, par Eugène Dejonc, ancien chef d’atelier de l’Ecole
Handbook of cane sugar engineering, Rev. by the author, with the collaboration of the translator, and translated by G. H. Jenkins. 2d completely
des arts et des mines, contremaître des Maisons Cail, Bréguet, etc. Revue et corrigée par M. C. Codron, ingénieur, professeur à l’Institut industriel
rev. ed. Sucrerie de cannes. English Amsterdam, New York, Elsevier Pub. Co., 1972. —Sucrerie de cannes. English Handbook of cane sugar engi-
du Nord, lauréat de l’Académie des sciences. 6e édition augmentée, par René Champly, ingénieur-mécanicien. 755 gravures dans le texte Orléans,
neering / E. Hugot; revised by the author, with the collaboration of the translator, and translated by G.H. Jenkins. Amsterdam; New York: Elsevier;
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Cail et Cie et compagnie de Fives-Lille... : par M. E. Lantrac,... Impr. de Chaix, Paris, 1890; Mémoire pour M. Degrand, contre MM. Ch. Derosne
cane sugar technology New York: Elsevier, London: Amsterdam: , 1966; López Ferrer, F. A. Manual práctico de maquinaria y aparatos en los inge-
et Cail [qui n’avaient pas respecté dans leurs ventes à l’étranger les clauses du contrat conclu après un procès en contrefaçon de 1834, pour leur
nios de azúcar de caña. Habana, Cultural, 1949 ; Maier, Emile Adolph, 1897- A story of sugar cane machinery. New Orleans, Sugar Journal [1952];
laisser fabriquer un condensateur destiné aux sucreries, dont il était l’inventeur, Paris, E. P. E. : [1983]; Note pour MM. Bachoux et Griéninger [fab-
Maxwell, Francis. Modern milling of sugar cane, London: Norman Rodger, 1932. Methods and machinery for application of diffusion to extrac-
ricants de sucre à Francières (Oise)] contre MM. Cail et Compagnie [constructeurs-mécaniciens à Paris]. Demande en payement de 83, 446 fr. 20
tion of sugar from sugar cane and sorghum, and for use of lime, and carbonic, and sulphurous acids in purifying diffusion juices [Washington,
c. à titre de dommages-intérêts pour retard dans la livraison et le montage d’appareils destinés à la fabrication du sucre. [Suivi de:] Conclusions
D.C.] : U.S. G.P.O., 1886; Mirrlees Watson Co.,Sugar machinery[ca. 1907]; M’Intosh, John Geddes. The technology of sugar, by John Geddes
pour MM. Bachoux et Griéninger contre MM. Cail et Compagnie, Paris, impr. Dubuisson : [1867]; Note pour MM. J.-F. Cail et Cie contre M. Allier
M’Intosh, with eighty-three illustrations and seventy-six tables. London, Scott, Greenwood & co.; New York, D. Van Nostrand company, 1903.
[, relative à l’enlèvement du matériel de l’ancienne distillerie de betteraves de Petit-Bourg, aux frais de constructions de la nouvelle et aux appointe-
Neves, Luiz M. Baeta.Technologia da fabricação do assucar de canna, Sao Paulo: [s.n.], 1937; Principios de tecnología azucarera, [Traductor José Grupo de 4 centrifugadores, com “malaxeur”.
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Derosne et Cail. Paris, impr. de Vve Bouchard-Huzard: (1851); Possoz, Louis, Participation Périer, Possoz et J.-F. Cail et Cie. Procédés brevetés
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sugar harvest of 1889-’90 / by J. B. Wilkinson, Jr. ... Imprint New Orleans: Brandao & Gill, 1890.
Chassebray-Moncontié: 1955

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

brico de equipamentos para fábricas de açúcar e caminhos-de-ferro20. Os equipamentos, saídos da Estados Unidos da América alastrou a todo o mundo açucareiro24. Se o século XIX foi o momento
empresa Cail, chegaram às colónias holandesas, espanholas, inglesas e francesas, México, Rússia, da aposta na tecnologia a centúria seguinte será marcada pela política açucareira. Ao nível inter-
Áustria, Holanda, Bélgica e Egipto. À indústria francesa juntaram-se outros complexos industriais nacional reúne-se uma convenção em Bruxelas, em 1902 e 1929, no sentido de limitar o apoio finan-
na Europa: Inglaterra (Glasgow, Birmingham, Nottingham, London, Manchester, Derby), Holanda ceiro do estado e medidas de defesa e proteccionistas dos diversos estados produtores de cana e açú-
(Breda, Roterdão, Schiedam, Ultrecht, Delft, Hengelo, Amsterdam), Estados Unidos da América
car. Entretanto em 1937 a Sugar Organization procura estabilizar o mercado através do estabeleci-
(Oil City, Ohio, Denver, New Jersey), Alemanha (Magdeburgo, Zweibruecken, Halle, Dusseldorf,
mento de cotas que acabaram em 1977. Desde a década de setenta persiste o enfrentamento entre
Sangerhausen, Ratingen, Halle), Bélgica (Bruxelas, Tirlemont).
o comércio livre e a politica proteccionista dos estados.
Na Inglaterra foi desde meados do século XVII um dos mais importantes centros de refinação
de açúcar na Europa. As refinarias proliferam nas cidades de Bristol, Essex, Greenock, Lancaster,
Aparelho de quádruplo-efeito. Sistema Muller
Liverpool e Southampton21. Isto justifica o desenvolvimento tecnológico. Aqui, merece destaque a
iniciativa de Mirless Watson22.
A abertura às inovações tecnológicas, como forma de tornar concorrencial o produto, acarreta
algumas consequências para a indústria ao nível nacional. Os investimentos são vultuosos e, por
isso mesmo só se tornam possíveis mediante incentivos do Estado. A inovação e recuperação da
capacidade concorrencial só se tornaram possível à custa da concentração. Tanto em Cuba como
no Brasil a década de oitenta foi marcada pelos grandes engenhos centrais23.
A concorrência do açúcar é cada vez mais evidente obrigando as autoridades nacionais a inter-
vir no sentido da defesa das suas culturas e indústrias. A política proteccionista iniciada pelos

20 . Compagnie de Fives-Lille pour constructions Mécaniques et Entreprises. Matériel du sucrerie, Paris, 1878, Reedição Granada,
1999; Vincens, E. Compagnie générale d’électro-chimie.... Rapport du commissaire vérificateur des apports, sur les apports faits
à la Société par la Compagnie de Fives-Lille pour constructions mécaniques et entreprises. [Signé: E. Vincens.]; —Rapport du com- Cana. G. Beaudet, 1894
missaire vérificateur des apports, sur les apports faits à la Société par la Compagnie de Fives-Lille pour constructions mécaniques
et entreprises. [Signé: E. Vincens.] (Paris,), impr. de Chaix: 1898; Godefroy, H.-C. Notice explicative sur les tableaux pho-
tographiques représentant les usines de Fives-Lille, Paris, impr. de Vves Renou, Maulde et Cock: 1876
21 . John M. Hutcheson, notes on the Sugar Industry of the United Kingdon, Greenock, 1901; Frank Lewis, Essex and sugar, 1976.
24 Atwood H., Donald W., Raising Cane. The Political Economy of Sugar in Western Indie, Boulder, 1992; Bernhardt, Joshua,
22 . STEWART, j., A Description of a Machine or Invention to Grind Sugar-canes by the power of a fire Engine, Kingston, 1768.
Government Control of the Sugar Industry in the United States, N. Y. 1820; Brunner, Henrich, Cuban Sugar Polity from 1963
IDEM, Steam engineering on sugar plantations, steamships, and locomotive engines, New York, Russell’s American Steam to 1970, Pittsburgh, 1977; Buzzanell, Peter J. Sugar and corn sweetener: changing demand and trade in Mexico, Canada, and the
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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

CRONOLOGIA

9000-8000 AC Domesticação da cana na Papua Nova Guiné


8000 AC Introdução em Bengala
6000 AC Descoberta da Sacharum Robustum na Ásia
3600 AC Primeira referência ao sistema de destilação, usado na perfumaria.
3000 AC Domesticação do sorghum na Etiópia
2500 AC saccharum officinarum na Papua Nova Guiné
2000 AC A cultura da cana sacarina faz de forma intensiva na Índia
1500 AC Expansão da cultura na Polinésia e Melanésia
1000 AC Índia, saccharum berberi
700 AC Difusão da saccharum officinarum na Ásia
600 AC Introdução da cana nas ilhas do Hawaii, por emigrantes do Pacífico sul
510 AC Descoberta da cana pelos Persas
500 AC Fabrico de açúcar na Índia
375 AC Primeira referência ao açúcar branco
325 AC O general macedónio Nearchus da campanha de Alexandre o Grande na Ásia
refere o açúcar de cana
300 AC A cana é usada na alimentação na Índia
200 AC Cultivo da cana no Sul da China
600 DC As árabes descobrem o açúcar na Pérsia e iniciam a divulgação no
Mediterrâneo:
640 - Síria;
644 - Chipre,
650 - Palestina;
655 - Sicília;
682 - Marrocos;
710 - Egipto;

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

714-Al-Andalous; xarope
823- Creta; 1812 Edward Charles Howard constrói a primeira caldeira de vacuum, patenteado no
870- Malta. ano seguinte este método de evaporação
1000 O açúcar é uma das mercadorias mais importantes do comércio do Mediterrâneo O químico Charles Derosne cria a primeira fábrica de açúcar a carvão em Cahillot
1285 Marco Pólo refere o fabrico de açúcar na China, Índia e África Oriental. 1815 Em Inglaterra, Taylor estabelecem um sistema de filtros
1319 Primeira referência à importação de açúcar em Inglaterra Primeira máquina a vapor no Brasil, de Watt & Boulton
1425 Expansão da cana-de-açúcar ao Atlântico, a partir da Madeira: 1820 Afirmação da máquina a vapor de Fawcett
1474: Açores, 1829 Construção da primeira caldeira a vapor no Brasil, pela Fundição Aurora
1483- Canárias, 1830 Norbert Rillius de N. Orleans descobriu a caldeira de vacuum, surgindo os
1484-S. Tomé, primeiros engenhos desde 1845
1498: Cabo Verde 1833 Início do uso da máquina a vapor na refinação do açúcar em Cuba
1456 Primeira referência ao açúcar da Madeira em Bristol 1837 Inglês Penzoldt constrói o primeiro aparelho de centrifugação, que em 1843 passou
1470 Estabelecimento de refinarias em Veneza, Antuérpia e Bolonha a ser usada na purga do açúcar
1484 Primeira experiência da cultura da cana-de-açúcar em S. Tomé 1843 Norbert Rillieux [1806-1894] introduz na Louisiana o sistema de evaporação de
1509 Primeiras plantações de cana-de-açúcar no Brasil múltiplo efeito.
1532 Martim Afonso de Sousa leva cana e mestres de engenho da Madeira para S. 1844 O alemão Schottler aplicou pela primeira vez a força centrífuga na separação do
Vicente (Brasil) melaço do açúcar branco.
1533 Fundação do engenho do Governador em S. Vicente, o primeiro construído no 1849 Início do uso da turbina na indústria açucareira
Brasil. Construção da primeira máquina de centrifugação por Soyrig
1640 Início do cultivo da cana-de-açúcar em Barbados 1855 Utilização da máquina de vacuum na cristalização do açúcar
1651 Primeira plantação de cana-de-açúcar em Suriname por Lord Willoughby 1859 Primeira fabricação de açúcar branco granulado.
1700 Invenção do trem jamaicano 1860 Primeira máquina de centrifugação para purificar o açúcar
1751 Introdução da cana-de-açúcar em Louisiana 1861 Fundação da Companhia Fives-Lille, especializada no fabrico de equipamentos
1765 Início da cultura da cana-de-açúcar em St Lúcia para as fábricas de açúcar
1768 Primeira máquina a vapor na Jamaica 1865 Taylor e Martineau constroem na Inglaterra um aparelho onde a evaporação se
1780 Cuba adopta o trem francês fazia com a ajuda do vapor de água a alta pressão, passando as serpentinas no
1788 Introdução da cana-de-açúcar em Cape Colony na Austrália, sendo Thomas Scott meio do xarope.
quem iniciou a indústria 1870 Instalação da primeira caldeira de vacuum em Pernambuco.
1791 O químico russo, Lowitz, demonstra as propriedades depurativas do carvão, que 1871 Théophile Rousselot, engenheiro na Martinica estabelece o mecanismo do enge-
passará a ser usado na purga do açúcar. nho de três cilindros.
O engenheiro Estebam La Faye fabrica a primeira moenda a vapor em Cuba 1879 Constantine Fahlberg regista a patente da sacarina
1798 Utilização de caldeiras clarificadoras para eliminar as impurezas 1890 O pão de açúcar cede definitivamente o lugar ao açúcar granulado
1794 John Collinge apresenta inovação do engenho horizontal de três cilindros 1937 Michael Sveda descobre a cyclamate
Início da fabricação em série da moenda a vapor, na Inglaterra 1965 James Shlatter Descobre o aspartame
1805 Guillon, refinador do açúcar em Orleans preconiza o uso do carvão para purga

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

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nologias usadas e dos novos processos de transformação do 1984
fabrico trazidos pela Química. A incidência desta produção Alazraqui Alonso, Jaime Miguel. Remolacha azucarera; antecedentes para la República Argentina.
literária tem a ver com o empenho de cada país ou império na Buenos Aires, 1964.
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encontramos o maior número de publicações, mas também Arago, B. Guia práctica para Extraer el Azúcar de la Remolacha (...), Madrid, 1875.
não é desprezível o número no idioma alemão e francês. A Arrington, Leonard J. Beet sugar in the West; a history of the Utah-Idaho Sugar Company, 1891-
maior parte dos que escrevem sobre o tema, mesmo sobre a 1966, by Leonard J. Arrington. Seattle, University of Washington Press, 1966.
História, estão de uma forma ou de outra, emnvolvidos Association populaire pour l’éducation scientifique (Martinique) La route du sucre, du VIIIe au
profissionalmente com a cultura e industria. É no campo da XVIIIe siècle: actes du colloque organisé par l’Association Populaire pour l’Education
Engenharia Química e da Agronomia que encontramos o Scientifique, Schoelcher, 2000 / [APES]; sous la direction de Emile Eadie. Martinique: Ibis
maior número de estudiosos e de estudos. rouge, c2001.
No domínio da História sobressaem dois autrores, como Atwood H., Donald W., Raising Cane. The Political Economy of Sugar in Western Indie, Boulder,
cçássicos da abordagem da matéria. Edmond von Lippmann, 1992
químico alemão publicou em 1890 a sua História, que teve Aykroyd, W. R. (Wallace Ruddell), 1899- The story of sugar [by] W. R. Aykroyd. Chicago,
várias edições (1929, 1934, 1938) e uma tradução no Brasil Quadrangle Books, 1967.
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publicada em 1949-50, mas não devrá esquecer-se os contri- Baker, John, Proculus, An Essay on the Art of Making Muscavado Sugar, 1775.
butos no âmbito da química e tecnologia. Para períodos mais Bardorf, C. F. (Charles Frederick), b. 1863. The story of sugar, by C. F. Bardorf. Easton, Pa., The
recentes temos o texto de J. H. Galloway (1989) e os encontros Chemical Pub. Co., 1924.
de Motril desde 1992 e do Funchal a partir de 2000, que cul- Barickman, B. J. (Bert Jude), 1958- A Bahian counterpoint: sugar, tobacco, cassava, and slavery in
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biografia existente. Maior incidência foi dada a partir de mea- The truth about sugar in Cuba; corrections to and explanations of the pamphlet entitled: “The
dos do século XIX às questões que se prendem com a sugar industry and its future” by Mr. Herminio Portell Vila. Imprint Havana [Printed by
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domínios que a profusão de estudos surge, tendo como factor Bass, W. L. (William Louis), b. 1865. Azúcar de caña (sugar cane), New York City, 1900, 1901
dinamiador a beterraba. Foi o uso da nova cultura para o fa- Basset, Nicolás, Notes Sur la Sucrérie, Extraites des Annales du Génie Civil, Paris, 1868.
brico do açúcar que eu o arranque definitivo para os estudos Baxa, Jakob, 1895- Die zuckererzeugung, 1600-1850, von Dr. Jakob Baxa ... Imprint Jena, G.
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Carta e desenhos de João Higino Ferraz

A Historiografia e a questão açucareira na Madeira

1. Fase séculos XV a XVIII

As grandes questões deste período prendem-se com a importância da Madeira com a expansão
dos canaviais no espaço atlântico e da afirmação do açúcar no mercado europeu.
Durante muito tempo o estudo que teve maior visibilidade internacional foi o de Virgínia Rau e
Borges Macedo sobre o livro dos estimos de 1494, em que a abordagem fundamental é sobre a
questão da propriedade. A este podemos juntar os textos de Fernando Jasmins Pereira, que como
Carlos Montenegro Miguel, Joel Serrão, Ernesto Gonçalves, não tiveram muito divulgação.
A incidência temática foi quase só nos aspectos relacionados com o sistema de propriedade e o
comércio do açúcar no mercado europeu, ficando esquecidos aspectos fundamentais como a tec-
nologia dos engenhos e fabrico do açúcar.
Nos últimos decénios do século XX, por força da realização de colóquios e da existência de revis-
tas, a temática açucareira voltou a motivar de novo o interesse dos estudiosos. Aqui é de assinalar
os estudos de David Ferreira Gouveia, que equaciona alguma problemática de forma inovadora.
BRAGA, Paulo Drumond, “O açúcar da ilha da Madeira e o mosteiro de Guadalupe”, in Islenha,

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233;
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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

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RODRIGUES, José Agostinho. As questões vinícola e sacarina da Madeira e os decretos n.°’ Copiador de cartas,1919-1920, 49 fls
13.990, 14.167 e 14.168 respectivamente de 23 de Julho e 25 de Agosto 1927. Como foram Copiador de cartas, 1927-1929, s.n.,
e como devem ser resolvidas estas questões a bem dos superiores e Agenda Portuguesa. 1928 e 1929(notas diárias da actividade)
dos legítimos interesses do Arquipélago da Madeira por José Copiador de cartas,1929-1930, s.n.,
Agostinho Rodrigues Coronel-Médico. Lisboa: Tip. Portugal, 1928. Copiador de cartas , 1930-1936, sem numeração
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Estado por S. Majestade a Imperatriz D. Arrelia e outros do despacho Funchal, 1989
pelo qual o governador civil concedeo licença para a fundação duma Melo, Luís Francisco de Sousa,Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal. 1ª
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Funchal. Pelo Recorrido o Bacharel Joaquim Ricardo de Trindade e IDEM, Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal. 2ª parte, in Arquivo
Vasconcellos. Funchal: Imprensa da Revista Judicial, 1867. Histórico da Madeira, vols. XIX, Funchal, 1990

DOCUMENTAÇÃO FUNDAMENTAL

A documentação disponível sobre a temática dos engenhos e açú-


car não correesponde à dimensão que assumiram na História do
arquipélago. A docuemntação empresarial paree que se perdeu. Até
mesmo do engenho do Torreão ignora-se o paradeiro do acervo doc-
umental, tão importante para a História contemporânea da Madeira.
Felizmentetivemos oportunidade de ter acesso ao arquivo particular
de João Higino Ferraz, um homem que teve uma vida inteira dedica-
da à indústria e que foi o gerente técnico do engenho do Hinton. A
correspondência e cadernos de apontamentos são fundamentais para
compreender a história do engenho, como da evolução da tecnologia,
através das múltiplas experiências no campo da química e da mecâni-
ca. A sua importância obriga-nos a pensar para breve na sua publi-
cação.

Livro de Armazém. Conhecimentos úteis do assucar e melaço,…,


1875/-, 58 fls
Desenhos de João Higino Ferraz Copiador de cartas,1898-1905, 200fls
Livro de notas sobre a fabricação dassucar e álcool e tabellas de cálculos de João Higino Ferraz,
1903-1910, 207fls.

54 55
mitos e teses da história do
AÇÚCAR
57
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Finalmente em 1979 esta forma de ver chegou à análise da História de Arte e urbanismo da cidade,
surgindo pela pena de António Aragão a ideia de que a cidade teve dois momentos distintos que
definiram diversas formas de concretização artística e urbanística: a cidade do açúcar e a cidade do
vinho31. O impacto que o texto teve no meio académico e público interessado conduziu levou a que
a ideia, ainda que sem fundamento qualquer, acabasse por se afirmar.
Uma análise aturada da economia insular diz-nos que a mesma não se regeu por princípios
exclusivistas, de acordo com a premência das solicitações externas. Antes pelo contrário, o desen-
volvimento socio-económico processou-se de forma variada, sendo a exploração económica domi-
Mitos e teses da história do açúcar nada por estes vectores dominadores, que acrescem as condições e recursos do meio com as solici-
tações da economia de subsistência. É difícil, senão impossível, conseguir definir um ciclo em que
impere a monocultura de exportação, num espaço amplo e multifacetado como é o do mundo insu-
A cana sacarina, ao contrário do que sucedeu com os demais produtos e culturas (vinha, cereais), lar.
não se resumiu apenas à intervenção no processo económico. Ela foi marcada por evidentes especi- Alguns dados avulsos referentes à tributação interna e por exportação evidenciam uma reali-
ficidades capazes de moldarem a sociedade, que dela se serviu para firmar a sua dimensão dade distinta daquela que se pretende afirmar. Na verdade, estamos perante produtos dominantes
económica. A importância a que o sector comercial lhe atribuía conduziu a que fosse uma cultura e não exclusivos. Uma breve análise dos rendimentos dos direitos reais para o período de 1581-1586
dominadora de todo (ou quase todo) o espaço agrícola disponível, capaz também de estabelecer os evidencia, em termos do sector produtivo, apenas a dominância de produtos32.
contornos de uma nova realidade social.
Foi precisamente esta tendência envolvente que levou a Historiografia a definir o período da afir-
ANOS QUINTOS DÍZIMAS MIUNÇAS TOTAL
mação como o Ciclo do Açúcar. Aqui não estávamos perante uma aplicação da teoria dos ciclos
Reais % Reais % Reais %
económicos, mas pretendia-se subordinar esta tendência para a afirmação da cultura na vida
1581 12.683$657 46 9.576$953 35 5.179$191 19 27.439$801
económica e social com o conceito. A omnipresença da cultura, as múltiplas implicações que gerou
1582 11.114$668 45 8.073$953 33 5.326$690 22 24.515$311
nos espaços em que foi cultivada levou alguns investigadores a estabelecer um novo modelo de
1583 10.560$681 44 8.141$428 34 5.262$100 22 23.964$200
análise: os ciclos de produção assentes na monocultura. Tudo começou em 1929 com Lúcio de
Azevedo e foi reforçado em 1933 por Fernand Braudel25 que pretendeu definir para as ilhas dos 1584 12.909$140 47 9.574$232 34 5.252$309 19 27.735$681
arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias, a que chamou de Mediterrâneo Atlântico. Ainda, em 1585 9.702$517 49 4.923$644 25 5.227$059 26 19.853$220
1949 Orlando Ribeiro esclarecia, que no caso da Madeira não é possível encontrar rastros de mono- 1586 9.479$391 50 5.128$164 27 4.296$869 23 18.994$424
cultura no regime de exploração agrícola madeirense, mesmo assim Joel Serrão insistiu em 1950
em definir o “ciclo dos cereais”. Todavia a mesma teve eco negativo na Península Ibérica, surgin- O quadro altera-se quando encaramos os valores referentes à dizima de exportação, onde a
do Orlando Ribeiro26 e Elias Serra Rafols27 a refutar tal hipótese na análise do devir económico, posição hegemónica, mas não exclusiva, do açúcar se consolida.
respectivamente, da Madeira e Canárias. Mais tarde os estudos de F. Mauro28 e V. M. Godinho29
reafirmavam a oposição e conduziram a uma nova e diversa visão da estrutura económica: ao Anos Açúcar Vinho, remeis e frutos Total
regime de monocultura sobrepõe-se ao de produtos dominantes. Deste modo o Ciclo do Açúcar $ % $ % $
resultava, não da exclusiva afirmação da cultura, mas da dominância, capaz de atribuir uma redo- 1581 5.928$131 62 48$504 0,5 9.576$953
brada atenção no sistema de trocas30. 1582 5.897$116 73 82$379 1 8.073$953
Na Madeira a ideia vingou junto de historiadores e eruditos. Assim, ficou assente o ciclo dos 1583 5.863$345 86 102$000 1,5 6.931$405
cereais, do açúcar ou ouro branco, do vinho, do turismo, banana e, certamente o da autonomia. 1584 5.855$236 90 74$295 1,1 6.517$174
1585 3.459$344 86 41$149 1 4.021$980
25 La Mediterranée et le Monde Mediterranéen (...), vol. I, Paris, 1949, p. 123. 1586 3.493$511 88 29$686 0,8 3.968$347
26 . L’ile de Madère (...), Lisboa, 1949, p. 67.
27 . “El Gofio Nuestro de cada Dia”, in Estudios Canarios, XIV-XV, 1969-70, pp. 97-99.
28 . Le Portugal et l’Atlantique au XVIéme siècle, Paris, 1960, p. 231.
29 . “A Divisão da História de Portugal em Períodos”, in Ensaios II, 1978, pp. 12-14. 31 . Para a História do Funchal. Pequenos Passos da sua Memória, Funchal, 1979.
30 . F. Mauro, “Conjoncture Économique et Structure Sociale en Amérique Latine depuis l’Époque Coloniale”, in Hommage à 32 . Joel Serrão, Temas Históricos Madeirenses, Funchal, CEHA, 1992, pp.77-102; Susana Miranda, A Fazenda Real na Ilha da
Ernest Labrousse, Paris, 1974, pp. 238-240. Madeira. Segunda Metade do Século XVI, Funchal, CEHA, 1994, p.160.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

A mesma situação poderá ser evidenciada quando somos confrontados com as cartas de nos sectores produtivo e comercial. A documentação é unânime na afirmação de que o empenho
quitação dos Almoxarifes para a segunda metade do século XVII33. do ilhéu não se resume apenas ao produto que mais gira nas relações com o exterior. Há em todos
uma certa preocupação de auto-suficiência que milita a favor da manutenção das culturas tradi-
ALMOXARIFE DATA TOTAL AÇÚCAR VINHO TRIGO cionais que medram, lado a lado, com as dominantes no comércio externo. A polivalência produ-
Arrobas Arráteis Pipas Almudes Canadas Moios Alqueires tiva manteve-se sempre no devir socio-económico insular. A dominância de um ou de outro produto
Cristóvão Faria 1620-24 49.264$261 52.266 261/2 791 9 3 141 nas relações com o exterior não destrói essa policemia produtiva, nem retira o empenho das gentes
Cristóvão Valente 1645 12.738$951 469 28 ? 338 274 32 laboriosas nesse processo. Atesta-o as posturas Municipais onde, nos diversos sectores económicos,
1652-54 39.292$894 3.649 21 1035 21 11 819 45 se expressa uma diversidade de interesses e movimento quotidiano de produtos.
1656-58 40.532$298 2.390 19 1.035 21 11 814 15 Em todas as dinâmicas produtivas e comerciais que marcaram e continuaram a definir o proces-
Luís Soares Pais 1660-62 49.546$497 702 12 1.038 ? 810 45 so histórico madeirense e gritante a extrema dependência da ilha em relação ao exterior. Ai a
Luís Soares Pais 1670-72 70.178$733 1256 24 ? 1039 ? 822 45 Europa detêm uma posição dominante firmando-se como centro emanador de orientações de
Manuel Soares Pais 1677-79 62.389$244 351 9? 1340 ? 1 941 3 política e economia. A situação comum ao mundo insular define uma das principais peculiari-
dades: a extrema fragilidade e dependência da economia em relação ao velho continente. Para isso
Para os anos de 1670-167134 temos os dados diferenciados dos diversos produtos: em muito contribuiu a posição hegemónica das cidades-capitais dos impérios peninsulares pouca
disponibilidade de recursos e meios das sociedades insulares. A dinâmica autonómica desen-
Produto 1670 1671 1672 cadeada nestas ultimas décadas, poderá contribuir para o desencravamento da situação e para a
REAIS REAIS REAIS afirmação de uma nova realidade insular ou arquipelágica. É evidente que a afirmação de um pro-
Vinho (PIPAS) 346 ? 346 ? 346 ? duto no sector das exportações não é possível sem um sistema de policultura, principalmente em
Açúcar (ARROBAS) 3629 423 470 universos restritos como as ilhas. Assim, os canaviais subsistem se for possível assegurar um vasto
Trigo (MOIOS) 274 274 274
hinterland de culturas de subsistência. Os ciclos serão a visão mais deformada do processo
económico da ilha, a caricatura de uma realidade que é muito complexa.
Frangos 12 12 12
Entender a economia das ilhas, a sua História é reconhecer um estatuto diferenciado aos espaços
Cabritos 12 12 12
económicos. Para nós a História, a realidade económica não se compadece com as teorias e tão
Cevada (MOIOS) 5 5
pouco se lhes deve subjugar. Quem conhece as ilhas sabe que em todas domina a diversidade geo-
TOTAL 21.088$434 22.977$937 25.412$362
económica, fruto da configuração geográfica. A situação conduziu na Madeira a um escalonamen-
Os modelos, embora perfeitamente delineados, não se ajustam à realidade socio-económica, que to de culturas, impedindo a sobreposição35.
é variada e enriquecida de múltiplas matizes. Embora alguns produtos, como o trigo, o açúcar, o O grande erro da Historiografia europeia foi ter encarado a economia açucareira da Madeira ou
vinho e o pastel, surjam em épocas e ilhas diferenciadas, como os mais importantes e definidores das Canárias como um retrato em miniatura. O confronto das realidades, coisa que ainda ninguém
das trocas externas, não são os únicos na economia insular. Na verdade, a dominância sucede ape- se atreveu a fazer, comprova que a situação não existe, não passando de mera ficção as análises que
nas no sector da exportação e nunca na realidade global da ilha, onde por vezes é mais evidente a
afirmação de outros, como fonte de riqueza familiar e de subsistência.
35 . BIBLIOGRAFIA fundamental sobre o tema: Joel Serrão, Temas Históricos Madeirenses, pp.17-20 e 53-75. F. Braudel, Le
Os ciclos de monocultura são apenas a parte visível das exportações e reduzir a análise económi- Méditerranée et le Monde Méditerranéen (...), ed. de 1949, 123. Orlando Ribeiro, L’Île de Madère (...), Lisboa, 1949, 67. Lúcio
ca a isso é uma atitude reducionista uma vez que apenas se limita a reconhecer a importância dos De Azevedo, Épocas De Portugal Económico. Esboços De História, Lisboa, 1929. António Aragão, Para a História do Funchal,
produtos com maior peso nas exportações. A ilha é um microcosmo definido pela variedade de Pequenos Passos da Sua Memória, Funchal, 1979. A tese de Victor MORALES LEZCANO baseada em F. Braudel surgiu pela
primeira vez em Sintesis de la Historia Economica, Tenerife, 1966, sendo depois reforçada em Las relaciones Mercantiles entre
espaços ecológicos que não se compadecem com uma unicidade agrícola. Esta condição dominante inglaterra y los archipiélagos atlantico ibericos (...), La Laguna, 1970 e em “Cultivos dominantes y ciclos agricolas en la historia
levou a uma sistematização do devir socio-económico em ciclos, que se demarca com uma ilusão Moderna de las islas Canarias”, in Historia General de las islas Canarias, IV, 11-22. Frédèric MAURO, Le Portugal et l’Atlantique
óptica da complexa realidade que serve de base. Assim, o produto passou a definir a estrutura au XVIIe, siècle (...), Paris, 1960, 501; Idem, “Conjoncture Économique et structure sociale en Amérique latine depuis d’Époque
coloniale”, in Conjoncture Économique, Sctruture Sociales, Hommage à Ernest Labrouse, Paris, 1974, 237-251; Vitorino
socio-económica, num determinado momento, esquecendo-se que essa mesma e muito complexa Magalhães GODINHO, “A Divisão da história de Portugal em períodos”, in Ensaios II, 2ª ed., Lisboa, 1978, 12-14. IDEM, A
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60 61
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

são colocadas ao nosso dispor. O facto de ambos os arquipélagos terem sido meios de ligação da de obras de arte de importação, testemunhos evidentes estão no actual Museu de Arte Sacra. A arte
nova cultura económica do atlântico ocidental, não quer dizer que houve uma transplantação total flamenga na ilha é um dom do açúcar. O progresso sócio-económico da ilha, o protagonismo na
e igual para os novos espaços. As condições ambientais, os obreiros da transformação eram outros expansão atlântica — nos descobrimentos e defesa das praças africanas — só conseguida à custa da
como diversa foi a realidade que o produto gerou. Tudo isto deverá resultar das ciladas do método elevada riqueza acumulada pelos madeirenses. Todos, sem diferença de condição social, fruíram da
de análise do processo histórico de forma retrospectiva, onde, por vezes, o facto surge como a riqueza. Até a opulência e luxúria da própria coroa, lá longe no reino, foi conseguida, por algum
imagem e consequência. Tal como o provaram os estudos recentes sobre a situação da economia tempo, com o açúcar que a coroa arrecadava na ilha.
açucareira do Mediterrâneo Atlântico, a conjuntura deste espaço é diversa da americana, seja ela
insular ou continental. Também não se poderá colocar ao mesmo nível o caso de São Tomé que,
embora situado no sector ocidental do oceano, aproxima-se mais da realidade antilhana do que dos A MADEIRA E O AÇÚCAR NO MUNDO INSULAR
arquipélagos da Madeira e Canárias.
De acordo com a ideia, de que a civilização do açúcar teve apenas uma forma de expressão no
Atlântico Ocidental e Oriental, partiu-se para as afirmações precipitadas na análise da economia e A implantação de canaviais não deriva apenas da disponibilidade de uma reserva florestal e de
sociedade que lhe serviram de base. Ao açúcar associou a Historiografia, desde muito cedo, a escra- água abundante para o regadio e laboração dos engenhos, pois deverão juntar-se as condições ofer-
vatura, fazendo jus à afirmação de Antonil em 1711, de que “os escravos são as mãos e os pés do ecidas pelo clima e orografia. As ilhas da América Central e do Golfo da Guiné ofereciam melhores
senhor de engenho”36. Aqui também a relação não nos surge tão transparente como à primeira vista condições que a Madeira ou as Canárias. Deste modo em ambos os arquipélagos a orografia esta-
pode parecer. beleceu um travão à afirmação da cultura extensiva dos canaviais. De acordo com estas condições
As cruzadas, de acordo com a Historiografia europeia, foram o princípio da expansão da cultura a produção madeirense dos séculos XV e XVI nunca ultrapassou as 1584,7 toneladas, atingidas em
açucareira e da vinculação aos escravos. Nas colónias italianas do Mediterrâneo Oriental surgem 1510. Apenas no século XX, com a expansão dos canaviais, de novo a toda a ilha, se conseguiu
os primeiros resquícios da nova dinâmica social que passaria à Sicília e, depois à Madeira, donde suplantar este valor, tendo-se atingido em 1916 as 4943,6 toneladas. Este incremento da produção -
se expandiram no Atlântico. Diz-se, ainda, que a ligação do escravo, negro ou não, à cultura dos açucareira foi travado nos anos imediatos por meio dos decretos de 1934-1935 e 1937 regulamen-
canaviais foi uma invenção do ocidente cristão, não havendo lugar no mundo muçulmano. tadores da área de produção.
Diferente é todavia a opinião de Yoro Fall37 que encontra testemunhos evidentes da relação, com o Em S. Tomé os canaviais tiveram melhores condições para se afirmarem e suplantarem a pro-
usufruto de mão-de-obra negra, pelas plantações muçulmanas do Egipto e Marrocos. dução madeirense: na primeira metade do século dezasseis a ilha, com uma extensão de 857 m2,
Sucede que a escravatura da Madeira, tal como teremos oportunidade de o afirmar, não assum- (mais que a Madeira com 728) produzia o dobro, cifrando-se, na primeira metade do século XVI,
iu uma posição similar à de Cabo Verde, São Tomé, Brasil ou Antilhas, não obstante o surto evi- em 950 toneladas. O clima, o solo permitiram que a produção de açúcar em S. Tomé cedo suplan-
dente de produção açucareira. Aqui, ao invés daquilo que tem lugar nesses espaços, o escravo não tasse a madeirense: aí as canas cresciam três vezes mais que na Madeira e faziam-se duas colheitas.
dominou as relações sociais de produção: ele existiu, sob a condição de operário especializado ou O conjunto das 21 ilhas produtoras de açúcar no espaço atlântico oferece um total de 271.993
não, mas a posição não era dominante, tal como sucedia nas áreas supracitadas. Por fim acresce a 2
m , dos quais oferece apenas uma ínfima parcela dedicada à agricultura. Para além da disponibili-
hipervalorização do Açúcar na História da Madeira levou alguns aventureiros e progenitores de dade do espaço agrícola adequado, tornava-se necessário a disponibilidade de uma reserva sil-
teorias de vanguarda a estabelecer também uma forma peculiar de urbanização do Funchal, de vícola, sem a qual os engenhos não podiam laborar. O caso da Madeira é paradigmático. A super-
acordo com a presença do açúcar. Deste modo ao Funchal do século XVI chamam-lhe, sem fície cultivada pouco ultrapassa um terço da área da ilha, sendo o restante espaço constituído pela
saberem e explicarem porquê, “cidade do açúcar”, quando na realidade, a expressão urbanística da reserva silvícola.
cana-de-açúcar é manifestada pela ruralidade38.. O caso da Madeira é paradigmático. A superfície cultivada pouco ultrapassa um terço da área
O açúcar, acima de tudo, era um complemento fundamental na vida económica da ilha. Sucedeu da ilha, sendo o restante espaço constituído pela reserva silvícola. Não é possível saber mos a área
assim até meados do século XVI, mas a partir de finais do século XIX, tudo mudou. A riqueza ocupada pelos canaviais nos séculos XV e XVI mas para a segunda fase de afirmação da cultura
cumulou os proprietários mas também a arraia-miúda, sendo um factor de progresso social. Com dispomos de dados concretos sobre isso tendo em conta o volume da cana produzida:
ele ergueram-se igrejas - a Sé do Funchal é um exemplo disso -, amplos palácios que se rechearam

36 . Cultura e Opulência do Brasil (...), Lisboa, 1711, p. 22.


37 . “Escravatura, Servidão e Reconquista”, in Portugal no Mundo, I, Lisboa, 1989, pp. 303-304.
38 . Cf. Esterzilda Berenstein de AZEVEDO, Arquitectura do Açúcar, S. Paulo, 1990.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ANO ÁREA Ha ANO ÁREA Ha PROPRIETÁRIOS LOCALIDADE ANO PRODUÇÄO ÁREA


1815 357 1911 1100 ARROBAS Ha
1865 375 1915 1800 João Esmeraldo P. Sol 1494 1370 9,3
1895 800 1918 1500 P. Sol 1526 3277,5 22,5
1906 1000 1939 1500 João de França 1494 2500 17,1
1907 1100 1952 1420 Pedro Gonçalves Bairros R. Brava 1509 5376 36,9
Diogo Afonso de Aguiar Calheta 1509 3960,5 27,2
Para as duas áreas poderemos enunciar que no século quinze, mais propriamente em 1497 as Benoco Amador Funchal 1509 2565,5 17,6
1098,6 toneladas deveriam resultar de uma área de 686 hectares de canavial, enquanto em 1510 João Mendes de Brito R. Brava 1517 3339 22,9
com a produção de 1584,7 toneladas, os canaviais deveriam ocupar cerca de 990,4 hectares. João Betencor R. Brava 1517 2455 16,8
A situação das ilhas do outro lado do oceano é também diferente da madeirense. As condições Gonçalo Fernandes Calheta 1534 33707,5 25,4
semelhantes às encontradas em S. Tomé fizeram com que os canaviais se afirmassem aí, a partir do Dona Joana d’Eça Calheta 1534 3595 24,7
século dezassete. Deste conjunto de ilhas apenas um reduzido número (S. Cristóvão, Nevis, João Betencor R. Brava 1536 2455 16,8
Antigua, Montserrat) se assemelha à Madeira, em termos orográficos. Aí deparámo-nos com ilhas João Martins P. Sol 1537 2528 17,3
de superfície menor que a Madeira (Antigua, Barbados, Nevis, St. Vicent, Trinidad) mas com uma
produção açucareira superior. Facto evidente sucede com as ilhas de Trinidad, Antigua e Barbados, No quadro reunimos os proprietários de canaviais com maior produção de açúcar, para o perío-
que dispondo de uma reduzida superfície conseguem produzir mais açúcar que a Madeira. A ilha do de 1494 a 1537. A partir daqui poder-se-á constatar que a dimensão dos canaviais madeirenses era
de Trinidad com apenas 301 m2 produziu entre 1850 e 1940 uma média anual de 57862 toneladas muito reduzida quando comparada com as Antilhas. O caso de Barbados (cuja superfície é menor
de açúcar, enquanto a Madeira se ficou pelas 1659 toneladas. Em Montserrat e Nevis, com uma que a da Madeira) é significativo: a produção de atingiu aí o máximo de 74606 arrobas em 1890.
superfície total quase igual à da área ocupada pelos canaviais na Madeira, conseguem atingir va-
lores de produção semelhantes.
Diversa é também a estrutura fundiária que serviu de base à cultura. Enquanto na Madeira a o- A PROJECÇÃO DA MADEIRA NO MUNDO AÇUCAREIRO
rografia e o sistema de posse da terra definiram a plena afirmação da pequena e média pro-
priedade, em S. Tomé ou nas Antilhas estávamos perante a grande propriedade, activada pela A Madeira afirmou-se no processo da expansão europeia pela singularidade do protagonismo.
grande força de trabalho escrava: em Barbados, entre 1650 e 1834, 84% dos proprietários de ca- Vários são os factores que o propiciaram e que fizeram com que ela fosse, no século XV, uma das
naviais era detentor de mais de cinquenta escravos, enquanto na Madeira apenas 2% era possuidor peças-chave para a afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. Além disso é considera-
de mais de 10 escravos. da a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para os anais da História do oceano que
Por outro lado a área dos canaviais assumida por cada proprietário era também elevada, pois abraça o seu litoral abrupto. O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encon-
64% destes possuíam canaviais cuja extensão ia de 40 a 121 hectares, situação que estava muito tro da Europa em expansão.
aquém da assumida pelos produtores madeirenses. Na Madeira apenas um produtor se aproxima À função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como “farol” Atlântico,
desse valor (Pedro Gonçalves com uma área de 36,9 hectares), sendo os demais com valores inferi- o guia orientador e apoio para as delongas incursões oceânicas. Por isso, nos séculos que nos ante-
ores: os lavradores com mais de 22 toneladas de produção e com mais de 14 hectares de terreno cederam, ela foi um espaço privilegiado de comunicações, tendo a favor as vias traçadas no oceano
representam em 1494 apenas 1,3% e 5% para o período de 1509 a 1537. que a circunda e as condições económicas internas, propiciadas pelas culturas da cana sacarina e
vinha. Uma e outra contribuíram para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se
mantivesse um permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo. Como
corolário disto a Madeira firmou uma posição de relevo nas navegações e descobrimentos no
Atlântico.
Colombo abriu as portas ao Novo Mundo e traçou o rumo da expansão da cana-de-açúcar. A cul-
tura não lhe era alheia, pois o navegador tem no curriculum algumas actividades ligadas ao comér-
cio do açúcar na Madeira. O navegador, antes da relação afectiva ao arquipélago, foi, a exemplo de
muitos genoveses mercador do açúcar madeirense. Em 1478 ele encontrava-se no Funchal ao

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Paisagem com engenho. serviço de Paolo di Negro para conduzir a Génova 2400 arrobas a Ludovico Centurione. Com esta
Franz Post, 1668
viagem e, depois da larga estância do navegador na ilha, Colombo ficou conhecedor da dinâmica
e importância do açúcar da Madeira39. Em Janeiro de 149440, aquando da preparação da segunda
viagem, o navegador sugere aos reis católicos o embarque de 50 pipas de mel e 10 caixas de açúcar
da Madeira para uso das tripulações, apontando o período que decorre até a Abril como o melhor
momento para o adquirir. A isto podemos somar a passagem do navegador pelo Funchal no decur-
so da terceira viagem em Junho de 1498 podemos apontar como muito provável a presença de socas
de canas da Madeira na bagagem dos agricultores que o acompanhavam. Neste momento a cultura
dos canaviais havia adquirido o apogeu na ilha, mantendo-se uma importante franja de canaviais
ao longo da vertente sul41.
A tradição anota que as primeiras socas de cana saíram de La Gomera. Todavia, a cultura encon-
trava-se aí nesse momento em expansão, enquanto na Madeira estava já consolidada. Note-se que
ainda estão por descobrir as razões que conduziram Colombo, no decurso da Terceira viagem, a
fazer um desvio na sua rota para escalar o Funchal. Na verdade, a Madeira foi a primeira área do
Atlântico onde se cultivou a cana-de-açúcar que, depois, partiu à conquista das ilhas (Açores,
Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e Antilhas) e continente americano. Por isso mesmo o conheci-
mento do caso madeirense assume primordial importância no contexto da História e Geografia
açucareira dos séculos XV a XVII.
O açúcar da Madeira ganhou fama no mercado europeu. A qualidade diferenciava-o dos demais
e fê-lo manter-se como o preferido de muitos consumidores europeus. O aparecimento de açúcar de
outras ilhas ou do Novo Mundo veio a gerar uma concorrência desenfreada ganha por aquele que
estivesse em condições de ser oferecido ao melhor preço. Um testemunho da realidade surge-nos
com Francisco Pyrard de Laval: “Não se fale em França senão no açúcar da Madeira e da ilha de S.
Tomé, mas este é uma bagatela em comparação do Brasil, porque na ilha da Madeira não há mais
de sete ou oito engenhos a fazer açúcar e quatro ou cinco na de S. Tomé”42. E refere que no Brasil
laboravam 400 engenhos que rendiam mais de cem mil arrobas vendidas como da Madeira.
O mais significativo da situação do novo mercado produtor de açúcar é que o madeirense está
indissociavelmente ligado. Na verdade, a Madeira foi o ponto de partida do açúcar para o Novo
Mundo. O solo madeirense confirmou as possibilidades de rentabilização da cultura através de
uma exploração intensiva e de abertura de novo mercado para o açúcar. É a partir da Madeira que
se produz açúcar em larga escala que veio a condicionar os preços de venda, de forma evidente nos
finais do século XV. Também o íncola foi capaz de agarrar esta opção, tornando-se no obreiro da
difusão no mundo Atlântico. A tradição anota que foi a partir da Madeira que o açúcar chegou aos
mais diversos recantos do espaço atlântico e que os técnicos madeirenses foram responsáveis pela
implantação. O primeiro exemplo está documentado com Rui Gonçalves da Câmara, quando em
1472 comprou a capitania da ilha de S. Miguel. Na expedição de tomada posse da capitania fez-se

39 . VIEIRA, Alberto, “Colombo e a Madeira”, Actas III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993.,
IDEM, “Colombo e a Madeira: tradição e história”, Islenha, 1989, Nº 5, pp. 35-47.
40 . Consuelo Varela, Cristóbal Colón. Textos y Documentos Completos, Madrid, 1984, p.160.
41 . Cristóbal Colón, Textos y Documentos Completos, Madrid, Alianza Editorial, 1984, p. 160; Fray Bartolomé de las CASAS,
Historia de las Indias, Vol. I, México, Fundo de Cultura Económica, 1986, p. 497.
42. Viagem de Francisco Pyrard de Laval, Vol. I, Porto, 1944, p. 228.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

acompanhar de socas de cana da Lombada, que entretanto vendera a João Esmeraldo, e dos Enquanto isto se passava, do outro lado do Atlântico davam-se os primeiros passos no arrotea-
operários para a tornar produtiva. Seguiram-se depois outros que corporizaram diversas tentativas mento das terras brasileiras. E, mais uma vez, é notada a presença dos canaviais e dos madeirenses
frustradas para fazer vingar a cana-de-açúcar nas ilhas de S. Miguel, Santa Maria e Terceira43. como os seus obreiros. A coroa insistiu junto dos madeirenses no sentido de criarem as infra estru-
Em sentido contrário avançou o açúcar em 1483, quando o Governador D. Pedro de Vera quis turas necessárias ao incremento da cultura. Aliás, o primeiro engenho aí erguido por
tornar produtiva a terra conquistada nas Canárias. De novo a Madeira surge disponibilizar as socas iniciativa da coroa, contou com a participação dos madeirenses. Em 1515 a coroa soli-
de cana para que aí surgissem os canaviais. Todavia, o mais significativo estará na forte presença citava os bons ofícios de alguém que pudesse erguer no Brasil o primeiro engenho,
portuguesa no processo de conquista e adequação do novo espaço à economia de mercado. Os por- enquanto em 1555 foi construído por João Velosa, apontado por muitos como
tugueses, em especial o Madeirense, surgem com frequência nas ilhas ligando-se ao processo de madeirense, um engenho a expensas da fazenda real49. A aposta da coroa na rentabi-
arroteamento das terras, como colonos que recebem datas de terras na condição de trabalhadores lização do solo brasileiro através dos canaviais levou-a a condicionar a força de mão-de-
especializados a soldada, ou de operários especializados que constroem os engenhos e os colocam obra especializada, que então se fazia na Madeira. Assim, em 1537 os carpinteiros de
em movimento. No caso de La Palma refere-se um Leonel Rodrigues, mestre de engenho que ga- engenho da ilha estão proibidos de ir à terra dos mouros50.
nhou o estatuto em 12 anos de trabalho na Madeira44. É de referir também idêntico papel para as O movimento de migração de mão-de-obra especializada do engenho acentuou-se na
Cavaleiro português.Detalhe do painel votivo da ilhas Canárias na projecção da cultura às colónias castelhanas do novo mundo. Assim, em 1519 segunda metade do século XVI, por força das dificuldades da cultura em solo
Batalha dos Guararapes, século XVII Carlos V recomendou ao Governador Lope de Sousa que facilitasse a ida de mestres e oficiais de madeirense. O Brasil, nomeadamente Pernambuco, continuará a ser a terra de promis-
engenho para as Índias45. são para muitos. Em 157951 refere-se que Manuel Luís, mestre de açúcar, que exercera
O avanço do açúcar para sul ao encontro do habitat que veio gerar o boom da produção, deu-se o ofício na ilha estava agora em Pernambuco. Muitos mantêm contactos com a ilha,
nos anos imediatos ao descobrimento das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé. Todavia, só na última, pela nomeadamente quanto ao comércio de açúcar, é o caso de Francisco Álvares e João
disponibilidade de água e madeiras, os canaviais encontraram condições para a sua expansão. Deste Roiz52. Acontece que este movimento de operários especializados era controlado pelas
modo em 1485 a coroa recomendava a João de Paiva que procedesse à plantação de cana do açúcar. autoridades, no sentido de evitar a concorrência de outras áreas com o Brasil. Sucede
Para o fabrico do açúcar refere-se a presença de “muitos mestres da ilha da Madeira”46. É, alias, aqui que em 164753 Richarte Piqueforte vendera um escravo, “oficial de asucares”, a um mer-
que se pode definir o prelúdio da estrutura açucareira que terá expressão do outro lado do Atlântico. cador francês que o pretendia conduzir a S. Cristóvão. A coroa entendia que a saída não
A partir do século XVI a concorrência do açúcar das Canárias e S. Tomé apertou o cerco ao açú- deveria ser autorizada e que o escravo deveria ser adquirido e embarcado para o Rio de
car madeirense o que provocou a natural reacção dos agricultores madeirenses. Sucederam-se Janeiro às ordens do Provedor da Fazenda, para aí ser vendido.
queixas junto da coroa, que ficou testemunho em 152747. Em vereação reuniram-se os lavradores de Com tais condicionantes e colocados perante o paulatino decréscimo da produção
cana para reclamar junto da coroa contra o prejuízo que lhes causava o progressivo desenvolvi- açucareira na ilha, muitos madeirenses foram forçados a seguir ao encontro dos cana-
mento da cultura em S. Tomé. A resposta do rei, no ano imediato48, remete para uma análise dos viais brasileiros. Em Pernambuco e na Baia, entre os oficiais e proprietários de engen-
interesses em jogo e só depois, no prazo de um ano, seria tomada uma decisão, que parece nunca ho, pressente-se a forte presença madeirense. Alguns destes madeirenses se tornaram em impor- Ilha de S. Vicente(Santos-Brasil).
ter vindo. A exploração fazia-se directamente pela coroa e só a partir de 1529 surgem os particu- tantes proprietários de engenho como foi o caso de Mem de Sá, João Fernandes Vieira o libertador Luís Teixeira, finais do séc. XVI

lares interessados nisso. de Pernambuco. É a partir daqui que se estabelece um vínculo com a Madeira, continuado através
do trato ilegal de açúcar para o Funchal ou então ao mercado europeu com a designação da
Madeira. Este movimento seguia as ancestrais ligações entre os que do outro lado do Atlântico via
43 . Gaspar FRUTUOSO, Livro Quarto das Saudades da Terra, Vol. II, pp. 59, 209-212; V. M. GODINHO, ob. cit., Vol. IV, F. florescer a cultura e aqueles que na ilha ficavam sem os seus benefícios. Veja-se, por exemplo, o caso
Carreiro da COSTA, “A cultura da cana-de-açúcar nos Açores. Algumas notas para a sua História” in Boletim da Comissão
Reguladora do Comércio de cereais dos Açores, nº 10, 1949, 15-31.
44 Conquista de la Isla de Gran Canaria, La Laguna, 1933, p. 40;José PÉREZ VIDAL, Los Portugueses en Canarias.
Portuguesismos, Las Palmas, 1991; Felipe FERNANDEZ-ARMESTO, ob. cit., 14-19;Pedro MARTINEZ GALINDO, Protocolos 49 . Cf. Basílio de Magalhães, O Açúcar nos Primórdios do Brasil Colonial, Rio de Janeiro, 1953; David Ferreira de Gouveia, A
de Rodrigo Fernandez (1520-1526). Pimera parte, La Laguna, 1982, pp. 67, 84-90; Guilhermo CAMACHO Y PÉREZ GALDOS, Manufactura Açucareira Madeirense (1420-1550). Influência Madeirense na Expansão e Transmissão da Tecnologia Açucareira,
“El cultivo de la cana de azúcar y la industria azucarera en Gran Canaria (1510-1535) in AEA, nº 7, 1961, 35-38; Maria LUISA in Atlântico, Funchal, 1987, nº.10; Maria Licínia Fernandes dos Santos, Os Madeirenses na Colonização do Brasil, Funchal, 1999,
FABRELLAS, “La producción de azúcar en Tenerife” in Revista de História, nº 100, 1952, 454/475Gloria DIAZ PADILLA, e pp.46-60.
José Miguel RODRIGUEZ YANES, El Señorio en Las Canarias Occidentales..., Santa Cruz de Tenerife, 1990, p. 316. 50 . Alberto LAMEGO, “onde foi iniciado no Brasil a lavoura canavieira, onde foi levantado o primeiro engenho de açúcar” in B.
45. CF. José PEREZ VIDAL, “Canárias, el azúcar, los dulces y las conservas”, in II Jornadas de Estudios Canarios-America, Santa Açúcar, nº 32, 1948, pp. 165-168; Arquivo Geral da Alfândega de Lisboa, livro 54, fl. 41; Documentos para a História do Açúcar,
Cruz de Tenerife, 1981, p. 176-179. ed. I, A. A. Vol I, Rio de Janeiro, 1954, pp. 121-123, 5 de Outubro 1555; ARM, RGCMF, T. I, fl. 372vº.
46 . Isabel Castro Henriques, O Ciclo do açúcar em S. Tomé nos séculos XV e XVI, in Albuquerque, Luís de (dir.), Portugal no 51 . ARM, Misericórdia do Funchal, nº.711, fls.114-115: 7 de Março.
Mundo, Lisboa, sd, vol. I, pp.264-28o47. ARM, CMF, Vereações 1527, fl. 23vº, 26 de Março. 52 . ARM, JRC, fls. 391-396: 11 de Setembro de 1599.
48. ARM, D. A., nº 66: 8 de Fevereiro 1528. 53 . ANTT. PJRFF, nº.980, fls. 182-183: 3 de Setembro.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

de Cristóvão Roiz de Câmara de Lobos que em 1599 declara ter crédito em três mestres de açúcar Na expressão de Gilberto Freire a Madeira é “a irmã mais velha do Brasil… que se extremou em
de Pernambuco em cerca de cem mil réis de uma companhia que teve com Francisco Roiz e ternuras de mãe para com a terra bárbara que as artes dos seus homens, mestres da lavoura de cana
Francisco Gonçalves54. e da indústria de açúcar, concorreram… para transformar rápida e solidamente em Nova
Os dados, embora avulsos evidenciam a presença dos madeirenses em todas as capitanias aonde Lusitânia.”57
chegou o açúcar. São eles, purgadores, carpinteiros, mestres, mas também senhores de engenhos55.
Muitos arrastaram consigo a família, de modo que algumas se notabilizaram. É o caso dos LEME,
flamengos que fizeram da Madeira trampolim para a afirmação no Brasil56. A TRADIÇÃO CULTURAL E O AÇÚCAR.
MADEIRENSES NO BRASIL E A PRODUÇÃO DE AÇÚCAR- séculos XVI e XVII À expansão da cultura da cana-de-açúcar ligam-se tradições culturais europeio-africanas. Na ver-
dade a cana-de-açúcar propiciou o confronto da cultura europeia com a africana, sendo exemplo
NOME LOCAL SITUAÇÃO cabal as sociedades geradas em seu torno nas Antilhas e Brasil. No último espaço são evidentes os
Manuel Luís Pernambuco Mestre de Açúcar aspectos sincréticos que estão na origem à designação de Afro-brasileira, como provam os estudos
Antão Lene S. Vicente Proprietário de engenho de Gilberto Freire58 e Roger Bastide 59. Mas aqui insiste-se nas aportações culturais resultantes do
Vicente Leme S. Vicente Proprietário de engenho confronto com a população africana, conduzida como escrava para a safra do açúcar. Por outro lado
Paulo Dias Adorno S. Vicente Proprietário de engenho insiste-se que a expansão da cultura da cana-de-açúcar propiciou a divulgação de determinadas
Luís e Pedro Góis Paraíba do Sul C a r p i n t ea r o i s t d e r n g d h oe g n o
tradições lúdicas: representações teatrais e festivas. Está neste caso o “tchiloli” nome dado a peça
Francisco de Araújo Baia P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h
“A Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno”, atribuída ao madeirense
João Fernandes Vieira Pernambuco P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h
Baltazar Dias60. É uma peça teatral do ciclo carolíngio, muito representada no século XVI, que teria
Jacinto de Freitas da Silva Pernambuco P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h
sido levada para S. Tomé pelos plantadores e mestres de engenhos da Madeira. A tradição per-
António de Sá de Albuquerque Itamaracá P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h
petuou-se e ainda hoje se apresenta o “Tchiloli” para celebrar um acontecimento importante ou um
João de Velosa Baia P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h
dia santo. Na ilha Terceira persiste na actualidade as afamadas danças do Entrudo, que segundo
Gonçalo Rodrigues Baia C a r p i n t ea r o i d t er n g h oe s g n h
opinião de alguns estudiosos se filia na tradição do Bumba-meu-boi brasileiro. À volta disso esta-
Egas Moniz Pernambuco P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h
beleceu Luís Fagundes Duarte61 uma teoria que aponta para a existência de uma tradição lúdica Retrato de João Fernandes Vieira, publicado por Frei
Francisco Berenguer de Andrade Pernambuco P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h
canavieira, que acompanhou o percurso de expansão do açúcar no Atlântico, marcada por re- Rafael de Jesus, Castrioto Lusitano, Lisbpoa, 1679
João de Souto Paraíba P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h
presentações e danças de carácter dramático com “sabor” vicentino.
Olinda. Luis Teixeira, finais séc. XVI Francisco Fernandes P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h A par disso no Brasil algumas das folias que animavam os terreiros do engenho são um misto de
tradições europeias e africanas. Destacam-se o Bumba-meu-boi e o fadango. A primeira aproxima-
Perante a situação do mercado açucareiro atlântico e a melhor capacidade concorrencial doutras se da tradicional tourada, surgindo como forma de exaltação do negro e do boi, elementos funda-
áreas, o açúcar insular estava irremediavelmente perdido. Os canaviais foram desaparecendo pau- mentais da safra açucareira. A segunda é um auto popular do ciclo natalício que descreve a luta
latinamente das terras, dando lugar aos vinhedos. Apenas a conjuntura da segunda metade do sécu- entre o cristão e o mouro, numa clara alusão ao processo de reconquista peninsular. Do lado opos-
lo dezanove permitiu o retorno. Mas foram efémeras as tentativas para a produção de açúcar e to a estas tradições está a Congada, uma dança de senzala, definida pela coroação do rei do Congo,
mesmo assim só possível mediante uma política proteccionista. Os canaviais perderam a função de que tinha lugar em Maio (dia de São Benedicto) e Outubro (dia de Nossa Senhora do Rosário).
produtores do açúcar, o ouro branco dos insulares, mas em contrapartida favoreceram uma pro- Ainda no Brasil a economia açucareira gerou uma dinâmica sócio-cultural diversa, que deixou
dução alternativa de mel e aguardente. Hoje não mais se fala do ouro branco das ilhas, mas sim do
rum ou aguardente e mel, os herdeiros da cultura na Madeira e Canárias. 57 . Na Madeira. Impressões de um Brasileiro, in Alberto Vieira, Gilberto Freire e a Madeira, Diário de Notícias-Madeira, 15 de
Julho de 1987, p.2
58 . O texto mais famoso é Casa Grande e Senzala, 25ª edição, Rio de Janeiro, 1987 (1ª edição em 1933); Nordeste, Rio de
Janeiro, 1985 (1ª edição, 1937).
54 . Em 1579 (ARM, Misericórdia do Funchal, nº 711, fls. 114-115) Gonçalo Ribeiro refere ser devedor a Manuel Luís mestre de açú- 59 . As Américas Negras. As Civilizações Africanas no novo Mundo, S. Paulo, 1974; As Religiões Africanas do Brasil.
car, “que agora está em Pernambuco”. José António Gonsalves de MELLO, João Fernandes Vieira. Mestre de Campo do terço Contribuição a uma Sociologia das Interpretações de civilizações, S. Paulo, 1985.
da infantaria de Pernambuco, Vol. II, Recife, 1956, pp. 201-267. ARM, J.R.C., fls. 391-396: Testamento de 11 de Setembro de 1599. 60 . Albert, Christian, Le Tchiloli de Säo-Tomé un exemple de sbversion culturelle, Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, 1985.
55 . Cf. David Ferreira de Gouveia, ibidem, p.127. Sep. Les Litteratures Africaines de Langue Portugaise: a la recherche de l’indentite... das Actas do Colóquio, Paris, 28-30 Nov.-
56 . Cf. John G. Everaert, Les Lem, Alias Leme Une Dynastie Marchande d’ origine Flamande au Service de l´Éxpansion Dez. 1984 p. 437-444.
Portugaise, in Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1992, pp.817-838. 61 . Sobre as Danças de Carnaval da Ilha Terceira, in Ethnologia, nº.14, 1984, 49-56.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

rastros evidentes na literatura: o caso mais evidente é o de José Lins do Rego (1901-1957), que O açúcar, o vinho surgem na Madeira como produtos catalizadores da actividade sócio-económi-
escreveu um conjunto de romances a retratar o ciclo da cana-de-açúcar: Menino de Engenho (1932), ca madeirense e não como princípios geradores das cidades ou do espaço urbanizado. Foram ape-
Doidinho (1933), Banguê (1934), o Moleque Ricardo (1935), Usina (1936), Fogo Morto (1943) e nas os suportes financeiros necessários ao desenvolvimento e embelezamento do espaço urbano. Os
Meus Verdes anos 1956). No campo da poesia não podemos esquecer Ascenso Ferreira62 e João mestres que orientaram a construção do espaço urbanizado foram recrutados no reino e
Cabral de Mello Neto[1922-1999]63. Na Madeira esta vivência não entusiasmou a veia literária. enquadram-se nos padrões peninsulares de humanização do espaço. Por outro lado os monarcas
Apenas na actualidade o tema despertou o interesse de Horácio Bento de Gouveia, em Águas intervêm com assiduidade na política arquitectónica, enviando regimentos e planos sobre o modo
Mansas (1963), e João França em A ilha e o Tempo (1972). porque se deverá proceder à construção. Tenha-se em atenção as recomendações dadas por D.
Acontece, ainda que o quotidiano gerado pela exploração açucareira não ficou Manuel para a construção da cerca e muros conforme o sistema delineado em Setúbal. Por outro
apenas reduzido à Madeira e ao Brasil. Nas Caraíbas a presença da cana-de-açú- lado o mesmo monarca ao ordenar em 1485 a construção dos paços do concelho, da igreja, alfân-
car foi assídua, acabando por despertar a atenção de escritores, poetas e cantores. dega e praça, pretendia dar ao Funchal uma dimensão peninsular. Terá sido o espaço urbanizado
Em Cuba podemos referir o caso de Carolina Garcia Aguilera, com “Bitter à custa dos proventos do açúcar que conduziu à errada formulação dos princípios geradores do
Sugar” (NY.2001) e para a Martinica temos Raphael Confiant com urbanismo funchalense.
“Commandeur du Sucre” (Paris, 1994, 1999). No mundo de língua inglesa o tema Se tivermos em conta que a economia açucareira madeirense não assumiu a mesma proporção
foi também constante motivo de inspiração literária, como foi o caso de Barry da brasileira ou mexicana e que nas últimas áreas não se fala de urbanização do açúcar mas sim
Unsworth com “Sugar and Rhum” (NY.1988). das implicações sociológicas e arquitectónicas do produto teremos por anacrónica a definição no
A safra açucareira teve também implicações na política de urbanização do Funchal de uma cidade do açúcar. Confrontados os estudos sobre a história das cidades das demais
espaço rural, condicionando uma forma peculiar de ligação do espaço agrícola - ilhas atlânticas e do Novo Mundo, onde a cana-de-açúcar foi dominante, não encontrámos qualquer
industrial com as estruturas de mando e controlo social. A célebre trilogia rural, definição deste tipo para a malha arquitectónica urbana. Tenha-se como exemplo o caso de
tão bem definida por Gilberto Freire, teve o primeiro aparecimento aqui na Canárias onde é evidente no urbanismo também um extremo seguidismo aos cânones peninsu-
Madeira, sendo testemunho actual disso a célebre lombada de João Esmeraldo lares. Por isso não entendemos a forma despropositada como se tem defendido a existência no
(Ponta do Sol). Mas outros mais exemplos poderiam ser referenciados na ilha Funchal de uma cidade do açúcar. Do produto a única coisa que se poderá dizer é que a imagem
que, lamentavelmente, se estão perdendo. Talvez por estas implicações do açúcar ficou apenas nas armas da cidade a partir do século XVI, a que se juntou a videira no século
se define ao espaço rural, ou por outras razões que desconhecemos, se definiu dezoito. Não obstante o facto de aquele espaço, que é hoje o centro da cidade, ter sido no século
para o Funchal epítetos pouco expressivos da realidade. Assim a partir da publi- XV uma área de canaviais (o Campo do Duque), as alterações que se produziram a partir da déca-
Captura de escravos em África. cação do livro de António Aragão (1988) sobre a cidade do Funchal ficou estabelecido que ela era da de oitenta do século XV conduziram à adequação aos modelos arquitectónicos peninsulares. É
a “primeira cidade construída por Europeus fora a Europa” e dentro da malha urbana define uma a imposição lançada em 1485 sobre o vinho, surgiu única e exclusivamente com o intuito de criar
“cidade do açúcar” e outra “cidade do vinho”. Esta definição não colhe hoje argumentos a seu um fundo municipal para o “nobrecimento” da vila. Com isto não queremos excluir a função rele-
favor64. vante dos proventos arrecadados pela economia açucareira na valorização do património urbano,
Nas pesquisas promovidas nos Açores, Canárias, Brasil e Antilhas, ninguém, até hoje, teve a mas apenas referenciar que não houve uma ligação directa entre ambas as situações.
ousadia de avançar com semelhante perspectiva reducionista da realidade arquitectónica e urbana. Em boa verdade se diga, que o recinto urbano, que emerge a partir da década de sessenta entre
Todos são unânimes em afirmar a adaptação do modelo europeu às condições geo-humanas dos as ribeiras de João Gomes e Santa Luzia e, depois, para além da última, foi o princípio da futura
novos espaços e a forte vinculação às directivas régias e à mão-de-obra especializada da península. cidade, dominada pelos mercadores do açúcar. As residências de João Esmeraldo, de D. Mécia, do
O desenvolvimento económico, assente na produção ou comércio de certos produtos surge em capitão do donatário, bem como os conventos (Encarnação, S. Francisco e Santa Clara) e igrejas
todas as áreas, não como factor definidor da traça urbana e arquitectónica, mas sim como meio65. (Sé, Capela dos Reis Magos, Madre de Deus e matrizes de Machico, Ponta do Sol, Calheta e Ribeira
Brava) foram erguidas e embelezadas artisticamente a partir dos proventos acumulados com a safra
62 . Ferreira, Ascenso Carneiro Gonçalves, Poemas (1922-1953), Recife: Nery da Fonseca, 19—; IDEM, Canna caianna: versos, Recife
do açúcar. Mas uma coisa é o açúcar ser fonte de receita, participante do processo e outra é o resul-
: Empreza Diário da Manhã, 1939. tar daí implicações urbanísticas e plásticas. Na verdade, a vila que é elevada em 1508 à categoria
63 . Poesia completa 1940-1980, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986 de cidade, deve apenas ser considerada como a cidade dos mercadores de açúcar e nunca a cidade
64 . Para a História da Cidade do Funchal. Pequenos Passos da sua Memória, Funchal, 1979; IDEM, As Armas da Cidade do
Funchal, Funchal, 1984; idem, Alguns Tópicos para a Classificação Urbanística da Madeira, Islenha, nº.9, Funchal, 1991
do açúcar.
65 . R. M. Morse, Introducción a la Historia Cubana de Hispanoamerica, in Estúdios sobre La Ciudad Iberoamericana, Madrid,
1983; J. E. Hardoy, El Modelo Colonial Hispanoamericana, Buenos Aires, 1968; Idem, Las Formas Cubanas europeas Durante
los Siglos XV al XVII y su Utilizacion en América Latina, in Urbanización y Proceso Social en América, Lima, 1982.

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agricultura
MADEIRENSE
75
Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Apanha da cana. 2002

Gravura.
Século
XIX, Casa
Museu
Frederico
de Freitas.

A ECONOMIA DA MADEIRA E A EVOLUÇÃO DO QUADRO NATURAL

Nos primeiros momentos de ocupação do solo, o vinho, o trigo, e, depois, o açúcar, surgiram
como elementos aglutinadores de uma peculiar vivência com inevitáveis implicações políticas e
urbanísticas. Os primeiros materializaram a necessária garantia das condições de subsistência e do
ritual cristão, enquanto o ultimo encerrou a ambição e voracidade mercantil da nova burguesia
europeia que fez da Madeira o principal pilar para afirmação na economia atlântica e mundial. O
processo é irreversível de modo que, em consonância com os movimentos económicos, se sucedem
em catadupa produtos, com valor utilitário para a sociedade insular, ou com capacidade adequada
para activarem as trocas com o mercado externo. Se na primeira fase o domínio pertenceu à
economia agrícola, no segundo, que se aproxima da nossa vivência, reparte-se entre serviços, indús-
trias artesanais (vimes e bordado) e novos produtos agrícolas.
O enquadramento e afirmação económica não são pacíficos, sendo feito de embates perma-
nentes entre a necessária manutenção de subsistência e da animação comercial externa. Do afronta-
mento resultou a afirmação, num ou noutro momento, do produto que adquire maior pujança e
número de defensores na dinâmica. É nesta luta permanente de produtos de subsistência familiar,
local e insular com os impostos pela permanente solicitação externa que se alicerçou a economia
da ilha até ao limiar do século XIX. Os produtos serão os pilares mais destacados para a com-
preensão da realidade socio-económica madeirense, ao longo dos últimos quinhentos anos, com
reflexos inevitáveis na actualidade.
A tradição mediterraneo-atlantica, que define a realidade peninsular, repercute-se, inevitavel-
mente na estrutura agrária do Novo Mundo e por consequência no impacto ecológico que acom-
panha a expansão atlântica. Da Europa saíram as sementes, utensílios e homens que lançaram as
bases da nova vivência insular e atlântico, mas também aí se situavam as principais solicitações e
orientações. A par disso o confronto com as novas realidades civilizacionais americanas e indicas
contribuiu para um paulatino desencravamento planetário da ecologia e cardápio dos séculos XVI
e XVII, com inevitáveis repercussões na economia e hábitos alimentares do europeu.
A Europa contribuiu com os cereais (centeio, cevada e trigo), as videiras e as socas de cana,
enquanto da América e Índia aportaram ao velho continente o milho, a batata, o inhame, o arroz

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

e uma variada gama de árvores de fruto. Neste contexto as ilhas atlânticas, pela posição charneira Mais do que uma revolução ecológica, assiste-se a uma humana e técnica. Se as condições eco-
no relacionamento entre os mundos, surgem como viveiros da aclimatação de produtos às novas sistemicas favoreceram a transplantação das primeiras sementes, ao homem estava reservada a
condições eco-sistémicas. A Madeira deteve uma posição importante, afirmando-se no século XV mais espinhosa e hábil tarefa. Primeiro ergueram os socalcos (poios), depois adaptaram as técnicas
como o viveiro experimental das culturas que a Europa pretendia implantar no Novo Mundo - os e as alfaias agrícolas aos condicionalismos do novo espaço cultivado. A testemunhar tudo isso per-
cereais, o pastel, a vinha e a cana-de-açúcar. duram os poios, ladeados de levadas, que bem podem ser considerados entre as principais realiza-
A expansão europeia, que desde o século XV veio revolucionar o cardápio europeu, enriqueceu- ções do homem sobre a terra. A homenagem deverá ser concedida ao cabouqueiro, colono que
se, aumentando a gama de produtos e condimentos. A tradição culinária europeia foi destronada recebe das principais gentes da ilha o encargo de valorizar economicamente as parcelas que as rece-
pelo exotismo das novas sensações gustativas que acabaram por afeiçoar o paladar. Mas, até que beram como benesse. O investimento da capacidade de trabalho terá justificação jurídica nas
isso se generalizasse, foi necessário conduzir aos locais mais recônditos o cereal e o vinho. Assim, chamadas benfeitorias, que englobavam paredes, casas de habitação, lagares ou lagariças, arvores
as embarcações que sulcavam o oceano levavam nos porões, para alem das manufacturas e bugi- de fruto, latadas, etc. é, assim, o colono que lança as bases da revolução tecnológica e agrícola e um
gangas aliciadoras das populações autóctones, inúmeras pipas de vinho e barris de farinha ou bis- dos principais obreiros da harmoniosa paisagem rural os proprietários preferiam os bulício ribei-
coito. rinhos da cidade ou do burgo que tentam erguer, fazendo com que a arquitectura e viver quotidi-
Se o cereal poderá encontrar similar, como o milho e a mandioca, o mesmo não acontecia com ano se adaptassem a medida volume dos reditos acumulados com o comércio do açúcar e vinho.
o vinho que era desconhecido e incapaz de se adaptar as novas condições mesológicas oferecidas Estava-lhes reservado o usufruto da vida no espaço urbano, empenhados que estavam nas lides
pelas colónias europeias. Desta forma o vinho foi conduzido da Europa ou ilhas, onde se afirma administrativas ou entretidos nos jogos de pela e canas.
com esta finalidade aos mais recônditos espaços em que se fixou o europeu. Era o inseparável com- Um dos aspectos mais salientes das ilhas é estamos perante espaços limitados, que condicionam
panheiro dos mareantes, expedicionários, bandeirantes e colonizadores. Aos primeiros servia de e são influenciados de forma evidente pela presença humana. O processo económico quando
antídoto ao escorbuto, aos segundos saciava a sede, enquanto aos últimos servia como recordação assume uma posição de sucesso mercê da inserção no mercado mundial provoca obrigatoriamente
ou devaneio hilariante da terra mãe. O vinho é um dos principais traços de união das gentes uma forma de exploração intensiva que acabe inevitavelmente por provocar o desequilíbrio entre
europeias na gesta de expansão além Atlântico. aquilo que possibilita o quadro natural e o que o Homem exige dele.
No imaginário e devir histórico madeirense paira sempre a visão tripartida da faina agrícola: o A exploração económica faz-se de forma intensiva e de acordo com as solicitações de um mer-
vinho e o cereal que a tradição impõe como necessários ao quotidiano espiritual e alimentar, o açú- cado exterior, agravando o afrontamento com o quadro natural e arrastando-o para uma situação
car que se afirma como provento excedentário capaz de atrair a atenção dos mercados europeus e de total degradação. Um breve relance pelos testemunhos historiográficos dos séculos XV e XVI
Gravuras do século XIX. de trazer a ilha as manufacturas que necessita. Esta harmónica trifuncionalidade produtiva pela reforça a realidade. O primeiro a testemunhar esta deterioração dos solos frutos de um cultivo
Colecção da Casa Museu Frederico de Freitas extrema dependência as dinâmicas e directrizes europeias esteve sujeita a diversos sobressaltos que intensivo surge já em meados do século XV com Cadamosto: “As suas terras costumavam dar a
contribuirão para uma desmesurada desarticulação do quotidiano e economia madeirenses. Assim, princípio, sessenta por um, o que presentemente está reduzido a trinta e quarenta, porque se vão
a concorrência do aguçar americano lança o pânico na ilha e obriga a uma necessária afirmação da deteriorando dia a dia “68. A situação resultou da solicitação do cereal para abastecer as cidades do
cultura da vinha, cujo derivado, o vinho, se afirmou como a moeda de troca, substitutiva do açúcar. reino e praças africanas.
A precariedade da economia madeirense não deriva apenas da posição dependente em relação Rapidamente o cereal cedeu lugar aos canaviais que em pouco tempo dominaram todo o espaço
ao velho continente, mas radica-se também nas diminutas possibilidades de usufruto dos 741 Km2 agrícola. A indústria que se promoveu na retaguarda para o fabrico do açúcar exigiu muito do
de superfície da ilha. O lançamento e afirmação de uma sociedade em moldes europeus dependem quadro natural, lançando a ilha para um processo de desflorestação de consequências impre-
sempre das possibilidades de afirmação simultânea deste conjunto de produtos, motores da expan- visíveis. A situação arrastou o solo agrícola da ilha para a quase total exaustão. Em 1689 John
são atlântica e da europeização do espaço insular. Todos os autores coevos são unânimes em afir- Ovington testemunha de forma lapidar a realidade: “A fertilidade da ilha decaiu muito relativa-
mar a apetência da ilha para satisfazer as expectativas dos primeiros povoadores. Assim o enuncia mente ao período das primeiras culturas. A cultura sem descanso dos terrenos tornou os fracos
Gaspar Frutuoso que “a terra foi mostrando seus frutos e dando a fama deles no regno, e enobre- espaços em muitos lugares e de tal modo que os abandonam periodicamente, tendo de ficar de Gravuras do século XIX.
cendo-se com moradores ricos”66. Esta inaudita riqueza foi o motor do sucesso do povoamento da poisio três ou quatro anos. Depois desse tempo, se não crescer nenhuma giesta como sinal de fer- Colecção da Casa Museu Frederico de Freitas

ilha, tal como nos elucida o mesmo autor: “crescendo e multiplicando seus frutos, assim iam tilidade futura, abandonam-nos, com estéreis. A actual aridez de muitas das suas terras atribui
crescendo as povoações e moradores com a fama de sua fertilidade.”67 simploriamente ao aumento dos seus pecados”69.

66 . Livro Segundo das Saudades da Terra, P. Delgada, 1979, p. 96. 68 A. Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, pp. 36-37
67 . Ibidem, p. 97 69 Ibidem, p. 201.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

A vinha e o vinho assumem particular destaque na caracterização do processo histórico doçaria e casquinha madeirenses fizeram com que a cultura dos canaviais se mantivesse por largos
madeirense ao longo destes quase seiscentos anos de labuta. Desde os primórdios da ocupação da anos atingindo, em momentos de crise nos mercados americanos, alguma pujança. Mas, irremedi-
ilha até a actualidade a cultura manteve a mesma vivacidade na vida agrícola e comércio da ilha. avelmente condenada a elevada rentabilidade da cultura, o madeirense foi forçado a canalizar
Dos mais não houve capacidade suficiente para resistir a concorrência desenfreada de novos e todas as atenções para as vinhas, fazendo-as assumir o espaço abandonado pelas socas de cana. Os
potenciais mercados, fornecedores aquém e além-mar. Os cereais tiveram saque fácil nos Açores, canaviais deram lugar às latadas e os engenhos aos lagares e armazéns. A mudança na estrutura
Canárias, Europa e, depois América, sofrendo, mais tarde, a concorrência do abundante fornece- produtiva provocou alterações na dinâmica económica da ilha. O açúcar definia apenas um com-
dor americano. Apenas o vinho resistiu a concorrência do dos Açores, Canárias, Europa e Cabo da plexo industrial, o engenho, onde decorria a respectiva safra. O vinho necessitará de dois espaços
Boa Esperança, mantendo o tradicional grupo de apreciadores no velho e novo Mundo. distintos. O lagar onde as uvas dão lugar ao saboroso mosto e os armazéns da cidade onde este fer-
No princípio da ocupação da ilha as necessidades do cardápio e ritual cristão comandaram a menta e é preparado para atingir o necessário aroma e bouquet. O agricultor, colono ou não, detém
selecção das sementes que acompanharam os primeiros apenas o controle da viticultura, ficando reservado ao mercador o moroso processo de vinificação.
povoadores. As do precioso cereal acompanharam os Por mais de dois séculos a vinha e o vinho surgem como os principais aglutinadores das actividades
primeiros cavalos de cepas peninsulares no processo de económicas da ilha, dando ao meio rural e urbano desusada animação. O Funchal cresceu em
transmigração vegetativa. A fertilidade do solo, resultante do monumentalidade e as principais famílias reforçaram a posição económica.
estado virgem e das cinzas fertilizadoras das queimadas, fize- A conjuntura da primeira metade de oitocentos, demarcada pelos conflitos europeus, guerra de
ram elevar a produção a níveis inatingíveis, criando exce- independência das colónias, associada aos factores de origem botânica (oidio-1852, filoxera-1872)
dentes que supriram as necessidades de mercados carentes, conduziu ao paulatino degenerescimento da pujança económica do vinho. Como corolário suce-
como foi o caso de Lisboa e praças do norte de África. deram-se as fomes, nos anos quarenta, e a sangria emigratória nas décadas de 50 e 80, para o con-
Até a década de setenta a Madeira firmou a posição de tinente americano, onde o madeirense foi substituir o escravo nas plantações. Por um período de
celeiro atlântico, perdendo-a, depois em favor dos Açores mais de setenta anos a confusão institucional e económica alarga-se ao domínio social e alimentar.
que emergem desde então, com uma posição dominante na Assim, sucedem-se novos produtos de importação do Novo Mundo que ganham
política e economia fragmentária do Atlântico. Na Madeira uma posição de relevo na culinária madeirense. Destes destacam-se o inhame e a
inverte-se a situação; a ilha de área excedentária passou a batata. A par disso definem-se políticas de reconversão e ensaios de novos pro-
uma posição de dependência em relação ao celeiro açoriano, dutos com valor comercial (tabaco, chá,...).
canário e europeu. O estabelecimento de uma rota obri- A emigração oitocentista e no período após a Segunda Guerra Mundial foi
gatória, a partir do fornecimento de cereal açoriano à responsável por um acentuado processo de desertificação do interior da ilha, o
Madeira, criou as condições necessárias à afirmação da cul- que arrastou muitas terras para o abandono. Era o início de um pousio necessário
tura da cana sacarina, produto tão insistentemente solicitado para aquelas, esgotadas com a exploração intensiva das culturas de subsistência e
no mercado europeu. O empenho do senhorio e coroa na cul- exportação. As políticas de reflorestação em ambos os momentos permitiram o
Gravuras do século XIX. tura do novo produto conduziu a afirmação preferencial de uma nova vertente da economia atlân- aumento da mancha florestal, sem conflito com a actividade agrícola.
Colecção da Casa Museu Frederico de Freitas
tica e insular. A partir de então os interesses mercantis dominaram a vida agrária madeirense. Na Em pleno apogeu da indústria vinhateira tivemos a afirmação de um novo sec-
ilha as searas deram lugar aos canaviais, enquanto as vinhas mantiveram-se de modo insistente tor de serviços. Na segunda metade do século XVIII a ilha assumiu um outro
numa posição de destaque. papel. Alguém terá dito que os iniciais promotores do turismo insular foram os
Se o cereal pouco contribuía para aumentar os reditos dos intervenientes o mesmo não se poderá gregos, mas os primeiros turistas foram, sem dúvida, ingleses. Os gregos cele-
dizer em relação ao açúcar e vinho que contribuíram para o enriquecimento das gentes da ilha. A braram, na sua prolixa criação literária, as delícias das ilhas situadas além das col-
própria coroa e senhorio fizeram depender grande parte do financiamento das despesas ordinárias unas de Hércules. Os arquipélagos da Madeira e Canárias são mitologicamente
desta fonte de receita. A par disso o enobrecimento da vila, mais tarde, cidade do Funchal fez-se à considerados a mansão dos deuses, o seu jardim das delícias, onde eles convivem
custa destes dinheiros. O Funchal avançou para poente e adquiriu fama de novos e potenciais mer- com os heróis da mitologia. Foram os ingleses, ainda que muito mais tarde, a desfrutar desta Gravuras do século XIX.
cados. Todavia, a opulência foi de vida efémera. Desde a terceira década do século XVI o açúcar ambiência paradisíaca, reservada aos deuses e heróis, escolhendo-as como rincão de permanência, Colecção da Casa Museu Frederico de Freitas

madeirense é destronado da posição cimeira no mercado europeu, perdendo a preferência em favor breve ou prolongada. Diz-se até que a primeira viagem de núpcias, embora ocasional, terá sido pro-
do canário ou brasileiro, de menor qualidade, mas que ais aparecem com preços mais baratos. tagonizada por um casal inglês. Mais uma vez a lenda que ficou conhecida como de Machim. Na
A persistência de alguns lavradores, a celebridade da superior qualidade e a solicitação pela verdade, foi a visão mítica, perpetuada nos relatos antigos ou reavivada nos testemunhos coevos,

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que motivou o desusado interesse do inglês pelas belezas aprazíveis da Madeira. A Europa oferecia que a ilha oferecia a todos que se deixavam envolver no seio é de salientar a importância que assu-
ao aristocrata britânico demasiados motivos para o “grand tour” cultural. miu desde que em princípios do século XV foi revelada aos portugueses. Primeira terra descober-
O ilhéu, autêntico cabouqueiro e jardineiro do rincão, estava por demais embrenhado na árdua ta e revelada em todos os encantos acabou por assumir um papel fundamental no contexto da
tarefa de erguer paredes e arrotear os poios, e por isso mantinha-se alheio às delícias. Para ele a expansão europeia no Atlântico. Aqui aportaram os primeiros europeus e aquilo que identifica o
beleza agreste dos declives não passava de mais um entrave na luta contra a natureza. Enquanto o mundo natural destes bravos aventureiros. A descoberta é também um acto de transformação do
madeirense cavava e traçava os poios o inglês entretinha-se nos passeios a cavalo ou em rede pelos meio natural, adaptado às exigências dos novos habitantes. A arca de Noé acompanha os nave-
mais recônditos locais da ilha. A verdadeira descoberta da Madeira foi obra dos ingleses. Mas foi gadores-povoadores e faz com que tudo se transforme num ápice.
o português descobriu apenas o caminho para cá chegar. O acto dos descobrimentos europeus não é apenas uma forma de afirmação do mundo europeu
no novo mundo, que vai do Atlântico ao Pacífico, mas também uma descoberta do meio natural.
Flores, plantas, animais exercem um fascínio especial na prosa destes aventureiros e, por vezes,
homens de ciência. Primeiro os animais exóticos, que afluem à Europa como troféu. Depois as plan-
A CANA-DE-AÇÚCAR E MEIO AMBIENTE tas que assumem valor económico73. Feitas as contas a permuta foi favorável ao europeu. A cana-de-
açúcar, vinha, cereal e alguns legumes serviram de troca ao cacau, café, tabaco e a inúmeros frutos,
sementes e raízes exóticas que rapidamente nos conquistaram. Em ambos os sentidos os protago-
“Islands seem always to have occupied a significant place in the environmental imagination of nismo das ilhas nesta permuta foi deveras relevante. O chão das ilhas oferece condições especiais
man” (D. Worster, Nature’s economy. A History of Ecological ideas, Cambridge, 1977, p. 115) para aclimatação. Mais uma vez a posição geográfica e o papel que jogam nos diversos momentos
das relações da Europa com as colónias foi fundamental para a função das ilhas como jardins de
As ilhas são um universo à parte. São resultado do fascínio das lendas e dos sonhos em todos os aclimatação.
tempos. Desde a Antiguidade que as ilhas Atlânticas são as protagonistas disso. Ilhas de utopia ou Conhecer o mundo das ilhas, em mais de cinco séculos de História, é o mesmo que acompanhar
de sonho acabam por se revelar de forma extasiada aos navegadores do século XV. A literatura de a par e passo o devir da expansão europeia e o processo de mundanização da economia que o
Antiguidade clássica mediterrânica fez do Atlântico o lugar de sonho e ilusão. Aí fez nascer ilhas mesmo provocou. Também deverá ter-se em conta que esse protagonismo atingiu o campo da
paradisíacas. Os jardins das Hespérides, como também se desfizeram algumas, como a testemunha Ciência, nomeadamente do relacionamento do Homem com o meio envolvente. O interesse pelo
a mítica atlântica. Foi este fascínio que acompanhou os navegadores peninsulares que desde o sécu- conhecimento do mundo envolvente, desde a Fauna à Flora, cativou também os insulares de modo
Gravura. Século XIX.
lo XIV as demandaram obstinados pela conquista e ocupação. O objectivo era trazer o paraíso ao que toda a realização das ilhas está intimamente ligada ao processo. Gravura de W. Combe, 1821.
Colecção Casa-Museu Frederico de Freitas seu mundo e fazer dele a morada. A ilusão, a obstinação do paraíso bíblico domina a chegada dos Colecção Casa-Museu Frederico de Freitas
navegadores portugueses às ilhas, como Colombo às Antilhas e os colonos de Mayflower às costas
americanas70. ROTAS DE MIGRAÇÃO: HOMENS, PLANTAS E MERCADORIAS.
A chegada é considerada um acto de reconciliação. O homem regressa ao paraíso da bíblia71. O
mesmo pensamento domina a passagem dos cientistas europeus, nomeadamente britânicos, pela A valorização do Atlântico nos séculos XV e XVI conduziu ao traçado de rotas de navegação e
ilha a partir do século XVIII. As expedições científicas imbricam-se de forma directa no traçado comércio que ligavam o Velho Continente ao litoral atlântico. A multiplicidade de rotas resultou
das rotas comerciais que ligavam as metrópoles às colónias72. A ilha da Madeira assumiu de novo das complementaridades económicas e formas de exploração adoptadas. Se é certo que estes vec-
um desusado protagonismo. O paraíso é sinónimo de conhecimento e investigação. A Europa ma- tores geraram as referidas rotas, não é menos certo que as condições mesológicas do oceano, domi-
culada e perdida pela presença humana procura nestes rincões refazer o paraíso perdido. nadas pelas correntes, ventos e tempestades, delinearam o rumo. As mais importantes e duradouras
Repetem-se os epítetos vindos da pena de cientistas e literatos. A ilha conquista-os pelas de todas as traçadas foram sem dúvida as da Índia e Índias que galvanizaram as atenções dos
condições que oferece. O clima ameno faz dela uma escala retemperada para a cura da tísica pul- monarcas, da população europeia e insular e também dos piratas e corsários.
monar ou na da incessante busca dos segredos que esconde a Mãe-Natureza. Para além do fascínio A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação em que
se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois, utilizado, em larga
70 Barbara Novak, Nature and Culture-american landscape painting. 1825-1875, N. Y., 1980, p.4, 18; Richard Grove, Ecology, cli-
mate and Empire. Studies in colonial environmental. History 1400-1940, Cambridge, 1997, p.184.
71 J. Prest, The Garden of Eden: The Botanic Garden and the Re-creation of Paradise, New Haven, 1981. 73 Cf. José E. Mendes Ferrão, A Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1992; António Luís Ferronha,
72 Cf. David Arnold, The Problem of Nature: environment, culture and European Expansion(new perspectives on the past), Oxford, Mariana Bettencourt e Rui Loureiro Alfredo, A Fauna Exótica dos Descobrimentos, Lisboa, 1993; Margarido, As Surpresas da
1996, p.165 Flora no Tempo dos Descobrimentos, Lisboa, 1994.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago foi, assim, o centro de irradi-
ação dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo atlântico: primeiro os Açores,
depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram. Daqui resultou
para a Madeira o papel fundamental de difusão das culturas existentes na Europa e que tinham
valor para assegurar a subsistência ou a exportação. Com a revelação de novos espaços do Atlântico
e Índico tivemos o retorno de novas culturas e produtos que vieram enriquecer o cardápio europeu.
E de novo as ilhas da Madeira e Cabo Verde voltaram a assumir papel disseminador74.
Gravuras.sécu O MADEIRENSE E O MEIO NATURAL
lo XIX. Em qualquer dos momentos assinalados as ilhas cumpriram o papel de ponte e adaptação da
Colecção
Casa-Museu
flora colonial. Os jardins de aclimatação foram a moda que na Madeira e Açores tiveram por palco
Passamos a grande ilha da Madeira
Frederico de as amplas e paradisíacas quintas. O Marquez de Jácome Correia75 identifica para a Madeira as quin-
Freitas Que do muito arvoredo assim se chama
tas do Palheiro Ferreiro e Magnólia como jardins botânicos. São viveiros de plantas, hospital para
Das que povoamos a primeira
acolher os doentes da tísica pulmonar e outros visitantes. O deslumbramento acompanhou o inte-
mais célebre por nome que por fama
resse científico e os dois conviveram lado a lado nas inúmeras publicações que o testemunham no
(…)
século XIX
(Camões, Lusíadas, est.5, canto V, 1613)
No traçado das rotas oceânicas situava-se o Mediterrâneo Atlântico com um papel primordial na
manutenção e apoio à navegação atlântica. As ilhas da Madeira e Canárias surgiram nos séculos
Da leitura dos clássicos e da produção historiográfica recente releva-se uma situação particular
XV e XVI como entrepostos do comércio no litoral africano, americano e asiático. Os portos prin-
que toca de novo o arquipélago da Madeira. A Madeira não se posiciona apenas nos anais da
cipais da Madeira, Gran Canaria, La Gomera, Hierro, Tenerife e Lanzarote animaram-se de forma
História universal como a primeira área de ocupação atlântica, pioneira na cultura e divulgação do
diversa com o apoio à navegação e comércio nas rotas da ida, enquanto nos Açores, com as ilhas
açúcar ao Novo Mundo.
de Flores, Corvo, Terceira, e S. Miguel, foram a escala necessária e fundamental da rota de retorno.
A expansão europeia não se resume apenas ao encontro e desencontro de Culturas, mas tam-
A posição demarcada do Mediterrâneo Atlântico no comércio e navegação atlântica fez com que
bém marca o início de um processo de transformação ou degradação do meio ambiente. O europeu
as coroas peninsulares investissem aí todas as tarefas de apoio, defesa e controle do trato comercial.
carrega consigo a fauna e flora do convívio e com valor económico, que irão provocar profundas
As ilhas foram os bastiões avançados, suportes e os símbolos da hegemonia peninsular no
mudanças nos novos ecossistemas. Com isto acontece que o espaço vivido e natureza se universa-
Atlântico. A disputa pela riqueza em movimento no oceano fazia-se na área definida por elas e
lizam. Nos séculos XV e XVI foram as viagens de descobrimento, enquanto no século XVIII suce-
atraiu piratas e corsários ingleses, franceses e holandeses, ávidos das riquezas em circulação. Uma
deram as de exploração e descoberta da natureza, comandadas por ingleses e franceses.
das maiores preocupações das coroas peninsulares foi a defesa das embarcações das investidas dos
A Madeira foi o viveiro de aclimatação nos dois sentidos. Da Europa propiciou a transmigração
corsários europeus. A área definida pela Península Ibérica, Canárias e Açores foi o principal foco
da fauna e flora identificada com a cultura ocidental. No retorno foram as plantas do Novo Mundo
de intervenção do corso europeu sobre os navios que transportavam açúcar ou pastel ao velho con-
que tiveram de novo passagem obrigatória pela ilha. A riqueza botânica do Funchal resulta disso. Gravuras.século XIX. Colecção Casa-Museu Frederico
tinente. de Freitas
O processo de imposição da chamada biota portátil europeia, no dizer de Alfred Crosby, foi
responsável por alguns dos primeiros e mais importantes problemas ecológicos. Quem não se lem-
bra da praga dos coelhos do Porto Santo? Que dizer do incêndio que lavrou na ilha durante sete
anos?
Outro facto, também insistentemente referido, é o da própria ilha da Madeira. O nome foi o
atributo para referenciar a abundância e aspecto luxuriante do bosque. Mas em pouco tempo, as
queimadas para abrir clareiras de cultura e habitação, o desbaste para fruição das lenhas e
madeiras, fizeram-na desmerecer tal epíteto. Da Madeira quase só ficou o nome…!
A tradição refere que os navegadores portugueses atearam um incêndio à densa floresta para
poder penetrar, mas este ganhou tais proporções que os atemorizou. Foram sete anos de chama
74. Cf, G. Lapus, Les Produits Coloniaux d’Origine Végétale, Paris, 1930; J. E. Mendes Ferrão, Transplantação de Plantas de acesa, diz a tradição. Todavia, hoje ninguém acredita na versão divulgada por Francisco Alcoforado
Continentes para Continentes no Século XVI, Lisboa, 1986; IDEM, A Difusão das Plantas no Mundo através dos e repetida em Cadamosto e outros autores da época, que a ser verdade teria reduzido a ilha a
Descobrimentos, in Mare Liberum, nº. 1, 1990, 131-142; IDEM, A Aventura das Plantas, Lisboa, 1992.
75. A Ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p.173, 178 carvão. A situação expressa uma realidade que pautará a expansão europeia e que só nos últimos

84 85
anos tem cativado a atenção do historiador. Tudo isto
tem origem num produto devorador que conquista a
economia de mercado e que pautou a evolução da
economia atlântica a partir do século XV. O carrasco
é o açúcar. A disponibilidade só é possível com o
processo de degradação do meio que viu nascer os
canaviais.
A Europa parte no século XV à procura do Éden,
bíblico ou descrito na literatura clássica greco-
romana. Foi um dos motivos do empenho de
Colombo, mas também dos navegadores portugue-
ses. O reencontro era encarado como uma concili-
ação com Deus o apagar do pecado original de Adão
e Eva. A imagem persegue quase todos os nave-
gadores quinhentistas e deverá estar por detrás do
empenho daquelas que aportaram à Madeira. Tenha-
se em conta que as duas primeiras crianças nascidas
na ilha, filhas de Gonçalo Aires Ferreira tiveram
nomes bíblicos de Adão e Eva. Era o retorno ao
Éden, que aos poucos foi sendo perdido, tal como
sucedera aos primogénitos Adão e Eva. A recupe-
ração desta imagem acontecerá mais tarde no século
XVIII em que a ilha é de novo o paraíso redescober-
to para o viajante ou tísico ingleses, recuperado e re-
velado ao cientista, seja ele inglês, alemão ou francês,
através das recolhas ou da recriação através dos
jardins botânicos.

87
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Canas.2002 A cana-de-açúcar poderá ser considerada, com propriedade, como a cultura agrícola mais impor-
tante da História da Humanidade, pois provocou o maior fenómeno em termos de mobilidade
humana, económica, comercial e ecológica. A afirmação como cultura agrícola é milenar e abrange
vários quadrantes do planeta. É de todas as plantas domesticadas pelo Homem aquela que acarreta
maiores exigências. Quase que escraviza o homem esgota o solo, devora a floresta e dessedenta os
cursos de água. A exploração intensiva desde o século XV gerou grandes exigências em termos de
mão-de-obra, sendo responsável pelo maior fenómeno migratório à escala mundial que teve por
palco o Atlântico: a escravatura de milhões de africanos. Ligado a tudo isso está também um con-
junto variado de manifestações culturais que vão desde a literatura, à música e à dança.
Foi o Oriente descobriu a doçura, tendo a Papua Nova Guiné como Berço. Os árabes fizeram-
no chegar ao ocidente e foram os principais arautos da expansão. Genoveses e venezianos encar-
regaram-se do comércio na Europa. Mas é nas ilhas que ela encontrou um dos principais viveiros
de afirmação e divulgação no Ocidente: Creta e Sicília no Mediterrâneo, Madeira, Açores,
Canárias, Cabo Verde e S. Tomé no Atlântico Oriental Puerto Rico, Cuba, Jamaica, Demerara (…)
nas Antilhas.
A realidade sócio-económica que serve de suporte ao açúcar diferencia-se no percurso do
Pacífico/Índico para o Mediterrâneo/Atlântico. Assim, no primeiro caso não assume a posição
dominante na economia, primando pelo carácter secundário, enquanto no segundo é patente o
efeito dominador na economia e sociedade/associação ao escravo, que começa no Mediterrâneo e
se reforça no Atlântico.
A cana, tal como afirma Josué de Castro, é autofágica. A realidade histórica dos últimos cinco
séculos, em que assumiu um estatuto de produção em larga escala, assim o confirma. Aquilo que
aconteceu na Madeira dos séculos XV e XVI repetiu-se nas Canárias, Caraíbas e só não atingiu
idênticas proporções no Brasil, porque a mata atlântica era extensa. Os problemas, embora surgis-
sem mais tarde, também tiveram lugar. Gilberto Freire afirma que “o canavial desvirginou todo
A CANA-DE-AÇÚCAR DEVORA A PAISAGEM esse mato grosso de modo mais cru pela queimada. A cultura da cana… valorizou o canavial e
tornou desprezível a mata”. O processo é simples. Para plantar a cana derruba-se ou queima-se a
“Dificilmente se encontrarão formas de utilização dos recursos dos solos que se possam floresta. Depois para fabricar o açúcar a floresta faz falta para manter acesa a chama dos engenhos,
rivalizar com a agro indústria canavieira quanto à capacidade de condicionar um tipo de ou construir as infra-estruturas. A cana tem na floresta o maior amigo e inimigo. Um exemplo ape-
sociedade e de economia, de modelar um tipo de paisagem e de estruturar um tipo de arranjo nas evidência a dimensão que assumiu o processo.
económico do espaço”. (Mário Lacerda de Melo, O Açúcar e o homem, 1975) Os arquipélagos da Madeira e Canárias foram os primeiros a sentir os efeitos devastadores da
cultura. O espaço limitado das ilhas não permitiu a continuidade da cultura açucareira que rapi-
“Já afirmou alguém, com muita razão, que o cultivo da cana-de-açúcar se processa em regime damente devastou a sua reserva florestal. A Madeira foi buscar o nome ao denso arvoredo que a
de autofagia: a cana devorando tudo em torno de si, engolindo terras e mais terras, dissolvendo o cobria à chegada dos primeiros europeus. Cem anos mais tarde a situação da vertente sul era dis-
húmus do solo, aniquilando as pequenas culturas indefesas e o próprio capital humano, do qual a tinta. O processo agrícola em torno da cana sacarina fez abater as árvores de grande porte para
sua cultura tira toda a vida. E é a pura verdade... Donde a caracterização inconfundível das difer- abrir caminho aos canaviais. A laboração dos engenhos obrigou ao desbaste de madeiras e lenhas
entes áreas geográficas açucareiras, com seu ciclo económico, com as fases de rápida ascensão, de para alimentar os engenhos. Em pouco tempo as encostas sobranceiras ao Funchal ficaram escal-
esplendor transitório e de irremediável decadência. Ciclo este que se processa tanto mais rapida- vadas.
mente quanto menores os recursos de terras disponíveis. Daí a semelhança de aspectos entre Os reflexos da situação cedo se fizeram sentir obrigando as autoridades a intervir no sentido de
áreas diferentes como o Haiti, Cuba, Porto Rico, Java e o Nordeste brasileiro”. (Josué de Castro, limitar o avanço das áreas de cultivo e de controlar o abate de madeiras e lenhas. Em 1466 os
Geografia da Fome, R. Janeiro, 1952, p.73) moradores do Funchal contestavam o regime de concessão de terras de arvoredos e do modo de as

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

esmoutar, pelos efeitos nefastos que causava à safra açucareira76. Perante tal reclamação, o senhorio jamaicano pode ser considerado um contributo significativo. A solução estava em apenas uma for-
ordenou aos capitães e almoxarifes que cumprissem os prazos estabelecidos e que fosse interdito o nalha alimentar as três caldeiras. Assim, o fabrico de um quilo de açúcar deixa de necessitar de 15
uso do fogo. No entanto, em 1483, o capitão de Machico continuava a distribuir de sesmarias os quilogramas de lenha, passando para um terço85. No século XIX generalizou-se a máquina a vapor,
montes próximos do Funchal, com excessivo prejuízo para os lavradores do açúcar77 e, por isso, D. que veio dar descanso à floresta uma vez que os engenhos passaram a ser alimentados por carvão
Manuel repreendeu-o, solicitando que tais concessões deveriam ser feitas na presença do provedor. mineral.
E, finalmente, em 148578, o mesmo proibiu a distribuição de terras de sesmaria nos montes e arvore- A partir de meados do século XV a aposta na cultura dos canaviais e fabrico do açúcar con-
dos do norte da ilha, para em princípios do século XVI (1501 e 1508) acabar definitivamente com duziram inexoravelmente à destruição da parca floresta da ilha. Abatia-se árvores para plantar soca
a concessão de terras em regime de sesmaria79, a única ressalva eram as terras que pudessem ser nova, mas acima de tudo para poder dispor de madeiras para construir os engenhos e lenhas
aproveitadas em canaviais e vinhedos. necessárias ao fabrico do açúcar. A tradição anota que para o fabrico de um quilograma de açúcar
As reclamações dos moradores e as medidas consequentes do senhorio atestam a pressão do era necessários 15 Kgs de lenha.
movimento demográfico sobre a concessão de terras. Na Madeira, das facilidades da década de 20
entra-se na década de 60 com medidas limitativas, como forma de preservar o pascilgo de usufru-
to comum e de apoiar os principais proprietários de canaviais, cuja exploração dependia da existên-
cia dos referidos montes e arvoredos. As exorbitâncias dos capitães, desrespeitando as ordenações ANO PRODUÇÃO LENHA ANO PRODUÇÃO LENHA
régias e senhoriais, conduziram à diminuição da área de pascilgo, de usufruto. Saliente-se que o DE AÇÚCAR KGS DE AÇÚCAR KGS
próprio D. Manuel contrariou, em 1492, o regimento de dadas de terras ao permitir que o capitão EM KGS EM KGS
do Funchal distribui-se terras na serra para currais e cultura de cereais e das bermas das ribeiras 1455 36.309 54.4.635 1520 1.291.659 19.374.894
para a plantação de árvores de fruto80. 1472 220.500 3.307.500 1521 1.571.238 23.568.583
Nas ilhas onde o espaço florestal é limitado, o equilíbrio entre os recursos e a agro-industria de 1473 2.94.000 4.410.000 1522 1.393.618 20.904.282
exportação é sempre precário. A história do Açúcar revela-nos que o período médio de afirmação 1474 441.000 6.615.000 1523 1.465.090 21.976.353
das culturas não chegava a um século. Sucedeu assim na Madeira, como em algumas ilhas das 1493 1.176.000 17.640.000 1524 1.194.477 17.917.168
Canárias e nas Antilhas, como foi o caso de Jamaica81. 1494 1.478.290 22.174.362 1525 957.396 14.360.944
O litígio entre as capitanias do Funchal e Machico quanto ao usufruto da floresta foi uma cons- 1497 1.517.187 22.578.805 1526 848.836 12.732.552
tante no século XVI. Acontece que a capitania do Funchal dispunha da maior área de produção de 1498 1.468.191 22.022.878 1527 1.020.106 15.301.597
açúcar da ilha, superior a dois terços, mas era na de Machico que se encontra o mais importante 1499 1.764.000 26.460.000 1528 1.242.591 18.638.865
manto florestal necessário a alimentar os engenhos. O Vedor da Fazenda Real determinava em 1501 1.687.236 25.308.549 1529 1.050.447 15.756.709
158182 que a fruição das madeiras destinadas ao fabrico do açúcar fossem de fruição comum. A 1504 1.665.774 24.986.619 1530 823.023 12.345.354
situação manteve-se nos anos imediatos sendo necessária a intervenção da coroa.83. No sentido de 1505 3.077.621 46.164.321 1534 794.931 11.923.978
controlar o consumo de lenhas pelos engenhos a câmara nomeava um estimador de lenhas, que 1506 3.384.175 50.762.628 1535 760.239 11.403.598
através de uma bitolha ”de sinco palmos e meio de largo e de altura dous e meio”84. 1507 2.601.679 39.025.192 1536 756.947 11.354.206
Tenha-se em conta que muitas das inovações no domínio da indústria açucareira surgem por 1508 2.544.452 38.166.786 1537 687.827 10.317.415
necessidade de poupar energia. Assim, a partir do século XVII a generalização do chamado trem 1509 2.152.080 32.281.200 1581 539.049 8.085.735
1510 2.117.755 31.766.332 1582 544.620 8.169.304
1512 1.946.662 29.199.933 1583 517.469 7.762.041
76. Ibidem, T. 1, fls. 135-138vº. 1513 1.644.018 24.660.279 1584 632.555 9.488.335
77. Ibidem, T. 1, fls. 249-251. 1516 1.794.899 26.923.491 1585 475.427 7.131.411
78. Ibidem, T. 1, fl. 51. 1517 1.367.173 20.507.602 1586 464.490 6.967.359
79. Ibidem, T. 1, fls. 287-288, 289vº-291.
80. Ibidem, T. 1, fl. 45vº. 1518 1.695.527 25.432.911
81. Cf. estudo exemplar de David Watts, Las Índias Occidentales. Mdalidades de Desarrollo, Cultura y Cambio MedioAmbiental
desde 1492, Madrid, 1992.
82. ARM, Documentos Avulsos, cxª.2, nº.214:19 de Maio.
83. Ibidem, caixa 2 nº.222, 4 de Outubro1586; caixa 2, nº234, 26 de Janeiro de 1596
84. ARM, CMF, nº.1328, fl.20: 16 de Maio de 1637. 85. Warren Dean, A Ferro e Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira, S. Paulo, 1996, pp.191-196

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ANO PRODUÇÃO LENHA KGS face the land becomes naked, the streams driedun, the summers made hotter, and the winters col-
DE AÇÚCAR EM KGS der, by opening the earth to the sun and winds. The succeeding generation labours as industrious-
1637-44 383.376 5.750.640 ly to produce shade as its predecessors did to destroyed it”88
1660-62 51.626 774.396 Perante as contingências do processo de aproveitamento económico da ilha, o espaço florestal
1670-72 92.360 1.385.401 desapareceu a olhos vistos perante olhar atónito das autoridades e dos cientistas de passagem pela
1677-79 25.798 386.977 ilha. Daqui resultou uma situação particular da ilha que é insistentemente evidenciada por todos
1698 588.00 8.820.000 os visitantes. O Sul escalvado contrasta com o Norte, onde ainda persistia a floresta indígena89. É
evidente o perigo de desaparecimento de algumas espécies da flora indígena. Em 1792 J. Barrow
A devastação da floresta foi catastrófica. A situação tornava-se mais evidente nas ilhas onde o refere a situação o cedro, enquanto em meados do século J. Mason junta também o dragoeiro, fo-
hinterland era reduzido. A primeira imagem disto está na ilha de Chipre, onde a construção naval lhado e vinhático.
e a exportação levaram a que perdesse o epíteto de ilha verde, dado pelos antigos86. Isto repete-se O processo de desflorestação é evidente para todos os observadores, sejam locais ou visitantes,
na Madeira, Canárias e na maioria das Antilhas. e mereceu alguns reparos. Em 1817 Paulo Dias de Almeida90 acusa os carvoeiros da situação em que
Um dos aspectos significativos do recurso à floresta foi a construção naval. A expansão europeia encontra a ilha: “...as montanhas que não há muitos anos vi cobertos de arvoredos, hoje os vejo
desde o século XV implicou uma revolução no sector. Os séculos XVII e XVIII de forte com- reduzidas a um esqueleto. O Centro da ilha se acha, todo descoberto de arvoredo, com apenas algu-
petência das potências europeias no domínio do mar e do Novo Mundo conduziram ao incremen- mas árvores dispersas, e isto em lugares onde os carvoeiros não tem chegado”.
to da construção naval. Até 1862, altura em que se atingiu a idade do ferro, a madeira era a matéria- Se a atenção e preocupação dos cientistas estava na descoberta e classificação das novas espé-
prima da construção naval. O caso mais evidente disto está na Inglaterra que, ao ver perdida a flo- cies, o empenho das autoridades incidia na preservação do parco manto florestal necessário à
resta se socorre das madeiras de América do Norte para assegurar o poderio naval. Aliás, este con- sobrevivência humana e ao equilíbrio da economia. Do século XV até ao presente, é interminável o
tinente foi a principal reserva europeia: a Nova Inglaterra para os ingleses e o Canada para os conjunto de regulamentos, ordenações e posturas sobre o assunto. A legislação florestal madeirense
franceses. A Madeira assume aqui um lugar de destaque. A ilha ganhou o nome do denso arvore- é prolixa, sendo de destacar o regimento das Madeiras de 1562, o mais antigo que se conhece pois
do, mas a presença do homem desde o século XV rapidamente conduziu ao desaparecimento na faltam notícias sobre o de 1515, o regimento das matas e arvoredos de 1839, o plano de organiza-
vertente sul. Tal como afirma S. Pyne87 a Madeira não é uma caricatura do processo de desflo- ção dos Serviços Florestais de 1886 e o Regimento do Serviço de Polícia Rural e Florestal de 1913.
restação, mas a evidência. As regulamentações genéricas tiveram réplica nas posturas Municipais91 e recomendações dos cor-
Tendo em conta as múltiplas funções da floresta os estudos realizados repartem-se em a História regedores lavradas nas correições92 completam o quadro das medidas protectoras do manto flore-
da floresta em geral, os múltiplos usos que vão desde o combustível a construção naval. A inces- stal. Daqui se conclui que não houve esquecimento e falta de regulamentação. As contingências de
sante procura conduziu o homem à busca de medidas da defesa que surgem em circunstâncias e cada época ditaram, sem dúvida, a sua ineficácia.
conjunturas de crise deste inestimável recurso. Estas medidas poderão resumir-se à preservação daquilo que existe através de medidas limitati-
A par do usufruto da floresta como fonte de combustível à de assinalar o aproveitamento das vas do abate de árvores e recuperação do coberto florestal com uma política de reflorestação das
madeiras, consideradas a primeira riqueza dos povoadores, a fazer fé naquilo que referem Zurara, zonas ermas ou em abate. A salvaguarda da floresta passava não só pelo estabelecimento de medi-
Valentim Fernandes e Gaspar Frutuoso. As madeiras de til, vinhático, aderno, barbuzano, cati- das rigorosas que controlassem o abate, que deveria estar sujeito a licenças camarárias, mas tam-
varam a atenção de colonos e forasteiros. As serras de água que proliferaram por toda a ilha, com bém ao ataque em todas as frentes aos agentes devastadores, onde se incluíam o fogo e o gado solto.
maior incidência da encosta norte, podem ser consideradas o símbolo da busca desenfreada de As queimadas, tão comuns desde o povoamento, foram um dos principais agentes devastadores e
árvores para abate. por isso insistentemente proibidas. O gado é obrigatoriamente acantonado a espaços circundados
É certo que a necessidade de lenhas como combustível para o dia ? dia caseiro, para a indústria
de panificação, forjas e engenhos de açúcar levaram paulatinamente à diminuição das reservas flo-
88. A Winter in Madeira, N. York, 1850, p.125
restais. Mas foi sem dúvida o desbaste para a agricultura que conduziu inevitavelmente ao proces- 89. Rambles in Madeira, 1827, p.147; R. White, Madeira, 1859, p.69; W. Cooper, The Invalid’s Guide to Madeira, 1840, p.13
so destrutivo. A sentença estava dada: “ In all new countries covered with forests the setlers are apt 90. Rui Carita, Paulo Dias de Almeida e a Descrição da ilha da Madeira, Funchal, 1982, p.53
to consider trees as their enemy. They wage an implacable warfare agians them, until the whole 91. ARM, C. M. Santa Cruz, nª291, novo caderno de posturas; Posturas do Concelho de Santa Anna, Funchal, 1837; ARM, Governo
Civil, n1.155, Posturas (1840); Posturas da Câmara Municipal da Cidade do Funchal, 1849 e 1895; Posturas da Câmara Municipal
da Villa de Machico, 1856; ARM, C. M. Funchal, n1.239, Registo de posturas (1869-1885); Código de Posturas da Câmara
Municipal do Concelho do Porto Moniz, 1890.
86. J. V. Thirgood, Man and the Mediterranean Forest. A History of resource depletion, London, 1981, p. 125. 92. ARM, C. M. Machico, nº.5-6, livro de correições 1768-1808; ARM, C. M. Funchal, n1168 (1768); ARM, C. M. Porto Santo, nº.54
87. S. J. Pyne, Fire in America, 1982) p. 124. (1780-1829); ARM, C. M. Santa Cruz, nº.171 (1808-1832).

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

por um bardo. A floresta não era um espaço de diversão mas algo fundamental para a economia plantaram 35.000 árvores102. A salutar medida teve diversas formas de concretização. Assim, em
da ilha. Vedar-lhe o acesso era impossível. Daí as medidas disciplinadoras do uso de acordo com 1800 aquele que cortasse uma árvore era obrigado a plantar outra no lugar103 como testemunha em
um processo económico harmonioso. 1821 W. Combe104.
Foi com um violento incêndio que os povoadores, segundo Cadamosto, “varreram grande parte Todas as medidas de defesa e recuperação do meio natural passaram no imediato para o artic-
da dita madeira, fazendo terra de lavoura”. As queimadas sucederam-se infinitamente e levaram a ulado das posturas105. Assim, em Machico (1840) e Funchal (1849) reclamava-se que aqueles que vivi-
coroa a estabelecer um travão. Outros violentos incêndios se sucederam. Os que ficaram para a am da serra com a lenha e carvão deveriam plantar em Janeiro seis árvores na terra. José Silvestre
História, fruto da acção humana são de os 180793 e depois em 1910 e 191994. Em 1593 documenta- Ribeiro, como governador (1846-1851) teve uma actuação exemplar na defesa das florestas e de
se o fogo do céu que causou elevados danos na cidade e manto florestal. Muitos dos incêndios na reposição do coberto106. Em 1849 apostou na distribuição de sementes de pinhão e no ano imedia-
floresta foram resultado da incúria ou malévola iniciativa dos carvoeiros. Estes são considerados to propor à Junta Geral a criação de um viveiro geral para toda a ilha. Na proposta recomendava-
em finais do século passado como os principais inimigos da floresta95. Sobre eles incidiam as cul- se o plantio de árvores indígenas: vinhático, loureiro, aderno e perado. Uma das formas de incen-
pas dos diversos incêndios que se ateavam com insistência nas serras da ilha. Paulo Perestrelo da tivo da política de reflorestamento estava na atribuição de prémios aos que mais se distinguiam na
Câmara é incisivo nas acusações: “os bárbaros carvoeiros cortam e queimão desapiedadamente, as tarefa. A Sociedade Agrícola Madeirense (1849-1880) aderiu à política e afirmou-se como promo-
árvores mais robustas e úteis e quazi todos os annos deixam atear fogos, que por dias e mezes con- tora da sementeira de árvores e da preparação de legislação adequada.
somem ?s vezes legoas de mato”96. O Porto Santo é um caso extremo da necessidade de rearborização, dependendo disso a reani-
A luta não permitia tréguas. Assim, sucediam-se as medidas que procuravam assegurar a preser- mação agrícola da ilha. Pelo menos foi o que se entendeu em 1771 com o Regimento de Agricultura,
vação da floresta e a reposição do coberto vegetal. Mas a política de reflorestação da ilha assumiu onde se insistia no plantio, nas montanhas, de pinheiros, zimbreiros, castanheiros e junto das áreas
uma dimensão adequada na segunda metade do século XIX. A primeira indicação é de 1677, altura de cultura, de amoreiras e espinheiros. A razão disso estava em que elas faziam “sombra à terra e
em que se recomendava o plantio de amoreiras em Machico, Santa Cruz e Porto Santo97. O grande attrahião a umidade da geada de que a mesma terra hé sumamente estéril”.
promotor da política foi o corregedor Francisco Moreira de Matos. Em 1769 ele dava conta dos Os resultados da política são visíveis e testemunhados pelos estrangeiros. Em 1851 Robert
infractores de Santa Cruz quanto à fiscalização das medidas que determinavam a obrigatoriedade White107destaca a expansão do pinheiro face à floresta indígena. Dois anos após Isabella de
de plantar árvores nas terras baldias, o que prova estar já em execução98. Na Ponta de Sol em 1789 França108depara-se com uma floresta de castanheiros, loureiros e pinheiros: “no cimo dos montes
explicita-se que o plantio deveria ser de árvores silvestres e de fruto99. A solução tornou-se extensi- plantaram uma infinidade de pinheiros, a mais parte nas duas últimas décadas.”. Em 1854 E.
va a toda a ilha através da carta circular de 25 de Dezembro de 1770100. Wateley destaca o trabalho e a presença de espécies da China, Austrália e Japão, nomeadamente
Em Santa Cruz sabemos que a medida era fiscalizada pelos próprios moradores, nomeando a no Jardim da Serra109. Já no nosso século o Marques de Jácome Correia destaca o esforço de plan-
vereação dois homens por cada localidade. Aos baldios juntam-se as escarpas montanhosas e as tio de árvores, de iniciativa pública e privada. No último caso tivemos o Visconde Cacongo e Luiz
áreas de cultivo. Assim em 1791 recomendava-se aos lavradores das meias terras acima eram obri- de Ornelas e Vasconcelos. De acordo com o mesmo em 1823 foram distribuídas por toda a ilha
gados a plantar meio alqueire ou uma quarta, dependendo da extensão das terras, de castanheiros, vinte mil árvores de eucaliptos, acácias, carvalhos e pinheiros110.
enquanto os outros deveriam plantar pelo menos duas laranjeiras e um limoeiro. Por outro lado as Na verdade as décadas de quarenta e cinquenta foram tempos de reflorestação111. Tal como refe-
terras escalvadas e do interior deveriam ser semeadas no decurso do mês de Setembro de pinheiros. ria a Junta Geral no relatório de 1864 “a necessidade da arborização nas serras da Madeira, não se
Outra das propostas era a amoreira, que “alimenta bicho-da-seda e distraem lagartixas não comam demonstra, sente-se”112. Daqui resultou a necessidade da aposta seguindo-se o exemplo dos france-
uvas”101. Apenas nos dois anos que antecederam a visita do corregedor em 1795 a Ponta de Sol se ses (1860) e espanhóis (1863). Sucederam-se várias medidas para fazer desta política uma realidade

93. Paulo Dias Almeida, ob. cit. 102. ARM. C. M. Ponta Sol, nº.220, fl.80vº: 29 de Agosto 1795.
94. Cf. o testemunho de Assis Esperança, in Ilustração, 1929; Cabral do Nascimento, Lugares Selectos dos autores Portugueses que 103. ARM, C. M. Machico, nº. 5, fl.83vº: 11 de Dezembro 1792.
Escreveram sobre o Arquipélago da Madeira, Funchal, 1949, p.185. 104.A History of Madeira, p.23
95. J. Freitas Branco, Camponeses da Madeira, Lisboa, 1987, pp.133-137; A. Marques da Silva, “Preocupações Ecológicas do Estrela 105.Veja-se a compilação da documentação e textos mais importantes de Fernando Augusto da Silva, Manuel Braz Sequeira, João
do Norte”, in Atlântico, 19 (1989), 203-206. Henriques Camacho e Visconde do Porto da Cruz.
96. Breve Noticia sobre a Ilha da Madeira, Lisboa, 1841, 34-35. 106. Uma época Administrativa da Madeira e Porto Santo, 3 vols, Funchal, 1850-1856.
97. Excursão na Madeira, 1891, p.83. 107. Madeira, p. 69.
98. ARM, C: M. Machico, nº.6, fl. 5vº: 7 de Abril de 1769. 108. Journal of a Visit to Madeira, pp. 48-49, 63, 76, 138-139.
99. ARM, C. M. Ponta Sol, nº.220, fl. 68vº-69: 19 Novembro 1789. 109. A Visit to Portugal and Madeira, 1864, p.30.
100. ARM, C: M. Machico, nº.5, fl. 16vº: 11 de Maio de 1771. 110. A ilha da Madeira, Coimbra, 1927, pp.155, 173
101. ARM, C. M. Machico, nº. 5, fl.72: 22 de Novembro de 1791. 111. Manuel Braz Sequeira, 1913, p.15

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

na Madeira como foi o caso do alvará de 31 de Agosto de 1863 e o decreto de 21 de Setembro de da floresta próxima dos engenhos fazia aumentar os custos de fabrico do açúcar, agora onerados
1867113. A aposta continuou no nosso século, tornando-se mais evidente a aposta com o avanço das com os da lenha.
encostas escalfadas fruto de desbastes ou dos incêndios que ocorreram. Em face disto a opção esta- O processo é similar nas regiões que antecederam o boom do açúcar americano. Em Motril a
va na arborização como testemunham os estudos de Manuel Braz Sequeira (1913) e João Henriques primeira metade do século XVI foi definida por uma quebra da produção açucareira, atribuída à
Camacho (1920). A própria câmara do Funchal deu o exemplo com o montado do Barreiro114. falta de lenhas, o que levou à tomada de medidas desde 1540. A situação repete-se na Madeira e
As Canárias foram o segundo grupo de ilhas a receber o impacto negativo da cultura açucareira. Canárias, o que provoca uma reacção dos proprietários de engenho, materializada em medidas
Desde finais do século XV que os canaviais trazidos da Madeira tiveram grande incremento nas exaradas em ordens régias e posturas municipais.
ilhas de Gran Canaria, La Palma e Tenerife, as únicas do arquipélago onde a reserva de água e flo- As ilhas, pela limitação do espaço, são as primeiras a ressentir-se da realidade. Sucede assim em
resta foi suficiente para manter a cultura num curto lapso de tempo. A crise açucareira da segun- ambos os lados do Atlântico, apontando-se como única excepção as ilhas de S. Tomé e Príncipe.
da metade do século XVI não surge apenas como resultado da concorrência do açúcar de novas Nas Caraíbas a situação é igual. A ilha de Santo Domingo, hoje Haiti e Rep. Dominicana, a cultura
áreas, mas acima de tudo das dificuldades internas da própria cultura. O espaço da ilha é de recur- da cana teve um apogeu curto de pouco mais de cinquenta anos, pois que em 1550 a notória
sos limitados que facilmente se esgotam. Sucedeu assim na Madeira como nas Canárias115. escassez de lenha conduziu ao abandono de muitos engenhos desde 1570. Já em Jamaica, a pro-
Para o Brasil no século XVIII cada quilo de açúcar equivale a 15 kg de lenha queimada, dando moção pelos ingleses da cultura, levou à busca de soluções. Primeiro o trem jamaicano que terá sido
média anual de 210.000 toneladas. A cada hectare deverá corresponder 200 toneladas. A evolução a solução mais eficaz. Com o sistema de fornalha o aproveitamento de lenha era evidente, pois ape-
recente da mata atlântica no Brasil, passados mais de cem anos sobre o incremento da máquina a nas com uma só fogueira se conseguia manter as três fornalhas. Concomitantemente tivemos o
vapor nos engenhos, continua a ser tragada por outros agentes. Assim, entre 1985 a 1990 ela perdeu recurso ao bagaço como combustível. Ambas as situações difundem-se primeiro nas Antilhas ingle-
5.330 km2, ficando em 83.500km2, isto cerca de 8% da floresta encontrada portugueses em 22 de sas a partir da década de oitenta do século XVII e só depois atingem as demais áreas açucareiras.
Abril de 1500. Esta continuada acção devastadora é assim descrita: “Durante quinhentos anos, a A generalização do sistema aconteceu primeiro nas ilhas, carentes de lenha, e só depois chegou ao
Mata Atlântica propiciou lucros fáceis: papagaios, corantes, escravos, ouro, ipecacuanha, orquídeas Brasil. A entrada definitiva na indústria açucareira do Brasil é de 1806, altura em que Manuel
e madeira para o proveito de seus senhores coloniais e, queimada e devastada, uma camada imen- Ferreira da Câmara, na Baía, adaptou o engenho à nova situação. Na época a grande inovação era
samente fértil de cinzas que possibilitavam uma agricultura passiva, imprudente e insustentável. A já a maquina a vapor, que começou a ser usada no Brasil a partir de 1815. Entretanto a Caldeira de
população crescia cada vez mais, o capital “se acumulava”, enquanto as florestas desapareciam; vacum, inventada em 1830 por Norbert Rillius de New Orleans, foi a técnica que revolucionou o
mais capital então “se acumulava” - em barreiras à erosão de terras de lavoura, em aquedutos, con- fabrico do açúcar e que mais contribuiu para a economia de combustível116.
trole de fluxos e enchentes de rios, equipamentos de dragagem, terras de mata plantada e a indus- Não fica aqui a acção devastadora da cana sacarina sobre o meio envolvente. Acontece que “a
trialização de sucedâneos para centenas de produtos outrora apanhados de graça na floresta. canna doce, sendo, como é, imã gramínea, é excessivamente esgotante; empobrece o terreno onde
Nenhuma restrição se observou durante esse meio milénio de gula, muito embora, quase desde o é cultivada, e d’ahi a necessidade de boas adubações, de maneira a restituir à terra os elementos
início, fossem entoadas intermitentes interdições solenes que, nos dias atuais, são contínuas e
frenéticas.” A situação, não obstante a extensa mata disponível, provocou alguns problemas. Em
1660 o município de Salvador da Baía definiu um conjunto de medidas, que não foram suficientes 116. BIBLIOGRAFIA Fundamental: BLUME, Helmut, Geography of sugar cane. Environmental, structural and economical aspects
of cane sugar production, Berlim, 1920; BOTELHO, Teresa Maria B., Tecnologia popular e energia no sector residencial rural.
uma vez que em 1804 no Recôncavo era evidente a falta de lenhas e madeiras. O desaparecimento Um estudo sobre o fogão a lenha, R. de Janeiro, 1986; CROSBY, Alfred W., Ecological imperialism: the biological expansion of
Europe 900-1900, Cambridge, 1986 (edição em Português, S. Paulo, 1993), IDEM, The Columbian exchange. Biological and cul-
tural consequences of 1492, Westport, 1973; DEAN, WARREN, A ferro e fogo. A História e a devastação de mata atlântica
112. Relatório, Funchal, 1864, p.30. brasileira, S. Paulo, 1996: DEER, Noel, History of sugar, 2 vols. London, 1949; FERRÃO, J. E., A influencia portuguesa na
113. A. C. Heredia, Observações sobre a situação económica da ilha da Madeira, Lisboa, 1888, p.26. expansão das plantas no Mundo, Lisboa, 1980; IDEM, A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses, Lisboa, 1992;
114. Abílio Barros e Sousa, Plano de Arborização do Montado do Barreiro, Funchal, 1946. FREIRE, Gilberto, Nordeste, Rio de Janeiro, 1985; GALLOWAY, J. H., The sugar cane industry. A historical geography from
115. Sobre a Cultura da Cana sacarina veja-se: CAMACHO y PÉREZ GALDÓS, G., “El cultivo de la cana de azúcar y la industria its origins to 1914. Cambridge, 1990; GROVE, Richard, Green imperialism. Colonial expansion, tropical islands Edens, and the
azucarera en Gran Canaria (1510-1535)” in Anuario de Estudios Atlanticos, nº 7, 1961. CASTANEDA DELGADO, Paulina, origins of environmentalism, 1600-1860, Cambridge, 1995; MACKENZIE, J. (ed.), Imperialism and their natural world,
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Santana Santana, Paisajes Históricos de Gran Canaria, Las Palmas, sd. change, Seattle, 1980; WORSTER, D., Nature’s Economy: A history of western ecological ideas, Cambridge, 1985

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

que a anterior cultura lhe roubou. O emprego dos adubos químicos que fornecesse á planta a potas- condicionou a política de doação e distribuição de terras, qual a evolução da estrutura e as cam-
sa, o phosphoro e a cal seriam da máxima vantagem, tanto mais que o solo da Madeira é pobrissi- biantes, de acordo com as condições mesológicas do solo arável122.
mo d’esses dois últimos elementos; os adubos chimicos associados ao estrume de curral ainda seri- O equacionar da problemática em estudo não poderá desligar-se, como é óbvio, da evolução do
am de melhor utilidade, fornecendo este ultimo a matéria orgânica azotada. “117 Esta acção devas- sistema de propriedade. O povoamento insular mereceu, desde muito cedo a atenção da histori-
tadora da cana sobre o solo não é apenas uma evidência do século XIX, pois já no século XVI ografia nacional que aponta o carácter peculiar do processo evidenciado pela concretização num
temos situações resultantes disto. A forte quebra de produção de açúcar madeirense a partir de solo inexplorado com carácter experimental. A ilha da Madeira, porque virgem e desabotada, apre-
1521 é entendida também como fruto do empobrecimento dos solos118. sentava as condições necessárias para o primeiro ensaio de colonização europeia fora do conti-
Os solos ricos haviam sido sujeitos durante mais de cinquenta anos a uma exploração intensiva. nente. E daí partiram os processos, as técnicas e os produtos para as restantes ilhas do Atlântico e
A situação reflecte-se de forma evidente na qualidade do açúcar produzido, devido à diminuição Brasil.
do teor de sacarose da cana processada. Assim, a quebra generalizada da produção é simultânea
com a valorização dos produtos de qualidade inferior. Diminui a quantidade de açúcar branco
processado, mas em contrapartida aumenta ou estabiliza o de meles.119 DAR E DOMINAR

O povoamento e o consequente processo de valorização económica da Madeira surgem, no con-


texto da expansão europeia dos séculos XV e XVI, como o primeiro ensaio de processos, técnicas
O REGIME DE PROPRIEDADE DA TERRA E DA ÁGUA e produtos que serviram de base à afirmação dos Portugueses no espaço atlântico, continental e
insular. Aqui foram lançadas, na década de 20, as bases sociais e económicas daquilo que será
definido como a civilização atlântica. A situação resulta do facto de a Madeira ter sido a primeira
O conhecimento do regime de propriedade requer um estudo atura- área atlântica a merecer o impacto da humanização peninsular. Enquanto nas Canárias tardava a
do, assente nas fontes documentais que atestem o sistema de relações pacificação guanche e se esvaneciam as esperanças da posse henriquina, na Madeira os
estabelecido na posse e produção da superfície arável120. No caso cabouqueiros europeus lançam-se num plano de exploração intensiva do solo virgem. Ao empe-
madeirense a historiografia preocupa-se, única e exclusivamente, com as nhamento dos tradicionais descobridores juntam-se os interesses da coroa, do infante D. Henrique
condições jurídicas que regularam a distribuição das terras e depois à e da comunidade italiana sedeada em Portugal.
degradação do sistema com o alheamento do proprietário da parcela A década de setenta é o momento de arranque efectivo do povoamento dos Açores e das
arroteável e à fixação no meio urbano. A situação contribuiu para a Canárias. Ora isto sucede numa altura em que a Madeira surgia já como um importante entrepos-
definição do conhecido contrato de colonia121. Não interessava conhecer to de comércio e de apoio à navegação. Para isto haviam contribuído as condições oferecidas pela
quem e como se recebiam as terras de sesmaria, que tipo de propriedade ilha, a conjuntura atlântica de então, e o forte empenhamento dos promotores e protagonistas do
Apanha da cana. Postal antigo povoamento. Nos dois arquipélagos vizinhos os entraves foram enormes. Dum lado os sismos e os
vulcões atemorizam os colonos açorianos, do outro foi a forte resistência dos aborígenes canários à
117. Relatório sobre os Serviços Agrícolas e Filoxéricos Relativo ao Ano de 1891, in Boletim da Direcção Geral de Agricultura, pacificação castelhana.
Lisboa, no.11, 1892, p.1145. Os testemunhos dos cronistas são evidentes quanto ao facto da inexistência de uma popu-
118 .Fernando Jasmins Pereira, Estudos Sobre história da Madeira, Funchal, 1991, pp.201-203, 213 lação sob o solo madeirense. Assim, para além das referências à abordagem do Porto Santo por
119 . Ibidem, pp.217-218.
120 . Para a Madeira dispomos de alguns livros de tributação do açúcar aos lavradores, enquanto nas Canárias tal só é possível castelhanos, vindos das Canárias, e da presença de Machim na baía de Machico, nada mais indi-
através dos “repartimientos” e protocolos notariais. A documentação resulta da contabilidade organizada para cada engenho, ciava uma preocupação anterior de humanização das ilhas. Cadamosto afirma “que fora até então
conforme se infere de documento de 1550 (AHM, vol. XIX, nº.98, pp.119-124, 12 de Junho, provisão e regimento para a desconhecida” e que “nunca dantes fora habitada”. Idêntica opinião encontramos em Jerónimo
arrecadação do açúcar). Veja-se José Pereira da COSTA e Fernando Jasmins PEREIRA, Livros de Contas da ilha da Madeira.
1504-1537, Coimbra, 1985, idem, Livros de Contas da ilha da Madeira, Funchal, 1989. Pedro CULLEN DEL CASTILLO (ed.),
Libro rojo de Gran Canaria, Las Palmas, 1947; Elias SERRA RÁFOLS e Leopoldo de la ROSA OLIVERA (eds.), Refornación
del Repartimiento de Tenerife en 1506 (...), La Laguna, 1963; Elias SERRA RÁFOLS, Las Datas de Tenerife (libros I a IV de 121. É um contrato regulado pelo direito consuetudinário, em que o proprietário da terra a cede a outrem, tendo este a obrigação
Datas Originales), La Laguna, 1978; Francisca MORENO FUENTES, Las Datas de Tenerife, Libro V, de Datas Originales, La de a tornar arável, construindo as bemfeitorias, dando-lhe na altura da colheita a metade da colheita.
Laguna, 1988; idem, Las Datas de Tenerife(Libro Primero de Datas por Testimonio), La Laguna, 1992; Francisco Morales 122. .A descoberta do livro dos estimos do açúcar de 1494 e, depois, de alguns livros do quarto do açúcar permitem responder a
Padron, “Canarias en el Archivo de Protocolos de Sevilla”, in Anuario de Estudios Atlanticos, VII, 1961; Eduardo AZNAR algumas das questões atrás equacionadas. Virgínia RAU e Jorge de MACEDO (Veja-se, O Açúcar na Madeira no século XV,
VALLEJO, Documentos Canarios en el Registro del Sello(1476-1517), La Laguna, 1981. Nos últimos anos foram publicados Funchal, 1962) possibilitaram-nos o esclarecimento de algumas interrogações sobre a questão. O aparecimento recente de alguns
alguns livros de protocolos dos arquivos provinciais de Las Palmas e Santa Cruz de Tenerife. dos livros do quarto e do quinto do açúcar das capitanias do Funchal e Machico permitem essa abordagem.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Dias Leite123, que é peremptório em afirmar, que perante os navegadores se deparava uma “terra fundiário127. Mesmo assim João Gonçalves Zarco sentiu dificuldade em encontrar varões de quali-
brava e nova, nunca lavrada, nem conhecida desde principio do mundo até aquela hora”. O empe- dade para desposarem as suas filhas, tendo solicitado ao monarca o seu envio128. Isto poderá ser o
nho das gentes e autoridades peninsulares, aliado ao investimento e experiência italiana, con- indicativo de que a aristocracia do reino apostava mais nas façanhas bélicas em Marrocos do que
tribuíram para que em pouco tempo na Madeira a densa floresta fosse substituída por extensas num projecto de povoamento. A enxada não lhes era familiar. Por outro lado confirma o fracasso
clareiras de arroteamento. de Zarco no recrutamento de gente nobilitada, que foi suprida com aqueles que pretendiam “bus-
A acção lusíada na década de 20 foi um processo de povoamento, e nunca colonização, pois esta- car vida e ventura”.
mos perante uma porção de terra inabitada cuja paisagem foi humanizada apenas com a entrada De acordo com o capítulo de uma carta régia129, João Gonçalves foi incumbido de proceder à dis-
portuguesa124. Além disso, a peculiaridade do processo de ocupação resulta em muito da situação tribuição de terras, conforme o regulamento entregue. Estas recomendações são diferentes dos
de abandono em que se encontravam as ilhas, o que permitiu o ensaio de técnicas, produtos e for- demais que se seguiram, pois para além da demarcação social dos agraciados estabelece um prazo
mas de organização do espaço sem qualquer entrave humano. Os resultados deste ensaio foram de alargado de 10 anos. Assim, os vizinhos de mais elevada condição social e possuidores de proven-
tal modo profícuos que o exemplo madeirense terá não só um lugar de evidência no contexto da tos recebem-nas sem qualquer encargo, enquanto os pobres e humildes que vivem do trabalho ape-
expansão peninsular, mas surgirá também como ponto de referência ou modelo para as outras nas as conseguiram mediante condições especiais, só adquirindo as terras que possam arrotear com
experiências de povoamento que se seguiram. a obrigatoriedade de as tornar aráveis num prazo de dez anos. As cláusulas favoreceram a posição
A forma de ocupação e valorização económica da Madeira foi ao encontro das solicitações da fundiária dos primeiros povoadores e contribuíram para o aparecimento de grandes extensões que
conjuntura interna do Reino e do espaço oriental atlântico. No primeiro caso, surge como respos- mais tarde serão vinculadas.
ta à disputa das Canárias e à ingente necessidade de encontrar um ponto de apoio para as ope- A partir de 1433, com a doação do senhorio das ilhas ao infante D. Henrique, o poder de dis-
rações do litoral africano. Zurara faz disso eco ao referir que as embarcações portuguesas tinham tribuir terras é-lhe atribuído, mas “sem prejuyzo de forma do foro per nos dado aas ditas ylhas em
escala obrigatória na Madeira, onde se proviam de vitualha as ilhas da Madeira, porque havia aí já parte nem em todo nem em alheamento do dito foro”130, o que comprova mais uma vez que a
abastança de mantimentos125. primeira iniciativa e regulamento de distribuição de terras coube ao monarca. O infante, fazendo
Para os cronistas tudo começou no Verão de 1420. Nesta data o monarca ordenou o envio de uso das prerrogativas, delegou tais poderes nos capitães131. Sabe-se por informações indirectas que
uma expedição comandada por João Gonçalves Zarco para dar início à ocupação da ilha. o foral henriquino confirma as ordenações régias e estipulava que as terras deverão ser distribuídas
Acompanhavam-no Tristão Vaz Teixeira, Bartolomeu Perestrelo, alguns homiziados a buscar vida apenas por um prazo de cinco anos, findo o qual caducava o direito de posse e a possibilidade de
e ventura forão muitos, os mais delles do Algarve126. nova concessão. Confrontadas estas condições com as do monarca, notam-se alterações significati-
O povoamento da ilha, iniciado na década de 20 a partir dos núcleos do Funchal e Machico, rap- vas no regime de concessão de terras. Assim, desapareceu a diferenciação social dos agraciados e o
idamente alastrou por toda a costa meridional, surgindo novos núcleos em Santa Cruz, Câmara de período para as tornar aráveis é reduzido. A pressão do movimento demográfico, aliada à ra-
Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta. As condições orográficas condicionaram os rumos refacção de terras para distribuir, condicionou a mudança.
da ocupação do solo madeirense, enquanto a elevada fertilidade do solo e a pressão do movimen- A primeira missão dos capitães foi proceder à distribuição de terras, como testemunha Francisco
to demográfico implicaram o rápido processo de humanização e valorização socioeconómica da Alcoforado, ao referir que João Gonçalves Zarco, após a segunda viagem, se empenhou na tarefa.
ilha. A costa norte tardou em contar com a presença de colonos, contribuindo para isso as dificul- Uma das prerrogativas da função era a possibilidade de reservar para si e familiares algumas das
dades de contacto por via marítima e terrestre. Não obstante, refere-se já na década de 40 a pre- terras de sesmarias. Ainda, segundo Francisco Alcoforado, João Gonçalves Zarco apropriou-se do
sença de gentes em S. Vicente, uma das primeiras localidades desta vertente a merecer uma ocu- alto de Santa Catarina, no Funchal e as terras altas de Câmara de Lobos. Mais além, na Calheta,
pação efectiva. tomou dois Lombas para os filhos João Gonçalves e Beatriz Gonçalves.
Aos primeiros obreiros e cabouqueiros seguiram-se diversas levas de gente, entusiasmadas com Desde 1433 e até 1495, a concessão de terras de sesmaria era feita pelo capitão, em nome do
o progresso da ilha. Neste grupo surgem trinta e seis apaniguados da casa do infante, na sua maio-
ria escudeiros e criados, que adquiram uma posição proeminente ao nível administrativo e
127. Sobre a presença e importância das gentes da casa do infante veja-se João Silva de SOUSA, “A casa do infante D. Henrique e
o arquipélago de Madeira (algumas notas para o seu estudo”, in Colóquio Internacional de História da Madeira, Vol. I, Funchal,
1989, 108-127.
128. Saudades da Terra, 217-218.
123. Descobrimento da Ilha da Madeira (...), Coimbra, 1957, p. 9. 129. Esta carta foi pela primeira vez referenciada por Álvaro Rodrigues de AZEVEDO sendo, todavia considerada apócrifa por
124. Confronte-se o que diz a este propósito Carreiro da COSTA em Esboço Histórico dos Açores, Ponta Delgada, 1978, p.53 alguns historiadores, como José Hermano SARAIVA (Temas de História de Portugal, vol. II, pp.109-112)
125. Crónica da Guiné, cap. XXXII. 130.A.R.M., RGCMF, T. 1, fl. 282.
126. J. Dias LEITE, ob. cit., 15-16; Gaspar FRUTUOSO, ob. cit., 53. 131. A.N.T.T., Livro das Ilhas, fl 550vº.

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donatário. A carta deveria ser lavrada pelo escrivão do almoxarifado, na presença do capitão e do bém o prazo para as arrotear. Assim, dos dez anos iniciais passa-se para cinco a partir de 1433138, o
almoxarife. No enunciado constavam obrigatoriamente as condições gerais que regulavam a forma que se manteve não obstante as reclamações dos moradores, que anotavam a dificuldades no
de concessão do terreno, capacidade de produção e a cultura adequada à exploração, bem como o arroteamento139. Outra condição imprescindível para quem quer que seja adquirisse o estatuto de
prazo de aproveitamento. O colono ou sesmeiro deveria cumprir o clausulado. Findo o prazo esta- povoador com posse de terras estava na obrigatoriedade de residência até cinco anos, o estabelecer
belecido podia vender, doar, escambar o fazer dela e em ela como sua própria coisa. casa e, para os solteiros, o necessário casamento. Estas condições revelam que o principal intuito
As reclamações dos moradores e as medidas consequentes do senhorio atestam a pressão do da distribuição de terras era fomentar o povoamento das ilhas.
movimento demográfico sobre a concessão de terras. Na Madeira, das facilidades da década de 20 O processo de distribuição das terras gerou inúmeras desavenças que mereceram a intervenção
entra-se na década de 60 com medidas limitativas, como forma de preservar o pascilgo de usufru- da coroa. Na Madeira o senhorio enviou em 1466 Dinis de Grãa, seu procurador, com plenos
to comum e de apoiar os principais proprietários de canaviais, cuja exploração dependia da poderes para resolver as causas pendentes das reclamações chegadas ao reino, entre as quais as re-
existência dos referidos montes e arvoredos. As exorbitâncias dos capitães, desrespeitando as orde- ferentes às terras e águas140.
nações régias e senhoriais, conduziram a uma diminuição desta área de pasto, de usufruto. Saliente- São poucas as doações de terras que resistiram ao correr dos tempos e que ficaram a teste-
se que o próprio D. Manuel contrariou, em 1492, o regimento de dadas de terras ao permitir que o munhar e legitimar esta forma de distribuição de terras já na década de setenta do século XV.
capitão do Funchal distribui-se terras na serra para currais e cultura de cereais e das bermas das Apenas referimos a carta de 29 de Abril de 1457 em que é feita concessão de terras a D. Henrique
ribeiras para a plantação de árvores de fruto132. a Henrique Alemão, por prazo de 5 anos141. Noutra de 1470 determina-se que as terras dadas devi-
Nas décadas seguintes, a concessão de terras de sesmaria e a legitimação da posse geraram vários am ser plantadas de canaviais142. Aqui estão definidas as condições em que foi estabelecida a posse
conflitos, que implicaram a intervenção legislativa do senhorio ou o arbítrio do ouvidor. Em 1461, das terras. Poderá ser considerada uma carta modelo, pois aí juntavam-se todas as recomendações:
os madeirenses reclamaram contra a redução do prazo para aproveitamento das terras de sesmaria, limites da terra, as benfeitorias a implantar e o tipo de culturas (vinhas, canaviais, horta)143.
dizendo que estas eram “bravas e fragosas e de muytos arvoredos”. Contudo, o infante D. Fernando O arrendamento adquiriu importância fundamental no sistema de exploração agrícola diversas
não abdicou do foral henriquino e apenas concedeu a possibilidade de alargamento do prazo medi- formas de domínio útil da propriedade. Em 4 de Setembro de 1475 João Afonso do Estreito arren-
ante análise circunstanciada de cada caso pelo almoxarife133. Passados cinco anos, os mesmos con- dou umas terras no Estreito da Calheta a Vasco Dias Evangelho. As condições do contrato não
testaram de novo contra o regime de concessão de terras de arvoredos e do modo de as esmontar, eram muito pesadas para o rendeiro, uma vez que o proprietário acudia com a despesa da levada
pelos efeitos nefastos que causava à safra açucareira134. Perante tal reclamação, o senhorio ordenou que deveria construir e recebia junto com a terra casas e engenho de açúcar. Com contrapartida
aos capitães e almoxarifes que cumprissem os prazos estabelecidos e que fosse interdito o uso do ficou estabelecida uma renda anual de 30.000 reais144. As mesmas famílias dos capitães estiveram
fogo. Em 1483, o capitão de Machico continuava a distribuir de sesmarias os montes próximos do envolvidas nesta nova situação. Em 4 de Julho de 1477 lavrou-se um contrato de arrendamento
Funchal, com excessivo prejuízo para os lavradores do açúcar135 e, por isso, D. Manuel repreende- entre João Gonçalves da Câmara e Álvaro Lopes. O rendeiro ficava com o encargo de explorar
o, solicitando que tais concessões deveriam ser feitas na presença do provedor. E, finalmente, em umas terras na Ponta de Sol, construindo a levada, plantando a cana e construindo o engenho. Ao
1485136, o mesmo proibiu a distribuição de terras de sesmaria nos montes e arvoredos do norte da arrendatário ficava o direito a 30 arrobas de açúcar de uma cozedura145.
ilha, para em princípios do século XVI (1501 e 1508) acabar definitivamente com a concessão de A segunda metade do século XVI foi marcada por um forte incremento de diversas formas de
terras em regime de sesmaria137, a única ressalva eram as terras que pudessem ser aproveitadas em domínio útil da terra. Ao mesmo tempo a contrapartida para o proprietário assume uma relação
canaviais e vinhedos. directa com os resultados da colheita, surgindo assim os primeiros contratos de “meias”. A 18 de
O sistema de propriedade ficou definido pela distribuição de terras aos povoadores e, depois, Novembro de 1558146 Francisco Martins estabelece um contrato de arrendamento de meias por
pela venda, troca ou nova doação. Num e noutro caso as situações são idênticas, variando apenas nove anos sobre umas terras em Câmara de Lobos. A terra dispõe de água ficando ao encargo do
a forma de expressão consoante o processo de povoamento e as peculiaridades de cada ilha. Todas
as doações eram feitas de acordo com normas estabelecidas pela coroa e seguiam o modelo já 138 . António Vasconcelos SALDANHA, As Capitanias o Regime Senhorial na Expansão Ultramarina, Funchal 1992, pp. 187-213.
definido para o repovoamento da Península. Para além da condição social do contemplado, das 139 . Conforme reclamação apresentada em 1461, veja-se, A.H.M., vol. XV, 1972, pp. 17-18.
140. AHM, Vol. XV (1972), pp. 32-33, 10 de Maio de 1466.
indicações, por vezes imprecisas, da área de cultivo e para erguer benfeitorias, estabelecia-se tam- 141. ANTT, Livro das Ilhas, fl. 31vº, publicado idem, ibidem, pp. 541-543.
142. J. M. Silva MARQUES, Os descobrimentos Portugueses, vol. I, nº.356 e 423; vol. III, nº.59, pp.84-85.
132. Ibidem, T. 1, fl. 45vº. 143 Este enigmático Henrique Alemão é considerado o Imperador Ladislau III da Polónia. Confronte-se J. Reis GOMES, O
133. A.R.M., RGCMF, T. 1, fls. 204.209. Cavaleiro de Sta Catarina de Varna à Ilha de Madeira, Funchal, 1941.
134 . Ibidem, T. 1, fls. 135-138vº. 144 . João José de Sousa, A Origem da Colonia, in Islenha, 13 (1993), p.48
135 . Ibidem, T. 1, fls. 249-251. 145 . ANTT, Convento de Santa Clara, livro 6, fl. 205, citado por João José de Sousa, A Origem da Colonia, in Islenha, 13 (1993),
136 . Ibidem, T. 1, fl. 51. p.48
137 . Ibidem, T. 1, fls. 287-288, 289vº-291. 146 . ANTT, Convento de Santa Clara, livro 6, fl. 266vº, citado por João José de Sousa, A Origem da Colonia, in Islenha, 13 (1993), p.61

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Senhorio de visita ao
caseiro, Séc. XIX.
[Museu de Photographia
Vicentes]

O CONTRATO DE COLONIA

“Geralmente as terras cultivadas nesta ilha tem dois proprietários, um do solo, a que
chamam senhorio, e outro das benfeitorias, a que chamam caseiro, ou lavrador, o qual fazendo
toda a despesa do custeamento, da parte com o senhorio a metade de seus frutos, sendo bem feliz
quando a metade, que lhe fica paga a sua despesa e trabalho, do qual tudo depende, (...)” [Doc. Gravura século XIX
1826, ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, nº.764, pp..95]

“será obrigado o dito caseiro a morar e assistir na dita fazenda com sua mulher como também
será obrigado a conservar todo o ano uma horta e a mandar dela todos os sábados à tarde couves
e mais hortaliças à casa do senhorio e assim mais será obrigado a receber um porco que o senho-
rio lhe entregará para lhe criar de meias todos os anos(...) e além de tudo isto fará como bom
caseiro dando todas as vezes que ele senhorio quiser ir para o campo um homem ou os que puder
para as redes como os mais caseiros costumam fazer”. [Escritura de 11 de Dezembro de 1735,
publ. por Jorge Valdemar Guerra, A colonia na Madeira , in Islenha, 9, 1991, pp..99-100]

A partir da distribuição inicial de terras ficou assente uma forma de domínio da propriedade da
terra que iria evoluir ao longo dos tempos de acordo com as condições sociais que dominaram a
exploração agrícola e os produtos dominantes e fazedores de riqueza. Se a economia açucareira se
ficou no início por um domínio directo do proprietário da terra, à medida que perdeu rentabilidade
começaram a surgir formas distintas de exploração. A riqueza dos primeiros anos permitiu que o
proprietário perdesse a proximidade com a terra, fixando-se no meio urbano. As terras, de canavi-
ais e cana, foram entregues a arrendatários que evoluíram para a situação especial de colonos. É
neste contexto de transformação que se afirma paulatinamente o contrato de colónia.
colono o plantar da cana. A situação de decadência da cana torna impossível a aposta num enge- O contrato de colonia demarca-se na história da ilha como um dos aspectos mais peculiares e
nho, podendo então moer a cana em qualquer deles em actividade. As despesas da moenda eram questionáveis. Ele não deve ser considerada como um contrato de arrendamento, parceria agríco-
suportadas a meias, sendo o açúcar resultante dividido no estendal. la, uma forma de colonato voluntário ou contrato enfitêutico, mas sim um sistema específico que
Uma vez que a cultura só se tornava produtiva ao fim de dois anos, os contratos estabeleciam surge na Madeira na forma mais original nos séculos XVII e XVIII. A especificidade está no facto
regras quanto às contrapartidas. Assim se as terras eram de pranta ficaria o meeiro isento de encar- de existirem duas formas de propriedade útil: da terra e das benfeitorias. A dupla forma de pro-
gos por dois anos, caso fosse de soca (= cana de dois anos) ou ressoca (=cana de três e mais anos) a priedade da terra e benfeitorias guiava-se exclusivamente pelo direito consuetudinário e definia
medida não tinha efeito147. Em 1591148 Francisco Lopes recebeu umas terras no Funchal por nove uma peculiar e situação perpétua de interdependência entre ambas as partes. Daqui resultou a per-
anos, sendo obrigado a meter pranta nova. O Convento contribui com água da levada dos Piornais petuação chegando até aos nossos dias com algumas alterações conjunturais. Estamos perante um
e comparticipa na soca de cana para a prantar, recebendo em contrapartida metade da colheita par- compromisso inabalável que nem a morte poderia quebrar. O proprietário do terreno por esta
tida no tendal do engenho. condição recebia uma das partes dos produtos, que variava de local para local, enquanto o colono
era proprietário das benfeitorias nele realizadas e receberia por isso e cultivo das terras a outra
parte.
147 Cf. João José de Sousa, A Origem da Colónia, in Islenha, 13 (Funchal, 1993), pp.60-62
148. ANTT, Convento de Santa Clara, livro 6, fl. 73-76vº
As opiniões dividem-se quanto à origem do sistema de exploração agrícola. Uns encaram-no

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

como o resultado acabado da evolução do regime de sesmarias, outros como fruto das circunstân- pações sociais e económicas da Madeira de outrora, foi o principal factor de progresso e de afir-
cias económicas e sociais da conjuntura histórica madeirense149. Ramon Honorato Rodrigues150 mação da cultura da vinha na ilha.
(1947) filia a origem na crise açucareira da primeira metade do século XVI, que foi responsável pelo Na segunda metade do século XVIII inverteu-se a posição, afirmando-se como o principal moti-
absentismo dos proprietários, o reforço e garantia da posição dos arren- vo de retrocesso económico e social, responsável pela forte sangria populacional e o abandono da
datários ou meeiros em face dos necessários investimentos a lançar para terra. No imediato surgiu um movimento de debate, pugnando-se pela defesa da exploração direc-
o progresso da nova cultura — a vinha. Deste modo “ o oportuno na ta da terra pelos senhorios como única solução para a crise agrícola da Madeira e Porto Santo. Só
época em que os contratos se iniciaram, pode representar o inconve- se conseguiu avançar com a abolição na última ilha em 13 de Outubro de 1770 como solução para
niente do nosso tempo”. Aquilo que no século XVI fora factor de pro- acabar com o abandono a que a ilha estava votada. Note-se que em 1722 se havia avançado com
gresso social e económico tornou-se na actualidade num absurdo e fac- uma maior valorização da posição do colono do Porto Santo com a concessão do usufruto de dois
tor de retrocesso. terços da produção como meio de fixação terra. A mesma reivindicação dos madeirenses em 1776 Gravura século XIX
Em nosso entender a origem deste peculiar contrato gerado pelo di- não teve efeito e o sistema foi-se arrastando num lento processo de agonia no século XIX com o
reito consuetudinário não é uma viciação dos sistemas peninsulares para movimento liberal. Foi a primeira e mais forte manifestação de repúdio sem nunca se chegar a uma
aqui trasladados, nem o fruto da conjuntura social e económica‚ pois decisiva extinção. A iniciativa do governo miguelista de extinguir o referido sistema em 1828 foi
deve ser entendido como a simbiose dos dois elementos que se desenro- uma opção efémera e não passou de uma aventura demagógica.
laram num longo processo de gestação que teve início em 1477 com o As soluções não foram consensuais e o regime manteve por mais alguns anos o processo lento
primeiro contrato de arrendamento de terras na Ponta do Sol celebrado de agonia. Apenas em 1916 surgiu a iniciativa parlamentar da autoria de um grupo de deputados
entre João Gonçalves Zarco, segundo capitão do donatário do Funchal, chefiados pelo Visconde da Ribeira Brava que não alcançou qualquer resultado nem satisfez as
e Álvaro Lopes. Ao último competia o necessário investimento — tirar a exigências dos colonos, pelo que em 1927 gerou-se um motim na Lombada da Ponta do Sol que
levada da Ribeira da Madalena, plantar o canavial e vinhas, construir o forçou o governo a acabar com o referido regime pelo decreto de 26 de Dezembro no qual se expro-
engenho — e ao primeiro o usufruto anual de trinta arrobas de açúcar priou as referidas terras que depois foram vendidas aos colonos por escritura feita em 26 de Janeiro
branco da primeira cozedura. A afirmação na segunda metade do sécu- de 1928. O mesmo sucedeu nas Lombadas no norte da ilha, em Ponta Delgada. Mesmo assim o
lo XVI e duas centúrias seguintes teve uma dupla origem social e contrato de colonia continuou a ser uma realidade em muitas zonas da ilha e só em 1976, passados
Gravura de W. Combe, 1821
económica. Em primeiro lugar o movimento demográfico em consonân- mais de duzentos e cinquenta anos sobre o início desta eterna agonia‚ ao moribundo foi passado o
cia com a área agrícola escassa e as dificuldades de recrutamento de escravos geraram a dinâmica estado de óbito pelo decreto legislativo regional nº.13/77/M de 18 de Outubro. O fim do contrato
de interdependência, depois o rendimento baixo da exploração agrícola resultado da crise do de colonia ficou a assinalar um dos mais lídimos resultados e conquista da AUTONOMIA.
comércio do açúcar com a necessidade do investimento na nova cultura da vinha obrigaram ao
processo de mudança da posse útil do domínio fundiário. Assim, em 1649 Maria Góis de
Vasconcelos do Porto da Cruz entregou a terra a um colono para que lançasse as necessárias ben-
feitorias “pois ela era pobre e não tinha possibilidades para isso”. O sistema, síntese das preocu-

149 . O debate em torno do tema manteve-se por muito tempo. Junta-se a informação bibliográfica mais significativa: António
Correia, Herédia, Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgadios na Madeira Offerecidos Á Consideração da Liga Promotora
dos Interesses Materiaes do Paiz, Lisboa, 1849. Pedro de Góis Pitta, O Contrato de Colonia na Madeira, Lisboa, 1929. Manuel
Soares da Rocha, A Colonia no Arquipélago da Madeira e a questão que gerou, Funchal, 1957. Ramon Honorato Correa
Rodrigues, A Colonia na Madeira, Problema Moral e Económico, Funchal, 1947. IDEM, Questões Económicas. A Margem da
Colonia na Madeira: Produção. Divisão da Propriedade. Nível de Vida da População Rural e Agrícola. Porto Santo. Condições
de Ressurgimento, 1º tomo, Funchal, 1953. Joaquim Ricardo da Trindade e Vasconcellos José António d’Almada, Projecto de Lei
Regulamentar do Contrato de Colonia ou Parceria Agricola na ilha da Madeira, Funchal, 1867. Manuel José Vieira, A Questão
da Propriedade na Madeira. Discurso pronunciado na Camara dos Senhores Deputados na Sessão de 7 de Julho de 1888 pelo
deputado..., Funchal, 1888. Jorge Valdemar Guerra, A Colonia na Madeira. Um Testemunho do séc. XVIII, Islenha, 9, 1991, 93-
123. João José de Sousa, A Origem da Colonia, Islenha, 13, 1993, 47-73. João Lizardo, Algumas Notas e Várias Dúvidas sobre a
Colonia nos dois últimos Séculos, Islenha, 14, 1994, 137-142.
150 . A Colónia na Madeira problema moral e económico, Funchal, 1947; Questões Económicas. A Margem da Colónia na Madeira:
Produção e Divisão da Propriedade. Nível de vida da população rural e agrícola, Funchal, 1953.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Queda de água.século XIX.


Colecção Casa-Museu Frederico de Freitas

O PODER DA ÁGUA

Um dos aspectos particulares da cultura da cana-de-açúcar na Madeira prende-se com a neces-


sidade de água e da avultada presença de mão-de-obra, escrava ou não. As condições geo-climáti-
cas da ilha fizeram que a cultura fosse de regadio e tornaram todo o trabalho agrícola e industrial
extremamente penoso. A solicitação de mão-de-obra foi maior que em qualquer outro sítio. Antes
de lançar as socas de cana à terra os primeiros habitantes tiveram de abrir clareiras e traçar os
poios, encosta acima. Depois, foi a dificuldade no traçar das levadas e de condução da cana aos
poucos engenhos e do açúcar aos portos de escoamento. Tudo isto foi trabalho duro só possível com
uma forte presença de escravos.
Na Madeira, mais do que em outro qualquer lugar onde se implantou a cultura, a aposta na água
e árduo trabalho foi fundamental para a afirmação da cultura. Aqui, as dificuldades foram acresci-
das, por isso, o açúcar só conseguiu afirmar-se nos séculos XV e XVI, enquanto foi o único no
Atlântico. A concorrência do açúcar de outras proveniências, conseguido com menores custos de
produção, veio a prejudicar o madeirense e a provocar inevitavelmente uma descida do preço e o
afastamento do da Madeira.
A água tem uma função fundamental no curso da História. Ela é a fonte da vida e da História.
Aproxima povos e civilizações. Faz medrar as culturas verdejantes nos campos e substitui-se ao
homem em algumas das tarefas. Assume um papel fundamental na História material, orientando
as formas de vida e desenvolvimento económico das populações que dela se podem servir. A água
foi e continua a ser um elemento vital ao progresso e bem-estar do Homem.151 É neste sentido que
a historiografia marxista a valoriza152. Mas, a distribuição e uso não foi fácil. Mobilizou povos,
monarcas engenheiros e trabalhadores para grandes obras de engenharia. Em alguns casos, esta-
mos perante as sociedades hidráulicas153. E, segundo alguns estudiosos marxistas, definiu uma

151. Confronte-se: L’eau et les hommes en Mediterranée, Paris, 1987; A. LÓPEZ GÓMEZ, Estudios sobre regadíos valencianos,
Valência, 1989.
152. Confronte-se: Maria Teresa PÉREZ PICAZO e Guy LEMEUNIER (eds.), Agua y modo de producción, Barcelona, 1990.

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forma peculiar de estruturação de algumas sociedades, que ficaram conhecidas como modo de pro- pulacional e aposta agrícola assim o definiram. Os cronistas são disso testemunho. O caso mais evi-
dução asiático154. É de salientar que na Madeira os grandes empreendimentos hidráulicos são da dente encontra-se em Gaspar Frutuoso, onde vemos que a existência ou não de água condicionou
responsabilidade dos particulares, cabendo à coroa apenas a função de criar as condições para este o assentamento dos primeiros povoadores em todo o espaço da ilha. Aliás, a água foi aquilo, jun-
investimento, com a obrigatoriedade de todos os colonos à permissão de passagem das levadas. A tamente com a densa floresta, que mais despertou a atenção dos portugueses: “...e não viam mais
intervenção do estado é recente e surge a partir da década de quarenta com a Comissão de que correntes, ribeiras, fontes e regatos, que, por antre ele, vinham com grande frescura deferir ao
Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira. mar”159. E é o mesmo quem, depois de uma descrição exaustiva da ilha conclui: “toda ela se rega
A Madeira não ficou alheia à situação, uma vez que o progresso inicial se deveu à abundância com grande abundância das águas que tem, que, como veias em corpo humano, a estyão humede-
da água. Hoje, a Ilha da Madeira apresenta-se com duas áreas hidrográficas distintas: as vertentes cendo e engrossando e mantendo, com que se faz rica, fresca, formosa e lustrosa.”160. A partir daqui
norte e sul. Isto é, resultado das condições orográficas da ilha mas também da intervenção do podemos afirmar que o sucesso do povoamento e valorização económica da ilha são resultado do
Homem no corte da densa floresta que a cobria, aquando do encontro pelos europeus155. Ao con- facto de a ilha ser “toda regada com água”, como refere o historiador das ilhas.
trário do que é habitualmente referido o sistema de regadio madeirenses não tem origem nos As ribeiras exerceram aqui um papel fundamental. Foi por elas que entraram os primeiros
árabes, que foram os divulgadores do sistema por elevação. O que ficou definido na Madeira foi o europeus que reconheceram a ilha e nelas se assentaram os primeiros núcleos de povoamento. É,
sistema por força da gravidade que já existia no Norte de Portugal, região que não mereceu a na verdade, no leito e margens das ribeiras que se joga a nossa História161. A bravura, tão pouco ate-
influência moura. Note-se que ainda hoje na Serra da Estrela o sistema de distribuição de água faz- morizou os colonos, como sucedeu com a fixação no local da Ribeira Brava, que foi buscar o nome
se por levadas, sendo as actividades e nomenclatura em todo semelhante à madeirense. a isso mesmo162. Note-se que isto causou inúmeros transtornos aos madeirenses, que viveram, a par-
Tendo em conta a importância que a água assume para a cultura a safra do açúcar é necessário tir do século XVII, sob a ameaça das aluviões. Aqui insiste-se na necessidade de muralhas de pro-
não esquecer a forma da distribuição e posse. Para regular de forma eficaz a distribuição surgiram tecção no Funchal163 e Ribeira Brava164. Na cidade dá-se conta do dilúvio de 22 de Janeiro de 1605165,
os relógios, propriedade dos heréus, de que existe apenas um, em pleno funcionamento na levada que destruiu 130 casas e as três pontes.
do Poiso nos Canhas. A água corria nas ribeiras, em abundância na vertente norte. No sul os cau- Facto significativo é o de as principais freguesias terem à cabeceira uma ou mais ribeiras. O
dais eram, na época estival, quase todos desviados para as levadas156. É, na verdade, no leito e mar- Funchal, principal assentamento da ilha, é cortado por três ribeiras. É Gaspar Frutuoso quem tam-
gens que se joga a História da ilha. Facto significativo é o de também as principais freguesias terem bém o relaciona: “...deleitoso vale ao mar três grandes e frescas ribeiras, ainda que não tão sober-
à cabeceira uma ou mais ribeiras. O Funchal, principal assentamento da ilha, é cortado por três bas, na aparência, como a de Machico; eram, porém, muito formosas por todas virem acabar ao
ribeiras. mar, saídas deste vale.”166.
Todas as terras de canaviais estavam servidas de levadas, dispondo de horas de água suficientes Ao homem estava atribuída a dura tarefa de desviar a água do curso das ribeiras fazendo com
para o seu regadio. Nos contratos de arrendamento e de meias a água está presente, sendo também que movessem engenhos, moinhos e irrigar os canaviais e demais culturas. Para isso, traçaram km
propriedade inalienável do proprietário da terra. Em finais do século XVI as terras dos Lomelino de canais para a condução, que ficaram conhecidos, na ilha, como levadas167. O sistema permitiu
em Santa Cruz incluíam canaviais com 10 covados, dispondo de 30 horas de água157. um maior aproveitamento dos socalcos e o alívio do homem em algumas tarefas, como sejam, o
Nos séculos XV a XVII a água corria nas ribeiras, em abundância na vertente norte. No sul os moer do grão e da cana e o serrar das madeiras. Moinhos, engenhos e serras convivem pacifica-
caudais eram, na época estival, quase todos desviados para as levadas158. A maior concentração po- mente usufruindo da água que corre na mesma levada. A orografia da ilha ao mesmo tempo que

153.Confronte-se A. WITTFOGEL, Despotismo Oriental. Estudio comparativo del poder totalitário, Madrid, 1966.
154. Sur les Sociétés Précapitalistes, Paris, 1970.
155.Confronte-se Orlando RIBEIRO, A ilha da Madeira até meados do século XX, Lisboa, 1985, pp.62-70. 159. Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p.46.
156. Note-se a abissal diferença com as Canárias, onde a água foi sempre escassa e jogou um papel fundamental em todo o proces- 160.Ibidem, p.139
so de ocupação das ilhas. Por outro lado a política estabelecida para a água é semelhante: de património comum passa, a pouco 161. Confronte-se Gaspar FRUTUOSO, ibidem, pp.48, 88, 109, 115, 117, 119-120, 129.
e pouco, para o domínio privado. Confronte-se: J. HERNANDEZ RAMOS, Las Heredades de aguas en Gran Canaria, Madrid, 162 Diz Gaspar FRUTUOSO (ibidem, p.123): “A ribeira é tão furiosa e faz muito dano, por vir de grandes montes e altas serras, e
1954; Antonio M. MACÍAZ HERNANDEZ, “Aproximación al processo de priavatizacion del agua en Canarias, c. 1500-1879”, por ser desta maneira lhe vieram a chamar brava”.
in AGUA y modo de producción, Barcelona, 1990, pp.121-149. 163.ARM, C. M. F., nº.1317-1322.
157 . Jorge Valdemar Guerra, O Convento de Nossa Senhora da Piedade de Santa Cruz. Subsídios para a sua História, Islenha, 164. Em 1597 (ARM, CMF, nº.1313, fl.41: 29 de Agosto) a câmara do Funchal mandou aplicar vinte mil réis no concerto da Ribeira
20(Funchal, 1997), p.135. Brava, de modo a evitar que a mesma levasse a igreja de S. Bento.
158. Note-se a abissal diferença com as Canárias, onde a água foi sempre escassa e jogou um papel fundamental em todo o proces- 165. ARM, CMF,, nº. 1316, fls.14-14vº: 21 de Fevereiro. As aluviões foram uma constante a partir do século XVIII. Veja-se Fernando
so de ocupação das ilhas. Por outro lado a política estabelecida para a água é semelhante: de património comum passa, a pouco Augusto da SILVA,”Aluviões”, in Elucidário Madeirense, vol. I, pp.54-58.
e pouco, para o domínio privado. Confronte-se: J. HERNANDEZ RAMOS, Las Heredades de aguas en Gran Canaria, Madrid, 166. Ibidem, pp.47-48.
1954; Antonio M. MACÍAZ HERNANDEZ, “Aproximación al processo de priavatizacion del agua en Canarias, c. 1500-1879”, 167 . Há quem aponte serem uma adaptação das técnicas valencianas. Veja-se Felipe FERNÁNDEZ-ARMESTO, The Canary islands
in AGUA y modo de producción, Barcelona, 1990, pp.121-149. after the conquest, Oxford, 1982, nota 27, p. 99.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

dificultava a condução da água favorecia o aproveitamento, pela força motriz atribuída pelos da terra e da água170. Contra isto militaram as medidas pombalinas, levadas a cabo pelo
declives acentuados. Foi um trabalho hercúleo, referido muitas vezes pelos visitantes e recordado Governador José António de Sá Pereira171.
com apreço pelos especialistas, como o Eng.º. Amaro da Costa: O documento de 1493 determina de forma evidente a importância assumida pelas levadas no
“... a levada, de limitadas proporções no início; mas já a denotar arrojo para mais lar- sistema de distribuição de águas. As levadas podem ser públicas ou privadas. As últimas eram de
gos voos indo sempre mais longe e mais acima até aos recônditos das serranias; furou as mon- iniciativa particular precisando de uma autorização. Temos em 1495 a licença a Pero Fernando
tanhas; riscou as muralhas rochosas talhadas a pique em centenas de metros de altura; para tirar água da Ribeira de Água d’Alto (Ponta Sol)172. Uma das tarefas dos primeiros colonos foi
debruçou-se nos abismos; venceu as cristas; saltou nos despenhadeiros; dobrou-se nos refegos a tiragem das levadas. Por isso elas são os imemoriais testemunhos do labor do homem insular que
das ravinas; amansou-se nas chãs; e, por fim, exausta, entregou-se a todos, através de uma se perpetuaram na ilha, a exemplo dos imponentes aquedutos peninsulares173. Em 1496174 parece
rede vascular tão densa, que torna maravilhosa a chegada ao termo. Mas a mingua no fim da que, ao menos no Funchal, estava delineado o sistema de regadio pelo que na Ribeira de Santa
caminhada é por vezes tamanha, que dolorosamente contrasta com tanta luta.”168 Luzia não se permitiu mais a abertura de novas levadas ou a tiragem da água, acima das já exis-
tentes. Isto foi resultado da pretensão de alguns heréus quererem tirar outras mais acima das já exis-
tentes no sentido de aproveitar as terras acabadas de arrotear. A coroa insiste na proibição em nova
O USO E ABUSO DA ÁGUA levada em cota superior, punindo os infractores com pesadas penas175. Na verdade, segundo nos
conta Gaspar Frutuoso176, a Ribeira de Santa Luzia servia várias levadas, sendo uma delas para os
Aguas e nascentes surgem nos primeiros documentos emanados para a ilha, como domínio cinco moinhos do capitão e um engenho. O Funchal ficou servido, ainda, por outras como a dos
público. Assim, o entendia D. João I no capítulo de um regimento dado a João Gonçalves Zarco Piornais, do Pico do Cardo e Castelejo. Fora do Funchal, Gaspar Frutuoso, refere a levada manda-
onde considerava nesta situação as “fontes, tornos e olhos daugua... prayas e costas do mar, rios e da construir por Rafael Catanho que servia Machico e Caniçal, em que gastou cem mil cruzados.
ribeyras”. Todavia, a água foi um problema ao longo da História da ilha, pois desde o começo sur- Também na Ribeira dos Socorridos temos outras levadas de iniciativa particular: a do engenho de
giram açambarcadores a reivindicar para si a posse exclusiva. Em 1461 coloca-se a primeira difi- Luís de Noronha que lhe custou 20.000 cruzados; a de António Correia para as terras da
culdade na repartição no que o Duque responde que, o almoxarife mais dois homens ajuramenta- Torrinha177. Nos diversos contratos de meias, arrendamento e de colonia, em que os canaviais
dos, repartam “as auguas a cada hum pera seus açuquares e logares segumdo cada hum mereçeer”. jogam um papel fundamental, a água está sempre presente. Nas referentes ao Convento de Santa
Mesmo assim, continuaram as demandas pelo que em 1466 o duque decidiu mandar à ilha, Dinis Clara a instituição assume o compromisso de atribuir água necessária178.
Anes de Sá, seu ouvidor, com intuito de resolver esta e outras questões169. Outro problema, não menos importante, foi o da partição da água. Desde o início que a coroa
Nas áreas de maior concentração populacional e de intensivo aproveitamento do solo, como foi recomendara todo o cuidado nisso, ficando com tal encargo o almoxarife, auxiliado por dois
o caso do Funchal, a água das ribeiras não foi suficiente para suprir as solicitações dos vizinhos. homens eleitos para este fim. A distribuição era feita para toda a semana, excepto o domingo que
Deste modo, em 1485 o Duque D. Manuel recomendava que as águas da Ribeira de Santa Luzia ficava comum a todos, pois tal como refere a coroa em 1493 era “comtra comçiencia”. A
fossem usadas apenas nos engenhos, moinhos e benfeitorias que dela se serviam não podendo ser
desviadas para outro fim. Idêntica recomendação repete-se em 1496. A ribeira servia vários engen- 170. Confronte-se AHU, Madeira e Porto Santo, nº 3281, 5 de Novembro de 1813. Publicado por E. C. ALMEIDA, Archivo da
hos e os moinhos do capitão do Funchal. Marinha e Ultramar. Madeira e Porto Santo, Vol. I, pp. 223-225, 238. Existem livros da distribuição das águas apenas a partir do
século XVIII: ARM, Câmara de Santa Cruz, nº.135; Câmara da Ponta de Sol, nº.181; Câmara do Porto Santo, nº.46, 124; BNL,
Foi com D. João II que ficaram definidos os direitos sobre a água, que perduraram até ao sécu- Secção de Reservados, cod. 8391, carta de 19 de Outubro. Em alvará de D. Henrique de 18 de Agosto de 1563 (ibidem) determi-
lo XIX. Por cartas de 7 e 8 de Maio estabeleceu-se, de uma vez por todas, que as águas eram na-se a criação do cargo de avaliador para determinar o preço da água; J. José de SOUSA, “As levadas”, in Atlântico, nº. 17, 1989,
património comum sendo distribuídas pelo capitão e oficiais da câmara, entre todos os propri- pp.41-47.
171. AHU, Madeira e Porto Santo, nº.3045: provisão régia de 5 de Março de 1770 e ofício do governador de 8 de Novembro de 1774.
etários pois que “sem as agoas as terras se não podiam aproveitar”. A partir daqui a água é pro- 172. ANTT, Livro das Ilhas, fls. 51-51vº.
priedade pública sendo o usufruto para os que possuíssem terras e dela necessitassem. Todavia, 173. Confronte-se Julio SAMSÓ, Las Ciencias de los Antiguos en el Al-andalus, Madrid, 1992.
desde finais do século quinze, a água passou a ser negociada a exemplo do que sucedia com a terra. 174. 29 de Setembro de 1496, AHM, XVII, pp. 348-349. O mesmo já havia sido estatuído a 22 de Março de 1485, AHM, XV, 151-
154.
É com o regimento de D. Sebastião em 1562 que se procede a uma alteração no sistema primitivo. 175. . Alvará de 22 de Fevereiro de 1515, AHM, Vol. XVIII, 560-561.
As águas podem ser vendidas ou arrendadas, o que permitiu aumentar o fosso entre a propriedade 176. Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p. 110.
177. ANTT, Livro das Ilhas, fls. 51-51vº;29 de Setembro de 1496, AHM, XVII, pp. 348-349. O mesmo já havia sido estatuído a 22 de
Março de 1485, AHM, XV, 151-154; Alvará de 22 de Fevereiro de 1515, AHM, Vol. XVIII, 560-561;Livro Segundo das Saudades
da Terra, Ponta Delgada, 1979, p. 110, 78. Em 12 de Junho de 1515 é referenciada a levada de Manuel de Noronha na Ribeira
168. “O aproveitamento da água na Madeira”, in Das Artes e Da História da Madeira, nº.5, 1951, p.14. dos Socorridos, ARM, RGCMF, t.I, fl.348-349, in AHM, vol. XIX, p. 20. Vide 13 de Janeiro de 1493, AHM, XVI, nº 266, p. 277.
169 . Álvaro Rodrigues de AZEVEDO, “nota XXVI” in Saudades da Terra, Funchal, 1873, p. 673: carta de 3 de Agosto de 1461, 178. Cf. João José Abreu de SOUSA, O Convento de Santa Clara do Funchal, Funchal, 1991, pp.101-112; IDEM, História rural da
AHM, Vol. XV, 16-18 e de 10 de Maio de 1466, AHM, XV, pp. 32-33. Madeira. A colonia, Funchal, 1994.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

manutenção foi outra preocupação a que o capitão deveria tomar conta, conforme ordem de D. logar passante de vinte mil cruzados, fora o muito mais que fez de custo levala dali quatro
Catarina de 1562. Mais se recomendava que aqueles que não tivessem necessidade das águas que legoas, alem de muitas mortes de homens que trabalhavam nella em cestos amarrados com
dispunham não as podiam arrendar a ninguém a não ser para se regar os canaviais. Apenas, os que cordas penduradas pela rocha, como quem apanha urzela; porque he tão alcantilada e
haviam tirado levadas próprias podiam dar ou vender as águas. A coroa apoiou a reparação das le- íngreme a rocha em muitas partes que não se faziam nem se podiam fazer d’outra maneira
vadas da Ribeira dos Socorridos, dos Piornais e Castelejo com o intuito de incrementar de novo a estancias para assentar as calles sem passar por estes perigos. Tem duzentos e oitenta lanços
cultura dos canaviais, que tinham preferência na nova redistribuição das águas179. por onde vai esta agoa que postos enfiados hum diante do outro terão hum quarto de legoa
A água das levadas tinha um elevado aproveitamento, pois, para além do uso industrial e do de comprido; são de taboado de til, pella mayor parte tem cada taboa vinte palmos de com-
regadio, era canalizada para o consumo das casas e limpeza das ruas da cidade. Os poços existiam prido e dous de largo; e depois de assentadas estas calles na rocha, fazem o caminho por den-
um pouco por toda a cidade180, mas não eram suficientes para as necessidades. Destaca-se aquele tro dellas os levadeiros que continuamente tem cuidado de as remendar e concertar,
que servia toda a população em Santa Maria, situado no hoje Largo do Poço, construído por alimpadas também da sugidade e pedras que acontece cahir nellas, e fazer outras cousas ne-
Afonso Fernandes181. Em 1566, após o assalto dos franceses à cidade, as ruas ficaram imundas pelo cessarias a levada, pelo que tem grossos soldos, por terem officio de tão grande trabalho e
que “se soltaram depois as levadas, que regam os açúcares, e lavaram toda aquela sujidade”182. De tanto perigo.
acordo com as posturas sabe-se que o município procedia à limpeza das ruas da cidade entre as Nesta rocha está huma furna grande que serve de casa para os levadeiros, e para guardar
tardes de sábado e domingo, ficando proibido o uso das águas das ribeiras da cidade183. nela munições necessárias de enchadas, alviões, barras, picões, marrões e outras ferramentas;
Os conventos, como os dos Jesuítas, de Santa Clara e S. Francisco eram servidos por água das e nella se metem cada anno dez e doze pipas de vinho para os que trabalhão na levada e ou-
levadas. As freiras de Santa Clara tinham um aqueduto próprio que em 1663 foi danificado o que tras pessoas que a vão ajudar a reformar, quando quebrão alguns lanços de calles; e he cousa
resultou grande prejuízo “por não terem água alguma de que pudessem beber e cozinhar e se monstruosa a quem vê isto com seus olhos a estranha e aventureira invenção que se teve para
servirem para o fabrico de seus doces”184. se tirar dali esta agua”188.
Fora do Funchal, Gaspar Frutuoso185, refere a levada mandada construir por Rafael Catanho que A manutenção das levadas foi outra preocupação a que o capitão deveria tomar conta, conforme
servia Machico e Caniçal, em que gastou cem mil cruzados. Também na Ribeira dos Socorridos ordem de D. Catarina de 1562189. Mais se recomendava que aqueles que não tivessem necessidade
temos outras levadas de iniciativa particular: a do engenho de Luís de Noronha que lhe custou 20 das águas que dispunham não as podiam arrendar a ninguém, não ser para se regar os canaviais.
000 cruzados186; a de António Correia para as terras da Torrinha187. É, ainda, Gaspar Frutuoso quem Apenas, os que haviam tirado levadas próprias podiam dar ou vender as águas. A coroa apoiou a
nos descreve uma das levadas: reparação das levadas da Ribeira dos Socorridos, dos Piornais e Castelejo com o intuito de incre-
“Perto da Fonte, onde nasce a agoa desta ribeira dos Acorridos, se tirou a levada della mentar de novo a cultura dos canaviais, que tinham preferência nesta nova redistribuição das
para moer o engenho de Luiz de Noronha; e dizem que do logar donde a começaram a tirar águas.
até donde se começão a regar os canaviaes ha bem quatro legoas por se tirar de tão grande A tradição de traçar levadas fez com que os madeirenses se tivessem transformado em exímios
fundura da ribeira em voltas que para chegar acima à superfície da terra e começar a cami- construtores, levando a tecnologia para todo o lado onde se fixaram. Primeiro, foi as Canárias190 e,
nhar atravessando lombos, fazendas e grandes rochedos por cima pela serra por onde vai esta depois, na América. A perícia e engenho do madeirense estão evidenciados na reclamação de
levada, tem de alto mais de seicentas braças; da qual altura, que he muito íngreme, se tira a Afonso de Albuquerque para que o rei lhe mandasse madeirenses “que cortavam as serras pera fa-
agoa em calle de páo em voltas até se pôr na terra feita, e sem falta custou chegar pola em tal zerem levadas, com que se regam as cannas de açúcar”, para desviar o curso do rio Nilo191.
O plano de levadas da ilha não ficou concluído no século XVII foi apenas adiado pela afirmação
179.Veja-se lista de heréus feitas em 28 de Abril de 1674 (C.M. Machico nº 85, fl. 312vº-316), e 11 de Julho 1677 (Ibidem, fls. 337vº- da vinha, uma cultura de sequeiro, e, por isso mesmo, quando a cana retornou à ilha, no século
341); 13 de Janeiro de 1493, AHM, XVI, nº 266, p. 277; 19 de Outubro, ARM, RGCMF, T. II, fls. 76-77vº . XIX, de novo se pôs a questão das levadas para irrigar os canaviais e mover os engenhos. A água
180. Está testemunhada a existência de alguns poços no recinto da cidade. Veja-se Gaspar FRUTUOSO, ob.cit., pp.112, 117, 396. A
casa de João Esmeraldo tinha também o seu poço; veja-se Escavações nas Casas de João Esmeraldo- Cristóvão Colombo. adquire de novo uma dimensão económica importante, levando as autoridades a nova intervenção
Catálogo, Funchal, 1989. Também são de referir as Fontes de João Dinis, junto da Fortaleza de S. Lourenço (Alberto Artur SAR- no sentido da regulamentação e do traçar de novas levadas para alargar a área de regadio e, por
MENTO, Fasquias e Ripas da Madeira, Funchal, 1951, pp.107-123). consequência, dos canaviais. É de salientar que o regime jurídico das águas, estabelecido em 1493
181. ARM, RGCMF, t.I, fl.80v1-81vº, publ. in AHM, vol. XIX, p.8.
182.Ob.cit, p.359.
183. ARM, Posturas, nº.685, fls. 7-10; CMF, nº.1311, fls. 21 e 59 (1589).
184. ANTT, Convento de Santa Clara, maço.11, sem número. 188. Ob. cit., pp.120-121.
185. Ibidem, p. 78. 189. 19 de Outubro, ARM, RGCMF, T. II, fls. 76-77v1.
186. Em 12 de Junho de 1515 é referenciada a levada de Manuel de Noronha na Ribeira dos Socorridos, ARM, RGCMF, t.I, fl.348- 190. Filipe FERNANDES-ARMESTO, The Canary Islands after the conquest, Oxford, 1982; Leoncio ALFONSO PEREZ,
349, in AHM, vol. XIX, p. 20. Miscelanea de temas canarios, Santa Cruz de Tenerife, 1984, pp. 223-268.
187. 13 de Janeiro de 1493, AHM, XVI, n1 266, p. 277. 191..Comentários de Afonso de Albuquerque, vol. II, Lisboa, 1973, parte IV, cap. VII, p.39.

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por D. João II, perdurou até 1867, altura em que foi ANEXO 1: RIBEIRAS
aprovado um novo Código Civil. A partir de então
água e terra são duas realidades distintas, vindo a
agravar a situação, por ser favorável à especulação, situ- LOCALIDADES RIBEIRAS
ação que foi atacada por leis de 1914 e 1931. Seis anos DESIGNAÇÃO ESTATUTO PRINCIPAL SUBSIDIÁRIAS
após o governo avançou com uma política específica da Machico vila Machico Seca, nova, Grande, das Cales e da Ponte
água que chegou à Madeira em 1939. A criação da Santa Cruz vila Santa Cruz
Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Boaventura
Hidráulicos da Madeira (1943) foi o ponto de partida Porto Novo Pedro Lourenço, dos Boieiros, Lajes
para a mudança na política da água e áreas de regadio Caniço
na ilha192. Funchal cidade Gonçalo Aires
As levadas são ainda hoje uma constante na pais- Funchal cidade João Gomes Cales
agem madeirense, transformando-se em locais Funchal cidade Santa Luzia
aprazíveis para os passeios a pé193. Desde muito cedo, Funchal cidade S. João Santo António e Penteada
despertaram a atenção dos visitantes, que não se Socorridos Furado e Gomeira
C. Lobos Freguesia Vigário Caldeira
cansam em louvar o trabalho hercúleo do madeirense
Campanário
na construção194.
Ribeira Brava freguesia Ribeira Brava Furna, Fajã das Éguas, Funda, das Maltas,
Nogueira, Pico e Poço
Tabua freguesia Tábua
Ponta de Sol vila Ponta de Sol Juncal
Madalena do Mar freguesia Madalena Cova Grande e Caldeirão
Serra de Água da Calheta
Calheta vila Calheta
S. Bartolomeu Raposo
Funda
Seca
Marinheiros
Moinhos
Cruz
Tristão
Ribeira da Janela freguesia Janela Cedro, Água Negra, grande e Alecrim
Seixal freguesia Seixal
Inferno
S. Vicente freguesia S.Vicente Grande, Seca e Monte do Trigo
Moinhos
Levada do Rabaçal. 1885 192. Manuel R. Amaro da COSTA, “O aproveitamento da água na ilha da Madeira”, in Das artes e da História da Madeira, nº.4/5,
Foto Vicentes. Museu Photographia Vicentes Boaventura (do Porco) Ursal, João Fernandes
11, 1950-1952; Aproveitamentos hidraulicos da ilha da Madeira 1944-1969, Funchal, 1969. Em 1949 Orlando RIBEIRO (A ilha
da Madeira até meados do século XX. Estudo geográfico, Lisboa, 1985) refere que existia na ilha duzentas levadas com cerca de S. Jorge freguesia S. Jorge Lombo das Queimadas, Touros, Marques e Grande
mil km de comprimento. Foi após essa data que se fizeram sentir os resultados do plano de aproveitamentos hidráulicos, que fez Faial Freguesia Faial S. Roque do Faial, Metade e Seca
aumentar a extensão das levadas em mais de trezentos Km e a área irrigada em 13900 Ha. Porto da Cruz Freguesia Porto da Cruz
193. Confronte-se Raimundo QUINTAL, “Veredas e Levadas”, in Diário de Notícias, Funchal, 5, 19 de Março, 14 e 28 de Maio, 23
de Julho, 1 e 29 de Outubro, 12 de Novembro, 24 de Dezembro de 1989, 4 de Fevereiro, 18 de Março e 10 de Junho de 1990.
194. Tenha-se em atenção os seguintes testemunhos: Isabella de FRANÇA, Jornal de uma visita à Madeira e a Portugal 1853-1854,
Funchal, 1970, pp.107-108; José Maria Ferreira de CASTRO, Eternidade, Lisboa, s.d., cap. XI.

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ANEXO 2: LEVADAS DA MADEIRA

LEVADA LOCAL PROPRIETÁRIO


LEVADA LOCAL PROPRIETÁRIO Prata Calheta
Sta Luzia Funchal(R0 Sta Luzia) Azenha Calheta
Piornais Funchal(R0 Sta Luzia) Luís de Velosa Dória Raposo Calheta
Castelejo Funchal(R0 Sta Luzia) Netos Calheta
D.Isabel Funchal(R0 Sta Luzia) Paúl da Serra Calheta
Moinhos Funchal(R0 Sta Luzia) Azenha Calheta
Bom Sucesso Funchal(R0 João Gomes) Pico da Urze Arco da Calheta
Palheiro Ferreiro Funchal Moinhos E. Calheta
Cova do Vento Funchal Senhora E. Calheta
Queda de Água. Cales Funchal Encumeada da Calheta Fajã da Ovelha
Séc. XIX. Canas Funchal Encumeada da Calheta Ponta do Pargo
Colecção Casa
Museu Frederico de
Alegria Funchal Ferreiros Calheta
Freitas Negra Funchal Castelejo Porto da Cruz
Serra Funchal Ribeiro Frio Faial
Lombo Funchal Agua de Alto Faial
Paredão Funchal Asilo Faial
Madalena Funchal(Sto António) Castanheiro Santana
Furado Machico Rafael Catanho Grande Santana
Figueiras Machico Palheiros Santana
Moinhos Machico Caldeira Santana
Rocha Machico Velha S. Jorge
Desembarcadouro Machico Nova S. Jorge
Chão do linho Santa Cruz do Rei S. Jorge
Morena Santa Cruz Faias Boaventura
Roda Santa Cruz Achada Grande Boaventura
Pico do Arvoredo Santa Cruz Pastel Boaventura
Pico dos Eirozes Santa Cruz Igreja Boaventura Construção da Levada do Norte.1947
Moinhos da Serra Santa Cruz Grande Ponta Delgada
Salgados Caniço Cabouco Ponta Delgada
Azenha Caniço Entre Ribeiras S. Vicente
Preces C.Lobos Folhadal S. Vicente
Fonte Serrão C.Lobos Passada S. Vicente
Curral C.Lobos Encontro S. Vicente
Castelejo C. Lobos Poio S. Vicente
Álvaro Figueira C. Lobos Saramago S. Vicente
Serra da Tábua Tabua Barros S. Vicente
Ribeira do Poço Serra de Água Vimieiros S. Vicente
Roda R.Brava Soquinhas S. Vicente
Corujeira P.Sol Feiteirinhas S. Vicente
Marques Teixeira P.Sol Junca S. Vicente
Cabral P.Sol Chão da Ribeira Seixal
Paul P.Sol Lombo dos Cedros de Além de Cima Ribeira da Janela
Pinheiro P.Sol Lombo dos Cedros de Além de Baixo Ribeira da Janela
Moinhos P.Sol Brasileiros Porto Moniz
Grande Calheta Moinhos Porto Moniz

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Construção da Levada do Norte.1947

FORMAS DE EXPLORAÇÃO E DOMÍNIO

A evolução do movimento demográfico e a valorização das zonas aráveis com as culturas de


exportação conduziram a profundas alterações na distribuição e posse das terras. Os mercados
condicionaram um maior aproveitamento do solo arroteável, tornando-se urgente um adequado
reajustamento da estrutura fundiária à nova situação.
A lei de 9 de Outubro de 1501 pôs termo à concessão de terras de sesmarias, como forma de
impedir a diminuição do parque florestal, tão necessário à laboração do açúcar. A partir deste
momento, toda a aquisição de terras só poderia fazer-se por compra, aforamento ou transmissão
por via familiar, por meio da herança, sucessão e dote. Enquanto a compra e venda surgem como
mecanismos de concentração da propriedade nas mãos da aristocracia e burguesia enriquecidas
com os proventos da primeira fase de colonização, ou dos estrangeiros recém-chegados, a herança
e dote actuam no sentido inverso conduzindo à desintegração da grande propriedade. A primeira
situação documenta-se com a maior acuidade no século XVI e mesmo em finais do século anteri-
or, sendo disso prova a escritura de 28 de Janeiro de 1498 em que João Esmeraldo, fidalgo fla-
mengo, compra a Rui Gonçalves da Câmara, filho de João Gonçalves Zarco, as terras na Lombada
da Ponta de Sol. Em consonância com estas mutações tivemos a afirmação do sistema de vincu-
lação da terra, no reinado de D. Manuel, que veio dar origem ao contrato de colonia196.
Na Madeira o primeiro grupo de colonos é eminentemente nacional, pois só num segundo
momentos surgem os estrangeiros. A situação contrasta com as Canárias, onde o estrangeiro está
comprometido com a conquista e início da ocupação das ilhas. João Esmeraldo é um exemplo entre
muitos os estrangeiros que, entre finais do século XV e meados do século XVI, fixaram morada nas
principais áreas de canaviais da vertente meridional. Todos eles, atraídos pelo comércio do açúcar,
acabaram investindo os proventos em canaviais, engenhos e levadas197. Bem relacionados com a alta

195.Por partes do fundo entendia-se nos séculos XV e XVI o espaço agrícola que ficava entre C. de Lobos e a Calheta e que inte-
grava a melhor área de canaviais.
196. Veja-se Fernando A. da SILVA, A Lombada dos Esmeraldos na ilha da Madeira, Funchal, 1933; Miguel Jasmins RODRIGUES,
“Os Esmeraldos da Ponta de Sol. Uma família nobre na ilha”, in I CIHM, vol. I, pp.612-666; Alvaro Rodrigues de AZEVEDO,
“Anotações”, in Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso, Funchal 1873, pp. 471-478; Fernando A. da SILVA. Ibidem, II, pp. 171-
173.
197 . Destes podemos salientar, para além de João Esmeraldo, Simão Acciaoly, João Bettencourt, Pedro Leminhana Berenguer (o
Doutor), João Drumond, António Espindola, António Leme, Urbano e Sixto Lomelino, João Rodrigues Mondragão, João
Salviati, Adriano Espranger, João Valdevesso, Micer Batista, Meciote de Bettencourt, André França, Pedro Giralte, Martim
Leme, Rui Vaz Urzel e Benoco Amador. João Pedro de Freitas DRUMOND, Documentos Históricos e Geographicos sobre a ilha
da Madeira, ms. da Biblioteca Municipal do Funchal, fls. 15vº-17vº. Veja-se Maria do Carmo Jasmins PEREIRA. O Açúcar na
ilha da Madeira (século XVI), Lisboa 164, pp. 57-58.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

finança europeia e com os principais centros do comércio Canaviais de renda TOTAL


europeu, cativaram rapidamente a tenção da aristocracia e bur- Número %
guesia insulares com quem se relacionaram por meio de laços Funchal 12 8 142
de parentesco. O casamento, com o apetecido dote, foi muitas Câmara de Lobos 13 31 42
vezes a forma de alargarem os seus domínios e de firmarem a Campanário a Fajã da Ovelha 27 11 245
sua posição na sociedade insular198. Assim sucedeu com Benoco
Amador que casou com Petronilha Gonçalves Ferreira, viúva de Em 1494 generalizou-se o aforamento dos canaviais na capitania do Funchal, com especial
Esteves Eanes Quintal detentor de uma grande quinta em incidência nas partes do fundo202 e em Câmara de Lobos. Para o século dezasseis os livros referentes
Santo António e terras na Ponta de Sol, e que, por isso mesmo, ao quinto dão-nos apenas nove rendeiros na Calheta (1509, 1513-14), Ponta de Sol (1517) e Ribeira
em poucos anos se transformou num grande proprietário cuja Brava (1536). É de salientar o caso da Calheta com sete rendeiros.
fazenda foi resultado de compra, casamento e arrendamento,
por um lado, e o comércio, arrematação das rendas e emprésti-
mos, por outro199. Idêntica situação surge com João Esmeraldo, PROPRIETÁRIOS DE CANAVIAIS
Simão Acciaioly, Pedro Berenguer, João Drumond, Urbano
Lomelino, João Salviati e Micer Batista. O último era casado A presença da cultura no solo madeirense conduziu à reestruturação do regime fundiário de
com a filha de Tristão Vaz, capitão do donatário na capitania de modo a adequá-lo às condições específicas que a mesma gerava. Para a plena afirmação dos canavi-
Machico. ais foi necessário criar algumas condições para além das oferecidas pelo solo: a água para o rega-
Na Madeira, desde a segunda metade do século XV, se gene- dio e accionar os engenhos, a madeira e a lenha para os pôr em funcionamento, por um período
ralizaram os contratos de aforamento e meias que evoluem no prolongado de tempo.
século XVI para o contrato de colonia. O último é uma situação Foi de acordo com a disponibilidade dos factores de produção que os canaviais se expandiram
específica na Madeira, que tem a característica de se orientar pelo direito consuetudinário. Note-se no solo madeirense. Todavia, nunca atingiram a dimensão dos brasileiros ou antilhanos. Enquanto
Pesagem da cana. que os diversos contratos de arrendamento que chegaram até nós não são uniformes no compromis- em ambas as áreas a cultura era feita de uma forma exaustiva, estando os canaviais quase sempre
Foto Vicentes, Museu de Photographia Vicentes so entre ambas as partes, pois o senhorio tanto poderia contribuir com as benfeitorias, ou deixar o associados ao engenho, na Madeira a exploração era intensiva, em pequenas parcelas de terreno
serviço para o colono, reservando, no entanto, a posse sem qualquer encargo no fim. A norma era um (poios), devido às condições definidas pela orografia. Deste modo quando nos referimos à grande
contrato de duração limitada, obrigando-se o colono ao pagamento de uma renda anual ou a metade propriedade madeirense queremos apenas enunciar a situação interna da Madeira, que não pode
da produção. No Convento de Santa Clara conhecem-se vários contratos de arrendamento de meias, ser colocada ao mesmo nível da ilha de São Tomé, do Brasil e Antilhas.
alguns referem-se a serrados de canaviais, estabelecendo a forma de intervenção das partes e de torna- Os dados disponíveis no estimo de 1494 e nos livros do quarto e quinto para 1509 e
los rentáveis. O convento, mercê das doações recebidas ao longo do século XVI, transformou-se no 1537203esclarecem-nos sobre a situação fundiária em torno da cultura. De início as dificuldades no
maior proprietário da ilha200. Assim, em 1644 alargou-se a toda a ilha com 408 propriedades decla- estabelecimento dos poios para o cultivo dos canaviais terão conduzido a que se afirmasse a peque-
radas201, transformando-se, por isso mesmo, numa importante empresa agro-pecuária. na propriedade que depois avançou, a pouco e pouco, para a de maiores dimensões. A vinculação
O aparecimento de capitais estrangeiros e nacionais conduziu à intensificação do arroteamento dos canaviais, a crise que se viveu a partir da década de trinta do século dezasseis, contribuiu para
das terras e provocou alterações na posse por meio de transacções por compra, aforamento e arren- a tendência concentracionista dos canaviais. A situação condicionou o reforço da grande pro-
damento. priedade na Ribeira Brava e Calheta.
De acordo com o estimo de 1494 é patente um sistema de cultura dos canaviais organizado em
198. Assim sucedeu com Benoco Amador que casou com Petronilha Gonçalves Ferreira, Viúva de Esteves Eanes Quintal detentor
de uma grande quinta em Santo António e terras na Ponta de Sol e que por isso mesmo em poucos anos transformou-se num
regime de média e pequena propriedade pois que a média de produção oscila entre 117,23 arrobas
grande proprietário cuja fazenda foi resultado de compra, casamento e arrendamento, por um lado, e o comércio, arrematação
das rendas e empréstimos, por outro (Veja-se João de SOUSA, “Notas para a História da Madeira. Italianos na ilha. Benoco
Amador”, in “Cidade Campo”, supl. do Diário de Notícias, Funchal, 6 de Maio de 1984, p. 6). IdLntica situaÁ„o surge com Jo„o
Esmeraldo, Sim„o Acciaioly, Pedro Berenguer, Jo„o Drumond, Urbano Lomelino, Jo„o Salviati e Micer Batista. Este último era 201. ANTT, Convento de Santa Clara, lº, 18. Cf. João José Abreu de SOUSA, ibidem.
casado com a filha de Tristão Vaz, capitão do donatário na capitania de Machico. 202. Por partes do fundo entendia-se nos séculos XV e XVI o espaço agrícola que ficava entre C. de Lobos e a Calheta e que inte-
199. Veja-se João de SOUSA, “Notas para a História da Madeira. Italianos na ilha. Benoco Amador”, in “Cidade Campo”, supl. do grava a melhor área de canaviais.
Diário de Notícias, Funchal, 6 de Maio de 1984, p. 6. 203 .V. Rau, O Açúcar na Madeira nos finais do século XV, Funchal, 1962, 23; A. Vieira, o Regime de Propriedade na Madeira. O
200. CF. João José de SOUSA, O Convento de Santa Clara do Funchal, Funchal, 1991, pp. 80-83. Caso do Açúcar”, in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. I, Funchal, 1990.

122 123
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Transporte
CAPITANIA DO FUNCHAL TOTAL de molhos de
cana. 2002
Proprietários Funchal Ribeira Brava Ponta de Sol Calheta Partes capitania
Fundo Machico número %
1494 1509 1534 1509 1517 1536 1526 1537 1509 1534 1494 1530
Até 100 arrobas 79 28 34 1 3 6 4 7 2 15 31 210 39,5
Entre 101 e 250 36 21 19 1 5 2 5 3 2 3 17 14 128 24
251 a 500 13 8 9 2 1 3 2 25 5 68 13
501-1000 4 10 6 2 3 2 4 2 1 22 4 60 11
1001 a 1500 3 1 5 1 1 1 5 2 10 1 30 5,5
1501 a 200 1 3 2 3 9 18 3
Mais de 2000 1 2 2 2 2 1 3 2 3 18 3
TOTAL 132 72 69 14 16 13 15 18 12 101 55 532

do Funchal e as 632,73 das Partes do Fundo204, perfazendo no geral 345,28. No período subsequente
(1509-1537) atinge-se uma média de 470,27 arrobas nas duas capitanias, sendo de 171,08 na de
Machico e de 537,98 na do Funchal. A área definida pela capitania de Machico surge com o valor
mais baixo enquanto na do Funchal e, nomeadamente, nas comarcas da Ribeira Brava e Calheta este
valor é 9 vezes superior. O aumento não ficou a dever-se à colheita da comarca do Funchal, onde se
mantém em 307,96 ou 197,56, mas sim das comarcas das Partes do Fundo. Aí, especialmente na
Calheta e Ribeira Brava, chega a atingir, respectivamente 1867,32 e 1376,17 em 1509205.

Participação dos proprietários na produção geral: percentagem


CAPITANIA DO FUNCHAL Capi-
Funchal Ribeira Brava Ponta de Sol Calheta Partes tania
Proprietários Fundo Machico
1494 1509 1534 1509 1517 1536 1526 1537 1509 1534 1494 1530
5 principais 36 67 75 90 82 68 66 88 42
10 37 53 98 93 31 60
20 51 76 52 79
30 64 83 67
40 78
50 85
Restantes 36 17 2 25 10 18 32 7 12 15 14

204. Entenda-se as áreas dos actuais concelhos da Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta
205. Uma arroba é igual a 32,37 lbs.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Apanha da cana. Postal antigo

Da análise da posição dos produtores, no contexto global da produção, a ambiência é inversa.


Aí, no caso da comarca do Funchal a alteração do valor de produção é mais baixa nos primeiros 5
proprietários que nos restantes, cifrando-se, respectivamente, em 3865,5 e 4597,5 arrobas. Nas
restantes comarcas da capitania do Funchal a situação é variável. Assim, na Ribeira Brava temos
uma acentuada subida dos 5 principais proprietários, atingindo 9% entre 1509 e 1517 e 15% entre
1517 e 1536. Idêntica é a situação da comarca da Calheta entre 1509 e 1534 onde o aumento se situa
na ordem dos 24%. Apenas a comarca da Ponta de Sol acompanha a do Funchal na queda, mas aqui
atinge 14%, isto é, o dobro da similar do Funchal. O decréscimo é contrabalançado por idêntico
aumento dos restantes proprietários.
A instabilidade da economia açucareira madeirense surge de modo evidente na evolução da Apanha da cana. Postal antigo
média de produção e do número e importância dos proprietários de canaviais. Assim temos, no
primeiro caso, uma média anual de 5,26 arrobas no Funchal, 36,22 na Ribeira Brava, 20,18 na
Ponta de Sol e 32,57 na Calheta, o que equivale no total da capitania, a uma variante média anual
de 23,56 entre 1509 a 1537. As comarcas de maior produção de açúcar, situadas além-Funchal
foram as mais atingidas com a crise açucareira. No entanto, a ambiência devocionária não con-
duziu ao abandono dos canaviais, pois que a diminuição do número de proprietários é reduzidíssi-
ma, senão nula. A situação leva-nos a concluir que a crise açucareira conduziu apenas a redução do
número de canaviais e à diminuição do grupo dos pequenos proprietários, incapazes de suportarem
a depressão. Os grandes e médios proprietários tinham pecúlio suficiente para manter os principais
canaviais, dando continuidade à safra do açúcar. No grupo, apenas é de salientar, uma diminuição
do número de arrobas de produção por proprietário. Assim, no período em causa os proprietários
com produção inferior a 1000 arrobas sofre uma ligeira alteração que se acentua na razão inversa
do número de arrobas da produção. Para os que se encontram no nível superior às 1000 arrobas a
situação mantém-se estacionária, não obstante o caso da Ribeira Brava e do Funchal.
A conjuntura deprecionária da economia açucareira madeirense conduziu a profundas alte-
rações na estrutura fundiária, contribuindo para a concentração dos canaviais nos grandes propri-
etários. Os de poucos recursos financeiros vêm-se obrigados a abandonar os canaviais, a substitui-
los pelos vinhedos ou então a penhorá-los e vendê-los aos grandes proprietários e mercadores. A
situação contribuiu para o reforço do grande proprietário das Partes do Fundo, nomeadamente nas
comarcas da Calheta e Ribeira Brava. A tendência já acentuara já na transição do século XV para
o XVI. A mutação da posse dos canaviais no período de 1494 a 1537 poderá ser aferida pela va-
riância do nome dos proprietários. Entre finais do século XV e a primeira metade do século XVI
verifica-se a manutenção de trinta e dois nomes (11%), enquanto no período de 1509 e 1537 apenas
se mantiveram dezanove (6%). Os números poderão significar que a mutação é mais evidente no
período de crise que na fase ascendente, por outro lado indicam a maior incidência nas Partes do
Fundo, pois que no Funchal permanecem 17 nomes, isto é, 53% do total de nomes em causa.
Outro aspecto de particular significado na conjuntura de crise é o estabelecimento de contratos
de arrendamento e, depois de colonia, que conduzem ao afastamento do real proprietário da terra

126 127
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

e dos canaviais. A relação só existirá à beira do estendal para receber o açúcar. Exemplo disso é o de um proprietário com mais de 1000 arrobas. A posição da capitania do Funchal deve-se funda-
contrato de arrendamento de meias de terras em Câmara de Lobos, estabelecido entre o convento mentalmente aos proprietários sedeados nas comarcas da Calheta (35%) e Ribeira Brava (42%). Em
de Santa Clara e Francisco Martins em 1558206. 1494, na capitania do Funchal surgem apenas 12 proprietários (5%) com uma produção superior a
Se é certo que o estimo de 1494 confirma a tendência para a afirmação da pequena e média pro- 1500 arrobas e, no período subsequente (1509-1537) 24 (8%). Os últimos são na maioria, oriundos
priedade no Funchal, Câmara de Lobos e, em parte, da grande propriedade nas Partes do Fundo, da Ribeira Brava e Calheta. Para 1494 os valores mais elevados são de James Timor (2270 arrobas)
também é certo que os dados em estudo para os anos de 1509 a 1537 dão conta a grande pro- e João de França (2500). No período imediato, do século XVI, duplicam, como sucede com Pedro
priedade nas Partes do Fundo e da média no Funchal e Câmara de Lobos (comarca do Funchal). Gonçalves de Bairros da Ribeira Brava que, em 1509, produziu 5 376 arrobas de açúcar, isto é, 28%
Em 1494 no Funchal e Câmara de Lobos os vinte proprietários (15%) representavam metade da da comarca e 8% da capitania. Com uma produção superior a 2000 arrobas temos, no período de
produção global da área. Apenas dois excediam as 700 arrobas. Nas Partes do Fundo o mesmo 1509 a 1537 quinze proprietários maioritariamente oriundos da Calheta e Ribeira Brava, com um
número de proprietários (20%) produziu metade do total da capitania. Em 1509, no Funchal, ape- valor global de 37% da capitania, enquanto em 1494 eram apenas três, produzindo 9%. Perante esta
nas quinze (21%) surgem com metade da produção da comarca, enquanto nas Partes do Fundo ape- evidência será legítimo afirmar que na Madeira dominou o sistema de pequena e média pro-
nas os cinco principais (18%) apresentam-se com 65% da produção global. No cômputo geral da ca- priedade com a cultura do açúcar? Se a conclusão se torna legítima para finais do século XV o
pitania contribuem com 55%. mesmo já não poderá dizer-se para a primeira metade do seguinte. Estamos perante a principal
A análise em pormenor das diversas comarcas, na primeira metade do século XVI reforça esta modificação na estrutura açucareira neste lapso de tempo de 43 anos.
posição. Assim em 1509 temos na comarca do Funchal apenas 36%, na Ponta de Sol é de 67% e na Segundo Virgínia Rau e Jorge de Macedo, “a produção do açúcar beneficiava camadas amplas
Ribeira Brava 66%. Nas Partes do Fundo a tendência é para o aumento da percentagem, nos anos da população, encontrando-se entre os produtores, além do pequeno e médio lavrador, sapateiros,
subsequentes, comprovado de modo esclarecedor em 1536 na Ribeira Brava com 90% e em 1534 na carpinteiros, barbeiros, mercadores, cirurgiões, moleiros, ao lado de fidalgos funcionários, conce-
Calheta com 88%. Na comarca do Funchal a tendência é para a diminuição em favor da média pro- lhios e outros, participando por migalhas nos benefícios desta rica produção, [...]. Toda esta miuça-
priedade. A capitania de Machico, segundo informação disponível de 1530, situa-se a um nível lha de pequenos produtores se aproveitava de um organismo montado na ilha, para tornar rentá-
muito baixo, mas superior à comarca do Funchal. A situação comprova que a mesma capitania vel a sua pequeníssima produção”207. Vitorino Magalhães Godinho reforça a caracterização da rea-
mantêm um sistema de cultura idêntico ao da comarca do Funchal. O elevado índice de parcela- lidade social madeirense apontando a tendência para a concentração dos canaviais num número
mento da propriedade nas duas áreas não tem a mesma origem, pois enquanto na comarca do reduzido de insulares208.
Funchal deriva da forte concentração populacional, na capitania de Machico resultará fundamen- A situação da primeira metade do século XVI era diferente pois que o número limitado de pro-
Apanha da cana. 2002 talmente, das condições orográficas. A explicitação do parcelamento dos canaviais torna-se mais prietários reforça a ideia da concentração dos canaviais nos grupos sociais privilegiados da Apanha da cana. 2002

evidente quando estabelecemos uma comparação entre a situação em finais do século XV e da sociedade insular: aristocracia, mercadores, artesãos e funcionários locais e régios. Em ambos os
primeira metade do século XVI. Em 1494 surgem, na capitania do Funchal, 40% dos proprietários momentos o grupo de proprietários representava apenas 1% da população da ilha209. A tendência
com menos de 100 arrobas de produção, enquanto entre 1509 e 1537 são 35% na capitania do concentracionista acentua-se na passagem do século XV para o XVI, uma vez que houve a redução
Funchal e 57% na de Machico. Na primeira temos 26% na comarca do Funchal, 5% na de Ponta de do número de proprietários nas comarcas circunscritas às Partes do Fundo. Aliás, aqui é notória a
Sol, 4% na da Ribeira Brava e apenas 1% na da Calheta. manutenção dos proprietários, sendo reduzido a mutação por compra e venda, dote ou aforamen-
A grande propriedade quase inexistente em 1494 com grande destaque na primeira metade do to. A imutabilidade da propriedade deve-se fundamentalmente à vinculação da terra. Assim, entre
século XVI, nomeadamente nos primeiros decénios. Em 1494 apenas surgem proprietários com 1509-1537, 18% dos canaviais das comarcas das Partes do Fundo estavam vinculados, enquanto no
mais de 1000 arrobas nas Partes do Fundo e em número reduzido (22%) na zona e 10% no global da Funchal são só 17%, representando 38% da produção da capitania do Funchal.
capitania). No século XVI surgem na capitania do Funchal em número superior com 18% na capi- A caracterização da realidade social da estrutura fundiária açucareira é igualmente diversa,
tania e 14% no global. Na capitania de Machico é quase inexistente uma vez que apenas há notícia sendo definida pela forte participação dos estrangeiros, mercadores e funcionários. O grupo de
estrangeiros que surgia já em 1494 com a forte participação no sector produtivo açucareiro com 17%
206. ANTT, Santa Clara, livro 6, fl. 226vº. Neste contrato são estabelecidas algumas condições e recomendações sobre os canaviais:
“...prantara todas as terras que forem para isso prantar de quanas e cavara as terras com soquoas e as benefisiara muito bem e a
seus tempos reguara e tapara e armara e desbixara... efara as quanas em coallquer engenho que milhor sirva e mais proveitoso 207. Ob. Cit., p. 22.
de tudo o que ho senhor deus der dasuqar mel e todo o mais prosedido delle partirão pello meio na caza de purgar do engenho 208. Ob. Cit., IV, p. 81.
donde se fizerem as canas e feitio paguara quada hum sua metade...”. Em 1591 (ANTT, Santa Clara, nº.6, fol.73, contrato de 18 209. Para a dedução deste dado tivemos em conta o número de proprietários em 1494 e entre 1509 e 1537. Ao número total da segun-
de Agosto) noutro contrato com Fracisco Lopes em S. Martinho refere-se a obrigação de plantar cada ano 200 feixes de canas, da metade do século XVI, subtraímos 19, que se repetem nos diversos anos em análise para cada comarca. Para o computo da
dando as freiras metade da pranta. Noutro contrato de 15 de Junho de 1600 (ANTT, Santa Clara, maço 7, nº.24) com colonos em população tivemos em conta os dados disponíveis para 1500, com 15000 habitantes e 1572 com 19172 habitantes; Veja-se
s. Martinho recomenda-se a manutenção dos canaviais Fernando Augusto da Silva, Elucidário Madeirense, vol. III, p. 103.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

reforçará a posição, na primeira metade do século XVI, atingindo 20%. A situação é corroborada-
da pelo testemunho de Gaspar Frutuoso210. A relativa participação em 1494 explica-se pela xenofo- MERCADORES PROPRIETÁRIOS
bia dos mercadores do reino e ilhas e pela ambiguidade da acção da coroa e do senhorio. Até 1498
altura em que o monarca autoriza a permanência dos estrangeiros na ilha, a posição se mantinha CAPITANIA DO FUNCHAL Capitania
muito precária e os interesses molestados pela oposição da burguesia insular e nacional211. A esta- Funchal Ribeira Brava Ponta de Sol Calheta Partes Machico
PROPRIETÁRIOS Fundo
bilidade e privilégios concedidos aos mesmos contribuíram para a rápida fixação na ilha, justifi-
1494 1509 1509 1517 1536 1526 1537 1509 1534 1494 1530
cando-se de modo preciso à participação no sector produtivo na primeira metade do século XVI. -1534
Número 69 4 3 2 5 5 3 12
PROPRIETÁRIOS ESTRANGEIROS NA CAPITANIA DO FUNCHAL
Produção 21570,5 2969,5 2152,5 622 886 8372 6421 3159,5
PROPRIETÁRIOS CAPITANIA DO FUNCHAL TOTAL
Funchal Ribeira Brava Ponta de Sol Calheta
1494 1509 1530 1509 1517 1536 1526 1537 1509 1534
A classe mercantil atraída pela opulência do açúcar fixou-se nas principais comarcas de pro-
Número 15 6 3 3 2 2 1 2 2 34 dução e comércio do ouro branco. O Funchal, como principal centro de tráfego açucareiro, apre-
Produção em arrobas 13990 5437 2085 3220 4432,5 3417,5 520 5836 1557,5 40529,5 sentará condições propícias à residência. Cerca de 60% tinham os canaviais na comarca. De igual
% em relação total modo sendo a capitania do Funchal definida pela melhor área de canaviais, eles preferem-na às ter-
da comarca 17 25 17 17 31 38 13 24 13 19,5 ras de Machico, onde apenas atingem 13% do total. Não obstante, a fraca representação numérica
na última capitania surgem com 35% do açúcar enquanto no Funchal ficam-se pelos 20%.
O mercador nacional ou estrangeiro não se dedicava em exclusivo ao comércio, pois repartia a
Sendo o Funchal o principal centro do comércio madeirense, lógico será de supor a fixação do actividade por uma multiplicidade de produtos de importação e exportação e alargava-a outros sec-
estrangeiro no burgo e arredores. Assim temos 43% deste grupo na comarca do Funchal e arredores. tores, como o administrativo e produtivo. Assim, são em simultâneo proprietários e funcionários
Na maioria são grandes proprietários, uma vez que mais de 50% detém canaviais com produção concelhios ou régios, com uma forte presença na exploração dos canaviais onde representavam, na
superior a 1000 arrobas. A acção alargou-se depois, a algumas comarcas periféricas com forte primeira metade do século XVI, 24% do total dos proprietários, comparticipando com 30% da pro-
incidência na economia açucareira, como Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta, onde assumem dução. A estrutura administrativa das duas capitanias subordinava-se à febre açucareira, sendo
uma posição importante na produção e destacando-se como os principais proprietários, dispondo definida pelo almoxarifado e provedoria da fazenda. A própria administração local ajustou-se a esta
de extensos canaviais, engenho e numerosos escravos. Salientam-se João de Bettencourt na Ribeira ambiência, sendo a vereação a tribuna de debate das principais questões ligadas ao produto. Ao
Brava com 2450 arrobas de açúcar, João de França, na Calheta com 3632 arrobas e João Esmeraldo mercador ou proprietário interessava deter uma posição nesta complexa estrutura administrativa
na Ponta de Sol com 3277,5 arrobas. No Funchal, é certo, temos grandes proprietários, como Simão de forma a fazer valer os reais interesses nas ordenanças ou posturas municipais, que regulamen-
Acciaioly, Benoco Amador e João de Bettencourt mas, em contraste, a posição no quadro geral não tavam a safra e comércio do açúcar. Não será por acaso que muitos dos principais proprietários são
Apanha da cana.
atinge o nível dos supracitados. Aliás, é na Ribeira Brava e Ponta de Sol que apresentam a per- nas duas capitanias como oficiais régios ou concelhios. Destes registam-se pelo menos trinta e três,
Museu Photographia Vicentes centagem mais elevada da produção. Em síntese, podemos afirmar que o estrangeiro avizinhado na maioria da capitania do Funchal, com uma produção de 21%. Sendo a vereação o local de debate
não se preocupou apenas com o sector produtivo, pois o comércio e transporte dos produtos, que e deliberação das principais questões ligadas à safra e comércio açucareiro lógico será admitir a par-
os atraíram, mantiveram-se como a actividade principal. Raramente surge na condição de propri- ticipação com assiduidade nas mesmas, como oficiais eleitos ou homens-bons. No grupo 61% são
etário mas com o triplo estatuto de proprietário-mercador-prestamista. homens-bons. Os elementos mais influentes da classe possidente madeirense incluíam-se em qual-
quer dos grupos. O usufruto da dupla situação social conduziu à afirmação no grupo de propri-
210. Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1974, pp.84, 103, 110, 119, 124, 126, 130. etários de canaviais. Assim, 30% dos funcionários e 19% dos mercadores situam-se no grupo com
211. Em 1496 os naturais da ilha queixam-se ao monarca contra os estrangeiros, referindo que muitos eram produtores de açúcar o uma produção superior a 1000 arrobas.
que prejudicava a sua safra: “...e hora Senhor estes estrangeyros sam tomados lavradores e teem grandes arrendamentos em que A conjugação dos vínculos ou legados pios, do duplo estatuto social com as alianças matrimo-
fasem quantos açuquares querem...”, (ARM RGCMF, T. I, fl. 262vº-269vº, 1496, Outubro, 12, Lisboa, regimento régio, publ. no
AHM, vol. XVII, p. 254). Em 22 de Março de 1498, por alvará régio, o monarca autoriza a residência e vizinhança dos estrangeiros niais ou extra matrimoniais poderá ser apontada como o principal mecanismo de reforço da grande
da ilha, (ARM, RGMCF, t. I., fls. 291vº-292), publ. in AHM, vol. XVII, 1972, p. 369). Veja-se Henrique de Gama BARROS, propriedade na economia açucareira. É uma conjuntura premente no momento de crise da
História da Administração Pública em Portugal, vol. X, 2ª ed., Lisboa, pp. 149-155; V. RAU, “Privilégios e legislação portuguesa primeira metade do século XVI. A intervenção da infanta D. Catarina foi no sentido da
referente a mercadores estrangeiros (Séculos XV e XVI)”, in Estudos de História, Lisboa, 1958, pp. 131-158. Canaviais. 2002

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Alberto Vieira

manutenção dos canaviais através da regulamentação das heranças. Assim, em 1559212 foi eleito um Apanha da cana.
Colecção Vicente. Museu Photographia Vicentes
procurador para tratar da herança dos canaviais que levou à decisão em 1562213 de apostar no
regime de morgado para os canaviais.
Nos séculos XVII e XVIII a estrutura fundiária apresenta-se distinta. Dominam os pequenos
proprietários de canaviais, o que demonstra ser uma cultura subsidiária, que medrava ao lado das
outras pela necessidade familiar ou interna. O quadro que a seguir se apresenta é testemunho da
diminuta importância dos canaviais na estrutura fundiária madeirense.
PRODUÇÃO
Ano Proprietários arrobas média
1600 109 3656 33,54
1689 1 172
1691 2 256
1692 1 352
1693 3 172
1694 2 120
1695 3 196
TOTAL 121 4924 40,69
1701 2 32
1702 1 152
1703 9 954 106
Clara e 3 do capitão João Betencourt.
1704 28 902 32,21
1705 102 5168 50,66 Nos séculos XIX e XX a estrutura fundiária não mereceu qualquer alteração. Apenas com o
1706 63 2408 38,22 processo autonómico, iniciado em 1974 foi possível alterar a situação com a abolição do contrato
1733 13 20,5 1,53 de colónia em 1977. A cultura foi conquistando importância e captando o interesse dos agricultores
1734 27 109 4,03 em toda a ilha, mesmo em terras impróprias. Deste modo os problemas do mercado da primeira
1735 1 10 libras
metade do século XX levaram o Governo a delimitar áreas de produção, ficando de fora os con-
1736 5 92 10,40
1739 28 90 3,21 celhos de Santana e S. Vicente, que em 1953 reclamavam o direito à mesma.
1740 39 33,5 0,85 A propriedade, de acordo com os mecanismos do direito sucessório estava extremamente divi-
1741 56 32 0,57 dida. Os canaviais no fogem à regra. Em 1928 temos um grupo de 3535 proprietários a reclamara
1742 48 9,5 0,19 junto do Governo a preeservação do decreto nº. 14.168214. Na década de cinquenta parece ter aumen-
1743 23 3 0,14
tado o número de proprietários e a área de produção. Assim em 1955 as 42.500 toneladas de cana
1765 27 2 0,07
1766 69 100 libras(1) da safra eram produzidas por 8.000 lavradores: oito mil lavradores, dos quais menos de mil são
TOTAL 541 10007 18,49 senhorios e mais de cinco mil são colonos, produzem, em média pouco mais de 5 toneladas de
cana, cada um”215. Em 1971 temos 35.586 toneladas de cana fornecidas por 10.500 agricultores, mas
Apanha de cana. 2002 1) Acrescem mais 106 onças de açúcar, 58 canadas, 125,5 quartos e 15,5 quartilhos de melado. de acordo com informação do Engenho do Hinton existiam 11.661 produtores, sendo 7.709 produ-
tores de cana destinada ao fabrico de açúcar e 1.000 de aguardente e mel. Isto evidencia que os lotes
Apenas para o ano de 1766 é possível conhecer uma das cambiantes típicas da estrutura de terreno dedicados à cana são muito pequenos, para além de provar o excessivo parcelamento da
fundiária madeirense: o contrato de colonia. O registo do oitavo refere trinta e quatro caseiros, terra. Aqui podemos encontrar proprietários directos, arrendatários ou colonos.
sendo sete dependentes do senhor do engenho, aqui não identificado, 6 do Convento de Santa
214 . Regime Sacarino da Madeira. Representação em que 3535 proprietários, agricultores e consumidores madeirenses saúdam e
apoiam S. Exª o Senhor Ministro da Agricultura, pedindo a conservação do Decreto nº.14168, Lisboa, 1928
212 . ARM, DA, nº.100, 6 de Setembro. 215 . Ramon Honorato C. Rodrigues, Questões Económicas. 2º tomo: A Madeira no Plano da Economia Nacional, Funchal, 1955,
213 . ARM, DA, nº.111, 23 de Setembro. p.81

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Plantio da soca de cana. Postal antigo

OS CANAVIAIS.CUIDADOS E CULTIVO

Feita a escolha da melhor terra para a cana, roça-se, queima-se e limpa-se, tiran-
do-lhe tudo o que podia servir de embaraço, e logo abre-se em regos, altos palmo e
meio e largos dois, com seu camalhão no meio, para que, nascendo a cana, não se
abafe e nestes regos ou se plantam os olhos em pé ou se deitam as canas em
pedaços, três ou quatro palmos compridos, e, se for cana pequena, deita-se também
inteira, uma junta à outra, ponta com pé; cobrem-se com a terra moderadamente.
E depois de poucos dias, brotando pelos olhos, começam pouco a pouco a mostrar
sua verdura à flor da terra, pegando facilmente e crescendo mais ou menos, con-
forme a qualidade da terra e o favor ou contrariedade dos tempos. Mas se forem
muito juntas, ou se na limpa lhes chegarem muito a terra, não poderão filhar, como
é bem.
Começa-se a limpar a cana tanto que tiver monda ou erva de tirar. No Inverno a
erva que se tira torna logo a nascer e as limpas mais necessárias são aquelas
primeiras que se fazem para que a cana possa crescer e o capim a não afogue,
porque depois de crescida vence melhor as ervas menores.
As socas também (que são as raízes das canas cortadas a seu tempo ou
queimadas por velhas ou por caídas, de sorte que se não possam cortar ou por desas-
tre) servem para plantas porque se não morrerem pelo muito frio ou pela muita
seca, chegando-lhes a terra, tornam a brotar e podem desta sorte renovar o canavial
por cinco ou seis anos e mais.
(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

134 135
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Transporte da cana em corça. Postal antigo Sicília buscar canas de açúcar para se prantarem na ilha…”218. Diferente é, contudo a opinião de
Valentim Fernandes219 que diz serem de Valência: Ho Iffante mandou a Valença por canas de acu-
car.”, sendo corroborado pelo Historiador espanhol Herrera220.
A favor da última versão está o facto de um dos primeiros mestre de engenho conhecidos, James
Timor, ser daí originário. Em documento de 1478 recebeu carta de privilégio que lhe permitia dis-
por de embarcações de gávea para o comércio com o reino e outras partes, excepto Castela, a iden-
tificação é clara: “valemciano meestre daçuquar na jlha da Madeira”221. Depois, no livro dos esti-
mos de 1494222 é referenciado como um dos principais proprietários estrangeiros. Devere ter-se em
conta ainda que a costa levantina era em princípios do século XV um destacado centro de produção
de açúcar e foi a concorrência da Madeira que arrastou a produção para a crise223.
A historiografia Algarvia, baseada em alguns documentos que testemunha a cultura da cana-de-
açúcar em Quarteira em terras que pertencia à coroa224, conclui que as socas de cana teriam sido
trazidas daí. A ideia, defendida, primeiro, por Lúcio de Azevedo225, mereceu a aprovação de muitos
historiadores, nomeadamente algarvios226.
A primeira plantação teve lugar no Funchal, num terreno do Infante, conhecido como o Campo
do Duque. Daqui os canaviais foram levados para Machico, onde se fabricaram as primeiras 13
arrobas de açúcar, vendidas a cinco cruzados a arroba.
O Infante, com objectivo de promover a cultura, permitiu que os povoadores construíssem
engenhos para a laboração do açúcar sujeitando-se ao pagamento de 1/3 da produção. Destes temos Infante D. Henrique

notícia apenas do de Diogo Teive, conforme autorização do próprio duque de 1452. Rapidamente
DOS CANAVIAIS AO ENGENHO se iniciou o comércio de exportação de açúcar, pois como refere Diogo Gomes os da ilha “fabricam
açúcar em tal quantidade que é exportado para as regiões orientais e ocidentais”227. E, Cadamosto
não se enganará no vaticínio que fez: “…pelo que posso perceber, far-se-á deles maior quantidade
A cana-de-açúcar na primeira experiência além Europa demonstrou as possibilidades de rápido
com o tempo, por ser terra muito própria para isto, pelos seus ares quentes e temperados…”228. E o
desenvolvimento fora do habitat mediterrânico. Gaspar Frutuoso testemunha isso ao referir que
tempo rapidamente o confirmaria.
“esta planta multiplicou de maneira na terra, que he o assucar della o melhor que agora se sabe no
A segunda metade do século XV foi de incremento da cultura, contribuindo para isso os incen-
mundo, o qual com o beneficio que se lhe faz tem enriquecido muitos mercadores forasteiros e boa
parte dos moradores da terra”216. Tal evidência catalizou as atenções do capital estrangeiro e
nacional que apostou no crescimento e promoção, pois só assim se poderá compreender o rápido 218 . Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p.84
arranque da mesma. Nos primórdios da ocupação do solo insular era uma cultura subsidiária, pas- 219. José Pereira da Costa, Códice Valentim Fernandes, Lisboa, 1992, p.141.
sou de imediato a cultura e produto dominante, situação que manteve por pouco tempo. 220. Visconde do Cannavial, A Cultura da Canna de Assucar. Os Direitos do Assucar, Funchal, 1885, p.4
221. Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, vol. II, p.178
222. Virgínia Rau. O Açúcar da Madeira nos fins do século XV. Problemas de Produção e Comércio, Funchal, 1962, p.23
A ORIGEM DOS CANAVIAIS MADEIRENSES. Todos estamos de acordo de que as 223. Cf. José Perez Vidal, La Cultura de la Caña de Azucar en el Levante Español, Madrid, 1973, pp.37-54; A revista Afers-Fulls de
primeiras socas de cana apareceram na ilha por iniciativa do Infante. Nisto corroboram os cronistas Recerca i Pensament, dedicou um número especial, coordenado por Ferran Garcia-Oliver ao açúcar “Sucre i Creixement
Econòmic a la Baixa Edat Mitjana, vol. XIV, nº.32, Catarroja, 1999
que testemunham a acção do Infante na ilha. O testemunho de Cadamosto é claro: “E por ser ba- 224. D. João I, por carta de 16 de Janeiro de 1404, refere nas suas Terras de Quarteira que estavam arrendadas a genovês João de
nhada por muitas águas, o dito senhor mandou pôr nesta ilha muitas canas de açúcar, que deram Palma tinha plantado canas-de-açúcar [João Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, I, 217, doc. 208)
muito boa prova”217. Já quanto à origem não existe consenso, podendo-se apontar distintas 225. Épocas de Portugal Económico, Lisboa, 1929, p.226.
226. Duarte Leite, Coisas de Vária História, Lisboa, 1941, pp.218-223; Alberto Iria, Descobrimentos Portugueses. O Algarve e os
proveniências, como o Algarve, Valência e Sicília. A ideia dominante é de que as primeiras socas Descobrimentos, Lisboa, 1956, vol. II, tomo. I, pp.382-386; António de Sousa Pontes, A Cultura da Cana do Açúcar em
têm origem na Sicília, tal como refere Gaspar Frutuoso: O Infante Dom Henrique,… mandou a Quarteira, in Actividades Económicas. Revista Portuguesa de Informação e Cultura, nº. 22(Lisboa, 1958), pp.27-29; Alberto Iria,
O Algarve e a Ilha da Madeira no Século XV (Documentos inéditos), in Studia. Revista Semestral, nº38 (Lisboa, Julho de 1974)
,pp.208-212
216 . Ob. cit., p.113. 227. José Manuel Garcia, Viagens dos Descobrimentos, Lisboa, 1983, p.52
217 . António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p.37 228. António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p.37

136 137
Alberto Vieira

tivos do senhorio e a grande demanda que o açúcar tinha no mercado europeu. Os proprietários da Transporte dos molhos
de cana.2002
terra insistiam em ver os poios cobertos de canaviais, tal como se pode inferir de uma doação de
1470 a João Dias e Luis Fernandes onde se insistia que era para plantar cana229.

A PRODUÇÃO DO AÇÚCAR. Na Madeira a cana sacarina, usufruindo do apoio e protecção


do senhorio e coroa, conquista o espaço ocupado pelas searas, atingindo todo o solo arável da ilha
em duas áreas: a vertente meridional (de Machico à Calheta), com um clima quente e abrigada dos
alísios, onde os canaviais atingem 400 m de altitude, dominado pelas plantações da capitania de
Machico (Porto da Cruz e Faial até Santana), solo em que as condições mesológicas não permitem
a cultura além dos 200 metros numa produção idêntica à primeira área. A capitania do Funchal
agregava no perímetro as melhores terras para a cultura da cana-de-açúcar, ocupando a quase totali-
dade do espaço da vertente meridional. À de Machico restava apenas uma ínfima parcela área e
todo um vasto espaço acidentado impróprio para a cultura.
A diferenciação das duas capitanias torna-se mais visível quando analisamos os dados da pro-
dução. Assim, em 1494, do açúcar produzido na ilha apenas 20% é proveniente da capitania de
Machico e o sobrante da capitania do Funchal. Em 1520 a primeira atinge 25% e a segunda os 75%.
Fernando Jasmins Pereira, numa análise comparada da produção das capitanias entre 1498 e 1537,
discorda da relação até então estabelecida (3:1) pois, de acordo com a sua análise, a razão situa-se
Desembarque a cana no calhau do Funchal. em 4:1 para os primeiros decénios do século XVI, descendo entre 1521-1524 para 3:1 e recuperan-
Postal antigo
do na segunda metade do decénio para 4:1. 230
Na capitania do Funchal os canaviais distribuíam-se de modo irregular, de acordo com as
condições mesológicas da área. Em 1494 a maior safra situava-se nas partes de fundo, englobando
as comarcas da Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta com 64%, enquanto o Funchal e Câmara de
Lobos tinham apenas 16%. Em 1520, não obstante uma ligeira alteração, a diferença mantém-se,
pois a primeira surge com 50%, e a segunda apresenta 25%, valor idêntico ao total da capitania de
Machico, com 25%. Uma análise em separado das diversas comarcas da capitania do Funchal, na
mesma data, evidencia a importância do Funchal em 33%, seguindo-se a Calheta com 27%. As da
Ribeira Brava e Ponta de Sol surgem numa posição secundária com 20% cada231.
Criadas as condições a nível interno por meio do incentivo ao investimento de capitais na cul-
tura da cana-de-açúcar e comércio de derivados, do apoio do senhorio, da coroa e da administração
local e central, a cana estava em condições de prosperar e de se tornar, por algum tempo, no pro-
Apanha da cana. duto dominante da economia madeirense. O incentivo externo do mercado mediterrânico e nórdi-
Foto Vicentes, Museu de Photografia Vicentes co aceleraram o processo expansionista. Assim, em meados do século XV os canaviais são motivo
de deslumbramento para Cadamosto e Zurara. O primeiro refere que os açúcares “deram muita
prova”, enquanto o segundo dá conta dos “vales todos cheios de açúcar de que aspergiam muito
pelo mundo”232.
229. J. M. Silva Marques, Os Descobrimentos Portugueses, vol. III, pp.84-85, nº.59
230. Veja-se Virginia RAU, Ibidem, p. 15; V. M. GODINHO, Ibidem, p. 80; Fernando Jasmins PEREIRA, O Açúcar Madeirense
/.../, p. 95;Veja-se a H. G. de Amorim PARREIRA, “História do Açúcar em Portugal”, in Anais da Junta de Investigação do
Ultramar. vol. VII (1952) t. I, pp. 31-32; V. RAU, Ibidem, p. 14; Fernando Jasmins PEREIRA, ibidem, p. 100-101.
231. Fernando Jasmins PEREIRA, Ibidem, p. 95 a 155.
232. António ARAGÃO, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p. 37; Crónica de Guiné, Porto, 1973, cap.II, p.17.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

CÁLCULO DA PRODUÇÃO DE AÇÚCAR NOS SÉCULOS XV E XVI EM ARROBAS açucareira e o ilhéu viu-se na necessidade de abandonar os canaviais e de os substituir pelos Produção de Açúcar. Capitanias - 1508-1537
vinhedos, mas ainda tardou muito tempo até que isso sucedesse em definitivo. Giulio
ANO FUNCHAL MACHICO TOTAL ANO FUNCHAL MACHICO TOTAL
Landi, que visitou a ilha na década de trinta, refere que os madeirenses, levados pela
1455 2470 1520 87.868
ambição da riqueza se dedicam “apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maiores
1472 15.000(1) 1521 106.887 proventos”233. Por outro lado o almoxarife Simão Rodrigues dava conta em 1557234 que a co-
1473 20.000(1) 1522 94.804 lheita do ano anterior havia sido muito fraca.
1474 25/30.000 1523 99.666 A historiografia tem apresentado múltiplas explicações para a crise, valorizando, quase
1493 80.000 1524 81.257 sempre, a actuação de factores externos. Fernando Jasmins Pereira contraria a opinião
1494 80451 20.113 100.564 1525 65.129 definindo a crise açucareira madeirense como resultado das condições ecológicas e sócio-
Produção de açúcar na capitania do Funchal em 1494
1497 82.568 20.642 103.210 1526 57.744 económicas da ilha:”...a decadência da produção madeirense é, primordialmente, motiva-
1498 77.609 22.268 99.877 1527 69.395 da por um empobrecimento dos solos que, dada a limitação da superfície aproveitável na
1499 78463 20.713 99.176/120.000 1528 84.530 cultura, vai reduzindo inexoravelmente a capacidade produtiva”. A crise da economia açu-
1501 114.778 1529 71.459 careira madeirense não é apenas resultado da concorrência do açúcar das Canárias, Brasil,
1504 113.318 1530 55.988 Antilhas e S. Tomé mas deriva, acima de tudo, da conjugação de vários factores de ordem
1505 209362 1534 54.077 interna: a exaustão dos solos, a carência de adubagem, a desafeição do solo à cultura e as
alterações climáticas235. Em 1589 a situação era deveras caótica para os administradores de Produção de Açúcar. Capitanias - 1581-1586
1506 230.216 1535 51.717
1507 176.985 1536 51.493 capelas, que reclamavam a redução dos encargos, uma vez que os rendimentos das terras
1508 173.092 1537 46791 haviam diminuído drasticamente “por cauza das alforas e fraqueza das ditas terras”236. A
1509 146.400 1581 36.670 situação obrigava à tomada de medidas no sentido de rentabilizar a exploração da terra,
1510 144065 1582 37.049 através da alternância com outras culturas como os cereais e a vinha237.
Produção de açúcar na Madeira em 1522
1512 132.426 1583 35.202 A concorrência do açúcar das restantes áreas produtoras do Atlântico, bem como a peste
1513 111.838 1584 43.031
(em 1526) e a falta de mão-de-obra apenas vieram agravar a situação de queda. A tudo isto
1516 122.102 1585 32.342
acresce em finais do século os efeitos do bicho sobre os canaviais, como é testemunhado
para os anos de 1593 e 1602. O último quartel do século foi o momento de viragem para
1517 93.005 1586 31.598
culturas de maior rendibilidade, como a vinha. A documentação testemunha a mudança.
1518 115.342
Assim, em 1571238 Jorge Vaz, de Câmara de Lobos, declara em testamento um chão que
(1) mais de “sempre andou de canas e agora mando que se ponha de mallvazia para dar mais
proveito...”. Depois, em 1583 Álvaro Vieira vende a Diogo Pires no Caniço um serrado que
A fase ascendente, que poderá situar-se entre 1450 e 1506, não obstante a situação deprecionária fora de canas “e agora anda de pão”239. Opinião distinta tinham outros lavradores e pro-
de 1497-1499, é marcada por um crescimento acelerado que, entre 1454-1472, se situava na ordem prietários de terra que continuavam a apostar na cultura. Em 1576 Tristão Teixeira tinha
dos 240% e no período subsequente até 1493 em 1430%, isto é uma média anual de 13% no primeiro várias terras de cana no Funchal, avaliadas em 450$000 rs e num outro que era de soca
caso e de 68% no segundo. No período seguinte após o colapso de 1497-1499 a recuperação é rápi-
da de tal modo que em 1500-1501 o aumento é de 110% e entre 1502-1503 de 205%. A forte acele-
233. António ARAGÃO, ob.cit., p.86.
ração do ritmo de crescimento nos primeiros anos do século XVI irá marcar o máximo, atingindo 234. ANTT, Corpo Cronológico, maço. 101, doc. 48, de 27 de Maio.
em 1506, bem como o rápido declínio nos anos imediatos. Apenas em quatro anos se atingiu valor 235. Fernando Jasmins PEREIRA, Ibidem, p. 158; Em 26 de Março de 1527 (ARM. CMF, nº.1305, fl.23v?) os funchalenses fizeram
inferior ao do início do século. A situação agrava-se nas duas centúrias seguintes, baixando a pro- ver ao Rei o prejuizo que lhes causava a concorrência do açúcar de S. Tomé, mas a resposta evasiva da coroa só surgiu a 8 de
Fevereiro de 1528 (ARM. DA, nº.66); Isabel Drumond BRAGA, “A acção de D. Luís de Figueiredo de Lemos. Bispo do
dução na capitania de Funchal, entre 1516-1537, em 60%. Na capitania de Machico a quebra é lenta, Funchal.1585-1608”, III CIHM, 1993, p.572; ARM, JRC, fls. 499vº-500vº, 30 de Maio; fls. 52vº-88, 20 de Agosto. Veja-se João José
sendo sinónimo do depauperamento do solo e da crescente desafeição do mesmo à cultura. Mas, a de Sousa, História de Uma Quinta, Islenha, 7 (Funchal, 1990, pp.111-112; Jorge Valdemar Guerra, O Convento de Nossa Senhora
partir de 1521 a tendência descendente é global e marcante, de modo que a produção do fim do da Piedade de Santa Cruz…, Islenha, 20 (Funchal, 1997), p.135
236. Jorge Guerra, Ibibem, p.135.
primeiro quartel do século situava-se a um nível pouco superior ao registado em 1470. 237. João José de Sousa, A Origem da Colónia, in Islenha, 13 (Funchal, 1993), p.70
Pela informação disponível parece que na década de trinta consumou-se a crise da economia 238. ARM, JRC, fl. 499vº-500vº: testamento de 30 de Maio de 1571
239. ARM, JRC, fl 52vº-88: 20 de Agosto.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

OS CANAVIAIS NOS SÉCULOS XVII E XVIII

Nos séculos XVI e XVII a intervenção das autoridades resultava apenas da necessidade de
garantir ao açúcar da ilha uma posição dominante no mercado interno e a situação concorrencial
nos mercados nórdico e mediterrânico. A concorrência do açúcar brasileiro será, por algum tempo,
o motivo de discórdia entre os vários interesses em jogo. A incidência das medidas é pontual e resul-
ta do incentivo que a cultura mereceu em finais do século XVI.
No ano de 1600 é bastante evidente a retracção da área ocupada pelos canaviais. A média pro-
priedade cede lugar à pequena e, mesmo, de muito pequenas dimensões. A maioria (isto é 89%) pro-
duz entre 5 e 50 arrobas, o que demonstra estarmos perante uma cultura vocacionada para suprir
as carências caseiras, no fabrico de conservas, doçaria e compotas. Em 1610 o bicho da cana
obrigou ao fecho de muitos engenhos. Até 1640 o movimento descendente agravou-se com a pre-
sença, cada vez mais assídua de açúcar brasileiro no porto do Funchal. Em 1616 para garantir o
escoamento da produção local e que à saída se fizesse uma distribuição equitativa de ambos os açú-
cares. As dificuldades eram evidentes e conduziram ao abandono de canaviais. Assim sucedeu com
um serrado no caminho para a Rochinha de Manuel Figueira Dutra, “que andou de canas he oje
estaa em terra balldya”.242 A ocupação holandesa das terras a cultura fez renascer na ilha os canavi-
ais para responder à solicitação na Europa e necessidade das indústrias de conserva e casquinha.
Assim o serrado de Brás Pacheco Tavares nos Piornais estava de pranta nova e despertava o inte-
resse de Amaro Couto, mercador, que o comprou por 350.000rs243. Em 1643 o número de engenhos
existentes era insuficiente para dar vazão à produção dos canaviais.
A conjuntura da década de quarenta da centúria seguinte foi marcada por novo incremento da
cultura, sem necessidade de recurso às medidas proteccionistas, uma vez que o mercado do
Nordeste brasileiro se encontrava sob controlo holandês. Fechou-se a rota do açúcar brasileiro. A
correspondência de Diogo Fernandes Branco refere a ausência destes navios nos anos de 1649 a
1650244. No último ano245 dizia-se que há dezoito anos que o pau-brasil e o açúcar não vinham de
Pernambuco, mas em 1657246 já os lavradores se queixavam que o contrato estabelecido com os mer-
cadores não se cumpria. Perante tudo isto os canaviais voltaram a estar verdejantes. Segundo Diogo
Fernandes Branco o ano de 1649 foi de grande produção, mesmo assim não foi suficiente para
cobrir as necessidades da indústria de conservas, tendo-se importado em Outubro de Cabo
Verde247. Mas, sucede que as levadas estavam abandonadas e faltavam engenhos para moer a
cana248. A intervenção das autoridades vai no sentido de promover a cultura através de uma políti-

Apanha cana. velha era para no ano imediato se põr de pranta240. Entretanto em 1598 a mulher de Joane Mendes 242. ARM, JRC, fls. 126vº-129: 16 de Outubro.
2002
de Miranda tinha terras de arrendamento à Misericórdia que estavam de pranta nova.241 243. Ibidem, fls. 203vº-204vº: 9 de Julho
As dificuldades sentidas pela exploração dos canaviais, fruto da concorrência de outras áreas, e 244. ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº.19: cartas de 20, 23 de Maio, 30 de Junho, 3 de Agosto, 18, 19 de Outubro, 6 de
Dezembro de 1649, 17 de Junho de 1650. Cf. Alberto Vieira, O Público e o Privado na História da Madeira, vol. I.
das dificuldades internas conduziram em finais do século XVI ao colapso dos canaviais. A docu- Correspondência Particular do Mercador Diogo Fernandes Branco (1649-1652), Funchal, CEHA, 1996.
mentação referente aos encargos por capelas ou aos contratos de meias e arrendamento evidencia 245. ANTT, PJRFF, nº.396, fl.4v1: 15 de Junho.
de forma clara a realidade. 246. ANTT, PJRFF, nº.965ª, fls.429-429vº: 16 de Agosto de 1663
247. Alberto Vieira, O Público e o Privado na História da Madeira, vol. I. Correspondência Particular do Mercador Diogo Fernandes
240. ARM, Misericórdia do Funchal, no.684, fls. 13-20vº, testamento de 4 de Dezembro. Branco (1649-1652), Funchal, CEHA, 1996, pp.45 e segs.
241. Ibidem, nº.40, fl. 166: auto de 5 de Novembro. 248. ANTT, PJRFF, nº.396, fl.4: 20 de Outubro de 1648; Ibidem, nº.396, fl.7vº: 5 de Dezembro de 1651.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ca de incentivos, materializada nos apoios à reconstrução dos engenhos. O conjunto de medidas A coroa, de acordo com a provisão régia de 1 de Julho de 1642, pretendia pro-
culmina em 1688 com a redução dos direitos que oneravam a produção, passando de um quinto mover de novo o cultivo da cana-de-açúcar por meio de incentivos à reparação dos
para um oitavo. engenhos, com a isenção do pagamento do quinto por cinco anos ou de metade dele
Nos séculos XVII e XVIII os poucos canaviais pertencem à área da capitania. Em Machico os por dez anos252. Usufruíram do apoio o capitão Diogo Guerreiro, Inácio de
poucos canaviais que persistiram, principalmente em Santa Cruz, haviam desaparecido por com- Vasconcelos, António Correa Betencourt e Pedro Betancor Henriques253. A situação
pleto em 1674249. Em auto lavrado em câmara refere-se que a lavoura cessara na vila de Machico, favoreceu a cultura, afirmando Diogo Fernandes Branco em 10 de Fevereiro de 1649
sendo as terras semeadas de trigo, cevada e vinhas. A partir dos livros do oitavo disponíveis não é que as canas estavam “fermozas”, prevendo-se uma grande colheita254. Em Outubro
fácil estabelecer as principais áreas de produção, uma vez que poucos são aqueles em que está iden- goraram-se as expectativas, pois o açúcar lavrado era de má qualidade. O progresso
tificada a localidade. Mesmo assim é possível definir-se áreas produtoras de maior evidência, como continuou no ano imediato, o que justificou a construção de dois novos engenhos.
sejam, Câmara de Lobos, Calheta, Estreito da Calheta, Canhas. Estávamos perante uma recuperação passageira uma vez que na década seguinte o
As terras de vinha e searas cederam lugar às socas de cana. Mas pouco ultrapassaram, num reaparecimento do açúcar brasileiro no porto do Funchal trouxe de volta a anterior
primeiro momento, a valoração da área agrícola circunvizinha do Funchal, como prova o livro do situação. O açúcar madeirense estava, mais uma vez, irremediavelmente perdido,
quinto do ano de 1600, que nos 108 proprietários de canaviais apresenta um grupo maioritaria- mercê da concorrência do brasileiro. Em 1658 procurou-se apoiar o cultivo ao
mente desta área250. O livro é único quanto à produção de açúcar na ilha no século dezassete, pois reduzir-se os direitos sobre a produção para um oitavo, mas a crise era inevitável.
só teremos novas informações a partir de 1689, com a arrecadação do oitavo251. No ano de 1600 é Aos incentivos referenciados acresce o facto de os direitos do quinto do açúcar
bastante evidente a retracção da área ocupada pelos canaviais. Aqui a média propriedade cede entre 1643 e 1675 não serem devidamente cobrados, pelo que no último ano se
lugar à pequena e mesmo de muito pequenas dimensões. A maioria (isto é 89%) produz entre 5 e recomendou maior atenção255. Depois, por alvará de 15 de Outubro de 1688256, a
50 arrobas, o que demonstra estarmos perante uma cultura vocacionada para suprir as carências coroa determinou que os direitos que oneravam a produção passassem para um oita-
caseiras, no fabrico de conservas, doçaria e compotas. vo da colheita, sendo a medida, mais uma vez definida como uma forma de pro-
mover a cultura.
ANO Funchal Santa Cruz TOTAL Até 1640 o movimento descendente havia-se agravado com a presença, cada vez
1620-24 2630 mais assídua de açúcar brasileiro no porto do Funchal. Em 1616 para garantir o
1637-44 26.080 escoamento da produção local e que à saída se fizesse uma distribuição equitativa
1645 2.324 de ambos os açúcares. Com a ocupação holandesa das terras a cultura renasceu na
1652-54 18.248 ilha para responder à solicitação europeia e pela necessidade resultante das indús-
1656-58 11.453 trias de conserva e casquinha. Em 1643 o número de engenhos existentes era insu-
1659 2.720 ficiente para dar vazão à produção dos canaviais.
1660-62 3.512 O quadro da arrecadação dos direitos pelos almoxarifes evidência de forma
1670-72 6.283 clara a situação de crise a partir da década de cinquenta.
1677-79 1.755
1698 40.000 251.Idem, PJRFF, nº. 525-539. Apanha de cana. 2002
252. Usufruíram deste apoio o capitão Diogo Guerreiro, Inácio de Vasconcelos, Antonio Correa Betencourt e Pedro Betancor
Henriques. ANTT, PJRFF, nº.965a, fls. 7 de Novembro de 1654, ordem para reposição do quinto pago por António Correia
Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, n1. 965-A - 969. Betencourt; ibidem, fls. 181-182, 21 de Agosto de 1654, fiança do capitão Diogo Guerreiro; ibidem, fl. 222, 24 de Maio de 1657,
empréstimo ao capitão Pero de Betencourt HENRIQUES; ibidem, nº.966, fl8vº, 4 de Novembro de 1680, alvará de privilégio a
Inácio de Vasconcelos. Confronte-se F. MAURO, ibidem, pp. 248-250.
Os anos seguintes foram de promoção da cultura o que propiciou um aumento da produção, 253 . Usufruíram deste apoio o capitão Diogo Guerreiro, Inácio de Vasconcelos, Antonio Correa Betencourt e Pedro Betancor
mantendo-se a mesma incidência das áreas em questão, sendo de realçar a Ribeira dos Socorridos, Henriques. ANTT, PJRFF, nº.965a, fls. 7 de Novembro de 1654, ordem para reposição do quinto pago por António Correia
onde no século dezoito se manteve em actividade um dos poucos engenhos de açúcar existentes na Betencourt; ibidem, fls. 181-182, 21 de Agosto de 1654, fiança do capitão Diogo Guerreiro; ibidem, fl. 222, 24 de Maio de 1657,
empréstimo ao capitão Pero de Betencourt HENRIQUES; ibidem, nº.966, fl8vº, 4 de Novembro de 1680, alvará de privilégio a
ilha. Inácio de Vasconcelos. Confronte-se F. MAURO, ibidem, pp. 248-250.
254 . ANTT, Convento de Santa Clara, livro, nº.19, cartas de 10 de Fevereiro e 18 de Outubro de 1649, publicadas por Alberto
Vieira, O Público e o Privado na história da Madeira, Funchal, 1996, p.45.
249.ARM, Camara de Machico, nº.85, fls. 312vº-316: auto de 28 de Abril 255 ANTT, PJRFF, nº. 396, fl. 63vº. 15 de Novembro
250. ANTT, PJRFF, nº.980. 256 ANTT, PJRFF, nº.969, fls. 48-vº

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ALMOXARIFE DATA total AÇÚCAR Açúcar


Arrobas Arráteis DATA PROPRIETÁRIO Pães Peso
arrobas Arratéis libras
Cristóvão Faria 1620-24 49.264$261 52.266 261/2 1689 Francisco Vasconcelos e Silva Ribeira dos Socorridos 200
Cristóvão Valente 1645 12.738$951 469 28 ? Francisco Vasconcelos e Silva Calheta 21?
1652-54 39.292$894 3.649 21 1690 Francisco Vasconcelos e Silva Ribeira dos Socorridos 7
1693 Francisco Vasconcelos e Silva Ribeira dos Socorridos 5?
1656-58 40.532$298 2.390 19
Inácio Cabral Catanho 8 68
Luís Soares Pais 1660-62 49.546$497 702 12 1694 Padre André de França Ribeira dos Sete Passarinhos 46
Luís Soares Pais 1670-72 70.178$733 1.256 241/2 1695 Joseph de França 56
Manuel Soares Pais 1677-79 62.389$244 351 91/2 Padre André de França 12 84
Capt. Vicente Andrade 8
1701 Capt. Manuel Freire Andrade 5 32
O açúcar madeirense estava, mais uma vez, irre-
1702 Capt. Manuel Freire Andrade 16 152
mediavelmente perdido, mercê da concorrência. 1703 Capt. Manuel Freire Andrade 33
Ainda, em 1658 procurou-se apoiar os canaviais ao Joseph Nunres 6 55
reduzir-se os direitos sobre a produção para um Manuel de Agrela Câmara de Lobos 7 70
oitavo, mas a crise era inevitável. É de prever, con- Capt.Filipe Câmara de Lobos 56
António Lopes Maciel 125
tudo, que a produção de açúcar tenha sido alvo de
Domingas Ferreira, viúva 26 210
novo incentivo no final do século, pois em1693257 o Capt Joseph de França Berenguier 67
fogo do céu terá queimado cinco mil pães de açúcar Capt. Manuel Catanho de Aguiar 134
e, passados cinco anos, Governador D. António Capt. Visente de Ossuna Andrade 123
Jorge de Melo, refere-se a existência de 41 engenhos
que rendiam à coroa 8.000 arrobas258. Em finais da FONTE: ANTT, PJRFF, nº.525.
década a situação era distinta, como o corroboram
dois estrangeiros que passaram pela ilha. Em 1687 No período de 1689 a 1766 deparamo-nos com algumas quantidades de açúcar na Ribeira Brava,
Hans Sloane259 é peremptório na caracterização da Funchal, Ponta do Sol, Santa Cruz e Calheta261. A situação é totalmente distinta daquela que se viveu Apanha da cana.
conjuntura açucareira: “Esta ilha é muito fértil nos séculos XV e XVI. Na Calheta, por exemplo, iam longe os tempos áureos, agora a produção de açú- Colecção Vicente. Museu Photographia Vicentes

tendo antigamente produzido grandes quantidades car era quase ridícula. Assim entre 1689 e 1705 foram só 29 arrobas e 2 libras262. O recurso a medidas
de açúcar aqui cultivado e de excelente qualidade. de capacidade de pequeno, que por certo adquiriam muita importância para a época. Era uma agri-
O que agora possuem é bom, mas muito escasso, cultura de jardinagem. De acordo com Álvaro Rodrigues de Azevedo263 o ano de 1748 é o marco que
devido à existência de muitas plantações açu- assinala o fim da primeira época do açúcar na Madeira: “acabou, por então o assucar na ilha da
careiras nas Índias Ocidentais (...) Assim, embora Madeira. A cana doce, somente como mera curiosidade, continuou cultivada, fazendo-se della pouco
consigam um produto de maior cotação, acham mel, para consummo domestico...”
que lhes é muito proveitoso dedicarem-se aos vi- Por todo o século XVIII a aposta preferencial foi apenas na vinha, que retirou espaço aos canaviais.
nhos, pelo que apenas produzem o açúcar indis- Mesmo assim tiveram continuidade, uma vez que existem dados que documentam a existência de
pensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, canaviais e sabe-se que o engenho dos Socorridos se manteve em funcionamento por todo o século
Apanha da cana. Postal antigo indo ainda comprá-lo ao Brasil, às suas próprias plantações.” Dois anos após é idêntico o teste- XVIII264. A coroa, de acordo com a provisão régia de 1 de Julho de 1642, pretendia promover de novo
munho de John Ovington260: “ o açúcar... raramente é exportado, devido à sua escassez, mal chegan-
do para as necessidades da ilha”.
261.ANTT, PJRFF, nº.965a.
262.ARM, CMF, registo geral, tomo VII, fl.35.
257 Álvaro Rodrigues de Azevedo, Anotações, in Saudades da Terra, Funchal, 1873, p.693. 263.”Notas”, in Saudades da Terra, Funchal, 1873, p.697
258 .João Cabral do Nascimento, Documentos para a História das Capitanias da Madeira, Lisboa, 1936, p.14 264 . Álvaro Rodrigues de AZEVEDO (“anotações”, in Saudades da Terra, Funchal, 1873) refere a extinção em 1748, o que não é
259 . António Aragão, A Madeira vista por Estrangeiros, p.158 verdade, pois o engenho dos Socorridos foi alvo de beneficiações em 1755 e continuou laborando por todo o período derradeiro
260 Ibidem, p.198 deste século. Cf. João Adriano RIBEIRO, A cana de açúcar na Madeira séculos XVIII-XIX, Calheta, 1992.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

o cultivo da cana-de-açúcar por meio de incentivos à reparação dos engenhos, com a isenção do quin-
to por cinco anos ou a metade por dez anos.
O progresso continuou no ano imediato, sendo testemunhado a construção de dois novos engenhos.
Foi no entanto uma recuperação passageira uma vez que na década seguinte o reaparecimento do açú-
car brasileiro no porto do Funchal trouxe de volta a anterior situação. O açúcar madeirense estava,
mais uma vez, irremediavelmente perdido, mercê da concorrência. Ainda, em 1658 procurou-se apoiar
os canaviais ao reduzir-se os direitos sobre a produção para um oitavo, mas a crise era inevitável.
Acresce o facto de os direitos do quinto do açúcar entre 1643 e 1675 não serem devidamente cobrados,
pelo que no último ano se recomendou maior atenção. Depois, por alvará de 15 de Outubro de 1688,
a coroa determinou que os direitos que oneravam a produção passassem para um oitavo da colheita
sendo a medida mais uma vez definida como uma forma de promover a cultura265.
A produção de açúcar torna-se conhecida através dos tributos que recaem directamente sobre o pro-
Transporte em corça. Postal antigo duto. Na Madeira tivemos o quarto e, depois, o quinto que oneravam todos os lavradores de cana de
acordo com os valores de produção estabelecidos à saída do estendal para os canaviais. Nas Canárias
o diezmo da Igreja é o mais importante266. Para a arrecadação dos direitos eram nomeados quintadores
paras as diversas localidades. Em 1686 determinou-se a extinção do cargo por que “não tinhão exercí-
cio algum por se terem extinguido os engenhos e se não fabricarem nessa ilha os tais asucares…”267. A
situação repete-se passados dois anos justificando-se a medida por todos, menos o de Santa Cruz, terem
já falecido e “por não haver nesta ilha engenhos nem se fabricarem de novo.”268
No século dezoito a cultura é conduzida para um plano secundário, deixando de ter a real
importância que teve na economia madeirense. Em 1746 foi dado provimento ao escrivão dos quintos
do açúcar da vila da Calheta, a António Dionísio de Oliveira, o que prova que pelo menos aqui a cul-
tura ainda se mantinham com dimensão para a Fazenda Real se preocupar com a arrecadação269. Para
Albert Silbert270 o fim do “ciclo do açúcar” na Madeira tem lugar em meados do século XVIII. Opinião,
aliás, corroborada pelo cônsul francês na ilha, que refere para 1777 o abandonado da cultura271. Poderá
ter a mesma origem a inexistência de livros do oitavo a partir de 1766. Por todo o século XVIII a apos-
ta preferencial foi apenas na vinha, que retirou espaço aos canaviais. Mesmo assim tiveram con-
tinuidade, uma vez que existem dados que documentam a existência de canaviais e sabe-se que o
engenho dos Socorridos se manteve em funcionamento por todo o século XVIII.

265 . ANTT, PJRFF, nº.965a, fls. 7 de Novembro de 1654, ordem para reposição do quinto pago por António Correia Betencourt; ibi-
dem, fls. 181-182, 21 de Agosto de 1654, fiança do capitão Diogo Guerreiro; ibidem, fl. 222, 24 de Maio de 1657, empréstimo ao
capitão Pero de Betencourt Henriques; ibidem, nº.966, fl.8vº: 4 de Novembro de 1680, alvará de privilégio a Inácio de Vasconcelos.
Confronte-se F. MAURO, ibidem, pp. 248-250; ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº.19: cartas de 10 de Fevereiro e 18 de
Outubro de 1649; ANTT, PJRFF, nº. 396, fl. 63vº: 15 de Novembro; nº.969, fls. 48-vº
266 . Paulino CASTANEDA DELGADO, “Pleitos sobre diezmos del azucar en Santo Domingo y en Canarias” in II CHCA, Vol. II,
Las Palmas, 1979, pp. 247-272; Benedicta RIVERO SUÁREZ, Ob. cit, pp. 179-186. O diezmo não era taxado pela décima parte das
canas mas sim uma arroba em cada vinte de açúcar branco. Daqui resultaram alguns conflitos, resolvidos em 1543 com breve do
papa Paulo III que estabelece o diezmo ser a décima parte de todo o açúcar antes de divisão pelos lavradores e donos de engen-
ho, 5% do primeiro açúcar branco e purificado e 4% dos demais tipos de açúcar (Benedicta RIVERO SUÁREZ, Ibidem, p. 183).
267 . ANTT, PJRFF, nº.966, fls. 446vº-447: 20 de Dezembro
268 . Ibidem, nº.396, fls. 84-84vº: 20 de Novembro de 1688.
269 . Ibidem, nº912, fl.184vº: 12 de Fevereiro
270 . Uma encruzilhada do Atlântico. Madeira (1640-1820), Funchal, 1997, p.89
271 . Ibidem, p.113 Apanha da cana. Postal antigo

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

1853 quizeram na Madeira voltar à épocha remota de 1420, grandes difficuldades se apresentaram
aos emprehendedores de uma industr ia, que necesssitava de grandes capitaes para organisar fa-
bricas regulares, e que tinha de competir com o progresso industrial desenvolvido em um grande
espaço de tempo, durante o qual as artes e as sciencias haviam adquirido novas praticas e novas
leis. Pode ainda a Madeira receber grandes beneficios pelo fabrico do assucar, mas não pode viver
unicamente d’elle, como vivia do fabrico dos vinhos.”272
Outro facto evidente da centúria oitocentista foi a presença de inúmeros madeirenses em Demerara
como mão-de-obra substitutiva dos escravos, cuja situação, entretanto, havia mudado. A última déca-
da do século dezanove e as duas primeiras da presente centúria podem ser consideradas de horas
amargas para todos os madeirenses. Parte disso é resultado do processo porque passou o açúcar. A gen-
eralização do consumo provocou um redobrado empenho na sua reimplantação entre nós.
No início, as dificuldades do mercado americano, envolto em guerras pró-independência, e
ainda não refeito do impacto do abolicionismo, propiciaram a afirmação da cultura nos primeiros
Apanha da cana.
espaços, ou a aposta nas alternativas, como a beterraba, que na ilha nunca resultou. Todavia, num Colecção Vicente. Museu Photographia Vicentes
segundo momento a concorrência tornou-se feroz. Entre nós a do açúcar de beterraba açoriano ou
de cana de Angola e Moçambique foi bastante evidente e levou ao estabelecimento de medidas
restritivas da circulação do melaço e do açúcar, ou de favorecimento da indústria local, enqua-
drando-se na política europeia definida pelo convénio de alguns países produtores assinado a 5 de
Março de 1903. A última situação conduz, por vezes, ao monopólio.
A toda a complexa conjuntura junta-se a dificuldade extrema no recrutamento de mão-de-obra
barata - o escravo era então coisa do passado - o que levava a um investimento desusado na te-
cnologia. A intenção era clara: substituir-se ao homem, baratear e facilitar a rapidez do processo de
laboração. Uma das grandes questões em debate no segundo momento do açúcar prende-se com as
dificuldades em concorrer com outras áreas produtoras, onde os custos eram reduzidos a metade
e a qualidade da sacarose da cana também superior273.

O REGRESSO DOS CANAVIAIS. A área de cultura de cana sacarina foi-se reduzindo inexoravel-
mente a pequenos nichos de socalcos na vertente sul. Todavia, a partir de meados do século XIX a
mesma foi paulatinamente conquistando terreno a Norte e a Sul. O testemunho de alguns autores
permite acompanhar o evoluir da cultura. Em 1817 Paulo Dias de Almeida274 só dá conta de vinhas,
trigais e bananais. O mesmo sucede com alguns textos de autores estrangeiros275.
Os canaviais não desapareceram da ilha, mantendo-se a produção de açúcar em um único engen-
ho até 1826. E o resultado era considerado de excelente qualidade276. No ano imediato Severiano
Alberto de Freitas Ferraz insiste junto do Governador no sentido de se promover a cultura da cana
Apanha da cana.2002
OS CANAVIAIS NOS SÉCULOS XIX E XX
- O REGRESSO E NOVA ESPERANÇA. 272 .Francisco de Paula de Campos Oliveira, Informações para a Estatistica Industrial publicadas pela repartição de Pesos e Medida-
Districtos de Leiria e Funchal, Lisboa, 1863, p.5
273 Quirino de JESUS, A questão saccharina da Madeira, Lisboa, 1910, p. 19; idem, A nova questão Hinton, Lisboa, 1915, pp. 7-11;
A conjuntura económica de finais do século dezanove trouxe a cultura de regresso à Madeira, Dizia Peres Trancoso (ob. cit. P. 17) “Esta indústria que é na Madeira de característica europeia, com mão-de-obra branca, difi-
como solução para reabilitar a economia que se encontrava profundamente debilitada com a crise cilmente pode competir com o açúcar de origem africana ou brasileira”
do comércio e produção do vinho. A situação, que se manteve até à actualidade, não atribuiu ao 274 . Rui Carita, Paulo de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira, Funchal, 1982.
275 . A Guide to Madeira, London, 1801; A Young Traveller, sl., 1815
produto a mesma pujança económica de outrora nas exportações. Era algo distinto: “Quando em 276 . Na Historical Sketch of the Island of Madeira, Londres, 1819, p.51; Rambles in Madeira, Londres, 1827, p.364

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

uma vez que a vinha estava condenada por falta de escoamento do vinho277. Dever-se-ia apostar nos A aposta estava agora na afirmação da cana-de-açúcar, capaz de reabilitar a economia da ilha287.
canaviais através da isenção de direitos, por um período de dez anos. Segundo D. João da Câmara Leme “a cultura da canna é a mais vantajosa para a Madeira nas cir-
A partir da década de quarenta o panorama da agricultura começa a mudar. José Silvestre cunstâncias actuaes”288. Daqui resultava a necessidade de incentivar a construção de novos enge-
Ribeiro278, Governador Civil entre 1846 e 1848, afirma que: “A cultura da canna de assucar que nhos289. Em 1879 Henrique de Lima e Cunha290 não duvida em afirmar que “a cultura da canna
n’outro tempo se fez em tão larga escala, está hoje redusida a mesquinhas proporções,…”. Os qua- doce é a mais rica e productiva da Madeira…”. Passados seis anos as dificuldades de desenvolvi-
tro engenhos que laboravam em S. Martinho Ribeira dos Socorridos, Praia e Câmara de Lobos ape- mento da indústria açucareira eram evidentes, não tornando possível a expansão da área de culti-
nas produziam 60 pipas de melaço e 10 de aguardente. A. C. Herédia279 testemunha em 1849 o vo. Para isso contribuíram a falta de engenhos e os direitos que oneravam os produtos daí resul-
interesse desusado dos agricultores na plantação de cana. Só que não podia progredir mais por falta tantes291.
de engenhos: “ todos quererão plantar a cana d’assucar, e no curto espaço de quatro annos a No segundo momento de afirmação dos canaviais podemos estabelecer
Madeira tem uma producção rica…”. A cana parecia ser pouca, mas, no ano imediato, duas fases distintas. A primeira decorre de 1852 a 1895, culminando com o
J. Mason280 refere que a cultura se fazia de modo extensivo, ocupando metade da ataque do fungo conyothurium melasporum292 em 1882, que levou à quase
terra arável, produzindo-se melaço e rum. Opinião distinta tem R. White281 que diz total destruição dos canaviais da cana bourbon introduzida de Caiena
ser ainda pouca a área cultivada e apenas usada para o fabrico de mel. Todavia em (1847) e Cabo Verde293. Para atalhar as dificuldades importaram-se novos
1851 são referidos quatro engenhos de moer e fábricas de refinação de açúcar282. Aliás tipos de cana, que se foram implantando desde 1884. Acontece que a
o próprio Robert White testemunha em 1857 que era já muito mais rentável que o rentabilidade era menor294.
vinho283. Mas, à industria depara-se um grande handicap que pautará todo o segun-
do momento de afirmação, a dificuldade de concorrer em pé de igualdade com as Bourbon Novas variedades desde 1884
demais regiões284. açúcar 20,5 14,5
A cultura era ainda uma auspiciosa esperança para os madeirenses. Nicolau Suco 11,5º beaumé 9º beaumé
Ornelas e Vasconcellos285, que fora trabalhador de cana em Demerara, diz-nos: “... Impurezas 92,5 80
olha-se para a cultura da cana de assucar como um grande produto agrícola que produção AÇÚCAR 10,7kg 8kg
offerece grandes vantagens, que podem em certo modo adoçar o mal geral, o aspec- por MELAÇO 1,5 5,58
to aterrador de nossas finanças...” Passados dez anos a cana continua a ser uma apos- 100kg cana AGUARDENTE 1 galão a 30º 1,05 litros a 40º
Produção de cana, 1865 ta forte, mas tardava o momento da plena pujança, de acordo com Eduardo Grande286, ocupava ape-
nas 357 ha (2%), é uma magra fatia do solo arável, que dava 14.688.043 Kg que era laborada em qua- A década de oitenta foi o momento de plena afirmação dos canaviais. A
tro engenhos, mas apenas dois ofereciam condições, pelo que “o preço de fabricação é tão excessi- produção fazia-se em grandes quantidades que dava para o consumo local
vo que mal permitte fazer esta operação em condições lucrativas.” e o excedente exportava-se para o reino295.
Ensaiaram-se as diversas variedades, disponíveis ao nível mundial, no
sentido de se conseguir a recomposição dos canaviais: otaheite da Mauricia (1886), cristalina do Molhos de cana. 2002
277 . AHU, Madeira e Porto Santo, nº.10188-10189. Haiti, Elefante e Bambu, Porto Mackay, rajada e yuba do Natal (1897). A maioria não resistiu ao
278 . Conhecimentos úteis, in Alberto Vieira, História do Vinho da Madeira, Funchal, 1993, p.174 fungo, pelo que se procurou alternativas como a Cheribon, e a partir de 1935 a POJ-2725, 2727,
279 . Breves Considerações sobre a Abolição dos Morgados na Madeira, Lisboa, 1849, p.7
280 . A treatise on the climate and meteorology of Madeira, Londres, 1850, 243-244. 2878 de Java, considerada uma das melhores variedades, a White Tanna da Austrália e a CP-807
281 Madeira its climate and scenery, Londres, 1851, p. 54. Na edição de 1857, p. 140, refere já que a cana é mais lucrativa que o
vinho.
282 . Edward V. Harcourt, A Sketch of Madeira, Londres, 1851, p.94; Januário de Nóbrega, Breve Memória para a Descripção 287. Cf. ARM, Governo Civil, nº.138, fls.122vº-123, 13 de Julho 1854; ibidem, fl. 125-125vº, 20 de Julho de 1854; nº. 140, fl. 147-147vº,
tipográfica, Económica do concelho do Funchal, in João José Abreu de Sousa, a Patuleia na Madeira 1847, in Islenha, 14 7 de Setembro de 1865.
(Funchal, 1994), p.7 289. Discurso Pronunciado na reunião Eleitoral do Partido Progressista de Vinte e cinco de Março, Funchal, 1870, p.10.
283 . …up to the present time the cultivation of sugar cane has been found much more profitable than that of the wine had been for 290. Ibidem, p.13; Conde de Cannavial, A Cultura da Canna de Assucar e os Direitos sobre o Assucar, Funchal, 1885, p.67; IDEM,
many years previous to the appearance of the disease; but large profits have a tendency to bring about over-production, and it is Um privilégio Industrial. Cartas a diversos jornaes, Funchal, 1883, p.5
not likely that the present high prices of the price will be permanently maintained.” (Madeira its climate and scenery, Londres, 291. Plano de Melhoramentos para a Ilha da Madeira, Lisboa, 1879, p.8
1857, p.140). 292 . Visconde de Cannavial. A Cultura da Canna de Assucar. Os direitos sobre o Assucar, Funchal, 1885, p.67
284 .”No sugar is now made from, the machinery being expsensive, and the produce probably insufficient to render competition 293. Cf. Rui Vieira, O Bicho da Cana. Sua Importância e Meios de Combate, Funchal, 1959.
with foreign sugar possible.” [Madeira its climate and scenery, Londres, 1857, p.139] 294. Alfredo Fraga GOMES, A doença da cana de açúcar pelo congothyrium melasporum na ilha da Madeira, Lisboa, 1900. Sobre
285. Methodo de plantar e cultivar a cana do assucar, Funchal, 1855, p. 4. o historial do açúcar neste momento veja-se Quirino de JESUS, a questão saccharina da Madeira, Lisboa, 1910.
286. Relatório. Sociedade agrícola do Funchal, Funchal, 1865, p. 9. 295. A questão Saccharina da Madeira, Lisboa, 1910, p.17

152 153
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

da Luisiânia296. Actualmente as variedades mais Evolução da Superfície de cana


importantes nos canaviais madeirenses são a
POJ-2725 e NCO-310. Ano Hectares Ano Hectares
Para isso foi criada em 1888297 uma estação 1865 357 1982 600
experimental coordenada pelo Agrónomo 1895 800 1983 400
Alfredo de Fraga Gomes e, em 1895, estabele- 1905 1.000 1986 119,9
ceu-se um conjunto de medidas proteccionistas. 1906 1.200 1988 90,3
Daqui resultou a rápida promoção da cultura, 1907 1.200 1989 49
que assumiu uma posição destacada na econo- 1911 1.100 1994 109,9
mia da ilha, tal como testemunha António 1915 1.800 1995 118,8
homem de Gouveia: Appareceu de novo e flo- 1918 1.500 1996 113,3
rescentissima a cultura da canna, a ponto de 1927 1.400 1997 113,8
não haver fabricas sufficientes para a moerem; 1928 1.400 1998 114,6
mas, a breve trecho esta cultura florescente tem 1999 114,6
de ceder o logar ao vinho, que, obtendo um 1939 1.500 2000 115,0
preço remunerador, repovoa a ilha.”298 1951 1.500 2001 117,0
A partir de 1956 a Estação Agrária da 1952 1.420 2002 119,0
Madeira criou viveiros em toda a ilha de forma 1972-1980 1290 2003 123,0
a alargar a cultura da cana a todo o espaço ará- 1981 800 2004 125,0
vel. Isto surgiu por imposição das câmaras de S.
Vicente e Santana que haviam solicitado em A evolução dados canaviais, com maior incidência na vertente meridional, área tradicional de
1953 ao Ministro do Interior o restabelecimen- cultivo, significa um maior volume de produção que empurra a evolução do número de engenhos.
to da cultura na vertente Norte. Todavia o Foi no período de 1910 a 1930 que se atingiu os valores mais elevados, que aproximaram a ilha dos
decreto de 1955, que alargou a área de cana, tempos aureos do século XV, apenas em termos de produção e nunca de riqueza. A partir daqui
não o contemplou. Contudo, a Junta Geral esta- sucederam-se medidas limitativas da expansão da área dos canaviais301, que conduziram inevitavel-
Apanha da cana. beleceu campos experimentais em ambos os concelhos no sentido de conhecer as possibilidades da mente à desvalorização na economia rural e que em certa medida favoreceram a expansão da
Colecção Perestrellos. Museu Photographia Vicentes
cultura. banana, cultura, predominantemente da vertente sul, deixando a agricultura do norte num estado
Alteração significativa só sucedeu na viragem do século, quando a cana atingiu cerca de 1000 de total abandono, o que abriu as portas a uma desenfreada emigração. Tenha-se em atenção que
ha, valor que continua a subir para as 6500ha em 1939299. A partir daqui foi a quebra resultante das “a agricultura, toda a economia da Madeira, a própria administração pública, ficariam mais do que
medidas restritivas ao fabrico e consumo de aguardente. Na década de quarenta do nosso século a nunca na dependência das fábricas de açúcar e alcool”302.
cana ocupava ainda 34% da área cultivada, mas era já um momento de quebra acentuada da área Facto inédito foi a tentativa de implantação da cultura no Porto Santo. Primeiro foi a frustrada
de cultivo, que na vertente Sul foi paulatinamente substituída pela bananeira. Em 1952300 fala-se introdução do sorgo303, depois a cana, documentada a partir de 1883. A produção era diminuta,
apenas 1420ha, enquanto mais próximo de nós, em 1986, só existem 119,9ha. sendo as canas exportadas para o Funchal ou espremidas num engenho movido por bois, ou moi-
nho de vento304. Também na Madeira se cultivou o sorgo com a mesma finalidade desde 1856305.
Temos apenas indicação sobre a produção de sorgo em 1862306, para fabrico de aguardente:
296 . J. M. Rendell, Concise Handbook of the Island of Madeira, Londres, 1882, p.33; Ellen Taylor, Madeira, Londres, 1882, pp.68-
69; Dennis Embleton, A Visit to Madeira in the Winter. 1880-81, Londres, 1882, p.78 301. Angel MARVAUD, Le Portugal et ses colonies, Paris, 1952, p. 188
297. A cana comum era a chamada cana da terra, isto é saccharum officinarum genuinum. 302. As evidências destas medidas estão na área de cultivo: em 1939 a cana ocupa 6500 ha, enquanto em 1952 era de menos de um
298 . Carlos Azevedo Menezes, A Canna Sacharina, in Portugal Agrícola, XVII, nº.17 (1907), pp.261-263. quarto, isto é 1420 ha.
299. A Situação da Madeira. Discurso Proferido na Câmara dos Senhores Deputados no dia 19 de Fevereiro de 1907, Lisboa, 1907, 303. Juvenal de ARAÚJO, A questão Sacarina da Madeira, Lisboa, 1929, p. 5.
p.14 304. Veja-se Anais do município do Porto Santo, Porto Santo, 1989, p. 86.
300. Em 1907 Antonio Homem de GOUVEIA (A situação da Madeira. Discurso proferido na camara dos senhores deputados no 305. Eduardo PEREIRA, Ilhas de Zargo, vo. I, p.553.
dia 19 de Fevereiro de 1907, Lisboa, 1907, p. 14) dá conta desse avanço: appareceu de novo e florescentissima a cultura da canna, 306. Os engenhos do Porto Moniz, S. Vicente, Ponta Delgada e S. Jorge, mas em pequenas quantidades; veja-se Informações de
a ponto de não haver fabricas sufficientes para a moerem;..”. Estatística industrial do districto do Funchal, Lisboa, 1863, pp.68, 55-56, 62-63.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

LOCALIDADE PRODUÇÃO litros Tipo de cana 1968 1969 1970 1971


Litros de sumo KG de aguardente Caniçal Lugar Caniçal Lugar Caniçal Lugar Caniçal Lugar
Porto Moniz 7.000 700 de Baixo de Baixo de Baixo de Baixo
S. Jorge 9700 CP.44-101 105,1 86,4 89,4 62,4 56,4
S. Vicente 21 2,1 CP.36-105 78,6 128,4 114,7 80 93,7 50,7 88,1
Ponta Delgada 29.400 CP.36-13 78,3 86,9 64,7
CP.48-103 79,6 87,6 65,1 48,4
Deverá ainda atender-se ao facto de se ter experimentado outras formas de produção de açúcar CP.44-155 50,4 62,9 50,4
na Madeira, nomeadamente a beterraba, por iniciativa do Conde de Canavial, que não teve êxito307. NCO.310 91,9 84,7 101,9 80,4 76,1 57,3 48,2 52,1
POJ-2725 68,8 88,4 83,9 87,7 98,9 65,5 61,1
Áreas de plantação de cana 1955 O século XX não foi favorável à plena afirmação da cultura. Horácio Bento de Gouveia retrata Áreas de plantação de cana 1968
ROXA NOVA 60 91,1 68,1 52,1
de forma perspicaz a situação porque passaram os engenhos de Ponta Delgada nestes momentos308.
Assim, em 1919 o governo declara a intenção de apostar na cultura da vinha, que deverá ocupar o
terreno dos canaviais. Já as leis de 1927, 1928, 1934, 1937 actuam no sentido do controlo da pro-
Os dados referentes à produção continuam a evidenciar a incidência dos canaviais continua a
dução e comércio de aguardente, conduzindo inexoravelmente a um paulatino abandono da cul-
ocorrer na vertente Sul, tal como o demonstram os valores de produção conhecidos para os anos
tura. Em 1928 a super-produção obrigou à limitação da área de cultivo, ficando novas plantações
de 1865 e 1970. No século dezanove as áreas de produção mais significativa estavam nos concelhos
dependentes de licença. Ao mesmo tempo em 1935 um decreto determinava que as terras
do Funchal e Machico. A mudança do século XX ocorre apenas quanto aos municípios de Ponta
impróprias para o cultivo da cana deveriam ser abandonadas. Dos 1800 ha de 1915, que produzi-
de Sol, Calheta e Ribeira Brava. Certamente que a concentração inicial dos engenhos na cidade
am 55.000 toneladas, passou-se aos 1420 do ano de 1952. O decréscimo começou nos inícios da
levou à hegemonia, enquanto na década de sessenta o efeito dissuasor não se faz sentir, por força
Segunda Guerra Mundial, por força da concorrência de outras culturas, como a bananeira e o vime,
da abertura da rede viária, que facilitou o transporte ao engenho do Hinton que deteve o quase Áreas de plantação de cana 1986
que se havia tornado mais rentáveis.
Áreas de plantação de cana 1963 monopólio.
A par disso é de realçar também a insistência das gentes do norte, representadas através dos
municípios de S. Vicente e Santana, em pretenderem furar as limitações impostas pelas autoridades MUNICÍPIO PRODUÇÃO DE CANA
para a área de produção de cana, que não acautelavam a vertente devido o baixo teor de sacarose309, 1865 1891 1966 1969 1970
levando a Junta Geral em 1955 a contrariar as ordens do Ministério do Interior, ao implantar dois FUNCHAL 5.875.200 1.806.000 12.135.923 9.556.266 8.913.033
campos experimentais em S. Vicente e Santana. A situação é resultado do facto de a cana ser um MACHICO 4.075.244 900.000 4.521.634 5.365.622 5.174.324
complemento importante da pecuária e um dos poucos meios de assegurar a subsistência dos CÂMARA DE LOBOS 1.544.252 247.000 4.644.804 4.376.354 4.260.326
lavradores, tendo em conta a total desvalorização da vinha. PONTA DE SOL 1.468.800 292.250 9.183.852 8.127.322 10.221.038
Nas décadas de sessenta e setenta a Junta Geral do Funchal procedeu a estudos de diversas RIBEIRA BRAVA 7.291.482 6.198.084 7.174.564
variedades de cana nos postos agrários do Caniçal e Lugar de Baixo, com o intuito de encontrar CALHETA 401.452 600.000 6.491.996 7.054.602 7.957.894
a que mais se adequava aos solos do arquipélago. As variedades CP.44-101, CP.36-105, POJ.-2725 S. VICENTE 440.640 500.000 251.126 1.469.232 1.392.640
se apresentavam com maiores possibilidades de adaptação. SANTANA 660.960 295.200 1.253.782 1.356.771 1.236.775
SANTA CRUZ 570.000 5.522.136 5.906.297
TOTAL 14.688.043 5.649.450 49.961.815 49.026.389 52.236.882

307. Informação de Estatística Industrial do districto do Funchal, Lisboa, 1863, pp.55-56, 62-63, 68.
308. Cf. Ricardo Carlos SMITH, Instruções theoricas e praticas sobre a cultura da holus sacharatus ou cana doce de imphee,
Funchal, 1858. A tentativa de implantação da beterraba ocorreu seu sucesso na Quinta do Pico S. João CRACA, Apontamentos
para a resolução da críse agrícola, Lisboa, 1879, p.21)
309. Águas Mansas, Coimbra, 1963, pp.37-38, 61, 62, 116, 139-140, 135-136, 141, 207, 243, 276-277, 283.

156 157
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

PRODUÇÃO DE CANA (em toneladas) ANO TOTAL CANA PARA AÇÚCAR ANO TOTAL CANA PARA AÇÚCAR
AÇÚCAR AÇÚCAR
ANO TOTAL ANO TOTAL ANO TOTAL 1855 2.336 1926 1.376
1855 2.336 1927 40.000 1978 28.345 1861 275 1927 50.000 1.576
1862 18.779 1928 50.000 1979 24.388 1862 18.779 1928 50.000 2.804
1865 14.688 1929 44.776 1980 21.793 1865 14.688 1936 31.000
1870 1930 46.992 1981 21674 1870 800 1951 68.000 35.000
1873 1931 45.006 1982 14.940 1873 900 1956 50.000
1891 5.649 1932 48.997 1983 8.974 1891 5.649 1960 54.055 5.076
1895 3.231 1936 31.000 1984 6.451 1895 3.231 1961 60.983
Transporte de cana em corça. Postal antigo 1899 1951 68.000 1985 5.256 1898 648 1962 35.928
1900 19.736 1956 50.000 1986 4.652 1899 442 1963 50.346
1903 18.000 1958 57.000 1987 4.512 1900 19.736 442 1964 46.339
1904 30.000 1963 50.346 1988 4.160 1903 18.000 1965 50.716 3.212
1905 43.418 1964 46.339 1989 3.907 1904 30.000 1966 49.961 2.263
1906 36.000 1965 50.716 1991 3.989 1905 43.418 800 1967 53.331 38.575 3.218
1907 36.000 1966 49.961 1992 4.173 1906 36.000 1.053 1968 46.287 40.539
1908 30.000 1967 53.331 1993 4.181 1907 36.000 1969 49.023 33.779 3.005
1909 1968 46.287 1994 3.188 1908 30.000 1.828 1970 52.237 40.422 3.112
1910 75.000 1969 49.023 1995 3,793 1909 1971 46.026 35.091 2.174
1911 1970 52.237 1996 3.676 1910 75.000 2.973 1972 47.503 35.162 2.971
1912 71.266 1971 46.026 1997 3.927 1911 3.204 1973 30.527 25.224 2.038
1913 68.999 1972 47.503 1998 3.500 1912 71.266 18.560 4.662 1974 42.315 30.348 2.385
1914 69.065 1973 30.527 1999 3.180 1913 68.999 50.861 4.771 1975 30.334 22.211 1.734
Apanha da cana. 2002 1915 67.464 1974 42.315 2000 3.055 Transporte de molhos de cana. 2002
1914 69.065 54.521 5.212 1976 28.407 20.877 1.611
1916 75.898 1975 30.334 2001 3.035 1915 67.464 57.403 5.467 1977 35.309 23.497 1.221
1917 57.280 1976 28.407 2002 2.868 1916 75.898 56.689 5.399 1978 28.345 14.297 1.078
1918 48.000 1977 35.309 2003 3.596 1917 57.280 39.459 3.758 1979 24.388 8.817 3.303
2004 4.300 1918 48.000 26.775 3.527 1980 21.793 10.581 1.414
1920 2.163 1981 21674 7.660 1.037
1921 2.194 1982 14.940
1922 1.974 1983 8.974
1923 1.176 1984 6.451
1924 1.285 1985 5.256
1925 1.465

158 159
Alberto Vieira

Ano Açúcar Aguardente Álcool Ano Açúcar Aguardente Álcool


em kgs em litros em litros em kgs em litros em litros
1861 275.802 1922 500.000 453.990
1870 800.000 1923 400.000 473.800
1873 900.000 1924 500.000 800.000
1898 648.500 1925 500.000 600.146
1899 442.000 1926 500.000 833.810
1900 503.000 1827 500.000 672.191
1905 800.000 1928 730.654
1906 1.053.000 1929 500.000
1910 2.973.550 1983 8.974 293.177
1911 3.204.000 700.000 1984 6.451 285.177
1912 4.161.550 1.436.305 729.543 1985 5.256 237.500
1913 4.260.928 1.008.257 769.064 1986 4652 213.200
1914 4.796.725 826.678 737.725 1987 4.512 179.000
1915 4.917.113 718.617 552.901 1988 4.160 177.100
1916 4.943.675 1.098.175 813.235 1989 3.907 121.100
1917 1.162.398 497.505 1990 3.646 152.230
1918 1.261.450 415.370 1991 3.989 162.350
1919 948.000 117.386 1992 4.173 180.400
1920 700.000 422.184 1993 4.181 131.787
1921 600.000 500.000 1994 3.188 109.250

160
Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Safra da cana.2002

CANAVIAIS E PLANTAÇÃO

As áreas de cultivo dos canaviais continuam a manter a tradição histórica. A vertente Sul, o
espaço da antiga capitania do Funchal, dominam. Para o ano de 1865310 temos indicação dos valores
de produção por conselho. O facto mais significativo é o concelho de Santana, cuja produção incide
no Faial e alastra depois a S. Jorge e Arco de S. Jorge. A Calheta, que no século XVI havia sido a
principal área de produção, cede o lugar para o Funchal, Câmara de Lobos e Ponta do Sol.
Passados noventa anos a situação alterou-se. O Funchal continua a ser a principal área, seguido à
distância de Santa Cruz. O Norte perde importância, assumindo-se a cana como uma opção de cul-
tivo da vertente sul. Na actualidade, a fazer fé nos dados referentes às áreas de cultivo temos de novo
a afirmação da Calheta como bastião dos canaviais, seguido de perto por Ponta do Sol, Machico e
Ribeira Brava.
As áreas de produção de açúcar, nos dois momentos da afirmação, são diversas. Enquanto nos
séculos XV e XVI era uma cultura, predominantemente, da vertente sul, dominando o espaço da
capitania do Funchal (75%), na presente centúria assistiu-se a uma expansão da cultura em toda a
ilha e à consequente definição de novas áreas:

1520 1950 1956-66


% % %
CALHETA 20 7 13
FUNCHAL 25 53 34
PONTA DO SOL 15 14 18
R. BRAVA 15 4 15
MACHICO 25 29 20

No primeiro momento o Funchal, representava apenas 25%, em 1520, enquanto em 1950 sobe
para 53%. A subida resulta da perda de importância da área agrícola entre a Ribeira Brava e a
Calheta. Estas comarcas que produziram 64% do açúcar da capitania do Funchal em 1494, surgem
em 1520 com 67% da capitania e 50% do total da ilha, para em 1950 não ultrapassarem os 25%.
Apenas a área circunscrita à capitania de Machico manteve níveis parecidos, não obstante o alas-
tramento da cultura na costa norte.

310. Apenas 1,1 graus Beaumé, quando na vertente sul nas áreas abaixo dos 300 metros de altitude chegava aos 13.

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Alberto Vieira

Os dados referentes à produção dão conta que se atingiu níveis mais elevados na primeira Fábrica de açúcar
metade da presente centúria: expandiu-se a área da cana, que em 1939 abrangia os 6500 ha. A de São Filipe.
expansão da cultura não propiciou o mesmo progresso económico propiciado nos séculos XV e Largo do Pelourinho
XVI. As condições de rentabilidade económica eram outras, como distinto era o principal desti-
natário. Aqui, ao contrário do que sucedeu há cinco séculos atrás a produção tinha como objectivo
assegurar as necessidades da ilha e não o comércio com o exterior: as licitações estabelecidas na
década de trinta à expansão da cultura conduziram a que baixassem os níveis de produção, levan-
do à necessária importação, desde a década de quarenta. Se estabelecermos um confronto entre a
população e o número de toneladas de açúcar arrecadados veremos que na primeira (séculos XV e
XVI) a capitação era muito mais elevada.

Safra da cana.2002 O AÇÚCAR E A POPULAÇÃO MADEIRENSE


Anos População Produção
toneladas média ha
1449 16000 1135 53 Kg
1510 16000 1585 60
1584 25000 473 19
1900 150600 503 3,4
1920 17000 2153 12,6
1930 211601 3149 11,6
1940 249771 4334 17,4
1950 266300 3500
1963 268100 3872 14,4

O PROTECCIONISMO SACARINO

Sendo a cultura e comércio do açúcar uma das principais actividades geradoras de riqueza era nat-
ural o múltiplo interesse atribuído pelas autoridades. Com isto garantia-se, não só a estabilidade
económica dos lavradores, como também, a elevada receita proveniente da cobrança de direitos ou
impostos. Acontece que desde o início da cultura na Madeira todos os intervenientes estavam apostados
em criar uma das principais fontes de riqueza, financiadora e promotora do processo de ocupação da
ilha como dos descobrimentos. Dele dependeu, por muito tempo, a manutenção do sistema e foi com
ele que se financiou as despesas da casa senhorial e real, e de manutenção das praças africanas.
No primeiro momento de prosperidade era permanente a preocupação da coroa, senhorio e
autoridades locais. E, na segunda metade do século XIX, o retorno da cultura obrigou de novo as
autoridades a intervir. As condições do mercado mundial assim o obrigavam, caso se quisessem
preservar algum do protagonismo da cultura na economia local. De acordo com a importância do
produto na vida económica madeirense é possível definir para a Madeira, aquilo a que poderemos
designar de açucarocracia. Na verdade ao açúcar foi atribuído um protagonismo fundamental na
vida política da época e em torno dele giraram os regimentos senhoriais, as actas e posturas munic-
ipais. Apenas os cereais, pela necessidade e permanente carência, o conseguem suplantar.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

SÉCULOS XV E XVII juntaram três proprietários que não serviam na Câmara (Diogo de Teive, Álvaro Afonso e Luís
Anes). Todavia, não mereceu o parecer favorável de Duarte Pestana e Rui Gonçalves. E nova
No século XV a presença de um grupo destacado, comprometido com a vida municipal, na situ- reunião a 14 de Outubro315 foram chamados vinte e nove lavradores à Câmara para confirmarem o
ação de proprietários de canaviais fez com que a vereação funchalense, onde tinham assento prefe- contrato, não o aceitando João Fernandes, Rodrigo Anes, João Afonso, Dinis Afonso, Bartolomeu
rencial na qualidade de homens-bons, se tornasse no porta-voz dos interesses açucareiros. Até à cri- João d’Alcala, Gomes Eanes, Afonso Gonçalves e João do Porto. A reunião camarária de 14 de
ação dos municípios da Ponta do Sol (1501) e Calheta (1502) todo o perímetro da capitania, e Outubro de 1471 esteve presentes João Afonso do Estreito e Afonso Domingues do Arco, ambos
podemos dizê-lo, de toda a ilha, estava dependente das directrizes estabelecidas pela vereação fun- lavradores das partes da Calheta.
chalense. Era a partir daqui que surgiam as petições enviadas ao reino, ao senhorio e depois à Durante quase todo o período de afirmação da cultura dos canaviais o comércio do açúcar esteve
coroa. sujeito a um apertado controlo por parte do município, senhorio e coroa. De acordo com V. M.
A representatividade dos proprietários na capitania do Funchal era evidente. Em 1494 eram 44 Godinho o regime de comércio do produto nos séculos XV e XVI oscilava “entre a liberdade forte-
(28%), passando, no período de 1509 a 1537 para 82 (30%). Em ambos os casos eles situam-se, maiori- mente restringida pela intervenção quer da coroa, quer dos poderosos grupos capitalistas, de um
tariamente, entre os proprietários com mais de 1.000 arrobas. Por outro lado a incidência geográfi- lado, e o monopólio global, primeiro, posteriormente um conjunto de monopólio cada qual em
ca do grupo é mais evidente no Funchal, sede do município, onde residiam, em 1495 56% dos ho- relação com uma escápula de outra banda”316. A política proteccionista e limitativa da capacidade
mens-bons do concelho, sendo os demais distribuídos por Câmara de Lobos (16%), Ponta do Sol de intervenção dos agentes comerciais marcou todo o período da economia açucareira no
(11%) e Calheta (6%). arquipélago até 1508317, sendo os momentos de maior evidência em 1471, 1488 e 1495.318 Em todas
A referência à situação torna-se necessária para esclarecer a política definida pelo município, as medidas definidas estava subjacente o interesse de um grupo de agentes, raramente da ilha,
através de regimentos, recomendações ao senhorio e posturas. A insistência na presença das empenhada em manter o exclusivo do comércio. Dum lado os mercadores do reino, nacionais e
questões açucareiras às sessões da Câmara é uma prova evidente da fruição feita pelo grupo para estrangeiros, sedentos de manter o domínio do negócio. Do outro os madeirenses empenhados em
defesa dos interesses açucareiros. Durante as décadas de sessenta e setenta a questão do comércio abrir o mercado a todos os agentes, quer nacionais, quer estrangeiros.
do açúcar foi a principal preocupação dos proprietários madeirenses: aumentava a produção de Os problemas do mercado açucareiro na década de 90 conduziram ao ressurgimento desta políti-
açúcar mas mantinha-se a níveis baixos o consumo e a política de exportação estava por definir. ca xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre Abril e meados de
Perante isto, no Verão de 1469, sucedeu a inevitável baixa de preço, que levou o infante D. Setembro, para comerciar os produtos, não podendo dispor de loja e feitor; D. Manuel apenas em
Fernando a estabelecer em 14 de Julho311 medidas para restabelecer o comércio pondo-o em mãos 1493 reconheceu o prejuízo que as referidas medidas causavam à economia madeirense, afugentan-
dos mercadores de Lisboa. A reacção dos madeirenses a tal medida de monopólio não se fez espe- do os mercadores, pelo que revogou as interdições anteriormente impostas; as facilidades então con-
rar. Tendo recebido em 15 de Setembro a carta supracitada, decidem tomar uma posição de total cedidas à estada dos agentes forasteiros conduziriam à assiduidade da frequência na praça, bem
oposição. O trato do açúcar ficou entregue a Martim Anes Boa Viagem. Tardaram em pagar os açú- como à fixação e intervenção de modo acentuado na estrutura fundiária e administrativa.
cares de 1470 pelo que em 1471312 decidiram enviar a Lisboa Diogo Esteves para proceder à respec- As questões em torno da produção e comércio do açúcar foram uma preocupação permanente
tiva cobrança. Depois surgiu a questão dos meles: permissão ou não de saída. de D. Manuel enquanto senhor e Rei: A partir dos anos oitenta o mercado do açúcar madeirense
Todos os problemas obrigavam a vereação a reunir com assiduidade. Aí estavam presentes para enfrente uma crise de crescimento. Primeiro a procura europeia conduzira a que se colocasse no
além dos oficiais, os homens bons. Assim sucedeu em 5 de Julho de 1470313. Ao acto estiveram pre- mercado açúcar de má qualidade. Depois o alargamento da área produtiva e do açúcar disponível
sentes catorze homens-bons do Funchal e oito de Machico; dos primeiros cinco surgem no estimo não acompanhado pelo aumento da procura. A crise de subprodução obrigou a coroa a intervir em
de 1494 com os proprietários de canaviais (Álvaro Anes, Afonso Gonçalves, João Fernandes, João 1498319 no sector comercial estabelecendo um sistema de contingentamento dos valores de expor-
Gonçalves e Pero Álvares). Entretanto, em 19 de Agosto314 alguns proprietários delegaram no tação para os principais mercados que passou a ser feito sob o regime de monopólio da coroa. A
município o estabelecimento do contra to com Álvaro Esteves. Com o mesmo objectivo reuniram- medida justificava-se, pois o açúcar era “huma das mays proveytosas de nosos reygnos se poderia
se a 12 de Setembro os oficiais da câmara, homens-bons, dois representantes de Machico a que se perder” sendo “proveyto de bem comum da dita ylha mays ainda de todos nosos reygnos”. A

311. Eduardo GRANDE, ob.cit, p. 97


312. Arquivo Histórico da Madeira, vol.XV (1972), nº.17, pp.45-47 315. ARM, CMF, 1470, fl.8vº.
313. Arquivo Histórico da Madeira, vol.XV (1972), nº.28, pp.56-58 316. ARM, CMF, 1470, fl.28
314. ARM, CMF, 1470, fls.2vº-5; Ernesto Gonçalves, Os Homens-Bons do Concelho do Funchal em 1471, in Das Artes e da Histó- 317. Os Descobrimentos e a Economia Mundial, vol. IV (1982), p.87
ria do Funchal, nº. 28, 1956, 1-179; Idem, João Gomes da Ilha, in Arquivo Histórico da Madeira, vol. XI, 1959; Idem, João 318. Arquivo Histórico da Madeira, vol.XVIII (1974), nº.314, pp.503-504.
Afonso do Estreitro, in Das Artes e da História da Madeira, nº.14, 1971. 319. Arquivo Histórico da Madeira, vol.XV (1972), nº.28, pp.57; vol. XVI (1973), nº.123, pp.209-210, nº.191, pp.312-313.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Madeira era uma das principais jóias da coroa. implantado em 1926, tinha bem entranhado a cultura do proteccionismo.
A partir de princípios do século XVI, com a total estabilização do comércio do açúcar e a No caso da economia agrícola madeirense era evidente que a progressão só se poderia fazer
disponibilidade a todos, tal luta deixou de ter razão de existir. O foral de 1515 estipulava que “os mediante uma intervenção permanente do Estado. Ao longo do século XX a situação era por
ditos açúcares se poderão carregar para o Levante e Poente e pera todas outras partes que os mer- demais evidente para políticos e governantes. Em 1907 o Cónego António Homem de Gouveia322,
cadores e pessoas que os carregarem aprouver sem lhe isso ser posto embargo algum” 320. em discurso na câmara dos deputados, confirma isto: “ A agricultura madeirense, como a de quazi
A política intervencionista da coroa retornou no século XVII através de medidas proteccionista todos os paizes, não pode prosperar sem um conjuncto de protecções, que, sabiamente combinadas
da produção local com o condicionamento da importação do açúcar brasileiro e apoios à cons- equilibrem as culturas, dando collocação às suas produções.”
trução de novos engenhos. A pressão dos lavradores sobre a vereação funchalense levou a inter- Os inícios do segundo momento da cultura açucareira na ilha foram acompanhados de medidas
ceder por diversas vezes junto da coroa321. O período foi curto e só em finais do século XIX a cana favorecedoras. Assim, em 1855 e 1858 oneram-se os direitos de importação de mel, melado e
sacarina voltou a merecer a atenção das autoridades. melaço, enquanto em 1870, 1876, 1881 e 1886 se favoreciam a entrada do açúcar madeirense no
continente e Açores através da redução ou isenção dos direitos de entrada.
Atendendo às dificuldades criadas com a crise da lavoura açucareira, provocada pelo ataque do
SÉCULOS XIX E XX fungo conyothurium melasporum, pelo que o Governo interveio no sentido da preservação. A apos-
ta era fazer da cultura da cana-de-açúcar um elemento revitaliza dor da agricultura madeirense. Em
Na segunda metade do século XIX, a crise da produção do vinho fez com que a cultura se apre- 1888 avançou-se decisivamente na protecção e replantação de novas variedades, resistentes às
sentasse como a resposta adequada à perda de importância da vinha, assumindo o papel de “cul- doenças e mais produtivas, criando-se uma estação experimental dedicada ao estudo da cultura. Na
tura rica” na agricultura madeirense. A intervenção deu lugar ao chamado “proteccionismo sacari- sequência do decreto tivemos outro em 1895, conhecido como “regímen saccharino da Madeira”,
no” que desembocou naquilo que ficou depois conhecido como a “questão Hinton”. A conturbada que regulamentou o processo de laboração da cana e o fabrico de aguardente. Assim, as fábricas
situação política de finais do século XIX e princípios do século XX favoreceu o debate político em matriculadas obrigavam-se à aquisição de toda a cana produzida de acordo com o preço estabele-
torno da questão sacarina que o Estado Novo apaziguou. As condições do mercado mundial obri- cido. Em compensação tinham redução de 50% nos direitos de importação do melaço para fabrico
gavam à intervenção das autoridades, pois caso contrario a produção madeirense estava condena- de álcool usado na fortificação dos vinhos. Seguiram-se ao logo dos tempos outros decretos: 1903,
da, com inevitável prejuízo para os agricultores. As dificuldades económicas que arrastaram a ilha 1904, 1909, 1911323.
neste momento tornavam a iniciativa do Estado cada vez mais útil e necessária, caso se pretende- Em 1903, novo decreto revela as dificuldades do cultivo da cana e os custos elevados que acar-
se atalhar a constante tendência à emigração do mundo rural. reta para justitificar ao aumento dos preços mínimos. A compra de toda a cana é conseguida medi-
A produção mundial de açúcar, a partir da segunda metade do século XIX, passou a estar sob ante compensações do Estado. As fábricas matriculadas estavam obrigadas a comprar todos os sal-
um controlo apertado das autoridades e grupos económicos. O consumo, que se generalizou a dos da aguardente manifestados até 31 de Dezembro, de forma a evitar a concorrência com o álcool
todos os grupos sociais nesta época, não foi suficiente para atender à elevada oferta do produto. A feito de melaço importado. Acontece que as fábricas de açúcar e álcool deixaram de comprar os sal-
tecnologia permitiu um melhor aproveitamento da sacarose disponível na cana, ao mesmo tempo dos aos fabricantes de aguardente, dando uma compensação de 100 réis ao galão, o que acabou por
que área de cultivo se alargou a novos espaços, contando ainda com a concorrência feroz da beterra- criar uma situação insustentável.
ba europeia. Em finais da centúria os preços do açúcar desceram a níveis nunca atingidos. Para isso O decreto de 11 de Março de 1911 pretendeu estabelecer um travão no consumo excessivo de
terá contribuído a política de subsídios à cultura e produção de açúcar de beterraba por alguns país- aguardente, que se havia transformado num prejuízo para a saúde pública. Abrindo a porta para
es europeus, como a França e Alemanha. As diversas convenções internacionais nunca con- uma solução drástica, estabelecida pelo decreto de 1919. A aposta estava na reconversão dos canavi-
seguiram frenar a feroz e desigual concorrência do mercado do açúcar. Atente-se que a conferência ais pela vinha de castas europeias e no controlo da produção e consumo de aguardente. Neste caso
de Bruxelas de 1901-02 ao conseguir estabelecer a supressão dos subsídios à produção foi uma seria determinante a medida delimitadora da produção anual para 20.000 litros ano e o encerra-
medida importante para a retoma dos preços. mento em 1930 de todas as fábricas de aguardente que não tivessem sede nos concelhos da costa
Portugal não ficou alheio à política proteccionista dos governos, sendo a economia dos séculos Norte.Mas o decreto de 14 de Abril de 1924 aumenta o limite da produção de aguardente para
XIX e XX alimentada por fortes medidas de protecção e favorecimento face à concorrência 500.000 litros. O que obrigou à emenda de 1927, com o encerramento de todas as fábricas de
estrangeira. Ficou célebre a politica de proteccionismo cerealífero a partir de 1889. O regime, aguardente do sul, ficando a Junta Geral com o encargo de venda da aguardente

322. ARM, CMF, Registo Geral, tomo III, fls. 12vº-14: 1598, 1601 e 1620; Idem, CMF, 1317, fl.27-29vº: vereação de 7 de Abril de
320. AHM, vol. XVII, p. 372. 1607, nº.1330, fls.13v-14: vereação de 5 de Junho de 1644
321. Álvaro Rodrigues de Azevedo, Anotações in Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, Funchal, 1873, p.501 323. A Situação da Madeira [1907], p.13

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O Dr. Oliveira Salazar, então Ministro das Finanças, no preâmbulo do decreto de 1928 define longos annos e é praticamente impossível por falta de capitães e de outros elementos e circums-
de forma clara os efeitos do anterior decreto, responsável pelo monopólio da compra de toda a cana tancias que seriam essenciaes a uma transformação cultural dessa natureza.
do Sul, do fabrico de açúcar, do álcool para vinhos ou desdobramento, da importação de melaço e As plantações saccharinas, que representam grandes capitalisações e teem um alto valor, devem
açúcar em bruto das províncias ultramarinas, concluindo que “a agricultura, toda a ecopnomia da continuar necessariamente garantidas com as condições actuaes de existência.325
Madeira, a própria afdministração pública ficariam mais do que nunca na dependência das fábri- Em 1927 outro grupo de 3535 proprietários, agricultores e consumidores reclamavam a preser-
cas de açúcar e de álcool.”324. Em face disto surgiram diversos decretos no sentido de diminuir o vação do decreto nº.14168, considerado medida salutar face aos anteriores diplomas de
consumo de álcool, protecção da cultura, punição dos abusos e defesa intransigente dos 1911 e 1919 que estabeleciam medidas restritivas ao fabrico de aguardente.326 Procurava-
interesses públicos. O novo regime sacarino assentava nos seguintes aspectos: se travar o consumo exagerado de aguardente na Madeira, que por isso havia recebido
o epíteto de ilha da aguardente.
1. um regime fiscal que ia ao encontro da defesa da saúde pública e dos interesses da A política de apoio e protecção da cultura da cana sacarina não mereceu a aprovação
economia local. Assim a importação de açúcar está sujeita ao pagamento de direitos, ao de todos. A opinião do Visconde do Porto da Cruz, na década de cinquenta, expressa
mesmo tempo que se proíbe a entrada de bebidas alcoólicas. um certo realismo face a uma opção de desenvolvimento económico assente em pés de
2. A cultura da cana ficava limitada à necessária para satisfazer as necessidades da ilha barro: “a cultura da cana sacarina somente aparecera como balão de oxigénio para a
em açúcar, aguardente, álcool e mel, mantendo-se o preço fixo e a obrigatoriedade da vida industrial fictícia do fabrico de açúcar, melaço e aguardente e que não oferecia ao
compra pelas fábricas. lavrador justa e devida compensação. (…) sai, com vantagem para a economia regional
3. As fábricas de açúcar e álcool ficam limitadas ao concelho do Funchal e todo o pro- e nacional, muito mais lucrativo importar das provincias ultramarinas de África, o açú-
duto laborado deverá ser da produção regional. O álcool com 40ª cartier era vendido na car necessário para o consumo na Madeira do que produzi-lo.”327
totalidade à alfândega, que depois procedia à revenda. Durante a República e no Estado Novo a cultura da cana manteve-se lado a lado com
4. O fabrico de aguardente, desde 1938 em regime de concentração, em três fábricas, a da vinha como uma preocupação permanente. Em 1935, numa carta que o Dr.
sendo entregue à Delegação da Junta Nacional do Vinho da Madeira para ser comer- Oliveira Salazar escreveu ao Presidente da Junta Geral, o Dr. João Abel de Freitas, é evi-
cializado. dente a insistência na defesa da cultura. O regime a executar deve ser o decretado em
maio do ano findo. Foram feitas muitas reclamações que examinei com cuidado; ape- Transporte da cana ao engenho.
Festa do fim da safra. Fotografia Vicentes. O regime de protecção com preços tabelados de compra da cana deixou de existir a partir de nas duas me pareceram susceptíveis de deferimento e não ainda assim como era pedido: 1) como Museu de Photographia Vicentes
Museu de Photographia Vicentes
1920. A medida, não obstante garantir ao agricultor o escoamento da totalidade da produção, cri- a Alfândega não poude fazer as comunicações a que a lei se referia sôbre a graduação da cana em
ava uma situação de subordinação ao engenho do Torreão. Antes de 1895 o lavrador tinha liber- certos locais, tenho trabalhado um decreto a publicar imediatamente em que se prorroga por mais
dade de mandar moer por sua conta a cana e fabricar açúcar que depois vendia, mas com as medi- um ano o regime transitório estabelecido para 34-35 no citado decreto; 2) no mesmo decreto se per-
das proteccionistas passou a estar obrigado à venda da produção às fábricas matriculadas. mite a renovação ou substituição dos canaviais até 60% dos pés substituídos e da área ocupada.
Os resultados da política começaram no imediato a fazer-se sentir com o incremento da área de Estão no relatório do decreto do ano fíndo as razões porque se não permite a substituição integral.
cana. A ilha quem 1886 deixara de exportar açúcar, passando mesmo a importá-lo entrou no novo Se o consumo do açúcar não aumentar temos de baixar de 15% a 20% a produção de cana, e ainda
século satisfazendo as necessidades de açúcar e álcool em 1907 saia o primeiro açúcar da ilha para é preciso que esta seja tam rica como é êste ano, por causa da escassês das chuvas; 3) Os pedidos
o continente, usufruindo de privilégios fiscais. ou pretenções ou calculos dos industriais de aguardente não podem ser tomados em consideração.
Acontece que dos engenhos existentes na ilha apenas se matricularam as fábricas de W. Hinton É preciso convencê-los desta verdade: fabricam um artigo que se não vende. Não é caso para qual-
& Sons e de José Júlio de Lemos. Isto iria dar azo a acesa polémica, quando em 1903 surgiu novo quer indemnização por parte do Estado, nem para se consentir outra vez o envenenamento dessa
decreto que apenas as favoreceu. No ano imediato novo decreto consolida a situação, estabelecen- gente, como era de antes.328
do um contrato inalterável até 1919, o que permitiu algumas inovações tecnológicas. Entretanto em Passados cinco anos o então Governador Civil José Nosolini evindencia, mais uma vez, o carác-
1915 uma representação de cerca de 4000 proprietários e agricultores reclamava a favor da conser- ter artificial da economia açucareira.” Esta produção foi-se mantendo, por um lado, mercê da
vação do regímen sacarino. Isto justificava-se pela situação em que se encontrava a ilha: A viticul- exportação de assucar madeirense para o continente; por outro lado mercê do desvio de fabrico de
tura não pode readquirir a sua antiga prosperidade, pela decadencia dos preços dos vinhos, suja
325 . Diplomas Principaes que interessam ao Regímen Saccharino da Madeira, S.l., sd, p.316
exportação crescia pouquíssimo antes da guerra. A generalização das árvores de fructo ricas levaria 326 . Regime Sacarino da Madeira, Lisboa, 1928
327. A Economia Agrária do Arquipélago da Madeira, in Actividades Económicas, 17 (Lisboa, 1957), p.13.
324 . Diplomas Principaes que interessam ao Regímen Saccharino da Madeira, S.l., sd.; A questão Saccharina da Madeira, Lisboa, 328. 1935. Maio. 23: resposta do Dr. Oliveira Salazar. in VIEIRA, Alberto(coordenação), A AUTONOMIA: História e documentos,
1910; Ramos Taborda, Regime Sacarino da Madeira, Diário de Notícias, 4 de Outubro de 1962. Funchal, CEHA, 2001 (DVD) .

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

assucar para o de aguardente.” Deste modo a política do Governo de controlo da produção de cana Engenho do Hinton.2002

estava certa, uma vez que” a cana sacarina a não ser em cultura muito restricta é perniciosa (…) Mas
cana de assucar, vinhos, bordados serão por muito tempo intransponíveis montanhas de dificul-
dades para a acção governativa.”329
Os relatórios da Junta Geral de 1968 a 1973 testemunham o empenho na cultura através da dis-
tribuição de propágos e ensaios sobre novas variedades que se adaptem aos solos da ilha e con-
duzam a maior produtividade. Para isso faziam-se ensaios pela Estação Agrária na Quinta do Bom
Sucesso e no Lugar de Baixo330. As dificuldades da indústria eram constante, de modo que em 1969
a família Hinton só aceitou continuar a laboração porque o Governo se comprometeu a compensar
as perdas, que em 1971 foram de 5.359$00331.
Em 1969 o Engº Rui Vieira, a propósito da apreciação da Conta Geral do Estado de 1967 na
Assembleia Nacional, referia a necessidade de revisão do Regime Sacarino de 1928332. Foi no segui-
mento desta constatação que em 1972 a Administração-Geral do Álcool encomendou a Bookers
Agricultural and Technical Services um estudo sobre os problemas do açúcar na Madeira no sen-
tido de ajudar o Governo a definir a política futura para a indústria de açúcar e de destilação no
arquipélago.333
A primeira evidência do relatório é de que a cana apresentava um rendimento muito baixo de-
vido à “falta de um programa de replantação e o elevado índice de broca ou ‘bicho da cana’ que
ataca os colomos da planta. (…) o uso em grande escala de uma variedade obsoleta, o facto de se
cortarem os topos das canas muito antes da altura da colheita, os atrasos na moagem após a co-
lheita, os fertilizantes inadequados e o desinteresse no cultivo que leva à não execução de deter-
minadas operações culturais.”334 E, conclui-se “que a produção de cana persistiu em parte porque é
utilizada em forragem e cama para gado bovino.”335
Perante a situação da cultura e indústria a proposta do grupo de trabalho vai no sentido da “sus-
pensão do fabrico de açúcar o mais cedo possível”, passando a fábrica do Hinton a destilar apenas
aguardente336. A área de cultivo deveria ser reduzida para apenas 530, ficando os restantes 770 para
culturas sub-tropicais e temperadas337. A conclusão do relatório é clara: “abandono do cultivo da
cana na Madeira, logo que seja realmente possível e permitida a importação de melaços para a pro- A QUESTÃO HINTON
dução de álcool,…”338
Dentro do contexto da política proteccionista merece lugar de relevo o debate em torno da
“questão Hinton”, que animou o meio político entre finais do século XIX e princípios do seguinte.
329. 1939.Novembro.21: Carta do Governador Civil do distrito Autónomo do Funchal, José Nosolini Pinto Osório S. Leão, ao Foi sem dúvida o problema que mais apaixonou a opinião pública, nas vésperas e durante a
Ministro do Interior, in VIEIRA, Alberto (coordenação), A AUTONOMIA: História e documentos, Funchal, CEHA, 2001 (DVD).
330. Relatório da Gerência da Comissão Executiva da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal referente a 1968, Funchal, 1969; República. Publicaram-se inúmeros folhetos, os jornais encheram-se de opiniões contra e a favor339.
Relatório da Gerência da Comissão Executiva da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal referente a 1969, Funchal, 1970; O momento mais importante foi a polémica que em 1910 se ateou no Parlamento. Cesário Nunes340
Relatório da Gerência da Comissão Executiva da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal referente a 1970, Funchal, 1971; documenta a situação de forma lapidar: “Em Portugal nenhuma questão económica atingiu tão alta
Relatório da Gerência da Comissão Executiva da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal referente a 1973, Funchal, 1974
331. Relatório sobre As Indústrias de Açúcar e Álcool da Madeira, Lisboa, 1972, p.82 preponderância e trouxe e tio grandes embaraços legislativos às entidades governativas como o
332. Jornal da Madeira, nº.11623, de 9 de Março de 1969. problema sacarino da Madeira. “
333. Relatório sobre As Indústrias de Açúcar e Álcool da Madeira, Lisboa, 1972. Tudo começou em 23 de Março de 1879 com a inauguração da Companhia Fabril do Açúcar
334 . Ibidem, pp.32-33
335. Ibidem, p.49
336. Ibidem, p.50 339. A Leitura dos Jornais da época assim o evidencia. Veja-se por exemplo Francisco Canais Rocha, Perfeito de Carvalho contra o
337. Ibidem, pp.51-52 monopólio Hinton, História, nº.144, 1991, pp.49-61; Emanuel Janes, in História do açúcar. Rotas e Mercados, Funchal, 2002, pp.
338. Ibidem, p.95 340. Politica sacarina, Funchal, 1940.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Madeirense. Era uma fábrica de destilação de aguardente e de fabrico de açúcar sita à Ribeira de decreto de 1903 e regulamento anexo decreto, determinavam a forma de matrícula das fábricas
S. João. Demarcou-se das demais com o recurso a tecnologia francesa, usufruindo dos inventos abriram as portas à concentração. As condições eram de tal modo lesivas que só duas - Hinton e
patenteados em 1875 pelo Visconde de Canavial. O cónego Feliciano João Teixeira341, sócio do em- José Júlio Lemos - o conseguiram fazer. As cerca de meia centena de fábricas que existiam na ilha
preendimento no discurso de inauguração afirma ser este um “grandioso monumento, que abre ficaram numa situação periclitante. O decreto de 1897 estabelecia normas de tal modo rígidas
uma época verdadeiramente nova e grande na História da indústria fabril madeirense”. Isto foi sobre a forma de construção de alambiques e fábricas de destilação e rectificação do álcool que ape-
apenas o princípio de um conflito industrial, onde imperou a lei do mais forte. Tal como o afirma- nas alguns podiam cumprir349.
va em 1879, no momento encerramento, José Marciliano da Silveira341 “ a fábrica de são João foi A viragem da centúria implicou com a situação sacarina da ilha. A conjuntura económica
cimentada com o veneno da maldade; era o seu fim dar cabo de todas as que existiam...” acabou mundial pos em causa as condições de privilégio conseguidas com a entrada do melaço, por força
por cavar o fosso da ruína. do aumento do preço e das diferenças cambiais. A “lei que tantos benefícios trouxe à Madeira”350,
A polémica ateou-se com o plágio por parte da família Hinton, da invenção do Visconde aguardava por renovação. A fábrica Hinton, para poder afirmar-se vai montar uma estratégia de ali- Pessoal Técnico da Fábrica Hinton
Canavial343, que havia patenteado em 1870 um invento que consistia em lançar água sobre o bagaço, ciamento de políticos e uma campanha para limopar a imagem junto do público, através de textos
o que propiciava um maior aproveitamento do suco da cana. Constava da patente o uso exclusivo e entrevistas publicados nos principais jornais do Funchal, como o Diário de Noticias, Diário da
pela fábrica de S. João, mas o engenho do Hinton cedo se apressou a copiar o sistema. Com isso o Madeira e Diário do Comércio. Paulatinamente estabelece-se uma teia de interesses que integra
lesado moveu em 1884 uma acção civil contra o contrafactor. A família Hinton ficou para a História políticos locais e continentais, funcionários alfandegários emesmo o próprio Governador civil.
como a autora da inovação344, que como sabemos foi comum em vários espaço açucareiros. Em 1902 Nesta estratégia a função de João Higino Ferraz foi fundamental, com a de Harry Hinton, em per-
a fábrica Hinton experimentou um novo sistema em ligação com M. León Naudet, que ficou co- manente rodopio entre o Funchal e Lisboa.
H. Manoury (engenheiro químico), nhecido como sistema Hinton-Naudet, que consistia em submeter o bagaço a uma circulação força- Em 1901 João Higino Ferraz lança o primeiro grito de alerta e crise para o sector em carta ao
L. Naudet (engenheiro químico)
e João Higino Ferraz (director Técnico do Torreão) da num aparelho de difusão, conseguindo-se um ganho de mais 17% e a maior pureza da garapa, Visconde de Idanha. Aí dá-se conta da perda dos privilégios e contrapartidas da importação do
e o chefe de bateria. 1907. evitando as defecadoras345. Estava intervenção pioneira é sublinhada por inúmera bibliografia da melaço da lei de 1895 e, por consequência a impossibilidade de manter a situação dos preços ao
Foto particular.
especialidade346. agricultor. A solução estava na diminuição do imposto de importação do melaço e mão do amigo
O engenheiro M. Naudet esteve no torreão nos dias 21 e 22 de Junho de 1907 combinando com será importante:…tenho a certeza que a coadjuvação de meu bom amigo nos será muito útil, e o seu
João Higino Ferraz a forma de montagem do sistema de difusão, o triple e o “freitag”(cuite). nome não será esquecidon’este bocadinho da pátria.351 Noutra carta de 8 de Outubro seguem novos
Todavia, a montagem do novo maquinismo começou apenas em meados de Setembro, após a con- artigos para a imprensa e importantes recomendações no sentido da defesa intransigente do decre-
clusão da safra. Até 1909 o técnico do Hinton manteve conrrespondência assídua no sentido de to ora publicado: ..exerça toda a vigilância para não apparecer cousa allguma contra as providen-
esclarecer pormenores sobre a instalação dos mecanismos. Na sequência disto João Higino Ferraz cias em qualquer jornal. Se for precisa qualquer despeza para isso é faze-la.(…) O decreto deve
deslocou-se a Paris para novo encontro com Naudet e visita às fábricas de açúcar de beterraba347. deixar bem toda a gente, mas no caso de haver alguem que por inveja, ou qualquer outro motivo
A família Hinton conseguiu singrar na indústria açucareira a muito custo. A conjuntura políti- queira lkevantar difficuldades na imprensa ou fora della, combine com o Romano a melhor
cia conturbada condicionou a capacidade de persuasão. A visita de El Rei D. Carlos à ilha em 1901 maneira practica, directa ou indirecta de os calar até a minha chegada352.
poderá ter sido um momento crucial348. Passados dois anos a casa Hinton aposta numa campanha na imprensa local, servindo-se do
As medidas, que favoreciam a entrada de melaço, estabelecidas pela lei de 1895, associadas ao Diário de Noticias e Jornal do Comércio.353 Harry Hinton, em carta de 18 de Setembro anuncia a
breve publicação do novo decreto e recomendava a J. Higino Ferraz dos textos e o telegrama aao
341 . Discurso pronunciado pelo conego Feliciano João Teixeira Presidente da Assembleia Geral da Cª Fabril de Assucar Presidente do Concelho, que envia também aos jornais354. Nesta carta é evidente uma certa fami-
Madeirense no dia da inauguração do estabelecimento, 23 de Março de 1873, Funchal, 1873.
342. A companhia fabril de assucar madeirense os seus credores o Athleta e o sr. Dr. João da Câmara Leme, Funchal, 1879.
liaridade com o Ministro da Fazenda e a possibilidade de ter sido necessário mover algumas
343. Uma acção civil contra o sr. W. Hinton fabricante de assucar e aguardente na cidade do Funchal (ilha da Madeira)..., Funchal,
1884. 349. Boletim Official da Administração Geral das Alfândegas e Contribuições Indirectas do ano de 1897, nº.15, Lisboa 1897, p.396-
344. W. Koebel, Madeira. Old and New, Londres, 1909, p.129; Eduardo Pereira, Ilhas de Zargo, vol. I (Funchal, 1989), pp.541-542. 399
345. Eduardo Pereira, Ilhas de Zargo, vol. I (Funchal, 1989), pp.541-542 350. Arquivo Particular de João higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls.44, 5 de Fevereiro de 1901
346. Cf. International SugarJournal, 1905; H. C. Prisen Guerligs, Cana Sugar and its Manufacture, Londres, 1909, pp. 115, 117 351. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls.44-48, 5 de Fevereiro.
347. Arquivo de João Higino Ferraz, copiador de cartas 1905-1913, fls.53, 65-78. 352. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, carta avulsa, 8 de Outubro de 1903
348. A chamada “questão Hinton” foi motivo de acesa polémica na sua época de que resultou a publicação de inúmeros folhetos. 353. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls203-204, 29 de Agosto e 5 de Outubro
Veja-se António Aragão de FREITAS, Madeira-investigação bibliográfica, Funchal, 1984, pp.229-233; F. A. SILVA, “Hinton, 354 . O texto intitulado “Providências Governativas” para ser publicado no Diário de Noticias, o “Novo regimen economico” para
questão”, in Elucidario Madeirense, vol. II, pp. 117-118. Aqui apenas damos conta dos textos mais recentes: Miguel o Diário do Comércio e “Noticia importante” para o Diário Popular. Aí dava indsicações sobre a forma de publicação: O telegra-
RODRIGUES, “A questão Hinton”, in História e Crítica, nº6, 1980, pp.15-27;Francisco Canais ROCHA, “Perfeito de Carvalho ma deve ser publicado em grosso e vivo normando no logar marcado a tinta vermelha em cada artigo. Juntam-se ainda mais arti-
contra o monopólio Hinton”, in História, nº144, 1991, pp.49-61. gos para o Popular, O Commercio.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

influências. A parte final da carta é compremetedora: Falla com o Lemos e diga-lhe que é conve- Em 1917 parece que os ânimos haviam serenado etudo estava bem encaminhado, apostando-se
niente não abaixar por hora o preço do alcool, sem que eu lá chegue. Tem havido despezas grandes numa nova fábrica. A demanda elevada de alccol prenunciava um período de prosperidade364. A
com o decreto, e tenho certos compromissos em que elle também tem de entrar. 355 prorrogação do contrato nas mesmas condições era de toda a conveniência. Apenas os distúrbios
No intervalo publicou-se a 18 de 3 Julho de 1903 a lei sobre o fabrico dos açúcares açorianos e políticos poderiam fazer perigar a situação de privilégio365. Estava-se em período de revisão da lei e
teme-se maiores prejuízos, pelo que “é bom enquanto está ahi[Lisboa] ver bem essa lei não nos vá referia-e até a possibilidade de vinda ao Funchal do Ministro da Agricultura, situação considerada
prejudicar.”356 A campanha na imprensa havia dado fruto, mas nada estava ainda garantido e outro má para o Hinton, pis como refere j. H. Ferraz:”Não tenho confiança alguma nestes nossos amigos
precalço com a vistoria das autoridades à fábrica, implicava todo o cuidado, “porque mudando o de cá, e temos como sabe, fartura de inigos.”366. A 31 de Dezembro de 1918 acabava a situação de
governo a lei que regula pode-nos ser bastante prejudicial quanto ao pagamento da cpontribuição favorecimento estabelecida por quinze anos. Entretanto só a 9 de Abril do ano seguinte o Governo
industrial.”357 Por outro lado temia-se a matrícula de novas fábricas. A situação estava tensa entre os interveio, tornando livre a “faculdade de laboração da cana sacarina com destino à produção de
vários industriais358. açúcar”. O decreto de 2 de Maio define uma nova realidade. Assim, para além da liberalização da
A lei de 24 de Novembro de 1904 dava a machadada final ao estabelecer a referida matrícula produção de açúcar e da isenção de direitos alfandegários de maquinaria para novos ou reforma
por 15 anos. Entretanto, caiu a monarquia e sucedeu a República, que parecia querer fazer ouvidos dos engenhos existentes, estabeleceu-se uma nova política agrícola promovendo-se a substituição
moucos às regalias conquistadas no anterior regime. Mas rapidamente tudo se recompôs. As difi- dos canaviais pela vinha.
culdades do comércio do vinho repercutiam-se no sector com a diminuição do consumo de álcool, A situação não fez perigar a posição hegemónica da Casa Hinton que se mantinha confortavel-
a principal contrapartida das fábricas matriculadas. Em Outubro de 1905 batalha Reis visitou a mente como o único produtor de açúcar. Com o Estado Novo as medidas resultantes dos decretos
fábrica Hinton e teceu os melhores elogios ao álcool aí produzido, todavia insistiu na necesisidade nº. 14.168, 15.429, 15.831, 16.083 e 16.084 (1928), embora restritivas dos antigos privilégios, favore-
de introdução dos vinhos de Portugal, o que não agradou aos planos dos anfitriões.359 ceram o Hinton quando impediram a instalação de novas fábricas e determinam o fecho de algumas
A primeira década da centúria foi fundamental para a consolidação do engenho do torreão. Os em funcionamento. O ano de 1928 foi fulcral para a afirmação desta estratégia hegemónica. A questão Hinton e a imprensa humorística
investimentos avultados na modernização, como o novo sistema Hinton-Naudet, obrigou uma forte Desde 1927 que se mediam forças entre os chamados “aguardenteiros” e a casa Hinton367. Harry
investida junto do poder central no sentido de garantir as regalias para poder-se entabilizar o inves- Hinton em Lisboa recomenda nova campanha na imprensa, valorizando as iniciativas moder-
timento360. Em Janeiro de 1907 Harry Hinton estava em Lisboa a jogar a última cartada: “ ou João nizadoras empreendidas pelo engenho368. A entrevista de João Higino Ferraz ao Diário da Madeira
Franco attende ao seu pedido justo e que interessa bastante aos eu pedido justo e que interessa bas- de Reis Gomes enquadra-se na estratégia. Tal como refere o entrevistado em carta a H. Hinton369 “o
tante a toda a adeira agricula, ou não attende, e nesse caso não posso prever quais as cosnequên- meu principal fim foi provar que somente Torreão pode moer toda a cana mesmo no máximo em
cias desastrosas de sua maneira de ver.”361 3 mezes. (…) Falei sobre as modificações importantes na fabrica do Torreão, mas sem diser que era
A República não terá sido muito favorável os objectivos da família Hinton. O ambiente parece para augmentar a capacidade, mas somente para abreviar o trabalho e produzir melhor, se
que era de tensão, pois segundo J. Higino Ferraz: o senhor Hinton disse me que em nada pode falássemos em augmento de capacidade, os nossos inimigos teriam um pé para diser que o Torreão
influir em Lisboa junto do governo sobre questões d’assucar, porque o nome hinton é sempre visto não estava habilitado a fazer a laboração do máximo o que só agora é que queria estar nessas
com maus olhos.”362. Todavia pelos decretos de 1911 e 1913 conseguiu-se segurar o monopólio do condições, o que não é verdade segundo verá pela entrevista.
fabrico do açúcar e regalias na importação de açúcar das colónias. Em 1914 reclamava uma in- Entretanto o Governador Civil mantem-se atento à disputa, ouvindo os interesses dos argoaden-
demnização ao Estado pelo facto de ter sido aumentando o açúcar bonificado das colónias que teiros, procurando reunir apoios, como o de Manuel Pestana Reis, no sentido de apresentar uma
entravam no continente. A resposta veio por parte dos competidores363. proposta de mudança da lei370. A isto juntava-se a campanha de Henrique Figueira da Silva371. Os
adeptos da causa Hinton vão diminuindo, mantendo-se apenas António Pinto Correia372. Apenas o
decreto 14.168 trouxe algum alívio, pois que tudo “ficará…mais seguro”373, mas continuava ainda a
355. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, documento avulso, de 18 de Setembro de 1903.
356. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls. 97, 24 de Julho de 1903. Engenho do Hinton
357. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls. 104, 5 Setembro de 1903 364. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1917-1919, 4 e 6 de Julho de 1918
A questão Hinton e a imprensa humorística 365. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1917-1919,, 26 de Maio de 1917.
358. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls110, 118, 9 de Outubro e 16 de Novembro de 1903
359. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls. 190-193, 9 e 16 de Outubro de 1905 366. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1917-1919,fl.62-68, 4 e 6 de Junho de 1918
360. Não sabemos o valor do investimento, mas pela estimativa de Naudet para a Fabrica de Lemos em 1909 podemos ficar com 367. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929,11 de Outubro de 1927.
uma ideia. A renovação desta unidade industrial custaria 101.850 francos, o quialente a20.370$000 reis.[ Idem, Livro de 368. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, carta avulsa de 12 de Outubro de 1927
notas…1903-1910, fls.182] 369. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929, 26 de Outubro de 1927
361. Idem, copiador de cartas,1905-1913, fls.34. 370. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929,7 e 9 de Novembro de 1927
362. Idem, Ibidem, fl.126, 6 de Setembro de 1911 371. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929,27 de Março, 11 de Abril de 1928
363. A Nova Questão Hinton. Resposta das Empresas Açucareiras da África Portugueza ao folheto da firma W. Hinton & Sons, 372. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929, 2 de Dezembro de 1927
Lisboa, 1915. 373. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929, 11 de Abril de 1928

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Alberto Vieira

ser considerada como a “maldita nova lei saccarina”.374 Fábrica de Açúcar


de São Filipe
Harry Hinton, em 1929, com 72 anos de idade, sente-se casando e aborrecido com todas as con-
trariedades que lhe acarretam o engenho, fruto da enfrentamento constante com interesses adver-
sos na ilha dos demais industriais e as mudanças da conjuntura politica.A intenção parecia ser a
venda da fábrica, mas certamente a pressão do amigo J. higino Ferraz contribuiu para mudar de
opinião. A carta que escreveu a Mrs. Lefebvre, em França, é bastante expresiva: il est riche et fout
repouser…et moi…”375
Quirino de Jesus [1865-1935], que em momentos anteriores fora um poderoso aliado na estraté-
gia do Hinton surge em finais da década de vinte como um traidor “que não tem outro fim senão
vingar-se do Sr. Hinton”.376Algo se passara que nos escapa, pois em principios do século havia sido
um aliado destacado377. O causídico defendera os interesses da empresa, mas rapidamente mudou
de opinião, como se constata da correspondência de João Higino Ferraz e do que nos diz o Padre
Fernando Augusto da Silva: De acérrimo e entusiático defensor do regime sacarino, como advoga-
do e publicista, ro regime sacarino, tornou-se abreve trecho, com igual ardor e convicção, um inimi-
go declarado do mesmo regime.378
Em 1969 A família Hinton informou o governo da intenção de encerrar a fábrica, acabando com
o fabrico de álcool e açúcar que não eram rentáveis. Perante isto o governo, através da Direcção-
Geral das Alfândegas comprometeu-se a compensar as perdas. O relatório sobre a situação em 1972
aponta o facto de a indústria se encontrar num beco sem saída, pois a “substituição não pode jus-
Quirino de Jesus [1865-1935]
tificar-se dada a ausência de uma rentabilidade previsível no fabrico do açúcar.”379 E conclui-se: “É
excepcionalmente raro, que nos anos 70 uma fábrica de açúcar com uma capacidade de produção
inferior a 20.000 toneladas anuais, tenha possibilidade de ser razoavelmente rentável e muitos
poucos investidores de novos projectos de fábrica considerarão hoje em dia o estabelecimento de
fábricas com uma capacidade inferior a 50.000 toneladas.”380

O HINTON E INDÚSTRIA DO AÇÚCAR E DO ALCOOL

O engenho do Hinton, consolidada a posição dominadora do mercado local, manteve-se como


a referência da cultura da cana-de-açúcar até que em 1985 agonizou em definitivo o império do açú-
car do Hinton. Para alguns tudo foi construído com pés de barro, sustentado por favores políticos,

374. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929,17 de Dezembro de 1928
375. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1927-29, 10 de Julho de 1929.
376 , Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929,11 de Outubro, 2 de Dezembro de 1927.
377 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls.44-48, 120, 174, 5 de Fevereiro, 23 de Novembro
de 1901, 26 de Junho de 1905
378 . Elucidário Madeirense, vol.II(1965),p.181. Cf. Estudos de Quirino de Jesus: A questão Hinton, Lisboa, 1915, A Nova Questão
Hinton, Lisboa, 1915.
379 . Relatório sobre as Industrias de Açúcar e Álcool da Madeira, Lisboa, 1972, p.86.
380 . Ibidem, p.87

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

mantendo-se a hegemonia à custa da exploração dos lavradores de cana381. PRODUÇÃO E MOENDA DA CANA(em toneladas)
Durante todo o século XX a fábrica Hinton foi uma referência da cidade e da vida de quase todos
os agricultores madeirenses que apostaram na cultura da cana como meio para angariar uns ano FÁBRICA TORREÃO TOTAL
magros tostões. A posição de favorecimento que mereceu, desde a Monarquia ao Estado Novo, ali- 1903 7.570
mentou inimizades, debates na imprensa e a reprovação de alguns sectores da sociedade. 1904 7.153 30.000
A família Hinton estabeleceu uma estratégia de domínio da industria açucareira e do álcool, 1905 8.169 43.418
através de uma aposta permanente na inovação tecnológica capaz de esmagar todos os concor- 1906 13.450 36.000
rentes, cujas industrias a pouco a pouco foram sendo adquiridas e desmanteladas. O século XX foi 1907 21.855 36.000
o momento da plena afirmação. De acordo com dados de 1907 o engenho moía cerca de 1/3 da 1908 24.168 30.000
cana da ilha, ficando a restante para os restantes 47 engenhos. Na altura empregava 230 traba- 1909 32.582
lhadores tendo ao serviço 10 geradores a vapor Babcook & Wilcox, tendo a maior potência em uso 1910 35.633 75.000
na ilha. Apenas o de José Júlio de Lemos se podia aproximar, mas a longa distância382. A capaci- 1911 39.970
dade da fábrica aumentou nos anos seguintes fruto dos favores estabelecidos. 1912 48.359 71.266
Fio na Ribeira de Santa Luzia para 1913 50.860 68.999
condução da cana do calhau ao
Harry Hinton arrendou não satisfeito com o aumento da unidade industrial actuou no sentido
1914 54.520 69.065
Torreão Foto Vicentes, Museu de da neutralização das demais através da compra ou arrendamento. Primeiro adquiriu a antiga fábri-
Photografia Vicentes 1915 57.000 67.464
ca de Severiano Ferraz na Ponte Nova e de outras adquiriu os mecanismos mais importantes. No
1916 51.500
caso da de José Júlio de Lemos estabeleceu um contrato de arrendamento de 25 contos anuais, que
1917 35.300
perdurou até 1919.
1918 26.400
A necessidade de afirmação levou-o a apostar na renovação tecnológica do engenho do Torreão,
sob a superintendência de João Higino Ferraz. As reformas iniciaram-se em Dezembro de 1900 Ao mesmo tempo o fabrico de açúcar foi enm
com a mantagem de cilindros, peças centrífugas e filtros mecânicos de Mamoury383. Para os anos crescendo de qualidade, como o evidencia insistente-
imediatos reservou-se a montagem das turbinas Weston384, dos difusores385, a caldeira de vapor386. A mente J. H. Ferraz. Os dados resultantes dos primeiros
sociedade que estabeleceu com W. R. Bradsley deve ter favorecido a arrancada definitiva para a anos do século XX são comprovativos:
hegemonia tecnológica.
O aperfeiçoamento tecnológico favoreceu a posição concorrencial da fábrica em relação às PRODUÇÃO EM AÇÚCAR (quilogramas.) Pesagem da cana no Hinton.
Fotografia Vocente. Museu Photographia Vicentes
demais. Em 1929, enquanto a companhia Nova só podia laborar 100 toneladas de cana em 24 horas
a do torreão atingia as 500 toneladas, para conseguir-se em 1920 as 608 toneladas. As medidas de Tipo de açúcar 1900 1901 1902 1903
1939, que conduziram ao encerramento de 48 fábricas de aguardente em toda a ilha, favoreceram 1º jet 4938 5631 6770 6630
a tendência monopolísticas da safra da cana sacarina Alguns dados da laboração do engenho re- Açúcar 2º jet 1852 1497 413 960
velam a dominação a partir de 1907. 3º jet 326 504
Açúcar Álcool 4373 4375 2472 2640
de melaço Petit jus 1539 1539 317
Açúcar de melaço 10.028 10.546 9.972 10.230

Fonte: Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fl.107
381 . A questão não é consensual ao nível historiográfico. Veja-se Miguel Rodrigues, A Questão Hinton, in História e Crítica, 6
(1980), pp.15-27; Benedita Câmara, A concentração Industrial do Sector do Açúcar Madeirense. 1900-1918, in História e Em 25 de Novembro de 1917 um curto-circuito nos fios da luz eléctrica esteve na origem da
Tecnologia do açúcar, Funchal, 2000, pp.419-422
382 . Victorino José dos Santos, Relatorio dos Serviços da Secção Technicos de Industria no Funchal no anno de 1907, in Boletim destruição do sistema de destilação, o que obrigou ao uso de outros destiladores até que em
do Trabalho Industrial, nº.24, 1909 Outubro do ano seguinte estivessem operacionais387. Mas isto no fez perigar a tendência monopolís-
383 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas1899-1905, fls.40, 29 de Dezembro.
384 . Ibidem, fl.77, 7 de Dezembro de 1901
385 .ibidem, fl.85, 14 de Setembro de 1902 387 . Vasco f. Campos e Alberto Malho, O Bombeiro Madeirense e a sua História, Funchal, 1963, pp.65-66; CF. Arquivo Particular
386 . ibidem, fl.127, 25 Julho de 1904 de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1917-18,fl.26, 2 de Outubro de 1917.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

tica do engenho do Torreão, como se poderá verificar pela laboração do Sul em 1929: a manter-se as orientações de Naudet.394 M. Federique, que já havia trabalhado na Martinica, “sabe
bem do seu ofício é muito cuidadoso no seu trabalho é sóbrio e delicado”395, o que contribuiu para
Engenho Moenda de cana Produção de açúcar Produção de alccol uma safra excepcional. Noutras ocasiões o serviço foi um desastre, como sucedeu em 1930, quan-
em toneladas em toneladas em hectolitros do Marinho de Nóbrega era o químico oficial do engenho396.
Torreão 20.000 1.900 300.000 Para os anos vinte e quarenta do século XX a voz da reprovação ao favorecimento, dito
S. Filipe 7.500 578 93.000 monopólio, teve expressão frequente no jornal humorístico RE-NHAU-NHAU. A figura de Harry
Companhia Nova 1.000 74.000
Hinton e apaniguados é o alvo do intrépido desenhista, que pretende dar voz ao “Zé Povo”397.
Total 28.500 2.478 487.000
O arquivo do engenho do Hinton, por força das circunstâncias atrás descritas, é fundamental
para o conhecimento da história contemporânea da agricultura madeirense. todavia a forma con-
turbada como sucedeu o processo de desmantelamento da estrutura para a construção de um
A questão Hinton é uma constante desde finais do século XIX e não passa ignorada mesmo
jardim público conduziu a que toda esta memória desaparecesse. Felizmente tivemos a possibili-
peloos estrangeiros. Já em 1882 J. Rendell388 refere que era juntamente com o da família Ferrraz o
dade de encontrar alguns testemunhos avulsos no arquivo partidcular de João Higino Ferraz (1863-
engenho mais importante. Em 1894 C. Gordon é peremptório: “…the great bulk of the sugar undus-
1946), que aí trabalhou como técnico desde finais do século XIX e acompanhou o processo de mon-
try of the island is in the hands of one english firm”389. Já W. Koebel, em 1909, não hesita em afir-
mar que a industria açucareira está pendente do monopólio da firma Hinton390. Em 1927 o Marques tagem do engenho do Torreão398.
A leitura das cartas obrigou-nos a rever algumas leituras que tínhamos sobre o mesmo engenho.
de Jácome Correia têstemunha o facto de a fábrica do Torreão ter “a fama de ser uma fábrica mo-
Assim estávamos convencidos que a estrutura industrial não assumia a importância que muitas
delar”, pelos seus “complexos mecanismos, a organização fabril e a importância da produção”.391
vezes víamos expressada em alguns publicações, mas aqui viemos a constatar que o engenho do
Também o Padre Fernando Augusto da Silva não se poupa em elogios a acção empreendedora da
família que criou “ a fabrica mais aperfeiçoada do mundo”.392 Hinton era uma estrutura industrial de vanguarda que acompanhou de perto o progresso da
A alma do complexo industrial açucareiro da família Hinton, a partir de 1898, era João Higino engenharia e Química, no período crucial de transformação de finais do século XIX e princípios
Ferraz, que assumiu as funções de gerente do engenho, sendo um dos caloboradores directos de do seguinte.
Incêndio o engenho do Hinton.1917
Harry Hinton. A sintonia e empenho de ambos fizeram com que a ilha apresentasse entre finais da
centúria oitocentista e inícios da seguinte uma posição destacada no sector, atraindo as atenções a
nível mundial.
João Higino Ferraz afirma-se como o perfeito conhecedor da realidade científica do entorno do
engenho. Opina sobre agronomia, como sobre mecâmica e Química. E mantem-se sempre actua-
lizado sobre as inovações e experiências na Europa, nomeadamente em França. Da sua lista de con-
tactos e conhecimentos fazem parte personalidades destacadas do mundo da Química e mecânica,
com estudos publicados. Assim, para além dos contactos assíduos com Naudet, refere-nos com
assiduidade os estudosMaxime Buisson, M. e. Barbet, M. Saillard, F. Dobler, M. D. Sidersky, Luiz
de Castilho, M. h. Bochet, M. Effort, M. Gualet.
O Hinton acolhe especialistas de todo o mundo, na condição de visitantes, ou como contatados
para a execução dos trabalhos especializados, O engenheiro Charles Henry Marsden foi um deles
e sabemos que aí trabalhou vários anos. A presença está documentada pelo menos entre 1918 e
1929. Temos também o engenheiro químico agrícola Maxim Buisson, que em 1902 trabalhava no
laboratório393. Para o fabrico de açúcar contratava-se os afamados “cuisieurs” erm França de forma
394 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1899-1905, fl.137, 22 de Agosto de 1904
395 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1899-1905, fl.143, 29 de Agosto de 1904
388 . Concise Handbook of the Island of Madeira, Londres, 1882, p.33. 396 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 11929-30, 10 de Junho de 1930
389 . The flower of the Ocean, Londres, 1894, p.92 397 . Emanuel Janes, A Casa Hinton, o Açúcar e o RE-NHAU-NHAU (1929-1977), in História do Açúcar. Rotas e Mercados,
390 . Madeira. Old and New, Londres, 1909, p.128 Funchal, 2002, pp.565-598
391 A Ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p.98 398 . Graças à disponibilidade da família tivemos acesso ao seu arquivo pessoal, onde fomos encontrar um copiador de cartas(são
392 . Elucidário Madeirense, vol. II, Funchal, 1965, p.117 cinco livros) sobre a actividade no engenho, que compreende os anos de 1898 a 1930. todavia trabalhou no engenho entre 1898
393 Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1899-1905, fl.89-90, 22 de Setembro de 1902. e 1946.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

LEGISLAÇÃO SOBRE O AÇÚCAR E DERIVADOS DA CANA 1884


25 JUNHO Lei reduzindo os direitos de importação do açúcar na ilha Madeira aos da pauta
geral das alfândegas
1837 27 JUNHO Lei prorrogando por 3 anos o prazo de lei, de 20 de Agosto de 1861 que fixou
5 JANEIRO Decreto, de protecção à cultura da cana, na Ilha da Madeira. em 6$000 reis por cada 100 quilogramas do direito de importação do mel e me-
laço estrangeiro na Alfândega do Funchal.
1858 1885
12 ABRIL Carta de Lei autorizando o governo a contrair um empréstimo de 40:000$000 22 MARÇO Lei prorrogando por mais três anos, a isenção de di-reitos de importação sobre
reis para promover na Ilha da Madeira a fabricação de açúcar o açúcar produzido na ilha da Madeira.
14 AGOSTO Lei, prorrogando por mais três anos no Distrito do Funchal, a isenção de direi- 1888
tos para as máquinas e utensílios de fabricar os produtos da cana doce. 5 ABRIL Lei autorizando o Governo a aplicar à cultura de cana-de-açúcar do Distrito do
14 AGOSTO Decreto, dispondo que por mais três anos se pas-se na Alfândega do Funchal, Fun-chal, o decreto de 9 de Dezembro de 1886.
Corça com cana. Colecção Vicentes. Museu
$411 reis em cada cem arrateis, pala importância de mel, melaço e melado
Photographia Vicentes estrangeiro. 23 Junho Lei que determina o imposto sobre a produção de açúcar, ficando isento o feito
de cana na Madeira
1858
24 MAIO Portaria, providenciando contra o abuso que podia fazer-se exportando açúcar 1893
da Ilha da Madeira para o Reino e Açores. 21 JULHO Carta de lei criando o imposto de licença para os alambiques

1870 1895
27 DEZEMBRO Decreto estabelecendo para o açúcar madeirense entrado no continente o direi- 30 DEZEMBRO Decreto es-tabelecendo novos direitos sobre o açúcar superior e melaço da cana-
to de $600 réis por arroba de-açúcar, importados para consumo no Distrito do Funchal e isentando de
direitos a importação para consumo no Continente e Açores do açúcar origi-
1873 nário da ilha da Madeira.
20-ABRIL Decreto em que se determina o drawback do açúcar refinado.
1896
1876 27 de Abril Lei que determina o imposto sobre a fabricação do açúcar. A Madeira mantem
4 FEVEREIRO Carta de Lei suspendendo por cinco anos os direitos pagos pelo açúcar da a isenção de 1895
Madeira no continente, estabelecido em 1870.
15 MARÇO Regulamento da lei de 4 de Fevereiro 1897
27 de JANEIRO Decreto que determina a forma de aferição dos alambiques para a atribuição do
1878 imposto de acordo com a carta de lei de 21 de Julho de 1893
4 FEVEREIRO Lei, admitindo no Continente, livre de direitos, por espaço de cinco anos, o açú- 23 DEZEMBRO Decreto estabelecendo normas para a implantação de alambiques e aparelhos
car produzido na Madeira. destiladores e rectificadores do álcool.
1880
20 AGOSTO Lei, fixando em 6$000 reis por cada cem quilogramas o direito pela importação 1901
do mel, melaço e melado no Funchal, durante três anos. 14 de Junho Lei sobre o regímen do álcool e aguardente, estabelecendo o imposto sobre a
produção de 80 réis. No caso da Madeira cobre apenas o exportado para o con-
1881 tinente e Açores.
8 MARÇO Lei prorrogando por cinco anos o prazo para a admissão do açúcar da Ilha da
Madeira, sem pagamento de direitos.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

1902 durante o corrente ano sacarino.


24 SETEMBRO Decreto, a-provando as providências destinadas ao fomento industrial e agríco- 28 DEZEMBRO Decreto, aprovando o regulamento para expropriação das fábricas de aguar-
la do Distrito do Funchal. dente no Distrito do Funchal.
24 DEZEMBRO Decreto, a-provando o regulamento para exe-cução do decreto de 24 de Setem- 28 DEZEMBRO Decreto, a-provando o regulamento para a cobrança do imposto da fabricação
bro último, que outorgou várias providências destinadas ao fomento industrial de aguardente no Distrito do Funchal.
e agrícola cio Distrito do Funchal.
1913
1903 4 JANEIRO ortaria, nomeando uma comissão para proceder à escolha dos contadores desti-
24 SETEMBRO Decreto que reforma o regime sacarino, determinando que o açúcar exportado nados às fabricas de aguardente do Distrito do Funchal, para o efeito da
para o continente estava isento de direitos. cobrança do respectivo imposto.
24 DEZEMBRO Regulamento do decreto de 24 de Setembro. 31 MAIO Regulamento do regime sacarino da Madeira. Estabelece o imposto de 15 reis
sobre a produção de aguardente até 1918.
1904 28 AGOSTO Portaria n.º 46, determinando que o Conselho Su-perior Técnico seja ouvido
24 NOVEMBRO Lei estabelecendo o fabrico de açúcar e álcool, apenas às fábricas matriculadas, sobre o regime sacarino da Madeira.
isto é W. Hinton & Sons e José Júlio de Lemos 13 NOVEMBRO Regulamento sobre a produção e comércio de vinhos da Madeira, em que se
estabelecem normas sob a alcoolização dos vinhos. Assim a cada 500 litros de
1907 vinho corresponderá 55 litros de álcool.
21 MARÇO Portaria, nome-ando uma comissão para proceder a um inquérito sobre as
condições das indústrias da fábrica de Açúcar, destilação de aguardente de cana 1914
sacarina e álcool de melaço e da cultura da mesma cana no Distrito do Funchal. 9 JANEIRO Decreto, rejeitando o recurso n.º 13.273 do Supremo Tribunal Administrativo,
23 ABRIL Decreto, suspendendo a execução do regulamento para o comércio do Vinho da em que é recorrente Cossart Gordon e outros, e recorridos um antigo ministro
Ma-deira na parte relativa ao regime sacarino e do álcool. da Fazenda e W. Hinton & Sons.
14 OUTUBRO Decreto, proi-bindo a reexportação do Conti-nente, ilhas adjacentes e províncias
1908 ultramarinas, para o estrangeiro, de arroz, açúcar, bacalhau, cereais, legumes e
9 SETEMBRO Lei de reforma do regime sacarino, por quinze anos medicamentos.
2 DEZEMBRO Decreto, pro-mulgando várias providências com o fim de assegurar mais eficaz-
1909 mente a aplicação do álcool, saído das fábricas matriculadas no Funchal, com
11 MARÇO Regulamento vinícola, restringindo às fábricas matriculadas a venda do álcool destino, à beneficiação e pre-paração de Vinhos.
apenas para o tratamento de vinho 15 DEZEMBRO Portaria, a-provando a tabela designativa de adubos agrícolas que podem ser im-
portados de países estrangeiros e fabricados, preparados e vendidos no
1911 Continente e ilhas adjacentes.
11 MARÇO Decreto regulando o regime da indústria sacarina na ilha da Madeira, proibindo
as fábricas matriculadas de fazer aguardente para consumo directo. Aumenta os 1915
direitos sobre o melaço importado e estabelece o preço máximo de venda do 22 JULHO Nomeação de uma comissão para o estudo do regime sacarino a adoptar a par-
álcool para o vinho. tir de 1918, quando terminar o prazo do estabelecido em 1914.
20 MARÇO Decreto, aprovando as instruções provisórias para a cobrança do imposto de 2-DEZEMBRO Decreto que regulamenta a fiscalização do alcool saído das fabricas
produção de aguardente no Distrito do Funchal. matricukadas do Funchal para a beneficiação e preparação dos vinhos.

1912 1916
24 FEVEREIRO Decreto, estabelecendo as instruções provisórias que devem ser adoptadas para 25 FEVEREIRO Decreto dis-solvendo a comissão administrativa, nomeada pelo decreto n.º
cobrança do imposto de produção de aguardente no Distrito do Funchal 4.830, para desempenhar as funções que competiam à Junta Agrícola da Ma-

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

deira, e encarrega outra de gerir o fundo constituído pelo imposto de fabricação da Madeira pelas fábricas que a ele têm direito no ano matricular de 1924.
de aguardente no Distrito do Funchal. 14 ABRIL Lei fixando em 60:00 decalitros, anualmente, a quantia de aguardente que em
12 JUNHO Decreto proibindo em 1919 no Distrito do Funchal o fabrico de melado ou mel conjunto podem produzir as fábricas existentes no Distrito do Funchal.
de engenho. 1 JULHO Decreto mantendo em pleno vigor o art. 20 e os parágrafos do decreto nº. 5.492,
9 ABRIL Decreto regulando o consumo do açúcar das colónias e da ilha da Madeira. que regula o exercício das indústrias de fabricação de açúcar e de álcool de cana
27 ABRIL Decreto permitindo aos cultivadores de cana sacari-na da freguesia do Faial, da sacarina do arquipélago da Madeira.
ilha da Madeira, a destilar por conta pró-pria, a quantidade de cana excedente 4 JULHO Decreto alterando as multas impostas pelo regulamento aprovado pelo decreto
à que pelo respectivo rateio compete adquirir ao fabrico de aguardente da n.º 7502, sobre a fiscalização das fábricas de aguardente da ilha da Macieira.
freguesia 29 AGOSTO Portaria proibindo a entrada no Arquipélago da Madeira, de aguardente e
5 JUNHO Decreto incluindo a freguesia do Porto do Moniz, na zona norte da ilha da álcool simples procedente de território português ou do estrangeiro.
Madeira, es-tabelecida pelo art.° n.º 6.521, que regularizou o regime sacarino 8 SETEMBRO Portaria tor-nando extensiva às bebidas alcoólicas, não especificadas, a
4 DE MAIO Decreto regula-mentando as condições de trabalho das fábricas de destilação de proibição de entrada no Arquipélago da Ma-deira.
aguar-dente no Distrito do Funchal. 15 SETEMBRO Decreto de-terminando que a fiscalização das fábricas de aguardente na
Madeira, fique provisoriamente a cargo da Direcção da Alfândega do Funchal.
1918 8 NOVEMBRO Decreto estabelecendo as normas a seguir para determinação de capacidade de
14 DE MAIO Decreto determinando que as fábricas de destilação da ilha da Madeira fiquem laboração das fábricas de desti-lação na Madeira.
obriga-das a dar por concluído o fabrico de aguardente, no ano sacarino, logo 17 DEZEMBRO Portaria revogando pelo que respeita às bebi-das alcoólicas estrangeiras, não es-
que terminem a laboração da cana que exista dentro das mesmas fábricas e pecificadas, a portaria n.º 4.192, que torna extensiva às bebidas alcoólicas não
proíbe o trânsito da cana sacarina dos concelhos fabris para qualquer dos con- especificadas a proibição de entrada no Arquipélago da Madeira, consignada na
celhos do Porto do Moniz, S. Vicente e Santana. portaria n.º 4.180.
31 MAIO Decreto permitin-do em 1919 aos cultivadores de ca-na da freguesia do Faial,
ilha da Madeira, destilar de conta própria a cana que não possa ser adquirida 1925
pelas fábricas de aguardente da mesma freguesia e proíbe o trânsito de cana 18 FEVEREIRO Rectificação à portaria n.º 4.350 que revoga a portaria n.º 4192, sobre a entrada
sacarina de qualquer ponto da ilha da Madeira para a freguesia do Faial. de bebidas alcoólicas não especificadas, no arquipélago da Madeira, na parte
ainda não revogada pela por-ta ria n.º 4.315.
1919 23 MAIO Portaria promulgando várias disposições relativas à entrada de aguardente,
2 MAIO Decreto nº.5.492, declarando livre a fabricação de açúcar a partir de 1 de álcool e bebidas alcoólicas, não especificadas, no arquipélago da Madeira.
Janeiro de 1920. 24 JUNHO Decreto introduzindo várias alterações na pauta dos direitos da importação e
sujeitando os assúcares, importados no arquipélago da Madeira aos direitos
1920 estabelecidos para o Continente pelo presente decreto.
9 ABRIL Decreto nº.6.521, alterando as disposições do decreto de 2 de Maio de 1919. 26 JUNHO Rectificação do decreto n.º 10.864, que introduz várias alterações na pauta dos
direitos de importação e sujeitos os assúcares importados no arquipélago da
1922 Madeira aos direitos estabelecidos para o Continente, pelo mesmo decreto.
3 ABRIL Decreto nº.8.089, entregando a execução do regime sacarino à Estação Agrícola
da 9ª região 1926
22 NOVEMBRO 30 de Novembro-Decreto autorizando a Junta Geral do Distrito do Funchal a
1924 estabelecer um imposto sobre cada litro de aguardente fabricada no mesmo dis-
15 JANEIRO Decreto promulgando as instruções para execução do decreto 5.492, que regu- trito e permitindo na ilha da Madeira, pelo Porto do Funchal, a importação
lou as indústrias de fabricação de açúcar e álcool de cana sacarina no arquipéla- mensal de 25.000 litros de vinho tinto do Continente e proibindo a alcoolização
go da Madeira. dos vinhos importados ou a sua lotação com vinhos produzidos na ilha da
27 MARÇO Decreto determi-nando a forma do rateio do álcool para tratamento dos vinhos Madeira, bem conto a sua destilação. Proíbe também este decreto o desdobra-

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

mento, de álcool em aguardente. os requerimentos para o fabrico do produto.


25 AGOSTO Decreto determinando o encerramento das fábricas de aguardente da zona sul 27 MAIO Decreto 19.641, reforçando verbas orçamentais destinadas à fiscalização do
da ilha da Madeira e que sejam desmontados e inutilizados todos os alambiques álcool e da aguardente da Madeira.
respectivos modificando, também, o regime de produção do açúcar, álcool e 31 MAIO Decreto 16.924, permitindo à Companhia da Aguar-dente da Madeira ter um
aguardente no arquipélago da Madeira. armazém especial onde dê entrada, mediante fiscalização da Alfândega, a
25 AGOSTO Decreto dando nova redacção ao art.° 22 das instru-ções para a execução do aguardente destinada a ser beneficiada para exportação ou venda para con-
regulamento constante do decreto n.º 11.300, mandados pôr em execução pelo sumo, como aguardente velha tipo rum ou de bebidas similares.
decreto 11 .416 (concessão de licenças para saída do Continente, ilhas e colónias 12 JUNHO Rectificação ao decreto 16.842, que aprova o regulamento do fabrico da
para o estrangeiro). aguardente na Madeira.
27 DEZEMBRO Decreto obrigando todos os detentores de aguardente produzida na ilha da 19 JUNHO Decreto 16.991, promulgando várias disposições a observar sobre o regime
Madeira a manifestar na Estação Agrária, durante o mês de Janeiro de 1928, as sacarino no arquipélago da Madeira, desde o ano industrial 1930-1931.
quantidades que tiverem em existência. 1 AGOSTO Portaria 6.299, designando os ofícios dos Juízes de Direito da Comarca do
Funchal, que ficam extintos.
1928 17 NOVEMBRO Decreto n.º 17.656, definindo a capacidade produtora de cada fábrica de açúcar
4 MAIO Decreto n.º 15.429, determinando que as atribuições conferidas à junta Geral do e álcool na Madeira.
Distri-to do Funchal, pelo decreto 14.168, passem à estação Agrária da ilha da 3 DEZEMBRO Nova publicação, rectificada, do decreto 17.656, que define a capacidade produ-
Madeira, com excepção daquelas a que se refere o artigo 8.° do mesmo decreto tora de cada fábrica de açúcar e álcool na Madeira.
alterando várias dis-posições do decreto, 14.168 (Regime Sacarino na Madeira).
9 MAIO Rectificações, ao decreto supra n° 15.429, por faltar a assinatura do Ministro das 1930
Finanças. 3 FEVEREIRO Decreto 17.912, promulgando várias disposições sabre fabrico e consumo de
13 AGOSTO Decreto 15.838, determinando que os detentores de aguardente no Distrito do aguardente na ilha da Madeira.
Funchal, sejam obrigados a manifestá-la à direcção da respectiva alfândega. 2 ABRIL Decreto 18.155, isentando das guias de trânsito, a que se referem os artigos 44º do
10 AGOSTO Decreto, 15.831, estabelecendo o novo regime do açúcar, do álcool e da Decreto 16.083 e 16º do contrato aprovado pelo Decreto 16.159, a aguardente
aguardente na Madeira. velha, tipo rum, ou de bebidas similares, vendidas aos retalhistas pela Companhia
12 SETEMBRO Decreto 15.944, substituindo o § 2° do artigo 5.° do decreto 15.831, que estabe- da Aguardente da Madeira, depois de devidamente beneficiada ou quando pelos
lece o novo regime do açúcar, do álcool e da aguardente na Madeira. retalhistas seja revendida a particulares em quantidade superior a 5 li-tros.
29 OUTUBRO Decreto 16.083, promulgando novas disposições sobre o regime do açúcar, do 14 MAIO Decreto 18.320- elevando de 5 litros a 20 litros de aguardente o limite a que se
álcool e da aguardente na Madeira, revogando os decretos n.º 14.167,14.168, refere o art.° 4.° do Decreto 16.083, que promulga várias disposições sobre o
15.429, 15.831 e 15.944. regime de açúcar, comércio do álcool e da aguardente na Madeira.
29 OUTUBRO Decreto 16.084, regulamentando o novo regime do açúcar, do álcool e da
aguardente na Madeira, promulgado pelo decreto 16.083. 1931
22 NOVEMBRO Decreto 16.159, aprovando o contrato de adjudicação da venda de aguardente 19 MARÇO Decreto 19.486, garantindo no ano industrial 1930--1931 a compra da cana da
na ilha da Madeira Madeira aos respectivos produtores, nas respectivas condições estabelecidas pe-
las leis em vigor, com as modificações feitas por este decreto.
1929
15 JANEIRO Decreto 16.368, determinando que a junta do crédito Público proceda à emissão 19 MARÇO Nova publicação, rectificada, do Decreto 19.486 sobre a compra da cana da
das obrigações representativas do capital de 9.951.000$00 para satisfação das Madeira.
indemnizações devidas pelo encerramento das fábricas de aguardente da 27 MARÇO Decreto 19.538, modificando as fórmulas mandadas adoptar pelo Decreto
Madeira. 17.656 para a determinação da capacidade produtora das fábricas de açúcar e
21 MARÇO Decreto 16.646, fixando o prazo durante o qual os indivíduos não fabricantes de álcool da Madeira.
aguardente que pretendam fabricar anel de cana da Madeira, devem apresentar 25 JUNHO Decreto 21.432, mandando inscrever uma verba no orçamento do Ministério

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

para 1931--1932 sob a rubrica «Abono para pa-gamento de serviços não especi- JOÃO HIGINO FERRAZ
ficados», incluindo a aferição de, depósitos do armazém central da venda de [1863-1946]
álcool da Alfândega do Funchal.
6 DEZEMBRO Decreto 21.945, inscrevendo uma verba no orçamento dó Ministério para ocor-
rer a des-pesas com «Portes de correio e te-legrafo» da fiscalização do açúcar e É filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz, o primeiro a construir um
do tabaco nos arquipélagos dos Açores e Madeira. engenho a vapor na ilha da Madeira, no ano de 1856. Nasceu no Funchal a 1863. Foi na fábrica do
tio que travou contacto com o mundo do açúcar e a escola de apredizagem.
1933 A fábrica da família da Ponte nova terá sido estabelecida entre 1848 e 1856. À morte do promo-
2 JANEIRO Decreto 22.056, prorrogando até 2 de Abril do e da Pontinha para os armazéns tor, por “cólera mporbus” em 1856, os descendentes—João Higino Ferraz (pai), Severiano Alberto
da Alfândega do Funchal e do álcool das fábricas matriculadas para o armazém Ferras (filho) e Ricardo Júlio Ferraz-- criaram a sociedade Ferraz Irmãos. Foi aí que em 1881, o
do álcool. jovem de 18 anos, iniciou a actividade como gerente com o tio Severiano, até 1886, altura em que
foram forçados a vender a fábrica em praça pública. Liquidada a fabrica estive dois anos sem
1934 emprego até que em 1888 arrendou em sociedade com o tio, João César de Carvalho, a fábrica de
12 JUNHO Decreto-Lei 23.998, fixando em 7$00 por litro o preço da aguardente actual- destilação da Ponte Deão, de Severiano Cristóvão de Sousa. No ano imediato entra para a do
mente existente nos depósitos de destilarias da ilha da Madeira. Torreão da firma W. Hinton & Sons como técnico de fabrico de açúcar e álcool, assumindo a gerên-
cia industrial técnica e comercial.
1935 Num manuscrito da mão do próprio diz que em 1900 assinou contrato com a fábrica do amigo
31 MAIO Decreto-Lei 25.437, prorrogando para o corrente ano industrial o regime tran- Harry Hinton que o vinculou até à morte em 1946. Todavia, e de acordo com o copiador de cartas,
sitório estabelecido para o de 1934-35 pelo ar-tigo 16 do Decreto-Lei 23.847, que sabemos que desde 18 de Outubro de 1898399 estava ao serviço da firma, como se pode confirmar
modifica o regime do açúcar, álcool e aguardente na ilha da Madeira e regulan- da carta ao amigo e patrão H. Hinton solicitando a presença no engenho em construção para poder
do a substituição ou renovação dos canaviais actualmente existentes. aconselhar sobre a forma de disposição das máquinas.
Em Julho de 1927 embarcou para Lobito com Charles Henry Marsden, um engenheiro aus-
1938 traliano responsável pela modernização do engenho da casa Hinton, para aí montar uma estrutura
31 JULHO Decreto-Lei 27.911 estabelecendo certos preceitos do sentido de tornar mais efi- mais moderna no engenho Cassequel, propriedade da casa Hinton. Aí permaneceu 103 dias,
ciente a fiscalização do regime sacarino no arquipélago da Madeira, reduzindo João Higino Ferraz.
regressando ao Funchal a 13 de Dezembro de 1928. O diário da saída, compilado numa agenda,
ao mínimo as possibilidades de fraudes. documenta o processo de montagem da fábrica e as dificuldades de adaptação das peças ao con-
31 JULHO Decreto-Lei 27.912, introduzindo várias alterações no regime sacarino da junto da estrutura400.
Madeira. Em 1945 lamentava-se: sou pois técnico em fabricar assucar e álcool, desde 1884 a 1945= 61
anos. Não ttenho direito a ter o titulo de técnico de fabricar assucar e álcool oficialmente em
1939 Portugal ? (…) Desejava pois obter o titulo oficial de técnico de fabricar açúcar e álcool ou como téc-
28 ABRIL Decreto 29.559, transferindo várias verbas do orça-mento para reforço da nico pratico de fabricar assucar e álcool”. Mas, acabou morreendo sem que fosse reconhecido o
dotação consignada a gratificações ao pessoal da fiscalização do álcool e da gigantestco trabalho como técnico, a principal alma da permanente actualização tecnológica e
aguar-dente da Madeira. quimica da Fábrica do Hinton, que foi na época uma das mais avançadas tecnologicamente.
18 JULHO Decreto-Lei 29.761, permitindo no ano industrial 1939--1940, a importação no A ideia está presente também no testemunho do próprio: n’estes longos (60) anos assisti a varia-
Continente, nos termos do Decreto-Lei 23.847, do açúcar de cana que exceder o dos systemas de fabrico, desde quasi do inicio de maneiras antigas no fabrico do açúcar de cana,
consumo da Madeira. destilação, etc, etc, acumpanhando sempre os progressos nestas industrias até hoje, principalmente
desde 1900 a 1944, na fábrica do Torreão, onde pusemos em tranbalho consecutivamente os sys-
1954
14 MAIO Decreto nº.23.847 de terminando a concentração dos fabricantes de aguardente
em apenas três fábricas, mantendo cada um o direito ao rateio da produção e 399 . Arquivo Particular da Família de João Higino Ferraz(à guarda de Francisco João Clode Ferraz), Copiador de Cartas de João
lucro daí resultante. Higino Ferraz- 18981905, fol.1
400 . Arquivo Particular da Família de João Higino Ferraz, Notas da Viagem a Africa em 1927 em Julho pelo vapor Niassa.

192 193
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

temas os mais aprefeissoados e mais modernos no fabrico de açúcar e álcool, devido principal-
mente ao meu caro amigo Harry Hinton, como chefe inteligente e progressivo, não poupando ener-
gias e capitães para qualquer transformação a ser operada na sua fabrica, ou fossem as ideias mi-
nhas ou delle próprio. Tem elle um intuito de progresso bem orientado, que é raro em muitos
industriaes.
É isso de que me orgulho, por ter sido o coadjutor companheiro de um industrial desta
natureza.”
Da correspondência com H. Hinton transparece uma perfeita sintonia entre os dois que favore-
ceu o processo de permanente actualização tecnológiva e química. Ambos partilhavam a mesma
paixão pela indústria e afirmação do engenho do Torreão J. H. Ferraz não receia em manifestar por
diversas vezes a amizade que o prende ao patrão. Em 1917401 confessa que “Harry Hinton é um dos
meus melhores amigos”. Passados dez anos confessa que a viagem a África sucede apenas “para ser
agradável ao senhor Hinton a quem devo amizade e reconhecimento.” 402
J. H. Ferraz era o superintendente, mas acima de tudo um cientista que procura aperfeiçoar os
conhecimentos de Quimica e Tecnologia, através do confronto da literatura estrangeira e a capaci-
dade inventiva403. Mantem-se actualizado através da leitura das publicações, fundamentalmente
francesas. Nos estudos manifesta-se um cientista arguto que não detem a atenção apenas na cana
sacarina, pois estuda e opinia sobre o uso de outros produtos no fabrico de açúcar e álcool, como
é o caso da batata e aguardente.
João Higino Ferraz no Laboratório. 1936
Se confrontarmos a literatura científica do momento mais significativo de finais do século XIX
até à segunda Guerra Mundial, verificamos que a informação é permanente actualizada e pauta-se dos à fabrica Hinton. DE acordo com memorial que enviou a Harry Hinton o ordenado como ge-
po padrões de qualidade, dispondo de informações sobre os métodos mais avançados, como dos rente técnico das industrias de açúcar e do álcool foi o seguinte:
estudos dos engenheiros químicos e industriais que marcaram o processo tecnológico do momen-
to. Aliàs, mantem contacto com inúmeras associações científicas europeias, como era o caso de 1909-12- 4.500$00 ano
Association des Chimistes de Sucrerie et de Distillerie. Na correspondência surgem assiduamente 1914-19: 6.440$00
nomes de cientistas europeus como Barbet, Naudet. É dele o invento de um apararelho de difusão, 1920-21: 22.400$00
que cedeu em 19 de Novembro de 1898 os direitos à firma W. Hinton & Sons.
Foram feitas várias experiências e adaptações dos sistemas tecnológicos importados, tudo sob a Para o novo contrato a celebrar reclamava 63 libras mensais, sendo o câmbio realizado men-
sua orientação. Em 1929404, em carta ao amigo Avelino em Lobito, refere: Como tenho tido tempo salmente, ficando “com pulso livre para fazer e dirigir as minhas pequenas industrias fora de açú-
estou em estudos e experiências com o fermento Tossehl’s no laboratório, e tenho obtido cousas car,álcool e aguardente, não prejudicando por estes meus trabalhos a direcção technica da fabrica
nbastante curiosas nas culturas feitas.”. Ainda em carta ao mesmo refere a utilidade das inovações de açúcar e álcool do Torreão…”406
e experiências: para que a parte comercial de uma indústria dê o resultado, é necessário ver tam-
bém a parte industrial ou technica.” 405
Apenas em 1922 temos informação de quanto auferia João Higino Ferraz pelos serviços presta-

401 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1917-18, fl.76, 19 de Junho de 1918
402 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1927-29, 14 de Maio de 1927.
403 . Em 1899 em carta a H. Hinton solicita as publicações journal la Bière, nº.10 e L’Alcool et le Sucre, nº.5, afirmando: “estes
jornais tratão de um processo de preparação de fermentos puros pelo sistema de M. Funback e que eu desejava obter ou então
o tratado desde mesmo autor, o que era muito melhor.”
404 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1929-30, 20 de Setembro de 1929.
405 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas,1929-30, 8 de Fevereiro de 1930 406 . Idem, copiador de cartas, 1920-1923, memorial de 30 de Dezembro de 1922 Desenhos e cartas de João Higino Ferraz.

194 195
CAPÍTULO 2

A AGRO-INDÚSTRIA
Alberto Vieira

“...com sua pouca ciência e menos experiência,


saiu aquele assuqre assim tão bom e tão fino.”
[ Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da
Terra,
vol.II, Ponta Delgada, 1981, p.211.]

A tecnologia é um parceiro importante do processo económico. O impacto dos sectores produ- Engenho de açúcar na Sicília, Juan Stradamus,
século XVI.
tivo e comercial é determinante na inovação tecnológica. Michael Polanyi é peremptório, a tec-
nologia depende inteiramente do mercado1. Na verdade, é a necessidade que espicaça o engenho e
obriga o Homem a lançar-se à descoberta de processos e técnicas capazes de acelerar e tornar mais
rentável o processo produtivo. Marx e Darwin dizem-nos que o progresso técnico é social e cumu-
lativo2. Todavia, os níveis de progresso podem ser simultâneos e alheios à difusão dos conheci-
mentos, conduzindo a que, por vezes, o mesmo invento aconteça em espaços distintos, não haven-
do entre eles qualquer relação.
A questão da tecnologia agrícola-industrial em regiões onde dominou a escravatura tem gerado
acesa polémica entre os estudiosos. Alguns marxistas e especialistas de História Económica argu-
mentam que a escravatura foi um factor de entorpecimento de inovação e mudança tecnológica3.
Escravatura e inovações tecnológicas seriam incompatíveis. Acontece que os estudos recentes sobre
Engenho de mó. a tecnologia das regiões açucareiras têm revelado uma situação distinta4. Não estar a par da mar-
Claes Jansz Visscher, 1657

1 . Donald Cardwell, História de la Tecnologia, Madrid, 1994, p.478; George Basalla, La Evolución de la Tecnologia, Barcelona,
1994, p.177.
2 . George Basalla, ibidem, p.39
3 . confronte-se textos de L. Ragatz, The Fall of the Planter Class in the British Caribbean 1763-1833, NY, 1963; E. Genovese, The
Political Economy of slavery. Studies in the Economy and society of the Slave South, N.Y., 1976; M. Fraginals, O Engenho, 2 vols,
S. Paulo, 1978
4 John A. Heitmann, The Modernization of the Louisiana Sucar Industry. 1830-1910, Baton Rouge, 1987, p.2

198
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

cha da inovação implicava a perda de competitividade. Por fim tenha-se em conta que as mais sig- as fornalhas e madeiras, como a de pau branco, para a construção dos eixos do engenho. O
nificativas inovações dos séculos XV a XIX ocorreram 5
em regiões onde a escravatura foi significa- primeiro foi patenteado em 1452 por Diogo de Teive, o que levou alguns a apontarem como o
tiva. Aconteceu assim na Madeira, como em Jamaica . primeiro engenho de açúcar movido a água.
A cultura da cana e a consequente indústria de produção de açúcar, a partir do século XV, foram A água, mais do que a indispensável utilização no regadio, tinha uma função industrial rele-
alvo de constantes inovações. Para isso contribuiu a pressão do mercado europeu e as característi- vante. O declive das encostas, sobranceiras às ribeiras, aliado à habilidade do homem na canaliza-
cas inerentes à cultura. A cana-de-açúcar tem um período ideal do ciclo vegetativo para ser colhi- ção pelas levadas, conduziu à grande aposta na força motriz: moinhos, engenhos e serras. O pro-
da, findo o qual começa a perder sacarose. Além disso depois de cortada tem 72 horas para ser gresso das indústrias açucareira e madeiras deve-lhe muito.
espremida e cozida6. Caso isso não suceda começa a fermentar, perdendo sacarose, a origem do
açúcar7. Com tais condicionantes do processo de laboração e a incessante demanda do mercado
europeu a partir de meados do século XV obrigaram à constante inovação tecnológica. A par disso OS ENGENHOS MADEIRENSES
o século XVI propiciou a expansão da cultura, gerando uma forte concorrência de mercados pro-
dutores que marcou até ao presente o mundo açucareiro. Esta foi tanto mais feroz quando no sécu- A palavra trapiche entrou no vocabulário do açúcar a desi-
Moenda manual, J. B. Debret. lo XVIII ganhou adeptos na Europa a produção de açúcar a partir da beterraba8. Tamanhas exigên- gnar todos os tipos de engenhos de cilindros usados para moer
cias conduziram a que a partir do século XIX a Tecnologia e a Ciência se aliassem na promoção cana. Nos arredores do Funchal10, como em Arucas, nas Caná-
da cultura e produção de açúcar. Ao nível da cultura surgiram os estudos agronómicos que levaram rias, existe uma localidade com este nome, o que prova ter exis-
à criação de subespécies mais produtivas e resistentes às pragas. Por outro lado o engenho deixou tido aí um engenho deste tipo. Para São Tomé o Piloto
de ser um espaço de intervenção de diversos ofícios guiados pela tradição, dando lugar a enge- Anónimo refere o uso dos "braços dos negros e ainda mesmo
nheiros químicos e industriais9. cavalos". Do último sistema temos notícia da utilização apenas
As questões em torno da tecnologia se tornam mais claras quando tivermos em conta que a nos primórdios da cultura da cana-de-açúcar na Madeira,
intenção do inventor não era uma conquista do século XVIII e que este só se tornou em herói na sendo pouco provável a continuação após a experiência do
centúria seguinte. Daqui resulta a dificuldade na definição clara das inovações tecnológicas e inven- engenho de água de Diogo de Teive, tendo em conta a
tores. Estes preferiam a fruição dos resultados dos inventos aos louros da consagração oficial. É disponibilidade de cursos de água e do possível aproveita-
neste quadro que deveremos enquadrar as inovações tecnológicas em torno da cultura e fabrico do mento por meio da canalização através das levadas. Já o
açúcar. A História da Tecnologia do Açúcar tem sido desde o início polémica e não é fácil vencer mesmo não sucede nas Canárias, onde as datas diferenciam os
os complexos nacionalistas na busca da resposta certa para as inúmeras dúvidas que subsistem engenhos de água dos de besta.
sobre as inovações, o momento da concretização e a paternidade. A animação sócio-económica gerada pelo açúcar foi domi-
As técnicas de cultivo e transformação da cana atravessaram o Atlântico. Na Madeira as nada pelo engenho, mas isto não significava que a existência
condições geo-hidrológicas foram propícias à generalização dos engenhos de água, de que os de canaviais fosse sempre sinónimo da presença próxima de
madeirenses foram exímios criadores. Aliás, na ilha estavam criadas as condições para a afirmação um engenho. Aqui, mais do que no Brasil, são inúmeros os proprietários incapazes de dispor de Engenho de Açúcar, fim do século XVI. Los Ventiun
libros de los ingenios y de las Maquinas.
da cultura: inúmeros cursos de água e de uma vasta área de floresta, disponibilizando lenha para meios financeiros para montar semelhante estrutura industrial e por isso socorriam-se dos serviços
de outrem11. No estimo da produção da capitania do Funchal para o ano de 1494 são referenciados
5 . Alan Dye, Cuban Sugar in the age of Mass Production Technology na the Economicsa of the Sugar Central. 1899-1929, Stanford,
apenas 14 engenhos para um total de 209 usufrutuários, dispondo de 431 canaviais12. Por outro lado
1998, p.80; .Veront Satchell, Innovations in sugar-cane mill technology in Jamaica 1760-1830, in Verene A. Shepherd, Working temos casos de alienação destes complexos a outrem, sem qualquer relação com os canaviais. Assim
Slavery, Pricing Freedom, NY, 2002, pp.93-111 sucedeu em 1546 o convento de Santa Clara arrendou o engenho dos Socorridos, que fora de Rui
6 . Veront Satchell, Innovations in sugar-cane mill technology in Jamaica 1760-1830, in Verene A. Shepherd, Working Slavery,
Pricing Freedom, NY, 2002, p.94;
Dias Aguiar, a Manuel Damil13.
7 . Alan Dye, Cuban Sugar in the age of Mass Production Technology na the Economicsa of the Sugar Central. 1899-1929, Stanford,
1998, p.115.
8 . M. Moreno Fraginals, O Engenho, vol.II, pp.165-169; Manuel Martín Rodríguez, Azúcar y Descolonización, Granada, 1982, 10. A mais antiga referência que temos a esta designação toponímica é 1590. No testamento de João Figueira Chaves refere-se o lugar
pp.79-95; John A. Heitmann, The Modernization of the Louisiana Sucar Industry. 1830-1910, Baton Rouge, 1987, pp. 50-51 César e ribeira do Trapiche na freguesia de Santo António[ARM, JRC, nº.526, fl. 539, testamento de 22 de Agosto]
J. Ayala, American Sugar Kingdom, Chapell Hill, 1999, pp.27-28;.Michelle Harrison, King Sugar. Jamaica, the Caribbean, and 11. Em 1499 (AHM, vol. XVII, nº.227, pp.386-387, 20 de Março)refere-se esta situação e os possíveis prejuízos causados à arrecadação
the World Sugar Industry, NY, 2001, p.112; do quinto.
9 . Cf. William Kelleher Storey, Science and Power in Colonial Mauritius, Rochester, 1997; John A. Heitmann, The Modernization 12. V. RAU, ob. cit.
of the Louisiana Sucar Industry. 1830-1910, Baton Rouge, 1987, p.39 13. ANTT, convento de Santa Clara, nº.12, inventario de 21 de janeiro.

200 201
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Não existem dados exactos sobre os engenhos industriais


14
movidos pela força motriz da água. A XVI, número que não se coaduna com os valores razoáveis para a extensão arável da ilha e a pro-
primeira informação possível surge no estimo de 1494 em que são mencionados dezasseis. Apenas dução dos canaviais. Depois, em finais do século XVI, Gaspar Frutuoso19 refere-nos 34 engenhos,
em onze se conhece o proprietário: sendo nove na capitania de Machico e os restantes na do Funchal. A localização geográfica permite
aferir das áreas de maior incidência da cultura no século XVI.
Gonçalo Anes de Avelossa João Afonso dos Bois Nos inícios do século XVII funcionavam poucos engenhos. O bicho da cana havia reduzido dras-
Fernão Lopes da Lombada Filipa Gil ticamente a produção e área de canaviais pelo que muitos haviam sido abandonados. Entretanto
Fernão Domingues do Arco Alvaro Eanes do Arco em 1610 o panorama era de franca recuperação da cultura, mas os engenhos continuavam encer-
Álvaro de Figueira Gomes Pacheco rados, por isso, o procurador requereu à câmara que intimassem os proprietários que aprontassem
Engenhos de açúcar . Séc. XVI Pedro Álvares Álvaro Eanes do Arco os engenhos para abrirem na safra de 161120. Em 1602, Pyrard de Laval refere a existência de 7 a 8
Fernão Gomes engenhos em laboração21. A aposta na cultura levou ao estabelecimento de alguns incentivos à
reparação, como sucedeu em 164122 e 164923. Nesta década fala-se apenas de quatro engenhos, dos
Mais tarde, em finais do século XVI, surge nova relação dos engenhos, apresentada por Gaspar dois foram construídos em 165024. Daí derivaram, enormes dificuldades em conseguir moer a cana
Frutuoso15. No total, são 34 engenhos em toda a ilha, numa extensa área da vertente sul, que vai por falta de engenhos suficientes25. No Funchal o de André de Betancor há três anos que não fun-
desde o Porto da Cruz à Calheta. cionava e seria difícil que o fizesse pelo estado em que se encontrava26. Ademais, do abandono dos
engenhos registava-se o das levadas como sucedia com a do Pico do Cardo e Castelejo em S.
LOCAL PROPRIETÁRIO LOCAL PROPRIETÁRIO Martinho que há trinta anos não era tirada27. Para repor a cultura a coroa preparou um plano de
Porto do Seixo - Machico Jorge Lomelino Tabua ? recuperação dos engenhos, com empréstimos e a isenção do pagamento do quinto. Isto aconteceu
Porto do Seixo - Machico Freitas Tabua ? por alvará de 1 de Junho de 1649, ficando os proprietários de engenho com direito ao empréstimo
R0 Boaventura Santa Cruz ? Ponta de Sol Escovares de 400 cruzados e o não pagamento do quarto por cinco anos e metade deste valor por dez anos.28.
Caniço João de Ornelas Madalena Manuel Dias A política de incentivo à cultura chegava até à coação dos proprietários no sentido da reparação e
Caniço João de Teives Lombada Gonçalo Fernandes posta em funcionamento dos engenhos. Foi isso que aconteceu a D. Maria da Câmara.29
Rª Sta Luzia-Funchal Simão Zenóbio Acioli Calheta Cabrais
Rª Sta Luzia-Funchal Duarte Mendes de Vasconcelos Calheta Doutor Data Local Proprietário
Rª Sta Luzia- Funchal Simão Daria Calheta João Roiz Castelhano 1651 Caramujo António Correia Betancourt
Rª Sta Luzia- Funchal ? Calheta Diogo de França 1651 Francisco Gonçalves Jardim
Praia Formosa Manuel da My(Damil?) Jardim ? 1653 António correia Betancor
Praia Formosa António Mendes Faial Pero do Couto 1654 Caniço Capt. Diogo Guerreiro Engenho de três cilindros verticais. J. B. Labat,
Rª dos Socorridos António Correa Porto da Cruz António Fernandez 1657 Câmara de Lobos Capitão Pêro de Betencor Henriques 1722; Charles César de Rochefort, 1655;
Rª dos Socorridos Duarte Mendes Porto da Cruz Luis Dória
1680 Caramujo Inácio de Vasconcelos
Machico Henrique Teixeira
1744 João José Inácio de Vasconcelos Betencourt de Sá Machado

Não é fácil estabelecer o número exacto de engenhos que laboraram nos séculos XV e XVI. As
informações disponíveis são, em muitos dos casos, díspares. Assim, para a Madeira em 1494 são 19 . Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, pp. 99-135.
referenciados apenas 14 engenhos, quando noutro documento de 149316 se dava conta da existência 20 . ARM, CMF, nº.1318, fls.68-68vº., 12 de Novembro.
21 F. MAURO, ob.cit., p.249 _
de 80 mestres de açúcar. Note-se ainda que Robert White17 refere 120 engenhos para fins do século 22 . ARN, CMF, nº.1329, fls. 18-18vº, 16 de Fevereiro
XV e Edmund von Lippermann18 refere existirem no Funchal 150 engenhos no início do século 23. IBIDEM
24. ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº.19, Carta de Diogo Fernandes Branco de 26 de Novembro de 1650.
14. Virgínia RAU e Jorge de MACEDO, O Açúcar de Madeira nos fins do século XV. Problemas de Produção e Comércio, Funchal, 25 . ANTT. PJRFF, nº.396, fl.4, 20 de Outubro de 1648.
1962. 26. ANTT, PJRFF, nº.396, 20 de Outubro de 1648.
15. Ob. cit., pp. 99-135. 27. ANTT, PJRFF, Nº.396, fl.7vº, 5 de Dezembro de 1651.
16 . ARM, RGCMF, T. I, publ. in AHM, Vol. XVI, p. 87, doc. 21 Junho. 28.ARM, RGCMF, t. VI, fls.99vº-100; ANTT, PJRFF, nº.396, fl.6vº, 25 de Maio de 1651.
17 . Madeira its climate and scenery, Edimburgo, 1857, p.139. 29. ANTT, PJRFF, nº.980, fls. 314vº-316, 1 de Julho de 1649; ibidem, nº.396, fls. 6-6vo, 26 de Maio de 1651; ANTT, PJRFF, nº.980,
18 . História do açúcar, 1941, 13 fls. 465vº-466, 27 de Setembro de 1652

202 203
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Concentravam-se no Funchal e Câmara de Lobos, o que implicava redobradas dificuldades para sumo que tinha para adubar os vinhos e consumo corrente.
a maioria dos lavradores das partes da Calheta, Ponta de Sol e Ribeira Brava. A situação perdurou
no século dezoito como se poderá verificar de idêntico privilégio, concedido em 1744 a João José PROPRIETÁRIO LOCALIZAÇÃO
de Vasconcellos Betencourt de Sá Machado. O preço de montagem de semelhante estrutura indus- DESCRIÇÃO Sítio Concelho Moenda Aguardente Açúcar
trial não estava ao nível da bolsa de todos os proprietários. Em 1600 João Berte de Almeida vendeu Freitas, Abreu & Cº. Madalena do Mar Ponta de Sol 1 moinho 2 alambiques
a Pedro Gonçalves da Câmara, no Funchal, um engenho pelo valor de 700.000 reais. João da Câmara Lomelino Loreto Calheta Um moinho 2 alambiques
Nos séculos dezassete e dezoito o número de engenhos era reduzido. Para os inícios do século Joaquim Figueira da Silva
XVII, mais propriamente em 1602, Pyrard de Laval refere a existência de 7 a 8 engenhos em labo- & Cº Saraiva Câmara de Lobos Funchal 1 moinho 1 alambique
ração. A documentação informa-nos sobre a existência de alguns: José Maria Barreto,
João António de Macedo Correia Ribeira Brava Ponta de Sol 1 moinho espremer cana
e Freitas, Jorge Oliveira 1 moinho de cereais 1 alambique 1 fábrica
DATA PROPRIETÁRIO LOCAL João Pinto Correia S. Martinho Funchal 1 moinho 1 alambique
1644 Gaspar Betencourt de Sá Rª Socorridos Manuel Martins Câmara de Lobos Funchal 1 moinho 1 alambique
1648 André Betencourt Funchal Tiburcio Justino Henriques Câmara de Lobos Funchal 2 moinhos 2 alambiques

1651 António Correia Funchal 1 caldeira de destilação

1652 Capt.Diogo Guerreiro Caniço


Em 1907, de acordo com o relatório do engenheiro Victorino José dos Santos33, existiam na ilha
1657 Pedro Betencourt Henriques C.Lobos
47 fábricas, sendo 26 a água, 3 mistas e 18 a vapor. É de salientar que o Funchal surge apenas com
1661 Baltasar Varela de Lira Funchal
engenhos movidos a vapor, sendo os de água, maioritariamente, da Ponta de Sol, S. Vicente e
1665 Capt.Pinto da Silva Piornais
Santana.
1705 Cap. Bartolomeu de F. Andrade Funchal
Manuel Abreu Funchal
Data Número de engenhos
Capt. António Abreu C.Lobos
Açúcar aguardente Água vapor bois total
1744-50 João J. Betencourt de S. Machado
1851 3
1760 João J. Vasconcelos de Betencourt
1856 10 80
1780 D.Madalena Guiomar de Sá Vilhena 1862 5 22 18 2 15
1871 9 7
Pormenor de engenho. Séc. XVII Com o decorrer dos anos escasseiam os engenhos, mas também os canaviais. Assim, em 1698 1873 5 29
eram 41 os engenhos em funcionamento na ilha, mas insuficientes para a cana disponível30. Em 1885 3
1730 refere-se a existência de poucos, enquanto no período de 1750 a 1782 temos apenas um enge- 1890 3
nho em laboração. 1900 33 16 49
Na segunda metade do século XIX a crise do vinho obrigou a recorrer à cana como alternativa 1907
económica. A cultura da cana sacarina na ilha é herdeira desta fase. O golpe mortal desferido em 1928 26 19 47
1985 com o encerramento definitivo da fábrica do Hinton, a única que ainda produzia açúcar. 1939 48
Os engenhos de água renascem em concorrência com os novos movidos a vapor. Em 1851 temos
apenas três engenhos em funcionamento no Funchal (Praia Formosa, S. Martinho e rua dos
A tentativa do cultivo da cana sacarina na segunda metade do século XIX conduziu inevitavel- Engenho de três cilindros verticais. J. B. Labat,
Chapéus)31. Num inventário das indústrias nacionais em 186432 referem-se sete engenhos em labo- 1722; Charles César de Rochefort, 1655;
mente ao aumento do número de engenhos, atingindo-se o máximo em 1906 de 57 unidades para
ração na ilha, sendo apenas um a fabricar açúcar. A grande aposta estava na aguardente, pelo con-
fabrico de aguardente e açúcar. As medidas limitativas, a partir de 1939, conduziram ao encerra-
mento da quase totalidade destas infra-estruturas, pelo que hoje restam poucos escombros. De acor-
30 . João Cabral de Nascimento, Documentos para a História das capitanias da Madeira, Lisboa, 1930, p.14
31 . Madeira its Climate and Scenery, Londres 1851, p.54
32 . Diário de Lisboa. Folha Official do Governo Portuguez, nº.14, 19 de Janeiro de 1864. 33. Boletim do Trabalho Industrial, 1913.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

cial incidência para o Funchal. Em 1861 dos 29 engenhos temos apenas cinco para a produção de
açúcar, situados na Calheta, Santa Cruz, Ponta de Sol e Funchal. A redução dos últimos é inevitá-
vel nos anos seguintes com a existência em 1900 de apenas três no Funchal: Hinton, Silva Manique
(Ponte Nova), que os descendentes de Severiano Ferraz haviam vendido em hasta pública em 1886,
José de Faria e Cª (S. Martinho). Em 1929 eram apenas dois e passados dez anos tudo ficou reduzi-
Engenhos e
do a apenas uma unidade industrial com o exclusivo do fabrico 36de açúcar, isto é, o engenho do fábricas de
Hinton. Segundo E. Nicholas, “Hinton is sugar and sugar Hinton.” .A situação resultou do regime aguardente
séc. XIX
sacarino estabelecido em 1911.
A política de proteccionismo e favorecimento do engenho do Torreão afastou todos os demais
da indústria, levando a maioria ao encerramento. Em 1934 um decreto estabeleceu claramente a
situação. Proibiu a construção de mais engenhos até 1953 e os demais existentes deixaram de poder
laborar açúcar, actividade que passou a ser exclusiva do engenho do Torreão. Pior foi o que sucedeu
em 1954 com o decreto que determinou a concentração de todos os fabricantes de aguardente em Engenhos e
fábricas de
apenas três fábricas: Sociedade dos Engenhos da Calheta, Ltda, Companhia dos Engenhos de aguardente
Machico Ltda, Companhia de Engenhos do Norte (Porto da Cruz). A determinação de 1939 para 1907

o encerramento das fábricas que produziam aguardente é reveladora da presença destas unidades
em toda a ilha.

LOCALIDADE 1862 1907 1939 LOCALIDADE 1862 1907 1939


Arco da Calheta 1 3 3 Ponta Delgada 3 2 2 Engenhos e
Ponta de Sol 2 3 fábricas de
Arco de s. Jorge 1 1 1
aguardente
Boaventura 1 1 Porto da Cruz 2 2 2 1939
Calheta 1 2 Porto Novo 1
Câmara de Lobos 4 2 3 Porto Moniz 1 1
Canhas 1 3 2 Ribeira Brava 1 1 1
Estreito da Calheta 1 1 Santana 1 1
Engenho século XVIII do com o decreto de 1954 procedeu-se à concentração das diversas unidades industriais fora do Faial 1 2 1 Santa Cruz 1 3 2
Funchal na Sociedade de Engenhos da Calheta Ltda, Companhia de Engenhos de Machico Ltda, Funchal 11 8 7 São Jorge 2 3 3
Companhia de Engenhos do Norte. Jardim do Mar 1 1 São Roque do Faial 2 1
O primeiro engenho da última fase surgiu em 1828 por iniciativa de Severiano Ferraz34. E foi Machico 2 2 2 São Vicente 1 3 3
também o pai da primeira fábrica de açúcar movida a vapor na ilha, tendo montado o sistema no Madalena 1 2 2 Tabua 1 1 1
engenho da Ponte Nova em 1856, ano da sua morte, pelo que foram os filhos que puseram o meca- Paul do Mar 1 1 1 Total 47 48
nismo em funcionamento no ano imediato35. A energia para mover os novos engenhos poderia ser
escolhida entre a força motriz dos bois, da água e do vapor. Dependendo a opção do volume de
cana a laborar e da capacidade financeira do proprietário. Ao mesmo tempo diferencia-se a aposta
na produção de açúcar ou e aguardente.
Deve-se salientar que as unidades de fabrico de açúcar estavam todas na vertente Sul, com espe-

34 . Severiano Alberto de Freitas Ferraz (-1856) que dá nome a um largo no Funchal, popularmente conhecido como Largo da Cruz Engenhos e fábricas de
Açúcar e aguardente na
Vermelha, destacou-se como artista, industrial e um homem de ciência, sendo da sua criação a construção do engenho de 1828
Madeira.1590-2001
e a reforma que lhe imprimiu em 1856. Falta-nos dados para conhecer o tipo de engenho e afiançar os conhecimentos sobre as
inovações tecnológicas da época.
35. Conforme carta de João Higino Ferraz ao Redactor Principal do Diário de Noticias de 25 de Junho de 1921. 36 . Madeira and the Canaries, London, 1953, p.89.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

2 Dos engenhos dos séculos XV e XVI não temos referência no terreno, sabemos apenas por do- Engenho Conde Carvalhal, 1858. Engenho de Cândido Lusitano
Ponta Delgada
Engenhos em funcionamento:
cumentos e descrições da existência. A cidade do Funchal era local de grande concentração das O Engenho de França Andrade, 1861.
Ponta Delgada
estruturas, mas tudo desapareceu. Hoje o que existe em termos de vestígios dos engenhos açu-
1 - Ribeiro Seco
careiros, resulta do segundo momento de afirmação da cultura para fabrico de aguardente e açú- O engenho de Custódio Filipe, reconstruído por mestre do
2 - Porto da Cruz car. Na maioria resume-se a algumas chaminés, a infra estruturas degradadas ou em ruínas e ape- Sul, fazia rebentar de inveja Luís da Feiteira. Nova roda de
3 - Calheta
nas três se mantêm activos castanho e novos baldes, novos cilindros, novo alambique,
A cultura da cana-de-açúcar expandiu-se no século XIX à encosta norte ganhando alguma dependência para escritório privativo do gerente, a fábrica
importância no concelho de S. Vicente. O testemunho disso está ainda presente em vestígios mate- apresentava um aspecto completamente diverso do velho
riais dos lugares de Ponta Delgada e Boaventura. Em S. Vicente dos dois engenhos de aguardente casarão que fora pertença de antigos fidalgos da freguesia (...).
-1860 de Caetano António de Freitas e 1897 de Daniel Brazão Machado - de que já não sobra nada. O engenho da Fonte estava um cangalho. As paredes sem
Em Boaventura, na Ribeira do Porco, Francisco António Abreu Cardoso construiu em 1899 um cal, todo o rosto para o lado da rua esburacado, os armazéns
engenho movido a água para fabrico de aguardente. da garapa a abarrotarem de ponchos com os arcos comidos de
Em Ponta Delgada temos notícia de três engenhos para o fabrico de aguardente. O primeiro a ferrugem. O proprietário, Luís da Feiteira, desde que lera no
surgir foi em 1850 no sítio do Lombo dos Cabos, propriedade de Joaquim da Silva Ganança. Diário Popular que o Governo ia mandar expropriar os engen-
Passados oito anos o conde de Carvalhal mandou construir o seu no sítio da Fonte e em 1861 no hos do Norte, desinteressou-se da conservação do edifício.
sitio do Açougue o de cândido Lusitano de França. O do Conde de Carvalhal, que pertenceu a João Agora, o eixo da roda da água que movimenta a engrenagem
Bermudes, foi vendido em 1886 a Norberto d’Ornellas Jr encerrando as portas em 1954. É dele que dos cilindros, de tanto girar, tinha as extremidades por um fio.
fala Horácio Bento de Gouveia em "A Canga" e "Águas Mansas"37. (Horácio Bento de Gouveia, A Canga, Funchal, 1975, p.
44)
37 . Maria de Fátima Ornellas de Gouveia Soares, Os Engenhos na Costa do Norte, Xarabanda, 2000-2001, pp.32-34.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

No espaço compreendido pelo actual município do Porto Moniz só temos notícia da presença de 1895: Luís Agostinho Henriques,
engenhos a partir de meados do século XIX. A cultura da cana sacarina e de modo especial o sorgo 1901: Tibúrcio Justino Henriques & Cª.
expandiram-se até aqui. No Seixal existiram três engenhos movidos a água para o fabrico de No Paul do Mar referem-se dois engenhos. O primeiro surgiu em 1858 e era propriedade do
aguardente. Em 1857 José Homem de Gouveia instalou no sítio da Serra de Água, depois em 1890 conde de Carvalhal, sendo movido por água da ribeira. Depois em 1905 José Gomes Henriques
no sítio do Corpo Comprido e Lombo do Moinho surgiram duas novas destiladoras, uma de montou outra estrutura. No Jardim do Mar temos apenas notícia de uma fábrica de aguardente
Manuel Luísio da Costa Lira e a outra em 1895 era de uma sociedade composta por João Antonio movida a água que foi construída em 1900 por Francisco João Vasconcelos.
de Andrade, Manuel Estêvão Pereira Machado, Daniel Joaquim de Souza Pinto, António Na Ponta de Sol situava-se um dos maiores proprietários de canaviais. João Esmeraldo, flamen-
Engenho do Porto Moniz
Rodrigues Gouveia Jardim. No Porto Moniz a única fábrica, conhecida como da Conceição, de go foi detentor desde finais do século XV de um importante engenho de açúcar na sua casa da
moer cana doce e fabrico de aguardente surgiu na vila em 1907 da sociedade "Gouveia Lima e Cª" Lombada. No século XVII referem-se dois engenhos e no século XIX tivemos novo incremento.
entre Manuel de França Dória, António Domingos de Gouveia, Padre João Correia e Manuel de Nuno de Freitas Pestana montou, e m 1853, no sitio da Praia uma fábrica de aguardente movida
Lima Júnior. A fábrica laborou até 1923 mas o edifício e chaminé mantiveram-se de pé até 1990. por uma junta de bois. Depois em 1869 surge com ouro na vila. Temos ainda referência a outro em
No concelho de Santana apenas se registam engenhos em S. Jorge, Arco e Faial. Na freguesia de 1884 de Guilherme Wilgraham,
S. Jorge temos notícia de dois engenhos para o fabrico de aguardente: No Livramento Francisco da Silva Gaspar montou uma fábrica de moenda, remodelada em Engenho
1858: Manuel Fernandes de Nóbrega, 1907, que passados três anos estava em poder de Manuel da Silva Jardim. fundado
por António
1859: Manuel José Catanho, Nos Canhas referem-se engenhos para fabrico de aguardente. O primeiro foi construído no sítio Rodrigues
1896: João Francisco Jardim, dos Anjos em 1855 por Luís Betencourt Esmeraldo e, depois, desde 1904 o de Francisco Cabral de Brás, em
1901. Vila
1896: Luzia Augusta, Noronha e João Nepomuceno no sítio dos Anjos, e o de José Pestana Reis no sítio de S. Tiago. No da Calheta

Engenho Arco da Calheta


1899: Francisco da Cunha. ano imediato surgiu o de João da Silva Frade, João Fernandes, António Silva Gaspar.
No Arco de São Jorge referem-se os seguintes: Na Madalena do Mar temos dois engenhos para o fabrico de aguardente, ambos movidos a água.
1859: Maurício Castelo Branco & Cª, No sítio da Riba surgiu em 1858 o da firma Freitas Abreu & Cº, enquanto no sitio do Passo tive-
1896: António Joaquim França, mos desde 1899 o de António da Silva Gaspar. Em 1887 temos noticia de que a firma Ferraz &
1896: Francisco José Brito Figueiroa, Irmãos era detentora de um prédio com engenho.
1905: José Oliveira Jardim Júnior. A Ribeira Brava foi terra de açúcar, tendo instalado no leito da Ribeira um engenho. Em 1853
Em S. Roque do Faial tivemos um engenho no sítio das Covas desde 1859, que em 1899 era a sociedade entre José Maria Barreto e Jorge de Oliveira. Os ditos já possuíam uma moenda de
pertença do Dr. João Catanho de Menezes(1854-1942) e Leocádia Maria Menezes. Manteve-se no tracção animal e um alambique, avançando em 1863 com uma outra hidráulica e a estrutura para
activo até 193938. Surgiu outro nos Terreiros em 1899, propriedade de Albino Rodrigues Sousa. fabrico de açúcar. Em 1902 foi alvo de novas reformas, quando pertencia à sociedade de João
A vertente Sul manteve-se como um das áreas por excelência da cultura da cana de açúcar neste Romão Teixeira, António Gonçalves de Almeida e Luzia Correia Macedo. Foi demolido em 1941
segundo momento. Daí a presença de inúmeros engenhos. No Arco da Calheta temos notícia de e hoje alberga o Museu Etnográfico da Madeira39. Na Tábua, no sítio da Praia, assinala-se desde
vários engenhos. Ao sitio da Serra de água surgiu em 1857 o de Diogo de Ornelas Frazão, movido 1885 o engenho de Valério Rodriguez da Cova, Francisco Gomes da Silva e Jacinta Rosa(viúva), de
a vapor. Depois tivemos em 1882 o de Francisco Luís Pereira e João de Andrade, movido por bois, que ainda existem vestígios. Engenho. Arco da Calheta
e em 1901 o de Juliana Lopes Jardim. Em Câmara de Lobos assinala-se a presença de vários engenhos, de que hoje não restam vestí-
A Calheta foi no século XVI terra de muito açúcar havendo notícia de dois engenhos na Estrela. gios. Um dos mais antigos estava no sítio da Palmeira, erguido em 1847 por acção de Manuel
Na vila da Calheta temos três engenhos: Martins e João da Silva. Na vila, mais propriamente na Rua da Carreira tivemos em 1854 o segun-
1894: Vicente Lopes, do engenho de Tibúrcio Justino Henriques preparado para aguardente e melaço. Na década de
1901: Lopes & Duarte, cinquenta assinalam-se ainda outros dois. Em 1857 João Figueira Quintal construiu um no sítio do
1908: António Rodrigues Brás. Ribeiro Real e no ano imediato Joaquim Figueira & Co o do sítio de Jesus Maria José40. Na linha
Do primeiro não ficou memória e do último só resta a chaminé num jardim da marginal. Apenas de fronteira, a margem da Ribeira dos Socorridos, que separa o município do Funchal do de
o de 1901 é um dos poucos que persistem em laboração a testemunhar da indústria da destilação Câmara de Lobos tivemos o engenho dos Socorridos, o único que se manteve em actividade no
de aguardente. No Estreito da Calheta temos os seguintes:
39 . Jorge Valdemar Guerra, O Hospício Franciscano e a Capela de S. José da Ribeira Brava, in Islenha, 19, 1999, pp.61-94
38 . Maria João Oliveira, O engenho de cana de açúcar do Faial. Arqueologia Industrial um espaço em aberto. In Xarabanda, 5, 40 . João Adriano Ribeiro, A Indústria de Cana de Açúcar em Câmara de Lobos nos séculos XIX –XX, in Revista Girão, vol.I, nº.8,
1994, 32-36 1992.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Engenho de Diogo de Ornelas Brazão Engenho de Valério Roiz da Cova.


(1857). Arco da Calheta Tabua

Engenho
do Conde
Carvalhal
(1858). Paúl
do Mar

Engenho
do Conde
Carvalhal
(1858). Paúl
do Mar

decurso do século XVIII, demonstrativo da persistência da cana nas proximidades. De entre os 1870 com a designação de Companhia Madeirense do Açúcar. Junto à Ribeira de S. João, na
inúmeros proprietários assinala-se a figura de D. Guiomar Madalena de Sá Vilhena41. Da estrutura Travessa de S. Paulo, João Justino Henriques implantou outra fábrica. Depois tivemos ao Ribeiro
Engenho de persiste apenas a capela42. Seco o engenho de Aloizio César de Betencourt, engenheiro químico, que ainda hoje funciona,
Francisco João
Vasconcelos É no Funchal que se concentrava o grupo mais importante de engenhos para fabrico de açúcar depois de uma reforma em 194643.
(1900). e aguardente. A maior concentração acontecia no espaço urbano, no eixo em torno da Ribeira de Na freguesia de S. Martinho assinalam-se os seguintes engenhos44:
Jardim do Mar
Santa Luzia e na freguesia de S. Martinho, a mais importante em termos de área de cultivo da cana.
Junto ao calhau - hoje Praça do Pelourinho - tivemos a Fábrica de Açúcar de S. Filipe, propriedade Local Proprietário Data fundação
de Henrique Figueira da Silva e que foi um dos mais destacados concorrentes do engenho do Sítio da Vitória João Carlos Aguiar
Torreão. Nas proximidades, à Travessa da Malta, instalou-se a Companhia Nova de José Júlio Sitio das Quebradas Manuel Pereira
Lemos, que foi depois adquirida pela Casa Hinton. Á Rua dos Netos, na proximidade da Ponte Sitio da Ajuda José Fernandes de Azevedo
Nova funcionou o engenho que Manuel Rodrigues construiu em 1863 e perto das actuais insta- Pico do Funcho Victorino Ferreira Nogueira 1856
lações do Ateneu o de António da Silva Manique, de 1856, que deixou de funcionar em 1905. No Salto do Cavalo(Estrada Monumental) Henrique de Freitas Engenho fundado por
torreão implantou-se a partir de 1856 o engenho da família Hinton, muito posterior ao de José Maria Barreto & Cª
Severiano de Freitas Ferraz, do outro lado da Ribeira nas proximidades dos Moinhos. Finalmente Em Santa Cruz assinalam-se dois engenhos na vila. Bartolomeu de Ornelas Frazão fundou aqui em 1853
(Museu Etnográfico).
Engenho de à actual Rua Major Reis Gomes tivemos o engenho canavial, do Conde de Canavial, erguido em Ribeira Brava
Francisco
Gaspar (1907) 43. Maria João Oliveira, Arqueologia Industrial um espaço em aberto. A fábrica de mel de cana do Ribeiro Seco, In Xarabanda,
Livramento,
41 . Bernardete Barros, Dona Guiomar de Sá Vilhena. Uma mulher do século XVIII, Funchal, 2001. 2000-2001, 35-48.
Ponta do Sol
42 . João Adriano Ribeiro, A Capela de Nª Sª da Vitória na Ribeira dos Socorridos, Funchal, 2000 44 Cf. Abel Marques Caldeira, O Funchal no primeiro quartel do século XX. 1900-1925, Funchal, 1963, 74-76.

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Engenho de São Filipe,
estabelecido em 1919
por Henrique Figueira da Silva

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ENGENHOS - SÉCULOS XV- XVIII


Data Período Local proprietário
informação funcionamento
1452 Diogo de Teive
1484 Câmara de Lobos Rui Mendes Vasconcelos
1487 Câmara de Lobos Fernão Afonso
1494 Gonçalo Anes de Avelossa
João Afonso dos Bois
Fernão Lopes da Lombada
Filipa Gil
Fernão Domingues do Arco
Engenho de Pedro Pires, 1887 Engenho Ribeiro Seco
Alvaro Eanes do Arco
Álvaro de Figueira
Gomes Pacheco
Pedro Álvares
Álvaro Eanes do Arco
Fernão Gomes
1491 Funchal Nuno Gonçalves
1495 Afonso Anes
Martim Mendes
Martim Mendes
Engenho da Vila
da Ribeira Brava 1508-1536 Lombada da P. Sol João Esmeraldo
1524 Ribeira Brava João Mendes de Brito
um engenho em 1858 a que se juntou outro em 1863 no sítio da Serra de Água na Calheta, tendo 1535 Porto da Cruz António Teixeira
contado com apoio técnico do Hinton45. Há referências a um outro engenho no ano de 1902 per- 1542 Funchal Álvaro Anes
tencente a Joaquim José de Gouveia. 1544 D. Pedro de Noronha
No concelho de Machico assinalam-se dois pólos industriais importantes na vila e no Porto da 1546 Ribeira Socorridos Convento Santa Clara
Cruz. Na primeira tivemos dois engenhos em funcionamento desde 185846. O do Sítio da Estacada, 1547 João de Ornelas e Vasconcelos
Companhia Nova de José Júlio de Lemos.
de 1858, era propriedade de Manuel António Jardim, enquanto que o do Sítio dos Moinhos, da 1553 Pedro Gonçalves da Câmara
mesma época, foi de João Escórcio Câmara, estando em 1904 em poder de João Carlos Aguiar. 1571 Calheta Simão Fernandes Sequeira
No Porto da Cruz, ao sítio das Casas Próximas, tivemos dois novos engenhos em 1858 para fa- 1573 1573-93 Ribeira dos Socorridos Guiomar da Costa
brico de aguardente, sendo um de João e Valentim Leal e o outro de Cândido Velosa de Castelo 1593 Funchal Bartolomeu Machado
1594(?) Porto do Seixo - Machico Jorge Lomelino
Branco. O primeiro, em 1901 estava na posse do Dr. João Baptista de Freitas Leal. As transfor-
Porto do Seixo - Machico Freitas
mações da primeira metade do século XX obrigaram à reformulação dos engenhos, surgindo em
Rª Boaventura-Santa Cruz ?
1927 a Companhia dos Engenhos do Norte Lda, com o rateio de quatro engenhos que haviam dei-
Caniço João de Ornelas
xado de funcionar na costa norte. O actual engenho em funcionamento foi adquirido em 1978 por
Caniço João de Teives
Luís Alberto Andrade C. Clode.
1531-1594 Rª Sta Luzia-Funchal Simão Zenóbio Acioli
45 . Maria João Oliveira, O engenho de cana de açúcar de Santa Cruz. Arqueologia Industrial um espaço em aberto. In Xarabanda, Rª Sta Luzia-Funchal Duarte Mendes de Vasconcelos
2, 1992, 46-48 Rª Sta Luzia- Funchal Simão Daria
46 . Maria João Oliveira, O engenho de cana de açúcar de Machico. Arqueologia Industrial um espaço em aberto. In Xarabanda, Rª Sta Luzia- Funchal ?
especial, 1993, 43-48; . Maria João Oliveira, O engenho de cana de açúcar do Porto da Cruz. Arqueologia Industrial um espaço Engenho do Hinton
em aberto. In Xarabanda, 4, 1993, 26-33 Praia Formosa Manuel da My(Damil?)

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Data Período Local proprietário ENGENHOS - SÉCULOS XIX E XX


informação funcionamento
Praia Formosa António Mendes Fundação Período LOCAL CONCELHO Proprietário
funciona
R0 dos Socorridos António Correa mento
R0 dos Socorridos Duarte Mendes 1828/1866 FUNCHAL Severiano Alberto de Freitas Ferraz
Tabua ? 1837 Ribeiro Seco FUNCHAL José Dias da Silva, Leandro Eugénio de Freitas(1896)
Tabua ? 1845 FUNCHAL W .H. Hinton
Ponta de Sol Escovares 1856 1856-1986 Rua da Princesa FUNCHAL W .H. Hinton
Madalena Manuel Dias 1847 Palmeira CÂMARA DE LOBOS Manuel Martins e João da Silva
Lombada Gonçalo Fernandes 1853 PONTA DE SOL Nuno de Freitas Pestana
Calheta Cabrais 1853 Vila RIBEIRA BRAVA José Maria Barreto
Calheta Doutor 1854 Vila CÂMARA DE LOBOS Tibúrcio Justino Henriques
Calheta João Roiz Castelhano 1855 Canhas PONTA DE SOL Nuno de Freitas Pestana
Calheta Diogo de França 1856 Pico do Funcho[S. Martinho] FUNCHAL Victoriano Ferreira Nogueira
Jardim ? 1856 Pico do Funcho[S. Martinho] FUNCHAL Diogo de Ornelas Frazão, João de Faria Cª(1896)
Faial Pero do Couto 1857 Ribeiro Real CÂMARA DE LOBOS João Figueira Quintal
Porto da Cruz António Fernandez 1857 Serra de Água CALHETA Diogo de Ornelas Frazão
Porto da Cruz Luis Dória 1858 Casas Próximas(Porto da Cruz) MACHICO João Leal,e Valentim Leal, João baptista Freitas Leal[1901]
Machico Henrique Teixeira 1858 Casas Próximas(Porto da Cruz) MACHICO Cândido Velosa Castelo Branco
1597 Funchal Maria Tavares 1858 1858-197? Estacada(vila de Machico), MACHICO João Escórcio Câmara, João Carlos Aguiar(1904)
1599 Pedro Betancor 1858 1858-1862 Moinhos (vila de Machico), MACHICO João Escorcio da Câmara
1600 1600-26 Funchal João Berte de Almeida 1858 Paul do Mar CALHETA conde de Carvalhal
Funchal Pedro Gonçalves da Câmara Vestígios de engenho.
1858 Fonte[Ponta Delgada] S. VICENTE Conde de Carvalhal Porto da Cruz
1603 Mor Lourenço 1858 1858-1940 Vila SANTA CRUZ Bartolomeu de Ornelas Frazão
1604 Maria Nunes 1858 Jesus Maria José CÂMARA DE LOBOS Joaquim Figueira e Cª
1620 Roque Fernandez 1858 Pedra Mole[S. Jorge] SANTANA Manuel Fernandes Nóbrega
1632 Maria Rodriguez 1858 Madalena PONTA DE SOL Freitas Abreu & Cª
1643 Rª Socorridos Guiomar da Costa 1859 Ponte Deão FUNCHAL Joaquim Crispim da Silva, João Higino Ferraz(1896)
1644 Rª Socorridos Gaspar Betencourt de Sá 1858-1896 Rua dos Netos FUNCHAL António da Silva Manique
1645 Baltazar Varela de Lira 1859 S. Jorge SANTANA Manuel José Catanho
1648 Funchal André Betencourt 1859 Quebrada[Arco de S. Jorge] SANTANA Maurício Castelo Branco e Cª
1651 Funchal António Correia 1860 Passo [S. Vicente] S. VICENTE Caetano António de Freitas
Baltazar Varela
1861 Travessa das Angústias FUNCHAL João da Silva Nunes
1652 Caniço Capt.Diogo Guerreiro
1861 Pico da Cruz[S. Martinho] FUNCHAL Joaquim Ferreira Nogueira
1657 C.Lobos Pedro Betencourt Henriques
1861 Açougue[Ponta Delgada] S. VICENTE Cândido Lusitano da França Andrade
1661 Funchal Baltasar Varela de Lira
1862 Pico do Funcho(S. Martinho) FUNCHAL Manuel Faria & Cº
1665 Piornais Inácio Fernandes Pinto da Silva
1862 Rua direita FUNCHAL Herdeiros de Vicente Cândido Camacho
1687 Mendo Brito Oliveira
1862 Quebrada[S. Martinho ] FUNCHAL Manuel Francisco Pereira
1705 Funchal Cap. Bartolomeu de F. Andrade
1867 Arco da Calheta CALHETA Diogo de Ornelas Frazão
Funchal Manuel Abreu
1867 Estrada Monumental FUNCHAL Pedro Pires
C. Lobos Capt. António Abreu
Engenho fundado 1867 Tábua RIBEIRA BRAVA Valério Roiz da Cova e José da Silva
por Manuel António Jardim em 1858. 1744 1744-1760 João J. Betencourt de S.Machado
1869 Vila PONTA DE SOL Nuno de Freitas Pestana
Machico 1780 D. Madalena Guiomar de Sá Vilhena
1870 Rua da Ribeira FUNCHAL Companhia de açúcar Madeirenses

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

1882 CALHETA Visconde de Calçada VESTÍGIOS DE ENGENHOS DOS SÉCULOS XIX E XX


1882 PONTA DE SOL Wilbraham Brothers
1882 Ledo e Vinhático[A. Calheta]CALHETA Frsancisco Luís Pereira e João Andrade, LOCAL Proprietário Fundação Obs.
Juliana Lopes Jardim[1901] FUNCHAL W .H. Hinton 1845 Desactivado em 1986.
1883 Lombada[S.Martinho] FUNCHAL Manuel Rodrigues de Jesus FUNCHAL Pedro Pires 1867 Estrada Monumental, actuais
1883 Ribeiro Seco FUNCHAL Aluísio César Betencourt instalações da Casa de Vinho Barbeitos
1886 Vinhático CALHETA Francisco Luís Pires e João Andrade RIBEIRA BRAVA José Maria Barreto e Co Actuais instalações do Museu Etnográfico
1887 Salto do Cavalo[S. Martinho] FUNCHAL Pedro Cunha Pires RIBEIRA BRAVA Valério Roiz da Cova e José da Silva Tábua
1894 Vila CALHETA Vicente Lopes PONTA DE SOL Francisco Silva Gaspar 1907 Livramento
1895 Lombo [E. da Calheta] CALHETA Luís Agostinho Henriques CALHETA Juliana Lopes Jardim 1901 Arco da Calheta Vestígios de engenho.
1896 S. Martinho FUNCHAL José Júlio Lemos CALHETA António Roiz Brás 1908 vila da Calheta Machico
1896 Açougue Velho[S. Jorge] SANTANA João Francisco Jardim CALHETA conde de Carvalhal 1858 Paul do Mar
1896 Tranquada[A. S. Jorge] SANTANA António Joaquim França CALHETA Diogo de Ornelas Frazão 1857 Serra de Água
1896 Barranco[S. Jorge]] SANTANA Luzia Augusta, viúva CALHETA Francisco João de Vasconcelos 1900 Jardim do Mar
1896 Alagoa(A. S. Jorge) SANTANA Francisco José Brito Figueiroa S. VICENTE Conde de Carvalhal 1858 Ponta Delgada
Vestígios de engenho. 1897 Travessa da Malta FUNCHAL José Júlio de Lemos S. VICENTE Cândido Lusitano da França Andrade 1861 Ponta Delgada
Porto da Cruz 1897 Quinta[S. Vicente] S. VICENTE Daniel Brazão Machado S. VICENTE Francisco António Abreu Cardoso 1899 Ribeira do Porco
1899 Ribeira do Porco S. VICENTE Francisco António Abreu Cardoso SANTANA Francisco de Cunha 1899 S. Jorge
1899 Calhau[S. Jorge] SANTANA Francisco de Cunha MACHICO Dr. João Caetano de Menezes 1899 Faial
1899 1899-1921 Faial SANTANA Leocácia Maria Menezes/Dr. João Caetano de Menezes MACHICO João e Valentim Leal 1858 Casas Próximas(Porto da Cruz),
1899 Terreiros[Faial] SANTANA Albino Rodrigues Sousa MACHICO João Escórcio Câmara 1858 Estacada(vila de Machico),
1899 Passo[Madalena do Mar] PONTA DE SOL António da Silva Gaspar MACHICO Manuel António Jardim 1858 Moinhos (vila de Machico),
1900 Portinho[Jardim do Mar] CALHETA Francisco João de Vasconcelos
1901 Palmeira[C. Lobos] CÂMARA DE LOBOS João Gonçalves Henriques
1901 Arco da Calheta CALHETA Juliana Lopes Jardim Com o encerramento do engenho do Hinton em 1985 ficaram em funcionamento apenas 3
1901 Porto da Cruz MACHICO Dr. João Baptista Leal engenhos (Ribeiro Seco, Porto da Cruz e Calheta) que apenas produziam aguardente e mel. Na vila
1901 Vila CALHETA Lopes & Duarte da Calheta existiram dois engenhos, mas hoje funciona apenas um, restando do outro apenas para
1901 Heras[E. Calheta] CALHETA Tibúrcio Justino Henriques da fornalha e chaminé do engenho fundado em 1908 por António Roiz Brás. O actual engenho em
1902 Arco da Calheta CALHETA D. Juliana Lopes Jardim funcionamento existia já em 1901 e era pertença da firma Lopes & Duarte. Nesta data o engenho
1902 Pedra Funda[Ponta Delgada] S. VICENTE João Fidélio Canha movido a água foi adaptado para funcionar a vapor e água. Produz aguardente e mel. No Funchal,
1902 R. Conde Canavial FUNCHAL Conde de Canavial
depois do encerramento do engenho do Hinton em 1986, resta apenas o do Ribeiro Seco, fundado
1902 S. Fernando SANTA CRUZ Joaquim José de Gouveia
em 1883 por Aluísio César Betencourt. Só produz mel. Nas Casas Próximas no Porto da Cruz o
1902 Porto Novo SANTA CRUZ Constatino José Lobo
Vestígios de engenho.
primeiro engenho foi montado em 1858 por João Leal e Valentim Leal para o fabrico de aguardente
1905 Igreja(Paul do Mar) CALHETA José Gomes Henriques d’Araujo
Santa Cruz e mel. O segundo surgiu em 1927, na fase de encerramento da maioria dos engenhos do norte,
1905 Armazéns[.A.S. Jorge] SANTANA José Oliveira Jardim júnior
ficando este, sob a designação de Companhia dos Engenhos do Norte Ltda, com o rateio da cana
1907 Lombo das Adegas[Livramento] PONTA DE SOL Francisco Silva Gaspar
de quatro engenhos. Produz aguardente.
1907 Rua da Carreira[Vila ] CÂMARA DE LOBOS Manuel Justino Henriques
1908 vila CALHETA António Roiz Brás
1910 Ribeira Brava João Romão Teixeira
1910 Anjos[Canhas] PONTA DE SOL José da Silva Gaspar

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ou não de água condicionou o assentamento dos primeiros povoadores


em todo o espaço da ilha: “e não viam mais que correntes, ribeiras,
fontes e regatos, que, por entre ele, vinham com grande frescura deferir
ao mar”. O mesmo, depois da descrição exaustiva da ilha, conclui: “toda
ela se rega com grande abundância das águas que tem, que, como veias
em corpo humano, a estão humedecendo e engrossando e mantendo,
com que se faz rica, fresca, formosa e lustrosa.”
As ribeiras exerceram um papel fundamental no processo de ocu-
pação da ilha, pois por elas entraram os primeiros europeus que reco-
nheceram a ilha e assentaram os primeiros núcleos de povoamento. Foi
no seu leito e margens que se jogou a História. A sua bravura, tão pouco
atemorizou os colonos, como sucedeu com à fixação no local da Ribeira
Brava.
A ilha foi assolada ao longo da história por inúmeras aluviões. No
norte mercê das encostas íngremes, da grande quantidade de água, a
época invernosa foi um quebra-cabeças para os moradores. A realidade
repetiu-se ao longo do tempo e quase todos os anos é necessário, após o
Inverno, reparar os caminhos, refazer as pontes e levantar as quebradas.
Os séculos XIX e XX foram marcados pelas aluviões. A primeira
metade do século dezanove foi o momento de maior calamidade, com
três aluviões de efeitos catastróficos em toda a ilha: 1803, 1815 e 1842. O primeiro assume uma Serra de água. S. Jorge
posição cimeira no conjunto de calamidades que fustigaram a ilha, tendo em conta o número de
mortos, as perdas de bens materiais e a destruição de casas. Os efeitos nas lojas comerciais foram
iguais, sendo de destacar a perda de seis mil pipas de vinho. No século XX são notórios os efeitos
das aluviões de que se destacam em 1956 em Santa Cruz e Machico, em 1970 na Ribeira Brava e
Engenho. Gravura de 1835 AS SERRAS DE ÁGUA Serra de Água e em 1981 no Funchal. O de mais recente e triste memória ocorreu em 1993 no
Funchal. A intervenção no sentido de amansar e controlar o curso das ribeiras só teve um plano
O aproveitamento económico da ilha implicava a disponibilidade de instrumentos e técnicas definido no século XIX. Em 1804 chegou à ilha o Engenheiro Reynaldo Oudinot com o objectivo
capazes de fazerem com que da terra brotassem as culturas com valor económico. Foram preciosos de proceder ao levantamento das ribeiras da cidade e de apresentar um projecto para o encana-
auxiliares do homem, aperfeiçoados de acordo com as necessidades, a disponibilidade de materi- mento, sendo seguido por Paulo Dias de Almeida.
ais, engenho e arte. A agricultura implicava um conhecimento tecnológico adequado às diversas A par dos engenhos temos as serras de água, que não são criação madeirense, pois a tecnologia
tarefas de lavrar, plantar a terra, canalizar a água e transporte dos produtos dela extraídas. foi importada do reino47 e, surgem, por vezes, ligadas aos engenhos de açúcar48. É o caso de Diogo
A água assumiu uma função fundamental, pois é a fonte da vida e da História. Aproxima povos de Teive em 145449 com ambos engenhos na Ribeira de Santa Luzia, então conhecida como ribeira
e civilizações. Faz medrar as culturas verdejantes nos campos e substitui-se ao homem em algumas da serra de água e em 1492 de Bartolomeu de Paiva na Ribeira de S. Bartolomeu50. Tiveram um
das árduas tarefas. O protagonismo na História material foi já destacado, orientando as formas de grande incremento no início da ocupação da ilha, fruto da exploração das madeiras, para expor-
vida e desenvolvimento económico das populações que dela se podem servir. A água foi e continua tação ao reino, uso nos engenhos e construção de habitações. Foi, aliás, a primeira riqueza com que
a ser um elemento vital ao progresso e bem-estar do Homem. os primeiros colonos se depararam. Nas cartas de doação das capitanias é considerada uma fonte
Nos séculos XV a XVII a água corria nas ribeiras, em abundância na vertente norte. No sul os 47. Cf. Benjamim PEREIRA, Tecnologia Tradicional Portuguesa. Sistemas de serração de madeiras, Lisboa, 1990, pp. 57-142.
caudais eram, na época estival, quase todos desviados para as levadas A maior concentração popu- 48. Vide Jordão de FREITAS, Serras de Água nas ilhas da Madeira e Porto Santo, Lisboa, 1937, J. A. RIBEIRO,”As Serras de Água
lacional e aposta agrícola assim o definiram. Os cronistas são disso testemunho. O caso mais evi- na capitania de Machico, séculos XV-XVIII”, Actas C.I.H.M., 1989, 115-135.
49. ANTT, Convento de Santa Clara, maço 1, n1 3.
dente encontra-se em Gaspar Frutuoso. Segundo o testemunho, podemos afirmar que a existência 50. J. A. Silva MARQUES, Descobrimentos Portugueses, II. p. 372.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

de receita para o capitão, que recebe duas tábuas por semana ou dois marcos de prata ao ano, e se- Os engenhos
nhorio a dízima.
As serras de água existiram em toda a ilha, em especial no recinto da capitania de Machico, que Os lugares onde com enorme actividade e habilidade se fabrica o açú-
detinha uma importante mancha florestal. Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI, refere aí car estão em grandes herdades, e o processo é o seguinte: primeira-
cinco em laboração, de que descreve a do Faial: mente, depois que as canas cortadas foram levadas para os lugares
acima referidos, pöem-nas debaixo de uma mó movida a água, a qual,
"Está nesta freguesia uma serra de água, que foi um grande e proveitoso engenho, em que triturando e esmagando as canas, extrai-lhe todo o suco. Aqui há cinco
dois ou três homens chegam por engenho um pau de vinte palmos de comprido e dois e três vasos postos por ordem, para cada um dos quais o suco saído das canas
de largo à serra, e, por arte, um só homem, que é o serrador, com um só pé (como faz o oleiro, passa um certo tempo em ebulição, depois, passando para os outros
quando faz a louça) leva o pau avante e a serra sempre vai cortando e, como chega ao cabo casos, com fogo brando, dão-lhe com habilidade a cozedura, de modo
com o fio, com o mesmo pé dá para trás, fazendo tornar o pau todo, e torna a serra a tomar que chegue a espessura tal que, posto depois em formas de barro, possa
outro fio; de maneira que quem vir esta obra julgará por mui grande e necessária invenção a endurecer. A espuma que se forma ao cozer o açúcar, deita-se em barri-
serra de água naquela ilha, onde não era possível serrarem-se tão grandes paus, como nela há, cas, excepto a que sai da primeira cozedura, porque esta se deita fora;
com serra de braços, nem tanta soma de tavoado, como se faz para caixas de açúcar, que se mas a outra, que se conserva, é muito semelhante ao mel.
fazem muitas, e para outras do mais serviço, que vem ser cada ano muito grande soma."51
(Giulio Landi,”Descrição da ilha da Madeira”, publ. António
Foi, na realidade, no Norte da ilha que as mesmas persistiram nestes cinco séculos. Ainda hoje, Aragão, A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, pp.85-86)
em S. Jorge, são visíveis vestígios da indústria, onde ainda funciona uma52. Para além disso a sua
54
memória perpetua-se na designação atribuída a uma freguesia e algumas localidades. A primeira engenhos de água, alçapremas e trapiches de besta . Até à generalização dos engenhos de cilin-
situa-se no concelho da Ribeira Brava, enquanto as segundas são na Calheta, Seixal, S. Vicente. dros horizontais no século XVII, a infra-estrutura para espremer as canas era composta do engen- Azulejo do Museu Republicano. Itu(Brasil)
ho ou trapiche e da alçaprema. 55
Não conhecemos qualquer dado que permita esclarecer os aspectos técnicos do engenho .
Azenhas. Postais antigos O ENGENHO Apenas se sabe, segundo Giulio Landi, que na década de trinta do século XVI funcionava um com
o sistema semelhante ao usado no fabrico de azeite: "Os lugares onde com enorme actividade e
Na moenda e o consequente processo de transformação da garapa em açúcar, mel, álcool ou habilidade se fabrica o açúcar estão em grandes herdades, e o processo é o seguinte: primeira-
aguardente projectaram as áreas produtoras de canaviais para a linha da frente das inovações téc- mente, depois que as canas cortadas foram levadas para os lugares acima referidos, põem-nos
nicas, no sentido de corresponderem às cada vez maiores exigências. A madeira e o metal foram a debaixo
56
de uma mó movida a água, a qual triturando e esmagando a cana, extrai-lhes todo o
matéria-prima que deram forma a capacidade inventiva dos senhores de canaviais e engenhos. Na suco" . Mais já no século estes engenhos funcionavam na ilha. Em 1477 temos um contrato com57
moenda da cana utilizaram-se vários meios técnicos comuns ao mundo mediterrânico. A disponi- Álvaro Lopes para a construção de um engenho de mó, movido a água nas terras da Ponta de Sol.
bilidade de recursos hídricos conduziu à generalização do engenho de água. Na Madeira, o O sistema era muito antigo e foi usado para triturar outros produtos, como o cereal e arroz na
primeiro particular que temos conhecimento foi o de Diogo de Teive em 1452. E este terá sido o China, azeite e pastel na Europa mediterrânica. No Mediterrâneo a primeira notícia do uso na cana
primeiro engenho particular que se veio juntar ao lagar do infante, onde se lavrava, obrigatoria- do açúcar surge na Sicília em 1175, mas era anterior pois temos referências na literatura árabe do
mente os açúcares do quarto53. O infante, donatário da ilha, detinha a o exclusivo das infra-estru- século VIII. Todavia, na China está documentado desde o ano 400. A mó conviveu lado a lado com
turas e quem quisessem segui-lo deveria ter autorização. O documento espelha apenas a situação. o pilão e almofariz. O uso para espremer a cana está documentado na Índia, Pérsia e Palestina. A
A estrutura resultou apenas nas áreas onde era possível dispor da força motriz da água fez-se uso mais antiga descrição é de 1597, mas sabemos da utilização na índia desde 300 AC. O 58
Padre
da força animal ou humana. Os últimos eram conhecidos como trapiches ou almanjaras. O infante Baltazar Barreira refere em 1606 que a cana na ilha de Santiago era pisada com um pilão .
D. Fernando em 1468 refere as estruturas diferenciando os
54 Ibidem, nº.16, pp.44-45
55.Sobre a história dp engenho e a discussão das inovações tecnológicas o estudo mais importante foi publicado por John e Cristian
51.Ob. cit., pp.130-131. DANIELS, The origin of rhe sugar cane roller mill, Technology and Culture, vol. 29, nº. 3, 1988, pp.493_535.
52. Confronte-se João Adriano RIBEIRO, art. cit., pp.120, 131; Benjamim PEREIRA, OB.CIT., PP. 132-142. Esta serra está situada 56 . António ARAGÃO, A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, p.87. Engenho de mó. Theodore de Bry, 1565;
no Sítio do Pé do Pico(S. Jorge) e pertence a Silvano Gonçalves da Silva. 57 . ANTT, Convento de Santa Clara, nº.13, fl.1, 4 de Julho. Cf. João José de Sousa, No Ciclo do Açúcar, Islenha, 5, 1989
53 . AHM, vol. XV (Funchal, 1972), nº. 7, pp.26-29, 29 de Abril de 1466. 58 .A. Carreira, Estudos de Economia Caboverdiana, Lisboa, 1982

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Na ilha de São Miguel a cultura da cana está inegavelmente ligada aos madeirenses. A eles se
deveu o transplante das socas e da tecnologia59. Gaspar Frutuoso conta que em Ponta Delgada
Bastião Pires contratou o madeirense Fernão Vaz, “o qual deu ordem como se fez um engenho de
besta, como de pastel, mas o assento da mó diferente, porque era de uma pedra grande e mui cava-
da, a maneira de gamela e furada pelo fundo, por onde o sumo das canas, que dentro nela se
moíam, ia por debaixo do chão, por uma calle ou bica, sair fora do andaimo da besta que moía, e
assim fez fazer também um fuso e caixa para espremer o bagaço, e uma fornalha com uma caldeira
em cima, a maior que então se achou, onde cozia aquela calda, e cozida a deitava em uma tacha e
ao outro dia fazia o mesmo, até que fez cópia de melado para se poder fazer assuqre.(...) com sua
pouca ciência e menos experiência, saiu aquele assuqre assim tão bom e tão fino.”60

Cultura e fabrico do acúcar. Gravuras séc. XIX

A TECNOLOGIA DOS ENGENHOS

Uma das questões que mais tem gerado polémica prende-se com a evolução da tecnologia usada
para espremer a cana. O aparecimento e generalização dos cilindros horizontais e depois verticais
são um processo controverso que tem ocupado os especialistas nos últimos anos sem se conseguir
alcançar qualquer consenso. Os cilindros tinham diversos usos. Na China, desde o século VI, que
sabemos do uso do engenho de dois cilindros horizontais para descaroçar algodão. Já na Europa
foi dado outro uso, como a laminação de metais, tal como se poderá ver nos desenhos de Leonardo
da Vinci61.
São várias as hipóteses para a origem do sistema. Dois textos clássicos para o estudo do açúcar
- F. O. Von Lippmann62 e Noel Derr63- deram o mote atribuindo a descoberta a Pietro Speciale,
prefeito da Sicília, um importante proprietário siciliano que fez testamento em 147464. Esta tese foi
rebatida por Moacyr Soares Pereira (1955) e Gil Methodio de Maranhão (1953) que demonstram a
falta de fundamento da tese siciliana. Alguma Historiografia castelhana dá a invenção a Gonzalo
de Veloza, vizinho da ilha de La Palma casado com a jovem madeirense, Luísa Bettencourt que em
1518 é referido como “haber inventado un ingenio para azúcar”65 na ilha de S. Domingos66. Todavia

59 Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, vol.II, Ponta Delgada, 1981, p.209-212
60 . Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, vol.II, Ponta Delgada, 1981, p.211.
61. Cf. DANIELS, John e Christian Daniels, the origin of the sugar cane Roller mill, Tecnology and Culture; 1988, 29.3, pp. 493-
535, SABBAN, François, l’industrie sucrière, le moulin a sucre et les relations Sino-Portugaises aux XVIe-XVIIIe siècles,
Annales, 49.4 (1994), 817-861, Idem, Continuité et rupture Histoire des Techniques sucrières en Chine Ancienne, Actas del Tercer
Seminario Internacional. Producción y Comercio del Azúcar de caña en Época Preindustrial, Granada, 1993, 247-265, J. H.
Galloway, The Technological Revolution in the Sugar Cane Industry During the Seventeenth century, ibidem, pp.211-228.
62 . História do Açúcar, 2 vols., Rio de Janeiro, 1952.
63 . The History of Sugar, 2 vols. Londres, 1940_50.
64. Cf. Carmelo Trasselli, Storia dello zuchero siciliano, Caltamissetta-Roma, 1982. A tese foi defendida com base nos textos Pietro
Panzano(opusculum de autore, primordiis et progressu felicis urbis Panonri , 1471) e Gaspar Vaccaro Panebianco(Sul richiamo
della canna zucherina in sicilia e sulle ragioni che lo exigono, Lipomi, 1826), que conforme a publicação por Moacyr Soares
Engenho de mó, Theodore de Bry, 1565 Pereira(1955) dos textos é evidente a falta de fundamento.
65 . RIO MORENO, Justo L. del, Los inicios de la agricultura europea en el Nuevo Mundo, (1492-1542), Sevilla, 1991, p.306

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

nos últimos anos os estudos sobre a História do Açúcar no oriente, nomeadamente na Índia e reverte no melhor aproveitamento do suco da cana, mas sim vantagens acrescen-
China, reforçaram a ideia de que o sistema de moagem da cana por cilindros tem aqui a origem67. tadas para a rapidez no processo de esmagamento. A situação que se vive na
A ideia dominante é de que o engenho de cilindros horizontais é originário da Índia, tendo chega- Madeira a partir de meados do século XV é de incremento da cultura que se alia a
do à China em 1433. A passagem para o sistema vertical ocorreu já na China no século XVI. inovações tecnológicas, que certamente o engenho de Diogo de Teive foi o primeiro
Chegaram à América em 1600, altura em que temos a primeira referência no México, por mãos dos exemplo. Se as referências forem indício dos engenhos de cilindros quer dizer que é
jesuítas68. na Madeira que encontrámos a mais antiga referência desta tecnologia no espaço
David Ferreira Gouveia69 apresenta a evolução como resultado do invento do madeirense Diogo atlântico e será a partir da Madeira que a mesma se difundiu. Os madeirenses
de Teive, patenteado em 1452. Outros apontam para a origem chinesa. O engenho de três eixos estiveram ligados à promoção da cultura e construção dos primeiros engenhos açu-
surge mais tarde no Brasil sendo considerado também uma invenção portuguesa, inegavelmente careiros nas ilhas Canárias, dos Açores, S. Tomé, e Brasil, chegando mesmo ao norte
ligada aos madeirenses aí radicados. A primeira referência aos eixos para o engenho data já do últi- de África, situação que foi interditada pela coroa em 153776. Por outro lado a origem Engenho de duas moendas
mo quartel do século XV. Entretanto em 1477 Álvaro Lopes tem autorização do capitão do Funchal não poderá associar-se a uma influência directa da Índia ou da China, onde estive-
para que "faça hum enjenho de fazer açúcar que seja de moo ou d'alçapremas, ou doutra arte...o ram muitos madeirenses, uma vez que as primeiras referências são anteriores à
qual enjenho será d'augoa com sua casa e casa de caldeiras..."70. Depois, em 1485, D. Manuel isen- primeira viagem de Vasco da Gama. Perante tantas evidências não é possível afir-
tava da dízima "quaesquer teyxos que forem necesarios para eyxos esteos cassas latadas dos enjen- mar com toda a certeza que a expansão dos engenhos de cilindros se fez a partir do
hos e tapumes..."71. Em 1505 Valentim Fernandes refere que o pau branco era usado no fabrico de Funchal. Teremos de continuar no domínio das hipóteses, pois faltam-nos descrições
"eixos e prafusos pera os enjenhos de açúcar"72. A isto associa-se o inventário do engenho e gravuras capazes de o testemunhar. Mas se olharmos ao que sucede com as demais
de António Teixeira, no Porto da Cruz em que são referidos como aprestos: rodas eixos, áreas tudo se constrói no domínio da hipótese e dificilmente teremos conclusões
prensas, fornalhas espeques (...)73. Também noutro documento de 1546 refere-se a existên- plausíveis sobre os primórdios da evolução do sistema de cilindros na moagem da
cia deste tipo de engenho nas fazendas de Manuel d’Amil em Câmara de Lobos, foreiras cana sacarina.
ao convento de Santa Clara, pois o mesmo declara que “aquelle anno mandou fazer a roda Os estudos sobre o açúcar nas Canárias não dão grande atenção à tecnologia do
nova por ser velha a que estava e não aproveitar para servir e os eixos servirem hum engenho. Assim Guillermo Camacho y Perez Galdós77 descreve o engenho como
anno...”74 Por fim tenha-se em conta que os primeiros engenhos construídos no Brasil, mais sendo de três cilindros. O autor baseia-se no documento de 1511 que dá conta de um
propriamente em S. Vicente, são de eixos e que estes foram feitos por destros carpinteiros contrato entre Andrés Baéz e os portugueses Fernando Alonso e Juan González para
madeirenses que acompanharam o Governador Mem de Sá75. lhe cortarem 3 eixos sendo um grande e dois pequenos, para uma roda com os apa-
A tudo isto deverá juntar-se o facto de que foi a partir da Madeira que se generalizou o relhos. Vinte anos depois temos o inventário do engenho de Cristóbal de Garcia em
consumo do açúcar, sendo necessário uma produção em larga escala. A pressão do mer- Telde, onde são referidos a roda e eixos. Todavia J. Perez Vidal78 é da opinião que o
Engenho de dupla moenda.
cado europeu conduziu a uma rápida afirmação da cultura na segunda metade do século primeiro sistema usado nas Canárias era semelhante ao de fabrico do azeite, pois o moinho de Gravura de Romeyn de Hodges (1645-1798)
XVI, situação que só seria possível de alimentar com o recurso a inovações tecnológicas “rodilos” é para ele uma invenção renascentista.
capazes de atenderem a tais solicitações. A evolução para o sistema de cilindros não A palavra trapiche entrou depois no vocabulário do açúcar a designar todos os tipos de enge-
nhos de cilindros usados para moer cana. Nos arredores do Funchal, como em Arucas, existe uma
localidade com este nome, o que prova ter existido aí um engenho deste tipo. Nas Canárias as
Azulejo. Museu Republicano de Itu. 66. Fernando ORTIZ, Los Primitivos Técnicos Azucareros de America, La Habana, 1955, pp. 13_18. Confronte-se Moacir Soares “datas de terras” diferenciavam os engenhos de água dos de besta. Na Madeira as condições geo-
PEREIRA, A origem dos cilindros na moagem da cana (investigação em Palermo), Rio de Janeiro, 1955. hidrográficas foram propícias à generalização dos engenhos de água, de que os madeirenses foram
67. Cf. Estudos de J. Daniels e S. Mazumbar que seguem Moacyr Soares Pereira e Gil Methodio de Maranhão.
68. C. Daniels, ob.cit. exímios criadores. Aliás, aqui estavam criadas as condições para a afirmação da cultura. Enquanto
69. GOUVEIA, David Ferreira, O Açúcar da Madeira. A manufactura açucareira madeirense (1420-1550), in Atlântico, IV, 1985, a primeira desfrutava de inúmeros cursos de água e de uma vasta área de floresta, disponibilizan-
260-272 do lenha para as fornalhas e madeira de pau branco para a construção dos eixos do engenho.
70. ANTT, Convento de Santa Clara, maço 13, nº 1, 4 Julho 1477.
71. AHM, Vol. XV, p. 150, Apontamentos de D. Manuel de 22 de Fevereiro. Toda a animação sócio-económica gerada pelo açúcar foi dominada pelo engenho, mas isto não
72. António BAIÃO, O manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, p. 112. significou que a existência de canaviais fosse sempre sinónimo da presença próxima de um enge-
73. A. ARTUR, “Apontamentos históricos de Machico”, in DAHM, nº 1, pp. 8_9. A dúvida está na data a atribuir ao inventário, que
está anexo ao seu testamento de 7 de Setembro de 1535, ou de 13 de Setembro de 1495, data do testamento de Isabel de 76 . ARM., RGCMF, t. I, fl. 372v, publ. in Arquivo Histórico da Madeira, vol. XIX(1990), pp.79-80.
Vasconcelos sua esposa. 77 . El Cultivo de la Caña de Azúcar y la Industria Azucarera en Gran Canaria (1510-1535), Anuário de Estudios Atlânticos, nº.7,
74. ANTT, convento de Santa Clara, nº.12, 21 de Janeiro de 1546. Madrid, 1961.
75. Eddi Stols, um dos primeiros documentos sobre o engenho Shetz, em São Vicente, Revista de História,1968. 78. La Cultura de la Caña de Azucar en el Levante Español, Madrid, 1973.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O ENGENHO E A ÉPOCA DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

O aumento da cana para a moenda e a inexistência nos engenhos tradicionais levou à ruptura
na laboração79. Perante isto colocou-se a necessidade de modernização do parque industrial, uma
custosa que, por isso mesmo, teve algumas dificuldades em ser concretizada80. As iniciativas de
modernização, como sucedeu com a Companhia Fabril do Açúcar (1868)81, foram o principal
empenho dos industriais madeirenses82.
Os séculos XIX e XX marcam o momento da grande inovação tecnológica dos engenhos e da
forma de fabrico do açúcar. A revolução industrial terá sido provocada pela abolição da escravatu-
ra e pela crise que atingiu o mercado internacional do açúcar a partir de 1880. O uso de máquina
a vapor teve lugar em Jamaica em 176883 mas foi só a partir de meados do século XIX que a mesma
Moenda de dois cilindros. Sistema Bekker
se generalizou. A inovação técnica é favorecida pela concentração das estruturas industriais, resul-
tado de uma política governamental que tem na década de vinte da presente centúria a máxima
expressão84. No Brasil deu origem aos chamados engenhos centrais, enquanto na Madeira foi o
princípio da total afirmação do engenho Hinton.
Durante o século XVIII e até princípios da centúria seguinte existiu apenas um engenho em fun-
cionamento à Ribeira dos Socorridos85. A partir da década de cinquenta o panorama é distinto e a
Engenho em Recife. George Marcgraf.1643 cana volta de novo a ocupar um lugar de destaque, ocupando 1/2 da superfície cultivada em 185086.
nho. Aqui, mais do que no Brasil, são inúmeros os proprietários incapazes de dispor de meios finan-
ceiros para montar semelhante estrutura industrial e por isso socorriam-se dos serviços de outrem. Deste modo aumentou o número de engenhos, sendo referenciado em 185187 quatro fábricas de refi-
No estimo da produção da capitania do Funchal para o ano de 1494 são referenciados apenas 14 nação de açúcar, quatro engenhos de moer cana88 e três fábricas de aguardente. Em Câmara de
engenhos para um total de 209 usufrutuários, dispondo de 431 canaviais. Lobos a cultura teve grande incremento uma vez que são referenciados três novos engenhos em
185489. A situação alastrou a toda a ilha e levou a promoção de novos engenhos ou à reactivação de

OS ENGENHOS DO SÉC. XIX Máquina de vapor Horizontal. Sistema Cail. L. Beaudet.


79. Em 1870 dizia João da Camara Leme(Discurso pronunciado na reunião eleitoral do partido progressista de vinte e cinco de 1894
Março, Funchal, 1870, p.13): “As fabricas que existem são de pequena laboração. D’aqui resulta que a canna, antes de ser reduzi-
O fabrico do assucar e da aguardente resuscitaram quasi immediatameate á destruição dos vi- da a garapa, está muitas vezes, dias a fermentar nos armazens das fábricas, o que da logar a uma grande perda de assucar, torna
nhedos de 1846 para 1852. Começou primeiro o da aguardente, em 1847, por uma fábrica mon- laborioso o fabrico e influe para a má qualidade do producto”.
80. Quirino Jesus(A questão saccharina da Madeira, Funchal, 1910, p.56) refere um investimento superior a mil contos.
tada em Câmara de Lobos; seguiu-se em 1853, outra na Ribeira Brava; outra em 1854, em 81. ARM, Governo Civil, nº.76, fl. 178.180, alvará de 1 de Abril de 1870 _
Câmara de Lobos; outra, nos Canhas, em 1855; em 1857, duas, uma no Arco da Calheta, outra 82. Sobre a tecnologia veja-se A. BEAUDRIMONT, du sucre et de la sa fabrication, Paris, 1841; Conde de CANNAVIAL, Um priv-
em Câmara de Lobos; nove, no ano de 1858, a saber: duas em Machico, duas no Porto da Cruz, ilégio industrial. Cartas as diversos jornaes, Funchal, 1883, pp.10-70; IDEM, Uma acção contra o sr. Hinton...., Funchal, 1884;
Uma acção commercial em que são autores W. Hinton & Sons e reu Conde de Cannavial..., Funchal, 1898.
uma em S. Jorge, uma em Ponta Delgada, uma no Paul do Mar, uma na Magdalena e uma em 83. A. C. BARNES, The sugar cane, N. York, 1974.
Câmara de Lobos; em 1859, duas, uma em S. Jorge, outra no Faial; em S. Vicente, uma no anno 84. Albert BILL e Adrian GRAVES (ed.) The world sugar industry in War and depression 1914-1940, London, 1988; R. W.
de 1860; por ultimo, em Ponta Delgada, no de 1861. BEACHEY, the Bristish West indies sugar industry in the late 19th century, Oxford, 1957; A. C. BARNES, ibidem; J. Carlyle
SITTERSON, Sugar country. The cane sugar industry in the south 1753-1950, Kentuckey, 1953; Peter L. EISENBERG, the sugar
Vieram depois as fábricas de assucar; a de Ferraz Irmãos, começada annos antes, a de William industry in Pernambuco 1840-1910. Modernization without change, Berkeley, 1974; Joshua BERNARDT, The sugar industry and
Hinton & Son, ambas no Funchal, e a de Ferreira Nogueira, em S. Martinho, tôdas em 1856; em the federal government. A Thirty year record (1917-1947), Washington, 1948; Francis MAXWELL, Modern milling of sugar
1858, a de Ornellas Frazão, em Santa Cruz; em 1859 a de Joaquim da Silva, no Funchal; desde cane, London, 1932.
85. An historical sketch of the island of Madeira, London, 1819, p. 51; Rambles in Madeira, London, 1827, p. 364.
então até 1866, a de Diogo Frazão, no Arco da Calheta, e a de Wilbraham, na Ponta do Sol; por 86. J. A. MASON, A treatise on the climate and meteorology of Madeira, London, 1850, p. 244.
ultimo a grande fabrica de são João, fazendo algumas das sete ultimas tambem aguardente. 87. João José Abreu de SOUSA, “A patuleia na Madeira 1847” in Islenha, 14(1994), 7.
88. Edward Vermon HARCOURT, A sketch of Madeira, London, 1851. Refere quatro engenhos movidos por bois. Robert WHITE,
Madeira its climate and scenery, London, 1851, refere três engenhos: Praia Formosa, S. Martinho e Funchal.
(Álvaro Rodrigues de Azevedo, “Anotações”, Saudades da Terra, Funchal, 1873) 89 . J. A. RIIBEIRO “A indústria de cana de açúcar em Câmara de Lobos nos séculos XIX e XX”, Girão, 8(1992), 361-365.

230 231
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

antigos, uma vez que em 1856 temos já 80 e 10 fábricas de destilar aguardente90. Aqui há que dis- O FABRICO DE AÇUCAR, ALCOOL E AGUARDENTE
tinguir as fábricas de moer cana e os engenhos para fabrico de açúcar e destilação de aguardente.
Os engenhos de moer apresentavam duas rodas na disposição horizontal, enquanto os movidos por
bois tinham estas na posição vertical91. O processo de fabrico do açúcar não se manteve estagnado, evoluindo de acordo com as circuns-
De acordo com D. João da Câmara Leme o avanço da cultura na ilha só seria possível com "a tâncias das inovações tecnológicas, que surgiram para dar resposta às necessidades do mercado. No
fundação de fábricas com os apparelhos modernos e aperfeiçoados"92. Enquadrava-se no espírito século XV o processo era simples e moroso evoluindo depois de acordo com a solicitação do mer-
empreendedor a Companhia Fabril de Açúcar Madeirense criada em 1866 e inaugurada em 1873, cado.
que se saldou num verdadeiro fracasso e motivo de acesa polémica93. Por outro lado é de salientar No primitivo engenho surgem definidos três espaços com funções distintas: casa da moenda, das
as iniciativas tecnológicas do próprio D. João da Câmara Leme que em 1875 apresentou o novo caldeiras e da purga. Nalguns casos a última operação tinha lugar na casa dos proprietários da cana,
invento de aproveitamento do açúcar que fica no bagaço nomeadamente usado por W. Hinton94. onde dispunham de lojas com estendal. É necessário ter em conta que nem todos os proprietários
As inovações introduzidas pelo último ocorreram após a licença de 187295 para a construção de uma de canaviais eram detentores de engenho pelo que a maioria tinha de moer as suas canas. No caso
fábrica de extracção e cristalização de açúcar. A política de proteccionismo e favorecimento do em que se utilizava a mó olearia, o bagaço depois de triturado deveria passar por um prensa para
engenho do Torreão afastou todos os demais desta indústria, levando a maioria ao encerramento. retirar o suco que ainda permanência. Já com os cilindros bastava aumentar o número de passagens
Os investimentos eram elevados, mas só assim era possível singrar. Segundo J. Higino Ferraz “não do bagaço para obter o maior aproveitamento.
se deve olhar a grandes economias de montagem em aparelhos aperfeiçoados, porque esses trazem O caldo extraído escorria directamente para as caldeiras ou então umas tinas de barro donde
sempre um produto mais perfeito, trabalho mais fácil e económico em pessoal e combustivel, e esperava a vez para fermentar. Então procedia-se à limpeza por meio de filtros de pano e o repouso
mais quando estes dois ultimos estam actualmente bastante caros.”96 para poder-se decantar todas as impurezas. Daqui passava-se à casa das caldeiras para a cozedura.
Em 1934 um decreto estabeleceu claramente a situação: proibiu-se a construção de mais enge- Aí tínhamos 3 ou seis caldeiras, com fornalha isolada ou agrupadas donde se cozia o caldo. Na
nhos até 1953 e os demais existentes não podiam laborar açúcar, actividade que era exclusivo do primeira caldeira ou tacha de cobre procedia-se ao aquecimento procedia-se à depuração e purifi-
engenho do Torreão, apenas foram autorizados os melhoramentos. Pior foi o que sucedeu em 1954 cação do caldo, usando-se para o efeito cinzas e ervas. As cinzas e a cal actuavam no sentido de neu-
com o decreto que determina a concentração de todos os fabricantes de aguardente em apenas três tralizar o ácido da cana. Com a escumadeira procedia-se à retirada das escumas, depois usadas na
fábricas. Os engenhos do norte ficaram reunidos na companhia dos engenhos do norte com sede alimentação do gado. Na segunda tacha o calor da fornalha procede à concentração até atingir
no Porto da Cruz97. cerca de metade do volume e uma consistência igual ao do xarope, que ia passando por tachas mais
pequenas e sob efeito de menor calor, até começar a cristalizar, era o processo de refinação. Daqui
era vazado para as formas, passando depois à fase seguinte da purga. Na Madeira a casa da purga
era uma estrutura separada, nalguns casos dá a entender que era um espaço único, separado dos
demais, podendo existirem sem as demais98. Aqui tínhamos diversos andaimes perfurados onde se
colocavam as formas cheias. Aqui acontecia a evaporação e depuração. Para o efeito coloca-se barro
molhado na parte superior, donde a água que vertia ia limpando o pouco mel existente. As formas
tinham um furo na parte inferior por onde escorria o mel, pelo que debaixo dos andaimes colo-
90 . Robert WHITE, Madeira its climate and scenery, Edimburgh, 1857, 139-140. cavam-se umas calhas que o conduziam a uns recipientes de barro, para ser de novo cozido99.
91 .Veja-se a Descrição deste maquinismo em Informação Estatística Industrial. Distritos do Funchal, Lisboa, 1863.
Ao fim de trinta dias o açúcar estava pronto, procedendo-se à retirada das formas, sendo depois
92 . Discurso pronunciado na reunião eleitoral do partido progressista de vinte e cinco de Março, Funchal, 1870.
93. Conde de CANNAVIAL, A Companhia fabril do assucar Madeirense, Funchal, 1879; João de S. e V. Moniz de Bettencourt, separado e batido num estendal para secar. De acordo com o grau de pureza tínhamos açúcar bran-
Companhia Fabril de Açúcar madeirense(...), Funchal 1871; Fabrício, João Augusto d’Ornellas e a nova fábrica de assucar, co e mascavado, correspondendo o primeiro à parte superior da forma e o outro à do fundo. E
Funchal, 1871; João Augusto d’ORNELLAS, A Companhia fabril do assucar madeirense e os seus credores, Funchal, 1979.
Sistemas de moenda daqui para o embalamento em caixas de madeira donde seguia para os diversos destinos. Dos
94. Sr. W. Hinton fabricante de assucar e aguardente na cidade do Funchal..., Funchal, 1884; Acção commercial em que são actores
William Hinton & Sons e eu Conde de Cannavial..., Funchal 1898; Visconde CANNAVIAL, Um privilégio industrial. Cartas a meles sujeitos a uma segunda cozedura teremos rescumas e quanto ao pão, na parte superior, os
diversos jornaes, Funchal, 1883. A descrição do processo seguido no Torreão é feita por Eduardo PEREIRA(Ilhas de Zargo, vol. meles de panela e no fundo os meles mascavados. O que escorria na fase da purga era o remel.
I, 541-542). Em 1926 o Marquês de Jácome CORREIA(A ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p.98) refere o seguinte: A fábrica do
torreão, de Harry Hinton, goza, com justificada razão, a fama de ser uma fabrica modelar: e são complexos mechanismos, a orga-
Sistemas de moenda
nização fabril e a importancia da producção que lhe dão jus à nomeada.”
95 . ARM. Governo Civil, nº.77, fls. 47vº-48vº, alvará de 27 de Novembro de 1872 98. David Ferreira, O Açúcar da Madeira, Atlântico, 4, 1985, p.261, 269 (nota 11)
96. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas1917-19, fls.99-100, 8 de Janeiro de 1919 99. A dimensão de cada engenho dependia do volume da cana, podendo acontecer no mesmo espaço situações de dupla moenda e
97 . Esta reuniu os engenhos de S. Roque do Faial, Faial, Arco de S. Jorge e S. Jorge, Ponta Delgada, Porto da Cruz e Boaventura. fornalhas

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Casa Casa das Casa Encaixar


das prensas Caldeiras de purgar expedição
ou da moenda ou de cozer

Engenho.1763

A partir do século XVI as operações em torno do fabrico do açúcar entram num processo rápi-
do de evolução que nunca mais parará. A procura cada vez maior do produto, a concorrência das
diversas áreas, obrigavam à busca de soluções capazes de acelerar o processo e torna-lo mais
económico. O engenho ganhou cada vez mais importância no processo e durante muito tempo todo
o investimento esteve virado para ele. Em finais do século XVIII a concorrência do açúcar de
beterraba da Europa acelerou o processo que levou a uma rotura com a ancestral tecnologia. O
engenho torna-se no centro da actividade e passa a fábrica. O processo de fabrico do açúcar passa
a ser feito em série em amplos espaços. A máquina a vapor, a indústria metalúrgica e a química têm
uma palavra a dizer.
A cana, depois de cortada nos campos, é colocada em molhos feitos com arcos que são trans-
portados aos engenhos. Hoje o processo é feito por camiões, mas no passado era ao ombro do
Diderot e Alembert, Recueil de Planches, sur les sci- Alambique.Engenhos da Calheta, Porto da Cruz
ences, les arts libéraux, et les arts homem até ao engenho mais próximo. A cana que vinha a moer no engenho do Hinton era trans- No caso do Torreão o processo de destilação era separado da rectificação, o que dava maior quali-
méchaniques…Paris, 1762 portada por barco até ao calhau e daí conduzida por um fio que corria na Ribeira de Santa Luzia dade ao produto final102.
até ao engenho. No engenho procedia-se ao descarregamento e pesagem através de básculas, O processo de fabrico de açúcar era muito mais complicado. O caldo, antes de entrar no proces-
estando a cana pronta para entrar no processo. so de cozedura, passa por um processo e limpeza, através da filtração com a força centrípeta, e clar-
A extracção da garapa faz-se em cilindros de metal que foram evoluindo para tambores que ificação através da cozedura em grandes tanques, conhecidos como clarificadores. Durante o
facilitavam a retirada do suco. A partir daqui iniciava-se um processo distinto consoante aquilo que processo adicionava-se cal para que saíssem as impurezas solúveis. O produto, após uma passagem
se pretendia produzir fosse aguardente, álcool ou açúcar. por novo processo de filtração, está pronto para ser submetido ao processo de evaporação, em eva-
O processo de fabrico de aguardente era relativamente simples, uma vez que implicava apenas poradores, que conduzem à concentração e caramelização dos açúcares. Até meados do século XIX
o uso de um alambique. O caldo da cana ficava a fermentar até 10 dias, passando depois para as a operação que se fazia em caldeiras abertas passou a ocorrer em caldeiras de vácuo. De acordo com
caldeiras onde era submetido ao calor e a condensação, nas serpentinas arrefecidas com água, do inquérito industrial de 1863103, a Madeira usava os dois sistemas. Em 1871 a Companhia Fabril do
vapor exalado resultava a aguardente. Nalgumas situações o processo de fermentação é melhorado Assucar Madeirense estabeleceu um aparelho de triplo efeito, com uma economia de combustí-
com a adição de enxofre, técnica usada em 1863 pela fábrica de Ferraz & Irmãos100. Na mesma data vel104. Por fim temos a passagem pela centrifugadora onde se obtém a cristalização do açúcar.
usava-se os sistemas de destilação intermitente, continua e Celier Blumenthal, cuja construção Nalgumas estruturas, como era o caso do engenho da Ponte do Deão, a ausência das máquinas
tanto podia ser portuguesa (Colares), francesa (Derosne) ou inglesa. A facilidade parece ter melho- centrífugas dava lugar a um processo original: a extracção do melaço é feita colocando convenien-
rado com o tempo, pois segundo J. Higino Ferraz “apenas requer a montagem de um pequeno reti- temente as barricas em que se tem lançado o assucar que estava nos crystalilisadores, sobre
ficador, e o resto corre como dantes, isto é, transformar a cana em aguardente e depois retificar pranchões que assentam nas margens das paredes de um tanque de pedra e cal. As barricas têem
essa aguardente para álcool (em 40º cartier). O álcool é que não sei como ficará na sua pureza.”101.

102. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas1917-18 fl. 18, 30 de Julho de 1917.
100. F. O. Campos e Oliveira, Informações para a Estatística Industrial…, Lisboa, 1863, pp.30-31 103. F. O. Campos e Oliveira, Informações para a Estatística Industrial…, Lisboa, 1863.
101. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas1927-29, 7 de Novembro de 1927 104. Um Privilégio Industrial. Cartas a Diversos Jornais, Funchal, 1883

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

MOENDA
da cana

ALCALINIZAÇÃO
da garapa
SULFICARBONATAÇÃO.
Wesberg (sulfitação alcalina)

DIFUSÃO
Naudet(com 12 difusores em duas baterias conjugadas de
6 cada)

EVAPORAÇÃO
no pré-evaporador Kestner (com Kieselgouser)
FILTRAÇÃO
mecânica de jus de primeira evaporação
EVAPORAÇÃO
no triple-effet na primeira e segunda caixa (sulfitação)
FILTRAÇÃO
no fundo alguns pequenos furos por onde vae escorrendo o melaço para dentro do tanque.”105 mecânica entre a segunda e terceira e quarta caixa (2
As principais unidades industriais da década de sessenta do século XIX eram os engenhos do caixas com a terceira)
Ponte Nova de Severiano Alberto Ferraz, considerado “o mais bem montado que há no districto”106. COSIMENTO
em grão de 1er jet
Inventário do equipamento do Engenho da Ponte Nova
3 clarificadores a vapor com capacidade para 17 hectolitros MALAXEURS
5 evaporadores a fogo refrigerantes
TUURBINAGEM
3 concentradores de Bour a agua e vapor
2 maquinas centrifugas de Seyrigs
8 filtros de madeira systema de Dumond EGOÛT EGOÛTS Assucar de 1er jet
30 cristalizadores riche pauvre Branco BB
1 revivificador para carvão mineral Pé de cuite Dissolução 32º e
3 alambiques do sistema de Cellier-Blumenthal, ou destilação contínua, construído por Derosne. hydrosulfitação
Filtração sobre area
O sistema Naudet, que teve os primeiros ensaios no engenho do Torreão nos inícios do século Cuite de 2º jet em grão
XX, veio favorecer o processo o processo. Assim, a garapa saída dos difusores ia directamente para
a caldeira de triple effet, o que representava “uma grande economia de combustível, trabalho e per-
MALAXEUR EGOÛT MALAXEUR
das em assucar.”107
de 100 het riche pé de cuite de 75 heet
O engenho do Torreão, com as inovações introduzidas na primeira década do século XX, EGOÛT Malaxeur refrigerante
tornou-se uma referência do mundo industrial. O esquema da produção é assim apresentado por MALAXEURS pauvre Turbinagem a agua e vapor
João Higino Ferraz.108 . refrigerantes Turbinagem a vapor
Assucar 2º jet
105.F. O. Campos e Oliveira, Informações para a Estatística Industrial…, Lisboa, 1863, p.37 MELAÇO Assucar 3ª jet Branco B 2
106. F. O. Campos e Oliveira, Informações para a Estatística Industrial…, Lisboa, 1863, pp.32-33 Amarello BT
epuisée
107. . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas1899-1905, fls.160-161, 1 de Junho de 1905
108. Idem, Livro de notas…1903-1910, fls.201
destilleria

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Caldeira de vácuo

Para além do factor inovação tecnológica temos o uso de produtos químicos, que actuavam no
sentido de acelerar a fermentação do melaço ou a purificação. “No Torreão para fazer assucar
branco para venda ao consumo local, sulfito o xarope afundo, e somente dá branco a MC de pre-
mier jet com xarope e egoûts ricas. Todos os outros assucares
109
é, ou para refinar, ou para refundir
e sulfitar novamente junto com o xarope de fabricação.” O consumo em produtos químicos era o
CENTRIFUGADOR
seguinte:

Produtos químicos 1918 1919 FASES DO PRODUTOS


Kieseguhr(diatomite) 44(em toneladas) 70(em toneladas) PROCESSO EQUIPAMENTO QUIMICOS ACTIVIDADE
Phosphato de cal 36(em toneladas) 60,5(em toneladas)
Enxofre 17,5(em toneladas) 35,6(em toneladas) RECEPÇÃO balança Recepção da cana e pesagem
Cal de Inglaterra 5500(em toneladas) MOENDA Cilindros, movidos pela força EXTRACÇÃO
Formol 48(em toneladas) animal, água ou vapor da garapa
Soda cáustica 4000(litros) FILTRAÇÃO Eliminação da matéria sólida
Aluminato de baryta 22,6(em toneladas) PURIFICAÇÃO Difusor Carbonato
sulfito
CLARIFICAÇÃO Filtros Eliminação das
FONTE: Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1917-19, fl.5,81, 11 de
clarificadores demais impurezas
Junho de 1917, 28 de Junho de 1918.
EVAPORAÇÃO Caldeiras, trem jamaicano Cozedura e
Evaporador de múltiplo efeito evaporação da água
CRISTALIZAÇÃO Cristalizadorturbina Açúcar granulado
PURGA Formas de barro Barro cinza
Centrifugador Açúcar granulado
Panela de vacuo
EMPACOTAMENTO consumo
109. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas 1927-30, 14 de Dezembro de 1929. E EXPEDIÇÃO

238 239
Engenho
e mecanismos
Século XIX

240 241
Engenho da Calheta

242 243
Engenho do Porto da Cruz

244 245
Engenho
do Ribeiro Seco

246 247
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

William Hinton[1817-1904]

A FAMÍLIA HINTON, ENGENHOS E AÇÚCAR

A comunidade britânica está inseparavelmente ligada ao progresso sócio-económico da ilha a


partir do século XVII. Foram primeiro os principais apreciadores do nosso vinho e os arautos da
comercialização nos mais recônditos mercados do mundo colonial britânico, depois, como entusi-
astas das belezas paradisíacas e qualidades terapêuticas da ilha, deram origem aquilo que veio a ser
a nossa principal actividade, o Turismo e, finalmente, empenhando no progresso económico da
ilha em momentos de crise dando o contributo para a reafirmação da cultura da cana. Mas nem
sempre esta posição foi conseguida de forma clara.
Algumas famílias mantiveram-se até a actualidade com uma posição hegemónica na sociedade
madeirense, despertando ódios e paixões. É precisamente no último domínio que se destaca a
família Hinton. O primeiro da família na ilha foi W. Hinton (1817 -1904) que se fixou no Funchal
em 1841. Em 1845 adquiriu a fábrica de moagem do sogro, Robert Wallas, adaptando-a a engenho
de açúcar. Foi o filho, Harry Hinton (1857-1948) que em 1859 ergueu a fábrica do Torreão, alvo de
profundas reformas sob a superintendência de João Higino Ferraz, a partir de 1889.
A amizade que o ligava a João Higino Ferraz fez com se transformasse no principal confitente e
impulsionador da permanente actualização mecânica e química no processo de fabrico de açúcar.
A paixão de ambos pelas inovações sobre o fabrico do açúcar levou a que o engenho do torreão se
transformasse num modelo e referência da tecnologia açucareira, sendo motivo de visita para
engenheiros nacionais e estrangeiros. Aqui ensaiaram-se novas técnicas e aperfeiçoaram-se outras,
como a do sistema de M. León Naudet110, conhecido como o processo de circulação forçada que
fazia retirar da cana o máximo de açúcar. Daqui resultou uma invenção patenteada em 1902. De
acordo com L. Colson111 foi o primeiro engenho o ver montado o sistema.
H. Hinton foi ainda um dos principais impulsionadores dos ensaios dos diversos tipos de cana-
de-açúcar resistentes o bicho que a atacou desde 1882.

110.Cf. Léon Colson, Culture et Industrie de la Canne à Sucre aux îles Hawai et à la Réunion, Paris, 1905.
111. Ibidem, p. XVIII.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

A inovação tecnológica era custosa e só foi conseguida à custa de medidas proteccionistas e de juntura politica nacional ou da tão proclamada politica de favoritismo do anterior regime mas sim
polémicas sobre o roubo de patentes. Tudo começou em 23 de Março de 1879 com a inauguração no contexto da politica de promoção da cultura e avanço da tecnologia da cana sacarina no século
da Companhia Fabril do Açúcar Madeirense. Era uma fábrica de destilação de aguardente e de fa- XIX de que os ingleses foram os principais obreiros na ilha no Brasil e nas Antilhas. É certo que a
brico de açúcar sita à Ribeira de S. João. Demarcou-se das demais com o recurso a tecnologia sobrevivência da fonte de rendimento só se tornou possível mediante a concessão de monopólio à
francesa, usufruindo dos inventos patenteados em 1875 pelo Visconde de Canavial. Entretanto, a família Hinton, que apagou a demais iniciativa dos madeirenses e amarrou o agricultor a uma situ-
família Hinton que desde 1845 se havia instalado com um engenho decidiu na década de setenta ação de dependência.
investir em força nesta área através da inovação tecnológica e pressão política no sentido da plena Só o 25 de Abril veio abrir novas portas e a provar que a manutenção da situação não era eter-
afirmação. Mas o percurso está envolto em polémica, na, obrigando ao encerramento definitivo do engenho do Hinton em 1976. Acabou-se com uma
A invenção do Visconde Canavial, patenteada em 1875, que consistia em lançar água sobre o situação injusta, mas não com a cana que ainda persistem embora com menor importância. Deste
bagaço, propiciando um maior aproveitamento do suco da cana, deu o mote para uma polémica modo poderá dizer-se que para muitos madeirenses Hinton é sinónimo simultâneo de humilhação
sobre a propriedade da patente. Constava da patente o uso exclusivo pela fábrica de S. João, mas o e recurso raro numa situação de miséria. Foi, aliás dentro desta ambiência que a comunidade
engenho do Hinton cedo se apressou a copiar o sistema. Com isso o lesado moveu em 1884 uma britânica conseguiu vingar na ilha, criando uma situação de amor, paixão e ódio.
acção civil contra o contrafactor. Mas a família Hinton estava fadada para singrar na indústria açu-
careira e conseguir uma posição de monopólio. Segurada na influência das autoridades diplomáti-
cas britânicas, da intervenção pessoal junto da coroa e, depois, das hostes republicanas, conseguiu
atingir os objectivos. A visita de El Rei D. Carlos à ilha em 1901 poderá ser entendida como um
momento crucial desta actuação. HENRY HINTON
Para compreender a iniciativa desta família no contexto histórico madeirense é necessário recor- (1857-1948)
dar que a Madeira vivia desde a década de trinta da centúria oitocentista uma situação difícil mercê
da quebra acentuada do comércio do vinho. A cultura da cana sacarina era e foi solução para a
reconversão da agricultura madeirense gerando uma nova contrapartida económica. Tudo isto era Nasceu a 8 de Janeiro de 1857 no Funchal, filho de William
possível num momento em que as Antilhas e o Brasil se debatiam com uma grave crise de pro- Hinton e Mary Wallas. Casou pela primeira vez com Mrs
dução. É, por isso, o açúcar da Madeira ganha novamente um lugar de destaque. Só que a partir Wilhelmina Montgomery e em segundas núpcias com D. Isabel
de agora a manutenção dependerá da política de investimentos em novos meios tecnológicos resul- Vasconcellos do Couto Cardoso, filha do Morgado do Jardim do
tantes da Revolução Industrial. Em toda área de canas desde a Madeira às Antilhas e ao Brasil o Mar. Faleceu a 16 de Abril de 1898.
elevado investimento só foi possível mediante contrapartidas adequadas aos investidores. Sucedeu Entre finais e o último quartel do século XX a família Hinton
assim no Brasil desde 1857 com o aparecimento dos engenhos centrais com o nome de usinas, que deteve um papel significativo na sociedade madeirense por força
preludiam uma nova era da indústria canavieira em que a produção e separada da Indústria. O do engenho do Torreão que se transformou numa referência da
inglês, pioneiro e principal obreiro da Revolução Industrial, surge a partir de 1884 como a van- cultura da cana sacarina. E, tendo em conta a importância que
guarda da nova tecnologia do açúcar. assumia na ilha fácil será de admitir a ligação sentimental que
As medidas que favoreciam a entrada de melaço estabelecidas pela lei de 1895, estão associadas prendeu muitos agricultores.
ao decreto de 1903. Um regulamento anexo ao decreto determinava a forma de matrícula das fábri- A forma como se afirmou o quase monopólio de laboração da
cas. As condições eram de tal modo lesivas que só duas fábricas— Hinton e José Júlio Lemos — o cana pelo engenho do torreão levou a que se focalizasse na
conseguiram fazer. As cerca de meia centena de fábricas que existiam na ilha ficaram numa situ- família dos proprietários muito do ódio e dificuldades que
ação periclitante. Entretanto a lei de 24 de Novembro de 1904 dava a machadada final ao estabele- enfrentaram os produtores de cana madeirenses. A imagem do
cer a referida matrícula por 15 anos. Entretanto, caiu a monarquia e a República parecia querer engenho confunde-se com a exploração e opressão, enquanto que
fazer ouvidos moucos às regalias conquistadas no anterior regime. Mas de novo as influências para a família convergem inúmeros impropérios. Na verdade, a situação do engenho e da
moveram-se a família Hinton conseguiu pelo decreto de 11 de Março de 1911 assegurar o família nunca foi pacífica na sociedade madeirense. O Re-nhau-nhau expressa inúmeras
monopólio do fabrico do açúcar e regalias na importação de açúcar das colónias. vezes a ira popular e de alguns sectores da sociedade madeirense, mas ao invés outros jor-
A questão Hinton e o complexo industrial que o motivou, e que hoje resta a memória num nais e publicações não se cansam de elogiar os feitos da família na sociedade madeirense.
jardim público e da chaminé altaneira, não pode nem deve ser encarado no quadro restrito da con- A ela se liga a promoção da obra de vimes na Camacha, como a cultura da banana e

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mesmo os primórdios do futebol na ilha. Harry Hinton aos 18 anos de idade, em 1875,
trouxe para a ilha a primeira bola de futebol e fez da Quinta da Achadinha um espaço da
modalidade. Depois, com a criação dos clubes foi um benemérito de troféus e verbas,
sendo Presidente honorário e sócio “Leão de Ouro”, número 1 do Club Sport Marítimo.
O “Almanaque do Desportista Madeirense” traça um perfil distinto desta figura con-
troversa da sociedade madeirense: Quem não conhece e admira essa figura de cidadão
impoluto de homem honrado, de comerciante, industrial prestigioso e honesto, de alma
virtuosa, benemérita e incorruptível, de zeloso, cumpridor de direitos, de submisso escra-
vo de deveres ? CONDIÇÕES PARA A
Quem não admira e exalta a sua personalidade forte, a sua linha irrepreensivelmente IMPLANTAÇÃO DOS
correcta e aprumada, o seu espírito moço, juvenil e franco, a sua alma sem mácula, aber- ENGENHOS. W. HINTON
ta de par em par à prática de memoráveis obras de caridade e de filantropia ?
Quem não aprecia e louva o exemplo vivo da sua vida longa toda dedicada ao trabalho, Tenho por conveniente, uzando
toda consagrada ao dever, num harmonioso ritmo, numa obra eminentemente admirável da faculdade que me é conferida no
e requintadamente impressionante ? § 2º do artº 13º do decreto de 21 de
Madeirense de nascimento e coração, o Senhor Henrique Hinton, mercê das suas outubro de 1863, conceder ao dito
excelsas qualidades de trabalhador incansável e probo é motivo de altaneiro orgulho, de Guilherme Hinton, licença para a
brio e honra cimeira da terra que foi seu berço natal e que tantos benefícios deve às suas fundação e laboração dúma fabrica
faculdades viris de fecundo empreendimento.” O mesmo testemunho elogioso repete-se no de extracção e cristalização de asu-
Elucidário Madeirense na década de vinte do século XX112. car, na Rua da Princesa, proximo á
O mesmo elogio acontece também com o pai William, como se pode verificar nas pági-
Ponte do Torreão, fregª de Santa
nas do Diário de Noticias do Funchal em Março de 1921: Foi William Hinton, com a sua
Lusia, na mesma propriedade e local
lúcida inteligência, com a sua actividade, com a sua iniciativa e com o seu capital quem onde o fallecido Roberto Wallas
imprimiu ao fabrico do açúcar madeirense uma orientação metódica e prática, coroada tinha um moinho de espremer cana
dos mais lisongeiros resultados, sendo, por assim dizer, o alicerce fundamental do pro- doce, e um alambique de destilação
gresso e do desenvolvimento da grande “fábrica do Torreão”. de aguardente, ficando contudo o
A família Hinton rapidamente assumiu a opção madeirense, dedicando especial cari-
referido Guilherme Hinton restricta-
nho a tudo o que se relacionava com a ilha. Assim, interessou-se pela História e Cultura Engenho do Hinton.
mente obrigado á observação das
do arquipélago. Foi ele quem adquiriu a chamada espada de João Gonçalves Zarco e ofer- Comemoração do primeiron centenário.
condições seguintes: 16 de Junho de 1945
eceu ao Museu Municipal. Além disso reuniu uma preciosa colecção de livros e folhetos
Primeira, - que a chaminé tenha a altura de vinte e cinco metros.
sobre a Madeira, que hoje fazem parte do acervo da Biblioteca Municipal
Segunda, - que o estabelecimento seja convenientemente ventilado.
Não obstante ter ficado para a História como uma figura controversa da sociedade
Terceira,- que n’elle haja agua sufficiente para a laboração e para as convenientes lavagens e
madeirense, acabou por ver reconhecida a actividade recebendo condecorações honorífi-
limpeza.
cas: a comenda da Ordem de Cristo e o Grande Oficialato da Ordem de Mérito Industrial.
Quarta,- que se não deixem nunca correr sobre a via publica nem para as propriedades vizinhas,
O nome continuará ligado a Colombo pelo facto de o conselheiro Ayres de Ornelas e
as aguas de condensação e lavagens, ou quaesquer residuos liquidos, e que tudo deverá ser con-
Vasconcelos lhe ter oferecido uma janela da casa que fora de João Esmeraldo, conhecida
duzido em cano fechado até o mar.
como a “janela de Colombo”, que instalou na residência à Quinta da Palmeira na Levada
Quinta,- que todos os residuos solidos sejam cuidadosamente removidos para fóra do estabeleci-
de Santa Luzia.
mento.
Sexta,- que todas as disposições do decreto de 21 d’outubro de 1863, sobre os estabelecimentos
insalubres, incommodos ou perigosos, sejam ponctualmente observados na fabrica de que se tracta.
112. Fernando Augusto da Silva, “Hinton”, Elucidário Madeirense, Funchal, 1965, pp.116-117 (ARM. Governo Civil, nº.77, fls. 47vº-48vº, 27 de Novembro de 1872)

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O PREÇO DO ENGENHO

O preço de montagem de semelhante estrutura industrial não estava ao nível da bolsa de todos os
proprietários. Em 1535, de acordo com a avaliação, para inventário, o engenho de António Teixeira
no Porto da Cruz estava avaliado em duzentos mil reais113. A partir dos inventários post-mortem é
possível saber quais os utensílios usuais do engenho:

SECÇÃO UTENSÍLIOS E PEÇAS


ENGENHO OU MOENDA Rodas
Eixos
Prensas
CASA DAS FORNALHAS Fornalhas
OU CALDEIRAS Espeques
Caldeiras de cobre
Coadura, cubo de cobre
Escumadeira das caldeiras
Repartideira
Batedeira
Raminhões
Bomba
Fagoeiro
CASA DA PURGA Andaimes de sinos,
tinas de cedro para receber o mel
Coxas
Escumadeira, colher, colherão

Alguns dados soltos permitem saber os custos dos diversos objectos e utensílios necessários ao
fabrico do açúcar. Em 1632 uma taxa pequena valia 60 réis, enquanto em 1687 o feitio das formi-
nhas de açúcar custava 650 réis.114
Em 1547 refere-se que os canaviais, engenho e água de servidão dos mesmos orçavam os 461.000
reais115. Mas em 1600 João Berte de Almeida vendeu a Pedro Gonçalves da Câmara, no Funchal, um
engenho pelo valor de 700.000 reais116. Em 1644 o engenho de Gaspar Betencourt na Ribeira dos
Socorridos foi avaliado em 500.000 rs117 e no ano imediato o engenho de Baltasar Varela de Lira118 foi ven-
dido por 422.000 rs119. O primeiro deverá ser o mesmo que em 1780 pertencia a D. Madalena Guiomar
de Sá Vilhena, que o arrendou ao capitão Francisco Esmeraldo Betencourt por 10.000 réis ano120.
113. A. ARTUR, “Apontamentos Históricos de Machico”, in DAHM, I, nº 1, pp. 8-9. Por informação prestada pelo Dr. Gastão Jardim,
parte deste inventário está disponível num processo do tribunal da comarca de Santa Cruz (Inventário Orfanológico, maço.46, fls.
205, 28vº,216) referente ao morgadio da Penha de Águia, criado pelo mesmo António Teixeira.
114.ARM, Misericórdia do Funchal, nº.684, fls. 299-300, 20 de Julho ; ARM, Capelas, caxª.17, nº.402, 25 de Novembro
115. ARM, Capelas, cx. nº 8, 19 Janeiro de 1547.
116. ARM, Misericórdia do Funchal, nº.40, fls. 49-58, 11 de Setembro de 1600.
117. ANTT, Convento de Santa Clara, Cx 4, nº 11, 20 de Dezembro de 1644.
118. Esta situação começou a delinear-se mesmo antes do proteccionismo. Assim, em 1888 em 1.000.000 de arrobas de cana, o engen-
ho do torreão laborava metade da produção de cana, ficando o de S. João com 200.000 arrobas e 300.000 pelos restantes.
Engenho de três cilindros horizontais. Gravura de C. 119. ARM, Misericórdia do Funchal, nº 42, fls. 249-251, 25 de Março de 1645.
Rochefort, 1655. 120. No contrato celebrado é feita uma avaliação do engenho: 2343150 réis (ARM, registos notariais, nº1010, fl.64vº, cit. J. Adriano
Ribeiro, ob.cit., p. 12).

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DATA Proprietário VALOR em reis aguardente é claro126. A tendência foi para a aposta nas fábricas de destilação de aguardente, tendo
1535 Porto da Cruz 200.000 em conta o atrás referido e o facto da procura para o consumo corrente e no processo de vinificação.
1542 Funchal Álvaro Anes 250.000 Temos indicações dos custos da instalação. Em 1857 Diogo de Ornelas Frazão gastou 14.3000.000
1547 João de Ornelas e Vasconcelos 192.000 réis na construção de uma fábrica de aguardente no estreito da Calheta e no ano imediato o Conde
1600 Santa Luzia João Berte de Almeida e Pedro Gonçalves 700.000 Carvalhal montou engenho semelhante no Paul do Mar por 8.800.000 réis127
1643 Ribeira Socorridos Gaspar Betencourt 500.000 De acordo com inventário industrial feito em 1863128 é possível fazer uma ideia das infra-estru-
1645 Baltasar Varela de Lira 422.000 turas existentes e do valor:
Valor do
Os custos do feitio variavam de acordo com a dimensão da estrutura. Em 1573 foi necessário DATA LOCAL PROPRIETÁRIO Equipamento
reconstruí o engenho dos Socorridos, destruído pela ribeira. Branca Atouguia comprometeu-se pe- e Edifícios
rante o convento de Santa Clara que o terá de pé na safra de 1574, gastando 204.000 réis.121 Já em 1856 Ponte Nova(Funchal) Severiano Alberto Ferraz 2.500$000
1620 o lavrador Roque Fernandes pagou a Francisco Lopes 1$340réis pelo feitio do engenho.122 1856 Torreão(Funchal) W. Hinton 30.000$000
Nas Canárias temos também notícia de alguns valores referentes ao investimento necessário 1856 Pico do Funcho (Funchal) Vitorino Ferreira Nogueira 18.000$000
para a construção de um engenho. Em 1519 o de Miguel Fonte em Daute foi avaliado em 4.641.320 1859 Ponte Deão (Funchal) Joaquim da Silva 5.760$000
Utensílios do açúcar.
Diderot e Alembert,1762 mrs. Nos anos imediatos o valor parece descer para depois tornar a subir. Assim, em 1556 o enge- 1858 Santa Cruz Romero Ornelas Frazão 22.400$000
nho de Valle de Gran Rey valia 1.237.417 mrs, enquanto em 1567 um de La Orotava foi vendido 1858 Machico Manuel António Jardim 3.500$000
por 6.000.000 mrs. Para Gran Canaria temos os engenhos de Francisco Riberol, em Agaete y 1858 Machico João Escorcio da Câmara 3.500$000
Galdar, avaliados em 300.000 mrs, o de Francisco Palomar em Agaete, por 750.000 e o de 1858 Porto da Cruz Cândido Velosa de Castello Branco 7.000$000
Constantino Carrasco em Las Palmas por 450.000. Ainda, em La Orotava temos dados precisos 1859 Arco de S. Jorge Maurício Castelo Branco & Co 850$000
1858 S. Jorge Manuel Fernandes Nóbrega 1.000$000
sobre os custos da construção das diversas infra-estruturas do engenho, conforme o inventário do
1858 Ponta Delgada Conde de Carvalhal 3.000$00
engenho de Alonso Hernandez de Lugo feito em 1584.
1861 Ponta Delgada Cândido Lusitano de França Andrade
Para os séculos XIX e XX a construção de um engenho para fabrico de açúcar, de acordo com as
e António Fernandes Teles 3.000$000
inovações tecnológicas, era uma aposta impossível para qualquer industrial caso não fossem garantidos
1860 S. Vicente Caetano António de Freitas 1.200$000
os financiamentos e apoios governamentais. Enquadra-se na situação o favorecimento dado ao enge-
1867 Arco da Calheta Diogo de Ornellas Frazão 14.300$000
nho do Torreão, que levou ao quase monopólio da laboração. Daqui resultou que a maioria apostou
1858 Paul do Mar Conde de Carvalhal 8.800$000
em manter a tecnologia tradicional, servindo-se da tracção animal e da força motriz da água123.
1853 Ponta de Sol Nuno Freitas Pestana 920$000
A situação arcaica das fábricas de moer cana era intolerável perante o incessante aumento da
1855 Canhas Luiz de Bettencourt Esmeraldo 1.000$000
Escumadeira e colheres. produção, por isso foi necessário a aposta num estabelecimento moderno, capaz de minorar os cus- 1858 Madalena Freitas Abreu & Cº 11.000$000
tos de laboração e de corresponder à oferta de cana124. Enquadra-se neste objectivo a novel 1853 Ribeira Brava José Maria Barreto 7.200$000
Companhia de Açúcar Madeirense, criada em 1868. 1854 Câmara de Lobos Tiburcio Justino Henriques 4.500$000
Por outro lado, tendo em conta a grande dificuldade do fabrico do açúcar e os elevados custos 1857 Câmara de Lobos João Figueiredo Quintal 1.900$000
do investimento, denota-se na época dois tipos de complexos: para produção de açúcar e destilação 1858 Câmara de Lobos Joaquim Figueira 6 Cº 2.900$000
de aguardente125. Em meados do século a distinção entre a moenda da cana, o fabrico de açúcar e 1847 Câmara de Lobos Manuel Martins e João da Silva 1.800$000

121. ANTT, Convento de Santa Clara, maço.4, 27 de Agosto. 126. Em 1851 refere-se 4 fábricas de refinação de açúcar, 3 de aguardente e 4 engenhos de moer cana (João J. De SOUSA, “A patu-
122. ARM, Misericórdia do Funchal, nº.684, fls.581-581vº., 2 de Maio. leia na Madeira. 1847”, Islenha, 14(1994), 7). Aliàs em 1865( Eduardo GRANDE(Relatório. Sociedade Agrícola do Funchal,
123. Em 1851 referem-se apenas 4 engenhos puxados por bois (Edward V. HARCOURT, A sketch of Madeira, London, 1851, p.94), Funchal, 1865, p. 96) dá conta que a cana era explorada apenas na produção de aguardente, existindo para o efeito 4 engenhos,
em 1871 (Dennis EMBLETON, A visit to Madeira in the Winter. 1880-81, Londres, 1882, p.76) temos 7 engenhos a vapor, 9 de mas apenas dois estavam bem montados. Em 1900(F. A. SILVA, Elucidario Madeirense, vol. I, p.219) dá conta de 49 fábricas de
água e outros não especificados movidos por bois. moer cana, sendo 16 a vapor, 33 a água. Para 1907 (Victorino José dos SANTOS, Relatorio dos serviços da secção. Technicos de
124. Em 1865 o governador civil tentou levar por diante um inquérito sobre os engenhos, sem qualquer efeito. O primeiro que industria no Funchal no anno de 1907, in Boletim do trabalho industrial, nº.24,1909) dá-nos conta de 37 fabricas de destilação de
chegou até nós data de 1928. aguardente, alcool e açúcar em toda a ilha, sendo 19 movidas a vapor(todos os geradores de origem inglesa), 26 a água e 2 mis-
125.O engenho de Luís Betencourt Esmeraldo nos Canhas, construído em 1855 para o fabrico de aguardente, custou 1.000.000 réis; tas. Em 1921(F. A. SILVA, ob.cit., p.219) eram 51 os engenhos a funcionar, mas só um produzia açúcar o do Hinton.
em 1858 erguueu-se outro engenho na Madalena do Mar, movido a água, com o capital de 11 contos de réis (João Adriano 127. Cf. João Adriano Ribeiro, ob.cit., pp.19-21.
RIBEIRO, Ponta de Sol- subsídios para a história do concelho, Ponta de Sol, 1993, p. 170). 128. Em Informações de Estatística industrial. Distritos de Leiria e do Funchal, Lisboa, 1863

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ENGENHO E PRODUÇÃO No decurso do século dezanove é cada vez mais evidente a dissociação do engenho dos canaviais.
Em 1863128 temos indicação dos preços de pagamento da moenda da cana e destilação da garapa:
Os valores de produção dos engenhos insulares são muito distintos dos americanos. Para a Madeira por 30 Kg de cana pagava-se entre 70 a 90 réis e na destilação de 17 litros de 100 a 110 réis. A média
em finais do século XV são referenciados apenas 12 engenhos para um total de 233 proprietários de laboração dos engenhos nos quatro meses da safra era em média de 7917241 Kg de cana, pro-
de canaviais. Situam-se todos nas partes do Fundo, não havendo qualquer referência para os que duzindo-se 117.600 Kg.
funcionavam na área do Caniço a Câmara de Lobos. Tomando em conta, apenas as Partes do
Fundo, nota-se que a cada engenho estariam atribuídas mais de cinco mil arrobas, valor elevado se ÁREA Nº engenhos arrobas média
tivermos em conta o estado da tecnologia usada. Também é de notar que os proprietários de enge- Funchal 2 16 545 8272,5
nho não se situam entre os mais importantes detentores de Partes do Fundo 15 10 548 703,2
canaviais. Apenas Fernão Lopes surge com 1600 arrobas, TOTAL 17 80 451 4732,4
havendo caso de lavradores com valores superiores que não
são proprietários de engenho. Fernão Lopes apresentava mais Tomando em conta, apenas as Partes do Fundo, nota-se que a cada engenho estariam atribuídas
2000 arrobas em conjunto com João Esmeraldo. Na primeira mais de cinco mil arrobas, valor elevado se tivermos em conta o estado da tecnologia usada.
metade do século XVI os valores desceram a mais de um terço, Também é de referir que os proprietários de engenho não se situam entre os mais importantes
pois a média é de 1478 arrobas. Outro aspecto de relevo é a detentores de canaviais. Apenas Fernão Lopes surge com 1600 arrobas, havendo caso de lavradores
relação entre os proprietários de engenho e canaviais. Nesta com valores superiores que não são proprietários de engenho. Fernão Lopes apresentava mais 2000
fase, marcada por profundas alterações na estrutura produtiva, arrobas em conjunto com João Esmeraldo. Na primeira metade do século XVI os valores desceram
o desfasamento entre ambos os grupos. A diferenciação entre a mais de um terço, pois a média é de 1478 arrobas.
lavradores de cana e proprietários de engenho é muito clara.
No grupo surgem seis com valores superiores a 1000 arrobas. COMARCA NÚMERO AÇÚCAR
É de salientar que, não obstante os engenhos estarem asso- DE ENGENHOS ARROBAS MÉDIA POR ENGENHO
ciados aos grandes proprietários de canaviais, não os podere- Funchal 17 17 863 1050,76
mos considerar sinónimo de engenho. No caso do século Ribeira Brava 6 13 524 2254
dezasseis alguns situam-se entre os principais produtores, mas Ponta de Sol 5 8011,5 1602,3
a maioria com valores de produção muito inferiores, como é o Calheta 10 19204 1920,4
caso de João de Ornelas que em 1530 declara apenas 70 Machico 8 9409,5 1176,18
arrobas de açúcar no Funchal. Estamos perante duas reali- TOTAL 46 68012 1478,52
dades distintas que geram uma dinâmica particular na estru-
tura produtiva em torno da cana-de-açúcar. Outro aspecto de relevo é a relação entre os proprietários de engenho e canaviais. Nesta fase,
Trapiche-ilha de Santiago(Cabo Verde) Nas Canárias, nomeadamente nas Ilhas de Gran Canaria e Tenerife, parece-nos que a situação marcada por profundas alterações na estrutura produtiva, o desfasamento entre ambos os grupos
foi diferente. Aqui, a grande propriedade é sinónimo da presença de um engenho surgindo como é por demais evidente.
resultado da forma como se procedeu às dadas de terras, por outro lado os valores médios para a
produção por engenho parecem ser mais elevados. Gaspar Frutuoso refere que os dois engenhos da COMARCA PROPRIETÁRIOS PROPRIETÁRIOS DE ENGENHO
família Ponte em Adeje (Tenerife) laboravam de 8 a 9 mil arrobas de açúcar enquanto o de João de DE NÚMERO % EM RELAÇÃO
Ponteverde em La Palma ficava-se pelas 7 a 8 mil arrobas. Para Gran Canaria o mesmo indica que CANAVIAIS AOS DE CANAVIAIS
os vinte e quatro engenhos cuja safra podia situar-se entre as seis e sete mil arrobas. A partir dos Funchal 126 17 13,5
contratos de arrendamento dos engenhos sabe-se que o de D. Pedro Lugo em El Realejo laborava Ribeira Brava 35 6 17,1
em 1537-38 uma média de 4500 arrobas e que com outro em La Orotava se ficava por 1122 arrobas. Ponta de Sol 28 5 17,9
No século XVII temos os valores do diezmo pagos pelos sete engenhos em actividade nas ilhas de Calheta 25 10 40
Gran Canaria, Tenerife e La Palma, o que nos permite para este período desde 1634 estabelecer a Machico 55 8 34,5
média de produção anual. TOTAL 269 46 17
128. Informações de Estatística Industrial. Distrito do Funchal, Lisboa, 1863, p.1.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ORGANIZAÇÃO ESPACIAL DO ENGENHO.


A distinção entre lavradores de cana e proprietários de engenho é muito clara. No grupo apenas
seis surgem com valores superiores a 1000 arrobas. Na Madeira não colhe prova a ideia de que os canaviais estão associados a um engenho. Vários
factores contribuem para isso e conduzem a que a forma de organização do espaço industrial seja
PROPRIETÁRIO ANO LOCAL PRODUÇÃO distinto de muitos sítios do continente americano onde o engenho domina todo o complexo. A oro-
João Fernandes do Arco 1509 Calheta 4484,5 grafia da ilha associada ao excessivo parcelamento da propriedade conduziu a que a maioria dos
João Esmeraldo 1526 Ponta do Sol 3277,5 proprietários não tivessem meios para construir e manter semelhante estrutura. Apenas com as
Gonçalo Fernandes 1534 Calheta 3707,5 famílias ou proprietários mais destacados é possível a associação entre os canaviais e o açúcar.
José Roiz Castilhano 1534 Calheta 1227,5
Simão Acioli 1530 Funchal 1365
ENGENHO
Por outro lado é de salientar que, não obstante os engenhos estarem associados aos grandes pro-
prietários de canaviais não os poderemos considerar sinónimo de engenho. No caso do século
dezasseis alguns situam-se entre os principais produtores, mas a maioria surge com valores de pro-
dução muito inferiores, como é o caso de João de Ornelas que em 1530 declara apenas 70 arrobas Casa de moer Casa de cozer TENDAL Casa de purgar
de açúcar no Funchal. Podemos afirmar que estamos perante duas realidades distintas que geram
M. Duhamel du Monceau, s.d. uma dinâmica particular na estrutura produtiva em torno da cana-de-açúcar.

As tarefas conducentes ao fabrico do açúcar definem três momentos distintos: a moenda da


cana, o cozimento da garapa e a purga do açúcar. Daqui resultará a existência de três instalações
que se apresentam separadas: casas da moenda, das caldeiras e da purga. De acordo com a postu-
M. Duhamel du Monceau, s.d.
O FABRICO DO AÇÚCAR ra de 1597 a casa da purga situava-se na parte superior do edifício que servia a casa das caldeiras,
pois refere-se a “casa de cima”.129
Nos engenhos de João Esmeraldo da Lombada da Ponta de Sol e João de Ornelas e Vasconcelos
surge apenas as casas do engenho e de purgar.130 Mas sabemos que João Esmeraldo tinha perfeita-
O fabrico de açúcar requeria um dedicado cuidado num período limitado de tempo. O mente definido a estrutura espacial que marcou o mundo açucareiro131. Assim, a par do engenho
ciclo vegetativo da cana definia um acompanhamento constante ao longo do ano: plantar, com as referidas instalações, temos a casa, a capela, todos dominam um vasto vale de canaviais que
mondar, esfolhar, combater as pragas e efeitos nefastos dos animais, cortar e, depois, con- se abria ao mar. Já para o engenho de João Berte de Almeida na ribeira de Santa Luzia apenas se
duzir ao engenho onde se moía e extraía o suco daí resultante para se fazer o açúcar. assinalam as casas da prensa e da fornalha132. O engenho de Guiomar da Costa na Ribeira dos
Enquanto as tarefas relacionadas com a cultura realizavam-se de forma lenta ao longo do Socorridos era uma estrutura complexa dominada pela capela, a ermida de Nossa Senhora da
ano, a parte relacionada com a safra do engenho era uma actividade intensiva que deveria Vitória, e casa de habitação. As instalações industriais eram definidas pela casa de purgar, palheiro,
ser executada num curto período. O engenho laborava dia e noite, intervindo os serviçais guarnéis, estrebarias e fornalhas133.
entre a casa da moenda, fornalhas e purga. Algumas informações soltas revelam-nos uma situação distinta daquela que se tem defendido
A moenda da cana no engenho inicia o processo de fabrico do açúcar. As mós e os cilin- quanto ao engenho de açúcar. Todo o processo de fabrico de açúcar não acontecia no mesmo
dros esmagam a cana e depois a prensa espreme o bagaço de modo a retirar-se a garapa que espaço. As três fases fundamentais – moenda, cozedura e purga- não aconteciam de forma seriada,
depois será cozida. O processo de fabrico do mel resume-se a uma simples cozedura, mas o
fabrico de açúcar implica um processo moroso de purga e clarificação. A principal questão 129. José Pereira da Costa, Vereações da Câmara Municipal do Funchal. Segunda Metade do Século XVI, Funchal, CEHA, 2002,
que se coloca é a de saber donde conseguiram os madeirenses a tecnologia necessária para p.119
fabrico do açúcar. Nada nos diz de forma clara mas os poucos indícios da documentação re- 130 . ARM, Capelas, caixa. 13, nº.3, 27 de Maio de 1536; caixa. 8, nº.9, 19 de Janeiro de 1547.
131 . ARM, Capelas, cª. 13, nº.3, 27 de
velam uma ligação com as áreas produtoras do Mediterrâneo. Refere-se um mestre de enge- 132 . ARM, Misericórdia do Funchal, nº.684, fls.63-75, 142-150vº, 1 de Agosto de 1626
nho valenciano e os vestígios materiais do processo revelam as similitudes. 133 . ANTT, Convento de Santa Clara, Caixa 4, nº. 11, 7 de Março de 1643.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

podendo o última ocorrer de forma separada. Isto acontece assim porque nem todos os propri- Pera que branco fique, claro, a puro,
etários de canaviais tinham engenho. E, por isso mesmo entregavam a moenda e cozedura a enge- De huma galinha o pé com barro o toca,
nhos, mediante uma renda em dinheiro ou produto. Alguns proprietários tinham casa própria para Que o secreto descobre mais seguro,
purga do açúcar, com sinos, formas e andaimos de madeira. Isto permitia purgar o açúcar a seu E a purgação com barro lhe provoca;
modo, entregando no engenho as formas de que eram proprietários. Em 1536 João Esmeraldo re- Segredo que em prudencia, no futuro,
fere que o açúcar que cada filho tem direito pode ser purgado na casa de cada um. Em 1553 Paulo Alvura poem, ao que por pranta, ou soca,
Mourato emprestou a Pedro Gonçalves da Câmara 180 formas para a safra do ano imediato. Mais Descobre feito, a singular belleza,
se enuncia que o mesmo mandou ao engenho 48 formas e trouxe para casa 173 cheias de açúcar134. Com que mais se engrandesce na pureza144
Já em 1566 Diogo Paes autorizou o seu canavieiro, Francisco Fernandes, a construir uma água para
a purga de açúcar.135 Bartolomeu Machado, em 1593, declara no inventário dos bens doze andaimes A historiografia clássica aponta o início com os persas no século VII145. O barro
aparelhados para 300 formas, 50 sinos e duas tinas para o mel.136 Já Mendo Brito de Oliveira, em da ilha deveria ser diminuto, uma vez que temos notícia da importação do Porto
1687, apresenta no inventário 10 forminhas de açúcar.137 Santo e doutras proveniências146. O mesmo se passava com as formas de açúcar,
Alguns casos de contrato de colonia comprovam a mesma situação, uma vez que a partilha do indispensáveis em todo o processo, que eram importadas do Barreiro e Aveiro147.
açúcar ou a cobrança dos direitos se fazia no tendal138. Ora o tendal é definido como o local de esfri- A única informação sobre o fabrico do açúcar surge pela voz de Giulio Landi,
amento das formas, antes de serem levadas para a casa da purga. Em abono da ideia temos o facto um italiano que visitou a Madeira na década de trinta. Depois de referir a forma
de nos últimos anos se terem encontrado restos cerâmicos de formas de açúcar em algumas de trituração das canas anota com minúcia o processo que se segue: “Aqui há
habitações do Funchal e Machico, sem a existência de rasto da moenda e fornalhas. Sucede assim cinco vasos postos por ordem, para cada um dos quais o suco saído das canas
com a casa de João Esmeraldo no Funchal e em Machico139. A propósito da Casa de João passa através dum cano. Depois de levado para o primeiro vaso, deixam-no ferver
Esmeraldo, Mário Varela Gomes140 coloca a hipótese da presença dos vestígios de formas de açúcar durante um certo tempo em ebulição, depois, passando para os outros vasos, com
indiciar a presença de um engenho, mas como vimos são apenas fruto da situação singular que por fogo brando, dão-lhe com habilidade a cozedura, de modo que chegue a espessura
aquilo que sabemos até ao momento está apenas documentada na Madeira. tal que, posto depois em formas de barro, possa endurecer. A espuma que se
Os dados documentais confirmam que estamos perante infra-estruturas separadas e que con- forma ao cozer o açúcar deita-se em barricas, excepto a que sai da primeira coze-
tavam com a presença de vários técnicos141. O caldeireiro procedia à purificação, o mestre tempera- dura, porque esta se deita fora; mas a outra, que se conserva, é muito semelhante
va, enquanto o purgador ficava com o encargo da purga142. A última fase do processo poderia ser ao mel.”148
executado de várias formas, sendo comum na Madeira a adição do barro, o que conduzia a uma A casa das caldeiras assinala também uma importante evolução. Assim, de ape-
estreita protecção dos terrenos de barro143. A tradição refere que foi uma invenção madeirense, mas nas uma caldeira evoluiu-se para quatro caldeiras ou taxas, o que fazia acelerar o
os árabes já eram conhecedores e serviam-se dele para o fabrico do açúcar branco. processo de cozimento da calda até ser depositada nas formas. O melaço endure-
cido e frio depositado nas formas era transportado para a casa de purgar onde
repousava em andaimes. Aí acontecia o moroso processo de evaporação, depu-
134 . ARM, Misericórdia do Funchal, livro 41, fls. 307-310vº, 29 de Dezembro.
ração do melaço que termina com os pães de açúcar branco. A prova está no
135 . ARM, JRC, fls 350-355vº, 19 de Abril inventário do engenho de António Teixeira em 1535, onde se dá conta de 2 caldeiras de cobre, uma Hamilton Fernandes, 1959,
136 . Ibidem, fls. 300-320vº., 25 de Outubro. tacha grande e uma de receber. A tudo isto juntava-se um conjunto variado de apetrechos como Fundaj (Recife)
137 . ARM, Capelas, cx.17, nº.402, 25 de Novembro
138 . ANTT, PJRFF, nº.968, fls.70-71, 5 de Fevereiro de 1687; ibidem, nº. 966, fls. 452vº-453, 7 de Janeiro de 1688
coadura, escumadeira, repartideira, batedeira, raminhões149.
139 . Escavações nas Casas de João Esmeraldo. Cristóvão Colombo, 1989 (1ª fase), Funchal, 1989; Mário Varela Gomes e Rosa
Varela Gomes, Intervenção Arqueológica in Escavações nas Casas de João Esmeraldo- Cristóvão Colombo. Catálogo, Funchal,
1989; Rui Carita, Escavações na Casa de João Esmeraldo, in Islenha, nº.5, 1989, 109-118; Élvio Sousa, O Núcleo Arqueológico 144. Manuel Thomas, Insulana, Amberes, 1635, p.474, estrofe 82.
da Junta de Freguesia de Machico, in ILHARQ, nº.1, 2001, p.23; IDEM(coord.)A propósito do Solar do Ribeirinho, Machico, 145. LIPPMANN, von, Edmund O., Geschichte des Zuckers, Berlin, 1890, 1929 (ed. Portuguesa, R. Janeiro, 1941), Julio Le Riverend
2000; IDEM, Escavações arqueológicas no solar do Ribeirinho(Machico-Ilha da Madeira, in Al-Maden, nº.9, Almada, 2000 Brussone, História del Azúcar antes Del Descubrimiento de América, Revista Bimestre Cubana, t. LIX, 1948, p.198; Fernando
140 . ibidem, p.28 Sandoval, La Industria del Azúcar en Nueva España, México, 1951.
141 . Cf. David Ferreira de Gouveia, O Açúcar da Madeira, in Atlântico, 4, 1985, nota 11. 146. Regimento de 10 de Janeiro de 1512, AHM, XVIII, 1974, p.542
Diderot e Alembert, 1762
142 . 27 de Março de 1501, AHM, XVII, 1973, pp.409-413, p.421. Cf. Pieter Honig, Principios de Tecnologia Azucarera, México, 147. Claudio Torres, A Industria do Açúcar nos Alvores da Expansão Atlântica, Actas del Segundo Seminario Internacional – La
1969, pp.323, 358-360, 425. Caña e Azúcar en el Mediterráneo, Motril, 1990, pp.183-210
143 . Carta do Duque de 12 de Novembro de 1483, AHM, XV, 1972, p.133; carta régia de 2 de Abril de 1505, AHM, vol. XVII, 1973, 148. António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, pp.85-86.
p.455; Regimento de 8 de Setembro de 1507, AHM, XVIII, 1974, p.495 149. Cf. David Ferreira de Gouveia, O Açúcar da Madeira, in Atlântico, 4, 1985, pp.263-266

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O processo de fabrico do açúcar estava sujeito a um rigoroso controlo por parte dos aleal- Apanha da
cana, 2002
dadores150. A eles competiam fiscalizar a qualidade do açúcar laborado em todos os engenhos. A
palavra lealdar, tal como outras da tecnologia açucareira, passou para as Canárias151. As normas
eram rigorosas e proibiam o uso no comércio dos pães de açúcar quebrado. A qualidade do açúcar
laborado dependia das dimensões das formas. Sabe-se em princípios do século XVI que eram
muito grandes o que impedia que a purga fosse bem feita. Deste modo estabeleceu-se uma bitola
para medir todas as formas importadas, fazendo com que seis pães correspondessem a uma arro-
ba152.
A Madeira foi um marco importante na evolução e afirmação do açúcar no espaço atlântico. O
nome da ilha está associado ao açúcar e ao complexo sócio-económico que o serviu. Toda a estru-
tura serviu de matriz ao que sucedeu nos demais espaços açucareiros. O contributo madeirense não
terá ficado somente pela acção divulgadora não terá ficado apenas pela difusão das socas de cana
e respectiva tecnologia de transformação. Por outro lado a ilha foi um marco na afirmação e pro-
dução em larga escala da cultura, situação que se repercutiu de forma evidente na tecnologia que
acompanhou a evolução. Apenas a falta de dados documentais mais seguros e explícitos nos
impede de avançar mais.
A presença de barro na Madeira e Porto Santo é evidenciada pela toponímia. A disponibilidade
nunca foi suficiente para as necessidades internas, uma vez que à procura para o fabrico de uten-
sílios domésticos e telha dita romana, havia nos séculos XV e XVI a utilização no fabrico de açú-
car, quer para formas, quer na fase de purificação. A situação obrigou a coroa a tomar medidas na
defesa dos barreiros e lamaceiros e só quando terminou a exploração açucareira ficou livre o uso.
De acordo com as posturas do século XVI podia-se adquirir potes, alguidares, panelas, tigelas,
vasos, púcaros, fogareiros, luminárias, cangirões, mealheiros, talhas. No Funchal existiam olarias e
o testemunho da actividade permaneceu na toponímia da cidade, a rua da Olaria. Para o século
XIX conhecem-se olarias no Funchal, Machico Santa Cruz, Ponta de Sol, Calheta e Boaventura.

150. Regimento dos alealdadores de 27 de Março de 1501, AHM, XVII,1973, pp.409-416.


151. Cf. Maria Luisa Fabrellas, La Producción de Azúcar en Tenerife, Revista de Historia, nº.100, 469.
152. Carta régia de 2 de Setembro de 1501, AHM, XVII, 1973, pp.409-413, p.421.

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Safra. Calheta. 2002

O ENGENHO OU CASA DE MOER

Levanta-se à borda do rio sobre dezassete grandes pilares de tijolo, largos quatro pal-
mos, altos vinte e dois e, distantes um de outro, quinze, uma alta e espaçosa casa, cujo tecto
coberto de telha assenta sobre tirantes, frechais e vigas de paus que chamam de lei, que
são dos mais fortes que há no Brasil, a quem nenhuma outra terra leva nesta parte van-
tagem, com duas varandas ao redor, uma para receber cana e lenha, outra para guardar
madeiras usuais de sobresselente. E a esta chamam casa da moenda, capaz de receber
comodamente quatro tarefas de cana, sem perturbação e embaraço dos que necessaria-
mente hão-de lidar na dita casa e dos que por ela passam, sendo caminho aberto para qual-
quer outra oficina e particularmente para as casas imediatamente contíguas das fornalhas
e das caldeiras, contando de comprimento todo este edifício cento e noventa e três palmos
e oitenta e seis de largo. Mói-se nesta casa a cana com tal artifício de eixos e rodas que bem
merece particular reflexão e mais distinta notícia.
Tomam para mover a moenda do rio acima, onde faz a sua queda natural a que
chamam levada, que vem a ser uma porção bastante de água do açude ou tanque que para
APANHA DA CANA isso tem, divertida com represas de pedra e tijolo do seu curso e levada com declinação
moderada por um rego capaz e forte nas margens, para que a água vá unida e melhor se
(...) Tanto, pois, que estiver de vez, se mandará pôr nela a foice, tendo já certo o dia em conserve, cobrando na declinação cada vez maior ímpeto e força, com seu sangrador para
que se há-de moer, para que não fique depois de cortada a murchar-se no engenho ou se a divertir, se for necessário, quando por razão das chuvas ou cheias viesse mais do que se
não seque exposta ao sol no porto, se este for distante da moenda (...). E o senhor do enge- pretende e com outra abertura para duas bicas, uma que leva água para a casa das Diderot e Alembert, 1762
nho é o que reparte os dias, assim para moer a sua cana como a dos lavradores, conforme caldeiras e outra que vai a refrescar o aguilhão da roda grande dentro da moenda, servin-
cabe a cada qual por seu turno e manda o aviso pelo feitor a seu tempo (...). do-se para a comunicar ao outro aguilhão de uma tábua e assim vai a entrar no cano de
O modo de cortar é o seguinte: pega-se com a mão esquerda em tantas canas quantas pau que chamam caliz, sustentado de pilares de tijolo e na parte superior descoberto, cujo
pode abarcar e com a direita armada de foice se lhe tira a palha, a qual depois se queima, extremo inclinado sobre os cubos da roda se chama feridor, porque por ele vai a água a
ou pela madrugada, ou já de noite, quando, acalmando o vento, der para isso lugar e serve ferir os ditos cubos, donde se origina e continua o seu moto. Assentam os aguilhões do
para fazer a terra mais fértil; logo, levantando mais acima a mão esquerda, botam-se fora eixo desta roda, um pela parte de fora e outro pela parte de dentro da casa da moenda,
com a foice os olhos da cana e estes dão-se aos bois a comer; e, ultimamente, tornando com sobre seus chumaceiros de pau com chapa de bronze e a estes sustentam duas virgens ou
a esquerda mais abaixo, corta-se rente ao pé, e quanto a foice for mais rasteira à terra, me- esteios de fora e duas de dentro, com seu brinquete, que é a travessa em que os aguilhões
lhor. Quem segue ao que corta (que comummente é uma escrava) ajunta as canas limpas se encostam; e sobre estes, como dissemos, vai sempre caindo uma pequena porção de
como está dito, em feixes, a doze por feixe, e com os olhos delas os vai atando e assim ata- água para os refrescar, de sorte que pelo contínuo moto não ardam, temperando-se com
dos vão nos carros ao porto ou, se o engenho for pela terra dentro, chega o carro à moen- água suficiente o calor.
da. As aspas da roda larga e grande sustentam os arcos ou círculos dela e dentro aparecem
(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711) os cubos ou covas feitas no meio da roda e unidos um a outro com o fundo fechado do

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forro interior da mesma roda entre os dois arcos dela, assegurados com muitas cavilhas (para falarmos com a língua dos oficiais) tem seu pescoço e cabeça alta, conforme a altura
de ferro e com suas arruelas e chavetas metidas e atravessadas para enchavetar as pontas do engenho e comummente ao todo vem a ter o dito eixo doze palmos de alto, cuja cabeça,
das cavilhas, causa de não bulirem os arcos nem os cubos ao cair da água e de ir a roda de dois palmos e meio, mais delgada que o pescoço, entra por um pau furado, que chamam
com suas voltas segura. Perto da roda, pela banda de fora, estão dois esteios altos e grossos porca, sustentado de duas vigas de quarenta e dois palmos, as quais assentam sobre qua-
com três travessas, asseguradas também de outra parte, uma das quais sustenta a extremi- tro esteios altos, dezassete palmos, e grossos, quatro, com suas travessas proporcionada-
dade do caliz, duas o feridor e outra o pejador do engenho. É o pejador uma tábua, pouco mente distantes. E ainda que os outros dois eixos menores não têm pescoço, contudo, pela
mais larga que a roda, de dez ou doze palmos de comprimento, com suas bordas, seme- parte de cima entram quanto basta, com sua ponta ou aguilhão, por uns paus furados, que
lhante a um grande tabuleiro debaixo do feridor, com uma cavilha chavetada, de sorte que chamam mesas ou gatos, com que ficam direitos e seguros em pé. Os corpos dos três eixos
se possa jogar e bulir com ela sem resistência e por isso se faz o buraco da cavilha bas- da metade para baixo são vestidos igualmente de chapas de ferro unidas e pregadas com
tantemente largo e na parte inferior tem no lado que se vai encostar à parede da moenda pregos feitos para este fim, com a cabeça quadrada e bem entrante, para se igualarem com
um espigão de ferro preso também com uma argola de ferro que, entrando por uma aber- as chapas, debaixo das quais os corpos dos eixos são torneados com tornos de paus de lei,
tura pela dita parede com sua mão ou cabo, em o qual se encavilha sobre um esteio que para que fique a madeira mais dura e mais capaz de resistir ao contínuo aperto que há-de
chamam mourão, à maneira de engonços, fica à disposição de quem está na moenda a padecer no moer. Sobre as chapas aparece um circulo ou faixa de pau, que é a outra parte
mandá-la parar ou andar, como quiser, empurrando ou puxando pelo pejador, o qual, do corpo dos mesmos eixos despida de ferro e logo imediatamente se segue o círculo dos
pondo-se sobre os cubos, impede o feridor o dar-lhe o moto com a queda da água; e, tor- dentes de pau de lei, encaixados nos eixos com suas entrosas (que são umas cavaduras ou
nando a descobrir os cubos, torna a mover-se a roda e com a roda a moenda. E isto é muito vãos repartidos entre dente e dente) para entrarem e saírem delas os dentes dos outros
necessário em qualquer desastre que pode acontecer para lhe acudir depressa e atalhar os eixos colaterais, que para isso são em tudo iguais os dentes e as entrosas, a saber, os dentes
perigos. E chamam a esta tábua pejador, porque também ao parar do engenho chamam na grossura e na altura e as entrosas na largura e profundeza do encaixamento ou vazio,
pejar, porventura por se pejar um engenho real de ser retardado ou impedido, ainda por que comummente saem do corpo do eixo, comprimento de cinco ou seis dedos, de largu-
um instante e de não ser sempre, como é razão, moente e corrente. E isto quanto à parte ra de uma mão, e de quatro ou cinco dedos de costa, de forma quase chata e nos extremos
exterior da moenda, onde principia o seu movimento. redonda. E ainda que entre dente e dente dos eixos menores haja espaço medido por com-
Entrando, pois, na casa interior, o modo com que se comunica o moto por suas partes passo de igual medida, que é um palmo grande, os do eixo maior têm de mais a mais tanto
à moenda é o seguinte: o eixo da roda grande que, como temos dito, pela parte de fora, se espaço além do palmo quanto ocuparia a grossura de uma moeda de dois cruzados e isto
mete dentro da casa do engenho tem no seu remate interior chegado aonde assenta o se faz para que estejam em sua conta e não entrem no mesmo tempo os dentes dos eixos
aguilhão, sobre o brinquete e esteios, um rodete fixo e armado de dentes que o cerca e colaterais, mas um se siga atrás de outro e desta sorte se continue em todos três o moto
este, virado ao redor pelo caminho do dito eixo, apanha, sucessivamente, na volta que dá que se pretende. E por isso também os dentes e as entrosas de um eixo se hão-de desen-
com seus dentes, outros de outra roda superior, também grande, que chamam volandeira, contrar dos dentes e entrosas de outro, a saber, ao dente do eixo grande há-de correspon-
Formas de açúcar, Itu. Brasil
porque o seu modo de andar circularmente no ar sobre a moenda se parece com o voar der a entrosa do pequeno e ao dente do pequeno a entrosa do grande. São os dentes (como
de um pássaro quando dá no ar seus rodeios. Os dentes do rodete que eu vi eram trinta e dizia) na parte que sai fora do eixo algum tanto chatos e no fim quase redondos, largos
dois e os da volandeira cento e doze. E porque as aspas da volandeira passam pelo pescoço quatro ou cinco dedos e outro tanto grossos e entram quase outros quatro dedos pela sua
do eixo grande da moenda, por elas se lhe comunica o impulso e este, recebido do dito raiz no eixo, aonde se seguram, além da parte com que fazem parede às entrosas, que são
eixo grande, cercado de entrosas e dentes, se comunica também a outros dois eixos na mesma conta quatro ou cinco dedos profundas. Sobre os dentes dos eixos menores fica
menores que tem de ambas as ilhargas, dentados e abertos igualmente com suas entrosas, a terceira parte do pau descoberta e se remata a modo de degraus em dois círculos me-
do mesmo modo que temos dito do grande, e com estes dentes e entrosas se causa o moto, nores vestidos de duas argolas de ferro de grossura de um dedo e meio, largura de três
com que uniformemente o acompanham. dedos e na ponta do pau se vaza de tal sorte que entre nele uma bucha quadrada de dois
As aspas da volandeira são oito, quatro superiores e quatro inferiores e as inferiores ou três palmos, de sapupira mirim, a qual bucha também em parte se vaza e nela se
têm suas contra-aspas para maior segurança. Os três eixos da moenda são três paus redon- encaixa o aguilhão de ferro, comprimento de três palmos, grossura de um caibro, à força
dos de corpo esférico, alto nos menores iguais cinco palmos e meio, e no maior, que é o de pancadas com um vaivém de ferro. E para melhor segurança do aguilhão e da bucha se
Diderot e Alembert, 1762
do meio, alto seis palmos e também de esfera maior que os outros e por eleição o melhor, abre na cabeça dos quatro lados da bucha com uma palmeta de ferro à força de pancadas
porque jogando com os dois, que nas ilhargas continuamente o apertam, gasta-se mais que do vaivém e se lhe metem umas palmetas ou cunhas menores de pau de lei para não aluir.
os outros, e por isso por boa regra os menores têm nove dentes e o maior onze e só este E pelo mesmo estilo de degraus e argolas, bucha e aguilhão, com que temos dito, se rema-

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Moenda a vapor. Diderot e MOENDA DAS CANAS


Engenho Hinton Alembert, 1762

Moem-se as canas metendo algumas delas limpas da palha e da lama (que para isso se
for necessário se lavam) entre dois eixos, aonde apertadas fortemente se espremem,
metendo-se na volta que dão os eixos os dentes da moenda nas entrosas para mais as aper-
tar e espremer entre os corpos dos eixos chapeados que vem a unir-se nas voltas e, depois
delas passadas torna-se de outra parte a passar o bagaço para que se esprema mais e de
todo o sumo ou licor que conserva. E este sumo (ao qual depois chamam caldo) cai da
moenda em uma cocha de pau que está deitada debaixo da ponte dos aguilhões e daí corre
por uma bica a um parol metido na terra, que chamam parol do caldo, donde se guinda
com dois caldeirões ou cubos para cima com roda, eixo e correntes e vai para outro parol
que está em um sobradinho alto, a quem chamam guinda, para daí passar para a casa das
caldeiras, aonde se há-de limpar.
(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

CASA DAS CALDEIRAS

ta a parte superior dos dois eixos menores, se rematam também as partes inferiores de Nos engenhos reais costuma haver seis fornalhas e nelas outros tantos escravos assistentes
todos os três, ajuntando de mais a cada aguilhão seu pião de ferro calçado de aço da que chamam metedores de lenha. As bocas das fornalhas são cercadas com arcos de ferro,
grossura de uma maçã, que também se encaixa pela parte superior até dois dedos dentro não só para que sustentem melhor os tijolos, mas para que os metedores no meter da lenha
do aguilhão e pela parte inferior põem a ponta sobre outro ferro chato que chamam man- não padeçam algum desastre. Tem cada fornalha sobre a boca dois bueiros, que são como
cal, de comprimento de um palmo, também calçado de aço, para que se não fure com o duas ventas, por onde o fogo resfolega. Os pilares que se levantam entre uma e outra hão-de
continuo virar que sobre ele faz o pião. E todos estes três eixos ou corpos da moenda aonde ser muito fortes, de tijolo e cal, mas o corpo das fornalhas faz-se de tijolo com barro, para
chega o pião ao mancal assentam sobre um pau que chamam ponte, de comprimento de resistir melhor à veemente actividade do fogo, ao qual não resistiria nem a cal nem a pedra
quinze ou dezasseis palmos, e para sustentar toda a moenda forte e segura servem quatro mais dura e as que servem para as caldeiras são alguma coisa maiores que as que servem
virgens, que são quatro esteios, altos da terra nove palmos e grossos sete, semelhantes no para as tachas (...).
seu ofício de suster aos que sustentam as vigas grandes e a porca ou pau furado, por onde A cinza das fornalhas serve para fazer decoada e esta para limpar o caldo da cana nas Trapiche vertical hidráulico e eólico. Jean
Baptiste Labat, 1722
passa a ponta do eixo grande, que sobre os outros colaterais se levanta até à dita altura caldeiras e para que saia o açúcar mais forte. Para isso, arrasta-se com rodo de ferro até à
como parte principal da moenda. Sobre estas virgens de ponta a ponta vão uns paus que boca das fornalhas pouco a pouco a cinza e borralho e daí com uma pá de ferro se tira e se
chamam mesas, quase um palmo de grossura e vinte de comprimento, sobre as quais des- leva sobre a mesma pá para o cinzeiro, que é um tanque de tijolo sobre pilares de pedra e
cansam as travessas que chamam gatos em que se movem os eixos pela parte superior e cal, de figura quadrada, com suas paredes ao redor e aqui se conserva quente e, assim
sobre estes vai outro andar ao comprido, de tábuas que chamam agulhas as quais servem quente, se põe nas tinas, que para isso estão levantadas da terra sobre uns esteios de três pal-
para segurar as cunhas com que se aperta a moenda. mos. Aí, depois de bem caldeada e arrumada, se lhe bota água, tirada de um tacho grande
O lugar aonde se põem os feixes da cana que imediatamente há-de passar para se espre- que está fervendo sobre a sua proporcionada fornalha perto do cinzeiro. E para isso serve a
mer entre os eixos são dois tabuleiros, um de uma parte e outro de outra, que têm seus água que passa pela bica que vai à casa das caldeiras; e coando esta água pela cinza, até pas-
encaixes ou meios círculos ao redor dos eixos da moenda, afastados deles tanto quanto sar pelos buracos que têm as tinas no fundo, cobra o nome de decoada e vai cair nas formas
basta para não lhes impedir suas voltas. E o estarem os tabuleiros chegados aos eixos é ou vasilhas enterradas até à metade e daí se tira com um coco e se passa em um tacho para
para que não caía a cana ou o bagaço dela perto dos aguilhões e retarde de algum modo a casa das caldeiras, aonde se reparte pelas formas que estão postas entre as caldeiras e serve
os piões e para que se não suje o caldo que sai da cana moída. para os caldeireiros ajudarem com ela ao caldo, como se dirá em seu lugar (...).

(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711) (Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ficam na casa da moenda) de duas caldeiras, a saber, da do meio e da outra de melar, de


um parol da escuma, de um parol grandes que chamam parol do melado, e de outro
menor, que se chama parol de coar; de um terno de tachas, que são quatro, a saber, a de
receber, a da porta, a de cozer e a de bater e, finalmente, de uma bacia que serve para
repartir o açúcar nas formas e, de outros tantos cobres de igual ou pouco menor
grandeza, consta outro andar semelhante (...).
As pessoas que assistem nesta casa são o mestre do açúcar, o qual preside a toda a obra
e corre por sua conta julgar se o caldo está já limpo e o açúcar cozido e batido quanto
pede, para estar em sua conta; assiste às temperas e ao repartimento delas nas formas,
além do que lhe cabe fazer na casa de purgar, de que falaremos no seu próprio lugar. (...).
Revezam-se nas caldeiras oito caldeireiros, divididos em duas esquipações, um em
cada uma, de assistência contínua até entregá-la ao seu sucessor, escumando o caldo que
ferve com cubos e tachos. Obrigação de cada caldeireiro é escumar três caldeiras de
caldo, que chamam três meladuras, e a última se chama de entrega, porque a deve dar
meio limpa ao caldeireiro que o vem render. E para estas três meladuras lhe há-de dar a
guindadeira o caldo que há mister a seu tempo, a saber, acabado de escumar e limpar
uma meladura dar-lhe outra (...).
Os instrumentos de que se usa na casa das caldeiras são escumadeiras, pombas, rem-
inhões, cubos, passadeiras, repartideiras, tachos, vasculhos, batedeiras, bicas, cavadores,
espátulas e picadeiras. Das escumadeiras e pombas grandes usam os caldeireiros; servem Diderot e Alembert, 1762
as escumadeiras para limpar; as pombas para botar o caldo de uma caldeira para outra,
ou da caldeira para o parol, e por isso os cabos, assim de umas como de outras, têm
catorze ou quinze palmos de comprido, para se poderem menear bem. Os reminhões
servem para botar água e decoada nas caldeiras e para ajudar os tacheiros a botar o açú-
Cadeira. L. Beaudet, 1894 car na repartideira, para ir às formas. Das escumadeiras mais pequenas, batedeiras e pas-
Engenho Porto da Cruz sadeiras, picadeiras e vasculhos usam os tacheiros; da repartideira, cavador e espátulas,
o banqueiro e o ajuda-banqueiro; e dos tachos, cubos e bica usa a calcanha para tirar a
escuma do seu próprio parol e para torná-la a pôr na caldeira. Serve o vasculho para tirar
CASA DOS COBRES alguma imundície ao redor das tachas; a picadeira, para tirar o açúcar que está como gru-
dado nas mesmas tachas e o cavador, para fazer no bagaço do tendal as covas, aonde se
Estão estes cobres postos sobre a abóbada das fornalhas em assentos ou encostadores põem as formas.
de tijolo e cal ao redor, abertos de tal sorte que, com o fundo que metem dentro da mesma (Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)
fornalha, tapa cada qual a abertura em que se recebe e entra por ela proporcionadamente
ao corpo que tem, a saber, menos as tachas e muito mais as caldeiras. E assim como tem
sua parede que divide uma de outra e outra parede que divide esta casa da outra contígua
do engenho, assim tem diante de si um ou dois degraus por onde se sobe a obrar neles com
os instrumentos necessários nas mãos e com bastante espaço para dominar sobre eles com
ajustada altura e distancia e ao redor de toda a parede dianteira, com caminho desafoga-
do no meio, esta o tendal das formas em que se bota o açúcar já cozido a coalhar e é capaz
de oitenta e mais formas.
Consta um terno ou ordem de cobres (além do parol do caldo e do parol da guinda que

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

LIMPEZA E PURIFICAÇÃO DO CALDO O COZER E BATER DO MELADO


Guindando-se o sumo da cana (que chamam caldo) para o parol da Estando já o caldo purificado e coado, passa a cozer-se nas tachas, ajudadas de maior
guinda, daí vai por uma bica entrar na casa dos cobres e o primeiro fogo e chama da que hão mister as caldeiras, contanto que os fundos tenham a grossura
lugar em que cai é a caldeira, que chamam do meio, para nela ferver bastante para resistir à maior actividade que neste lugar se requer. E se o melado se lev-
e começar a botar fora a imundície com que vem da moenda (...). antar de sorte que ameace transbordar botando-lhe um pouco de sebo logo amaina e se
Saída a primeira escuma por si mesma, começam os caldeireiros cala (...).
com grandes escumadeiras de ferro a escumar o caldo e ajudá-lo e Passando, pois, o melado do parol de coar para o terno das tachas, corre por cada uma
chamam ajudar o caldo o botar-lhe de quando em quando já um rem- delas ordenadamente e pára em cada uma quanto for necessário e não mais para o fim que
inhol de decoada, já outro de água que aí tem perto: a água nas tinas em cada qual se pretende. Na primeira tacha, que se chama a de receber, ferve e começa
e a decoada nas formas. Serve a água para lavar o caldo e a decoada a cozer-se e se lhe tiram as escumas mais finas, que chamam netas, e se botam com uma
para que toda a imundície que resta na caldeira venha mais depressa pequena escumadeira em uma forma que aí está posta e, se as quiserem aproveitar, como
arriba e não assente no fundo. Serve também para condensar o açú- é bem, farão delas, no fim da semana, um pão de açúcar somenos, porque esta escuma não
car e fazê-lo mais forte, incorporando-se com o caldo, do modo que se torna à tacha como torna a do caldo às caldeiras. Da tacha de receber, aonde está pouco
incorpora o sal com a água. Esta segunda escuma se guarda e cai por tempo, passa-se o melado com uma passadeira de cobre (que é do feitio de uma pomba
outra bica da mesma borda do ladrilho para o parol mais baixo e afas- pequena) para a segunda tacha, que chamam da porta, e aqui, continuando a ferver e
tado do fogo, que se chama parol da escuma, e daí, com cubo e tacho engrossar, se lançar de si para a borda alguma imundície, tira-se e limpa-se ao redor com
torna a botá-lo a negra calcanha que tem isto por ofício na mesma um vasculho, que é como um pincel ou escova de embira, amarrado na ponta de uma vara,
caldeira, para se purificar, que chamam repassar, e vai por uma bica e nesta tacha se deixa estar mais tempo, até ficar já meio cozido. Daqui, com a mesma pas- Diderot e Alembert, 1762
Engenho.
Azulejo no Museu Republicano. Itu(Brasil) de pau, encavilhada sobre um esteio de igual altura das caldeiras (a sadeira, se bota na terceira tacha, que chamam de cozer, porque, ainda que nas outras tam-
que chamam viola, por imitar no feitio este instrumento), larga no corpo ou parte em que bém se coza, contudo aqui acaba de se cozer e de se condensar perfeitamente, até estar em
recebe a escuma e estreita no cano por onde cai na caldeira. E tanto que o caldo aparece seu ponto para se bater e isto o há-de julgar o mestre ou em seu lugar o banqueiro, pelo
bem limpo (o que se conhece pela escuma e pelos olhos e empolas que levanta, cada vez corpo e grossura que tem. E, estando desta sorte, chama-se mel em ponto, grosso suficien-
menores e mais claros), com uma pomba grande (que é um vaso côncavo de cobre, com temente e compacto e já disposto para passar à quarta tacha, que chamam tacha de bater,
seu cabo de pau comprido doze ou quinze palmos) o botam na segunda caldeira, que aonde se mexe com uma batedeira, que é semelhante à escumadeira, mas com seu beiço
chamam de melar, e aqui se acaba de purificar, com o mesmo benefício de água e decoa- e sem furos, e bate-se para se não queimar e, quando o tem bem batido e com bastante coz-
da até ficar totalmente limpo. Deixa-se limpar o caldo na caldeira do meio comummente imento, o levantam com a mesma batedeira sobre a tacha ao alto que pode ser, e a isso
pelo espaço de meia hora e já meio purgado passa a cair na caldeira de melar por uma hora chamam desafogar, no que os tacheiros mostram destreza singular e continuam assim
ou cinco quartos, até acabar de se escumar, e nunca se tira todo o caldo das caldeiras, por mais ou menos, conforme pedem as três temperas que se hão-de fazer do açúcar que há-
razão dos cobres, que padeceriam detrimento do fogo, mas se lhes deixa dois ou três pal- de ir para as formas, das quais temperas, (...).
mos de caldo e sobre este se bota o novo. A escuma também desta segunda caldeira vai ao
parol da escuma e daí torna para a primeira ou segunda caldeira até ao fim da tarefa e (Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)
Tacha encamisada de fundo duplo.
desta escuma tomam os negros para fazerem sua garapa, (...). À derradeira escuma da últi-
Louis Figuier, 1876 ma meladura, que é a última purificação do caldo, chamam claros e estes, misturados com
água fria, são uma regalada bebida para refrescar e tirar a sede nas horas em que faz maior
calma. Finalmente, tanto que o mestre do açúcar julgar que a meladura está limpa, o
caldeireiro com uma pomba bota o caldo, a que já chamam mel, no parol grande, que cha-
mam parol do melado, e está fora do fogo, mas junto à mesma caldeira, donde o coam para
outro parol mais pequeno, que chamam parol de coar, com panos coadores estendidos
sobre uma grade.
(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O TEMPERAR DO MELADO

Chama-se, a primeira, tempera de principiar ou tem-


pera de bacia, a qual consta de mel solto porque tem
menos cozimento e é o primeiro que se tira da tacha de
bater logo no princípio e se bota em uma bacia fora do
fogo, a par das tachas com a batedeira, aonde se mexe
com espátula ou com reminhol virado com a boca para
baixo. E tendo já o banqueiro ou o ajuda-banqueiro
aparelhado quatro ou cinco formas no tendal dentro de
umas covas de bagaço, com seu buraco fechado e igual-
mente altas, às quais chamam venda, se passa esta tem-
pera com reminhol dentro de uma repartideira e a
reparte pelas ditas quatro ou cinco formas o banqueiro Modelo e forma, propriedade de José Elias Matos Pacheco. Itu, Brasil
ou o ajuda-banqueiro ou algum tacheiro, porém, com
ordem do mestre, botando igualmente em cada uma delas a sua porção, de sorte que fique
lugar para receber as outras duas temperas que logo se hão-de seguir. AS FORMAS E A PURGA
A segunda chama-se tempera de igualar e tem maior cozimento porque o mel que traz
esteve mais tempo na tacha de bater e aí mexido e engrossado foi mais batido. E esta tam- São as formas do açúcar uns vasos de barro queimado na fornalha das telhas e têm algu-
bém tirada da tacha e posta e mexida com reminhol na bacia passa para as ditas quatro ma semelhança com os sinos, altas três palmos e meio e proporcionadamente largas, com
formas na repartideira e com igual porção se reparte por elas, aonde com espátulas se maior circunferência na boca e mais apertadas no fim, aonde são furadas, para se lavar e
mexe mais que a primeira. purgar o açúcar por este buraco.
Segue-se por último a terceira, que chamam tempera de encher, a qual tem já todo o O serem de ruim barro e mal queimadas é defeito notável, como também o serem
cozimento e grossura necessária e com ela passada para a bacia e mexida ainda mais com pequenas. As boas são capazes de dar pães de três arrobas e meia. Tem nas casas da
reminhol e levada na repartideira para o tendal, se enchem as formas, continuando com caldeira seu tendal cheio de bagaço de cana que vem da bagaceira, o qual, cavado com um
a espátula a mexer nelas todas as três temperas, de sorte que perfeitamente se incorporem cavador de ferro ou de pau, serve de cama ou cova para nele se assentarem as formas dire-
e de três se faça um só corpo. Este benefício é tão necessário que sem ele o açúcar posto itas em duas fileiras iguais e, como temos dito acima, de cada quatro ou cinco formas cons-
nas ditas formas não se poderia depois branquear e purgar, porque se se botasse nas for- ta uma venda. Antes de botar nelas o açúcar, se lhes tapa o buraco que tem no fundo com
mas só a tempera que tem cozimento perfeito coalharia e se condensaria de tal sorte que seus tacos de folha de banana e se asseguram com arcos de cipó e cana brava, para que
não poderia passar por ele a água que o há-de lavar depois de ser barreado. E se a tempera com a demasiada quantidade do açúcar não arrebentem. Logo se lhes bota o açúcar por
fosse totalmente solta escorreria todo o açúcar das formas na casa de purgar e se desfaria temperas, como já temos dito, o qual no espaço de três dias endurece diversamente, um Tirar dos pães.
todo em mel. E, assim, com a mistura das três temperas se coalha de tal sorte que fica mais, outro menos, e ao que mais se endurece e dificultosamente se quebra chamam açú- Gravuras do séc. XIX
lugar à água de passar pouco a pouco, conservando-se o açúcar denso e forte e recebe o car de cara fechada e ao que facilmente com qualquer pancada se quebra chamam açúcar
benefício de se branquear sem o prejuízo de se derreter, senão quanto basta para per- de cara quebrada (...).
feitamente se purgar.
(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)
(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

A CASA DE PURGAR car, o número das arrobas e o sinal do engenho em que se fez e encaixou.
(...) Chegado ao engenho põe-se em lugar separado e daí passa a secar-se dentro da casa
A casa de purgar é comummente separada do edifício do engenho (...), fabricada de pedra das fornalhas sobre um andar de paus segurado com esteios que chamam jirau, sobre o
e cal, emadeirada com paus de maçaranduba e coberta com todo o asseio de telhas de com- cinzeiro quando tem seu borralho, que é a cinza misturada com brasas (...).
primento de quatrocentos e quarenta e seis palmos e oitenta e seis de largura dividida em Entrando as formas na casa de purgar, se deitam sobre as andainas e se lhes tira o taco
três carreiras de andainas com vinte e seis pilares de tijolo no meio, altos quinze palmos e que lhes meteram no tendal e logo, com um furador agudo de ferro, de comprimento de dois
meio e largos quatro, para sustentarem o tecto que assenta ao redor sobre paredes largas e palmos e meio, se furam os pães à força de pancadas, usando para isso do macete, e furados
fortes. Recebe esta casa a luz e ar necessário por cinquenta e duas janelas, altas oito palmos se levantam e endireitam as formas sobre as tábuas que chamam de furos, entrando por eles
e largas seis, vinte e três de cada banda, três na fachada com sua porta e três na testada. quanto basta para se susterem seguras e assim se deixam por quinze dias sem barro,
Repartem-se as andainas por quartéis de tábuas abertas em redondo sobre pilares de tijolo, começando logo a purgar e pingando pelo buraco que tem o primeiro mel, o qual, recebido
altos da terra sete palmos, e leva cada tábua dez destas aberturas para receber outras tantas debaixo nas bicas, corre até dar no seu tanque. Este mel é inferior e dá-se no tempo do In-
formas, de sorte que por todas são capazes de purgar comodamente no mesmo tempo até verno aos escravos do engenho repartindo a cada qual cada semana um tacho e dois a cada
dois mil pães. Debaixo das ditas tábuas assim abertas há outras tantas tábuas do mesmo casal, que é o melhor mimo e o melhor remédio que têm. Outros, porém, o tornam a cozer
comprimento, cavadas à maneira de regos e inclinadas na parte dianteira que servem de ou o vendem para isso aos que fazem dele açúcar branco batido ou estilam aguardente.
bicas ou correntes, por onde corre o mel que cai dos buracos das formas em que se purga o Passados os quinze dias, daí por diante se pode barrear seguramente, o que se faz deste
açúcar aos tanques enterrados e há no fim uma fornalha para o cozer e tornar a fazer dele modo: cavam primeiro as quatro escravas purgadeiras com cavadores de ferro no meio da
açúcar com seu tendal capaz de quarenta formas. Há também na entrada à mão esquerda cara da forma (que é a parte superior) o açúcar já seco e logo o tornam a igualar e entaipar
da porta uma casinha de madeira para nela guardar o açúcar que sobejou ao encaixar e muito bem com macetes; botam-lhe então o primeiro barro, tirando-o com um reminhol dos
quantos instrumentos são necessários para barrear, mascavar, secar e encaixar e o primeiro tachos que vieram cheios dele do seu cocho, estando já amassado em sua conta e com a
espaço da casa de purgar, capaz de trezentas caixas, antes de chegar às andainas das formas, palma da mão o estendem sobre toda a cara da forma, alto dois dedos. Ao segundo ou ter-
serve da caixaria mais resguardada e segura, com a porta ao poente, para que, gozando toda ceiro dia botam em riba do mesmo barro meio reminhol ou uma cuia e meia de água e, para
a tarde do sol, defenda com seu calor ao açúcar do maior inimigo que tem depois de feito e que não caia no barro de pancada e caindo faça covas no açúcar, recebem sobre a mão
encaixado, que é a humidade. esquerda chegada ao barro a água que botam com a direita igualmente sobre toda a super-
Diante da porta da casa de purgar levanta-se sobre seis pilares um alpendre de oitenta e fície e logo com a palma da mão direita mexem levemente o barro, de sorte que com os
dois palmos de comprimento e vinte e quatro de largo, debaixo do qual está o balcão de mas- dedos não cheguem a bulir na cara do açúcar. E a este benefício chamam humedecer, bor-
cavar e da outra parte está o cocho para amassar o barro que se bota nas formas para pur- rifar e dar lavagens ou também dar humidades, e destas o primeiro barro não leva mais que
gar o açúcar e mais adiante o balcão para o secar, comprido oitenta palmos e largo cinquen- uma; e está na forma seis dias donde se tira já seco e cava-se outra vez o açúcar no meio,
ta e seis, sustentado de vinte e cinco pilares de tijolo, mais alto no meio e com bastante incli- como se fez ao princípio, e entaipa-se e com a mesma diligência se lhe bota o segundo barro,
nação nos lados para escorrer melhor a água que cair do céu e ser de mais dura (...). o qual está na forma quinze dias, e leva seis, sete e mais humidades conforme a qualidade
Os instrumentos de que se usa na casa de purgar são furadores de ferro para furar os pães do açúcar, porque o que é forte, quer mais humidades, resistindo à água que há-de correr por
em direitura do buraco das formas, cavadores, também de ferro, para cavar o pão no meio ele purgando-o, às vezes até nove e dez humidades. E, se for fraco, logo a recebe e fica em
da primeira cara, antes de lhe botar o primeiro e segundo barro, e macetes, para o entaipar. menos tempo lavado, mas disto não se alegra o dono do açúcar, porque antes o quisera mais
No balcão de mascavar usam de couros, para aventar sobre eles as formas, de facões e forte do que tão depressa purgado. Também no Verão é necessário repetir as lavagens mais
machadinhos, para mascavar, e de toletes, para quebrar o açúcar mascavado. No balcão de vezes, a saber, de dois em dois ou de três em três dias, conforme o calor do tempo, advertin-
secar são necessários facões, toletes e rodos e o pau quebrador de quatro lados de costa, para do de lhe dar estas lavagens antes que o barro chegue a abrir-se em gretas por seco. No tempo
quebrar os pães de açúcar. No peso: balanças, pesos de duas arrobas e outros menores, com do Inverno também se deixa o primeiro barro seis dias e alguns não lhe dão outra humidade
o da tara, pás e panacus. Na caixaria: pilões, rodo, pau de assentar, ao qual uns chamam mais que a que traz consigo, principalmente se forem dias de chuva. Porém, tirado o
moleque de assentar e, outros, juiz, enxó, verrumas, martelos e pregos, pé-de-cabra, para tirar primeiro e posto o segundo, dão-lhe seis, sete e oito humidades de três em três dias, conforme
Diderot e Alembert, 1762
Diderot e Alembert, 1762 pregos das caixas, e o gastalho, que serve para unir as tábuas rachadas ou abertas, metendo a qualidade do açúcar e conforme obedecer às ditas lavagens (...).
suas cunhas entre os lados da tábua e os dentes ou baraços do gastalho que a abraça por cima
e desce pelas ilhargas; e as marcas de ferro com que se marca e declara a qualidade do açú- (Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O TIRAR, MASCAVAR E SECAR

Preside a todo este benefício o caixeiro e corre por sua conta o que agora
direi: ao pé do balcão, que chamam de mascavar, se aventam as formas sobre
um couro, que vem a ser, bulir nelas devagar com as bocas viradas para o dito
couro, para que saiam bem os pães, os quais postos sucessivamente por um
negro sobre um toldo que está estendido sobre este balcão por mão de uma
negra (à qual chamam mãe do balcão) se lhes tira com um facão todo aquele
açúcar mal purgado e de cor parda que tem na parte inferior, e isto se diz mas-
cavar e ao tal açúcar chamam depois mascavado. E entretanto outra sua com-
panheira que é das mais práticas tira com um machadinho do mesmo mas-
cavado o mais húmido, que chamam pé da forma ou cabucho, e este torna
para a casa de purgar em outras formas até acabar de se enxugar e logo out-
ras negras quebram com toletes os torrões do mascavado sobre um toldo, que
também há-de ir ao balcão de secar (...).
Passando, pois, do balcão de mascavar para o balcão de secar: levam-se em
primeiro lugar para ele tantos toldos quantos são necessários para o açúcar
que naquele dia se há-de secar. E se for de diversos donos, se conhecerá a
repartição que cabe a cada qual, pelos toldos continuados na mesma fileira, se
pertencerem ao mesmo, ou descontinuados, se forem de diversos senhores; e
o que se diz do açúcar branco, se há-de dizer também do mascavado, repar-
tido pelo mesmo estilo nas suas próprias fileiras. Isto feito, levam os pães para
os toldos e com um pau grande e redondo no cabo em que se pega e no remate
de feitio chato, como uma lança sem ponta (ao qual chamam quebrador ou
moleque de quebrar), quebram em quatro partes os pães e cada uma destas em
outras quatro e logo outros com facões dividem as mesmas em torrões e estes
sucessivamente se tornam a partir com toletes em outros torrões menores; e,
finalmente, depois de estarem já por algum tempo ao sol, acabam-se de que-
brar em torrõezinhos pequenos. E guarda-se de propósito esta ordem em que-
brar o açúcar para que, tendo dentro alguma humidade, quebrado pouco a
pouco se entese e não se faça logo em migalhas ou em pó. Estando assim
Diderot e Alembert, 1762
estendido, pegam nas pontas dos toldos e, levantando-as, fazem em cada toldo
um montão e entretanto aquentam-se as tábuas e os toldos e logo tornam a
abrir aqueles montes com rodos e, desta sorte, as partes que eram interiores
ficam expostas ao sol e as outras estendidas sobre as pontas dos toldos sentem
o calor que eles e as tábuas ganharam. Espalhado, torna a mexer-se com rodos
de cambuá, como eles dizem, a saber: um de uma banda e outro de outra, em-
purrando cada um de sua parte o açúcar e puxando por ele por modo oposto
ao que faz no mesmo toldo o negro fronteiro até acabar de secar.
Vestígios de engenho. Faial

(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

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CAPÍTULO 3
AÇÚCAR
com e sem escravos
Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

AÇÚCAR COM E SEM ESCRAVOS

Toda a animação sócio-económica gerada pelo açúcar foi dominada pelo engenho, mas isto não
significava que a existência de canaviais era sinónimo da presença próxima de um engenho. Aqui,
mais do que no Brasil, foram inúmeros os proprietários incapazes de dispor de meios financeiros
para montar semelhante estrutura industrial e, por isso mesmo, socorriam-se dos serviços daqueles
que os dispunham. Com a paulatina diminuição da cultura dos canaviais, a partir da década de
trinta do século XVI, é maior a dificuldade em associar aos canaviais um engenho.
Para assegurar a cultura dos canaviais, laboração das moendas e transformação do produto final
em açúcar, conservas ou casca, existia um grupo variado de oficiais mecânicos, trabalhadores livres
e escravos. Tomando as posturas como referência vamos encontrar referências aos trabalhadores
dos canaviais e engenho, a quem se regulamentara alguns aspectos da actividade1. Os oficiais
mecânicos deveriam ser examinados e apresentar fiança ao município.2

Escravos negros. 1. "Titulo das posturas dos engenhos", publ. in AHM, vol. I, pp.73-75.
Cadeirado da Sé do Funchal. Século XVI. 2. Confronte-se Alberto Vieira e Vitor Rodrigues, "A Administração do Funchal 1470-1489", in II CIHM, 1990, pp.23-42

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Pormenor de engenho nas Antilhas. Século XVI


Engenho feitor

Casa de moer Casa de cozer Casa de purgar

FEITOR MESTRE/BANQUEIRO MESTRE/BANQUEIRO

Escravos Forneiro Oleiro


Moedor Caldeireiro Purgador
Prenseiro Tacheiro refinador
Escumeiro caixeiro
Cozedor de meles

O engenho era composto normalmente por três compartimentos onde se ocupavam diversos ofí-
cios. Havia casos em que se testemunha a existência de forma isolada da casa da purga. As canas
eram moídas e a guarapa cozida num engenho sendo depois as formas transferidas para uma casa
de purga própria3. À volta da casa da moeda concentrava-se parte significativa do engenho, sob o
olhar atento do feitor. Um grupo de almocreves, com as azémolas, garantia a disponibilidade de
cana, enquanto o moedor, auxiliado por escravos, encarregava-se de a fazer passar pelos cilindros.
No caso onde a cana era triturada por uma mó existia uma prensa para espremer o bagaço, sendo
a tarefa a cargo do prenseiro.
As operações das casas de cozer e da purga estavam a cargo do mestre, técnico especializado co-
nhecedor das técnicas de fabrico, de quem dependia a qualidade do produto laborado. Próximo
estavam outros oficiais e escravos que o auxiliavam nas diversas tarefas. Sabemos que em 1482,
mestre Vaz e André Afonso, mestres de açúcar, estiveram ausentes em Canárias, deixando o acto
de temperar o açúcar a cargo dos serventes, seja escravos ou moços4, daqui resultou desavenças em
vereação
Em todos os tempos a presença dos oficiais foi fundamental para o sucesso da indústria. No
período da safra deviam acudir às diversas tarefas, não podendo dedicar-se ou ser envolvidos em
ocupações distintas. Deste modo em 1694 ficaram isentos, por provisão, do serviço de vigias e alar-
dos5.
Não é possível reconstituir o quadro completo da força laboral. Apenas, a partir dos dados avul-
sos encontrados na documentação, nomeadamente nos registos paroquiais, é possível fazer-se uma

3 .ARM, JRC, fls. 350-355vº, 9 de Abril de 1566.


4 . ARM, CMF, nº.1297, fl.45, 20 de Abril
5 . ANTT, PJRFF, nº.968, fl.219

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

OFÍCIO FUNCHAL CALHETA Rª BRAVA TOTAL


XVI XVII XVI XVII XVI XVII XVI XVII
Mestre Açúcar 20 1 2 3 5 - 31 5
Purgador 29 3 6 1 4 - 47 3
Caldeireiro 20 3 - 1 2 - 23 10
Caixeiro 46 15 2 - 2 - 50 22
Canavieiro 8 1 - - - - 18 1
Prenseiro 8 - - - - - 8 -
Moedor 5 1 - - - - 3 1
Cozedor Meles 5 - - - - - 5 -
Confeiteiro 2 1 - - - - 2 1
Conserveiro - 1 - - - - 1
Escumeiro - - - - - - 1-
Refinador 3 - - - - - 3 -

Para assegurar a cultura dos canaviais, laboração dos engenhos e transformação do produto final
em açúcar, conservas ou casca, existia um grupo variado de oficiais mecânicos, trabalhadores e
escravos. Não é possível reconstituir na totalidade o número, mas a partir dos dados avulsos encon-
trados nos registos paroquiais reunimos a seguinte informação:
OFÍCIO FREGUESIA DATA NOME OFÍCIO FREGUESIA DATA NOME
Caixeiro R. Brava 1600 João Gonçalves 1622 Francisco Fernandes
Sé 1601 Belchior Rodrigues S. Pedro 1623 António Fernandes
Manuel Gonçalves E. Calheta 1641 Manuel Gomes
1607 Manuel Rodrigues Canavieiro 1566 António Fernandes
1609 Vicente Ferreira Canavieiro Sé 1603 Afonso Gonçalves
1610 Domingos Martins Conserveiro 1607 João Dias
Engenho no Brasil .1648 ideia. Outro recurso possível poderá ser os livros do quarto e do quinto, pois o lavrador ou/e pro- 1615 Baltasar Álvares Mestre açúcar 1600 Sebastião Sardinha
prietário do engenho serviam-se do produto da safra para o pagamento dos assalariados que neces- S. Pedro 1617 Pedro Fernandes 1601 Pero Martins
sitavam. Entre 1509 e 1537 há referência a diversos pagamentos em açúcar por serviços prestados Sé 1618 Francisco Garcia S.Pedro 1606 António Costa
na lavoura e laboração do engenho e, mesmo, na compra de qualquer manufactura ou prestação de 1620 Manuel Gomes P. Sol 1619 Domingos Gomes
serviço artesanal. Os pagamentos aos serviços da safra do açúcar atingem 31,41%, sendo 16,62% no S. Pedro 1620 Afonso Aires S. Pedro 1620 Gonçalo Fernandes
cultivo e apanha da cana e 14,59% nos ofícios, aqui dominados pelos sapateiros (27,62%) e ferreiros 1625 Francisco Riscado P. Sol 1633 Manuel Pires
(24,48%). Sé 1632 Miguel Fernandes Moedor 1560 Joaneanes
De acordo com a informação disponível, especialmente nos registos paroquiais dos séculos XVI A. S. Jorge 1634 Domingos Fernandes Moedor Sé 1655 Diogo Fernandes
e XVII, é possível fazer uma ideia da estrutura sócio-profissional gerada pela cultura e transfor- S. Vicente Pero Pestana Purgador 1600 Belchior Lopes
mação da cana-de-açúcar6. Aqui, é evidente a concentração no Funchal, sendo reduzido o número 1639 Francisco Dias 1601 João Fernandes
fora da cidade, onde surgem apenas na Calheta e Ribeira Brava. Também, é de salientar a incidên- Calheta 1644 Baltasar Fernandes Calheta 1602 Gaspar Sardinha
cia no século XVI, em especial, na primeira metade da centúria. Sé 1679 Manuel Teixeira Simão Fernandes
1687 Miguel Fernandes Sé 1603 António Gonçalves
1698 José Vieira S. Pedro 1606 Manuel Rodrigues
Caldeireiro Sé 1601 Cristóvão Dias Sé 1607 Manuel Gonçalves
1602 Belchior Dias 1608 Gonçalo Anes
6. AHM, vol. XVI, p.87, 21 de Junho.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

A partir do número de mestres de açúcar e purgadores é possível estabelecer uma ideia da situ- desde o começo da ocupação do arquipélago, e foi fulgurante. Impossível é estabelecer com exac-
ação da cultura da cana-de-açúcar. Se a cada mestre corresponder um engenho, então teremos em tidão a quantidade de escravos envolvida. A deficiente documentação, para os séculos XV a XVII,
14937 em funcionamento 80 engenhos, enquanto na primeira metade do século XVII serão apenas não o permite. Carecemos dos registos de entrada da alfândega do Funchal e dos contratos exara-
seis engenhos no Funchal e Ponta de Sol. De entre os ofícios persiste por toda a centúria os cai- dos nas actas notariais.
xeiros, que tinham por missão fazer as caixas para a exportação das conservas e casca. A safra açucareira implicava a disponibilidade de uma numerosa mão-de-obra: os cuidados com
A expansão europeia abriu aos europeus as portas do Atlântico propiciando a migração das a cultura, a morosidade da apanha e transporte ao engenho, a necessidade de as tarefas do enge-
mais importantes rotas comerciais para este palco dominado pelos reinos peninsulares. Ligado ao nho serem executadas num prazo de setenta e duas horas, obrigaram as regiões produtoras deve-
processo está a afirmação e definição da rota e mercado dos escravos. As viagens de reconheci- riam dispor de uma adequada reserva de força de trabalho. Ao lado dos proprietários de canaviais
mento da costa africana abriram aos portugueses a possibilidade de acesso fácil através das razias. e engenho existiam os escravos e assalariados. Por outro lado é necessário referir que as tarefas de
Todavia não poderá afirmar-se que foram os portugueses que transformação da cana em açúcar, que tinha lugar no engenho, eram demoradas e requeriam uma
estiveram na origem da escravização do negro e na criação do mão-de-obra especializada para as diversas tarefas, dependendo dele a qualidade do produto final.
mercado negreiro, pois este já existia há muito tempo no mundo Existiam também serviçais, que colaboravam no processo.
mediterrânico e africano. O papel dos portugueses resume-se a A necessidade de mão-de-obra contrastava com a exiguidade da população madeirense pelo que
estabelecer as rotas atlânticas e a iniciar a partir daqui a colo- foi necessário encontrar novas formas e áreas de recrutamento. A escravatura foi uma solução rápi-
nização assente neste tipo de mão-de-obra. A Madeira assume da e eficaz: próximo da ilha existia uma importante reserva que começava agora a ser usada. As
mais uma vez um papel relevante, sem nunca deter uma posição primeiras presas sucedem-se nas Canárias e, depois, na costa africana. Estavam assim criadas as
dominante na sociedade e processo produtivo, situação que só condições para a afirmação simultânea da escravatura e da cana-de-açúcar: dum lado a extrema
sucederá em Cabo Verde e S. Tomé. carência, do outro o fácil acesso e disponibilidade propiciaram a vinculação dos escravos à econo-
A escravatura está habitualmente ligada a actividade de mia açucareira madeirense. Foi também o princípio que fundamentou o processo de entrosamento
extracção mineira e a um conjunto de culturas que implicam do escravo ao açúcar nas demais áreas.
uma grande exigência por parte do Homem, como é o caso da A situação dos canaviais e da produção do açúcar na Madeira apresentava-se distinta daquela
cana sacarina, do tabaco e algodão. que acontece do outro lado do oceano. A estrutura funcional que definiu a economia açucareira foi
O comércio de escravos, a exemplo das demais transacções também diferente: o binómio engenho/canaviais não foi tão evidente, e a orografia não permitiu a
comerciais no espaço atlântico alem do Bojador, esteve sujeito a existência de extensos canaviais. A par da tendência para o excessivo parcelamento acresce que a
apertada regulamentação. Primeiro tivemos a reserva de espaço evolução do sistema fundiário, com o recurso a diversas formas de domínio útil (arrendamento,
no litoral africano para intervenção exclusiva dos vizinhos de contrato de colonia) favoreceu a situação. Já em 1494 era evidente a excessiva divisão da pro-
Cabo Verde e S. Tomé. Ambos os arquipélagos funcionaram priedade, pois para 431 canaviais surgem apenas 209 proprietários, em que se incluíam 21% na
como placas giratórias do tráfico negreiro para o novo conti- condição de arrendatários.
nente. Depois com a união das duas coroas, a partir de 1595, Outro aspecto importante e definidor da situação social em que se afirmam os canaviais é a ca-
Engenho no Brasil .1719 manteve-se o controle régio, sendo o comércio sujeito a um sistema de contratos e assentos. A situ- racterização do grupo de proprietários de engenhos e terras. No estimo de 1494 surgem-nos 209,
ação persistindo até 1650, altura em que o mercado de escravos africanos abriu as portas a todos os enquanto no período de 1509 a 1536, (abarcando a capitania de Ma chico) o número eleva-se para
intervenientes. Isto aconteceu num momento de retracção do mercado brasileiro que só recuperará 263. Se tivermos em conta que a população do arquipélago em 1500 era de 16.000 habitantes somos
trinta e nove anos mais tarde com a necessidade de mão-de-obra para a mineração. forçados a concluir que a importância era reduzida: 13% em 1494 e 1,6% no segundo período.
A Madeira foi nos primórdios da expansão atlântica o primeiro e mais importante mercado Ao contrário daquilo que afirmam V. Rau e Borges de Macedo8 a cultura da cana-de-açúcar não
receptor de escravos africanos. Tudo isto resultou do facto de estar próxima do continente africano beneficiava "camadas amplas da população", sendo restrito o grupo de proprietários de canaviais,
e envolvida no processo de reconhecimento, ocupação e defesa do controlo lusíada. À ilha Opinião diferente é definida por Magalhães Godinho9 que, após reconhecer a diversa condição
chegaram os primeiros escravos guanches, marroquinos e africanos, que contribuíram para o
arranque económico do arquipélago. O comércio com os principais mercados fornecedores existiu,
8. Os Descobrimentos e a Economia Mundial, vol.IV, Lisboa, 1983, p.81
9. O contrato de colonia mereceu inúmeros estudos, sendo de realçar os de: Fernando Augusto da SILVA, "Colonia, contrato de",
in Elucidário Madeirense, I, Funchal, 1960, pp.290-291; Jorge de Freitas BRANCO, Camponeses da Madeira, Funchal, 1987,
7 V. Rau e Borges de Macedo, O Açúcar na Madeira nos finais do século XV, Funchal, 1962; Alberto Vieira, "O Regime de pro- pp.153-187; João José Abreu de SOUSA,"O convento de Santa Clara do Funchal. Contratos agrícolas (século XV a XIX), in
priedade na Madeira: o caso do açúcar", in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. I, Funchal, 1990. Atlântico, nº.16, Funchal, 1988, pp.295-303..

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

social dos proprietários, conclui pela tendência para a concentração dos canaviais o sistema de propriedade na ilha. Se é certo que na exploração directa ou no arrendamento se esta-
num reduzido número de proprietários. Para nós a realidade é diferente pois os beleceu uma posição clara para o escravo, o mesmo não se poderá dizer com o contrato de colo-
canaviais beneficiavam apenas um reduzido número de proprietários, que estão nia10.
maioritariamente entre os primeiros colonos, que receberam terras de sesmaria, a A presença do escravo na constituição das sociedades insulares, desde o século XV, não é um
que se juntaram depois alguns mercadores nacionais e estrangeiros. Os terra- fenómeno isolado, enquadrando-se no contexto sócio-económico em que emergiram: a falta de
tenentes saíram da aristocracia local, e do funcionalismo régio, senhorial e munici- mão-de-obra braçal para as novas arroteias e a maior necessidade por parte de culturas como a cana
pal. Os proprietários incluídos controlavam 21% da produção no século XVI, sacarina geraram a procura; a iniciativa descobridora do Atlântico, em que os madeirenses foram
sendo maioritariamente do grupo daqueles que possuem canaviais produzindo activos protagonistas, e a proximidade do mercado gerador propiciaram o seu encontro. Foi de
mais de 1.000 arrobas. Em conjunto com os mercadores (nacionais e estrangeiros) acordo com a conjuntura que a escravatura ganhou importância. É aqui que deveremos encontrar
representavam mais de 66% dos canaviais com uma produção superior a 1.000 a explicação para tal posição. A sintonia é perfeita entre a curva evolutiva da produção de açúcar
arrobas, produzindo 51% do total do açúcar. e da libertação dos escravos. O número de libertos acompanhou a conjuntura açucareira.
Na Madeira, a crise da produção e comércio de açúcar, a partir do final do último quartel do
século XVI, vai ao encontro do aumento do número de alforrias, cuja curva ascendente se verifica
Escravos com e sem açúcar. a partir da década de vinte, culminando no final da centúria. Ao movimento inverso, na primeira
metade do século XVII, poderá associar-se também o incremento da cultura da cana-de-açúcar.
As ilhas tal qual se apresentavam aos primeiros europeus conduziram a um Tudo isto foi provocado pela ocupação holandesa do estado de Pernambuco. O momento de afir-
relacionamento particular do Homem na exploração e aproveitamento do solo. mação dos canaviais foi curto e repercutiu-se na curva das alforrias da segunda metade da centúria.
Do casamento entre a força de vontade dos primeiros europeus e a agressividade Ao invés a expressão geográfica das alforrias é dissonante com a mancha principal dos canaviais.
dos declives foi possível construir a Europa no Atlântico. A Madeira, por força da Por isso é mais evidente no Funchal, Câmara de Lobos e Caniço, áreas que estão muito longe de
configuração geográfica, foi definida por uma paisagem agrária específica, dife- ser as de maior afirmação dos canaviais.
rente dos grandes espaços continentais. O excessivo parcelamento das áreas agrí- Na Madeira a tendência era para a existência de um reduzido número de escravos por propri-
colas (poios), única forma possível de aproveitamento do solo arável e a ampla dis- etário. Com um ou dois escravos temos 58% e com mais de cinco a percentagem não ultrapassa os
seminação na vertente sul e norte condicionaram o sistema de arroteamento e de 11%. O grupo dos que possuem mais de dez escravos não suplanta os 2%. Estes proprietários surgem,
posse de terras. As concessões de terreno foram-se dividindo de acordo com o mais uma vez, no Funchal, entendido como o conjunto das duas freguesias e comarca. O perfil do
aumento da população e as experiências agrícolas. A primeira exploração exten- dono de escravos define-se pelo reduzido número, pois 89% possuem entre um e cinco escravos. A
Santa Ifigénia. sec.XVII
siva deu lugar ao intensivo aproveitamento do solo assente nos inúmeros poios par disso, se enquadrarmos os escravos na estrutura fundiária dos proprietários, concluiremos pela
Escravo das ilhas Canárias.
construídos pelos proprietários, arrendatários ou meeiros. fraca vinculação à cultura do açúcar: em 104 detentores em simultâneo de escravos e bens
Gravura de S. Berthelot e P.Barber-Weber, século XIX
É difícil, senão impossível, definir a grande propriedade de canaviais, se nos situarmos ao fundiários, apenas nove são possuidores de terras com canaviais. Os restantes, na maioria, detêm
mesmo nível do mundo americano. Os canaviais avançaram a partir do engenho e estão, quase sem- searas e vinhedos. Depois, nos signatários de canaviais merece apenas referência Bartolomeu
pre, ligados indissociavelmente. Isto não sucede na Madeira. São muitos os proprietários de canavi- Machado, no Funchal, com dez escravos.
ais mas poucos os de engenho. Outra peculiaridade da Madeira foi a concentração dos engenhos Para a historiografia europeia e americana a presença do escravo no processo de expansão da
em áreas de maior facilidade de contactos com o exterior, nomeadamente no Funchal, o que nem safra do açúcar no Atlântico é considerada como um dado adquirido. Antonil lançou o mote em
sempre correspondia às de maior importância no cultivo dos canaviais. A forma como se estrutu- 1711 sendo seguido pela historiografia do nosso século. Desde o clássico estudo de Noel Deerr11, aos
rou a faina açucareira condicionou um posicionamento distinto para o escravo. Ainda, na explo- mais recentes trabalhos de Charles Verlinden12, J. Heers13, F. Braudel14, I. Wallerstein15, S. W.
ração agrícola insular torna-se necessário distinguir dois grupos de proprietários: os que haviam
10. The history of sugar, vol. II, Londres, 1950, 259-289.
entregue as terras a foreiros ou arrendatários e os proprietários plenos. Esta forma de dupla posse 11. "De la Civilization Médièvale italienne du Levant à l'Expansion ibérique continentale et insulaire. Analyse d'un transfert
da terra marcou de modo evidente a actividade agrícola e favoreceu na Madeira o aparecimento e economique, technologique et culturel", in Studia, n1 46, Lisboa, 1987, 193-222; Del Mediterraneo al Atlantico. Contributi di
afirmação do contrato de colonia, a partir do século XVI. Por outro lado, a extensão reduzida dos Storia Economica, Prato, 1973, 25-51. Aqui apenas são citados os trabalhos mais recentes. Para mais informações consulte-se na
bibliografia as obras deste autor.
canaviais não obrigava à existência de um engenho para a transformação da cana, tão pouco de um 12. Escravos e Servidão doméstica, Lisboa, 1983, 11-113.
grupo numeroso de escravos. 13. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico (...), vol. I, Lisboa, 1983, 178.
A posição dos escravos na estrutura agrária madeirense deverá ser equacionada de acordo com 14. El Moderno Sistema Mundial (...), vol. I, Madrid, 1979, 60-61, 122-125.
15. Sweetness and Power (...), New York, 1986, 32.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Mintz16, W. D. Philips Jr17 e S. M. Greenfield18 teorizou-se a vinculação do açúcar à logro. Para nós a Madeira é um caso particular e não está longe do que se passa no Mediterrâneo.
escravatura. O casamento teve lugar nas plantações mediterrânicas, mas foi no A presença do escravo na safra açucareira não é tão dominante como à primeira vista parece. É
Atlântico que se firmou. Todos os autores supracitados concordam quanto à existên- certo que está ligado ao processo, mas nunca actuou isolado e, tão pouco, a situação foi maioritária.
cia do binómio no mediterrâneo oriental e da passagem ao Atlântico através da Ao lado estava um grupo numeroso de livres como assalariados ou arrendatários, melhor posi-
Madeira. Assim, no entender de I. Wallerstein "la esclavitud siguió el rastro del azú- cionados e imprescindíveis para isso. As condições definidas pela orografia da ilha e o sistema de
car"19. propriedade conduziram a esta peculiar realidade25.
A vinculação da escravatura ao açúcar terá sido uma invenção dos cruzados A historiografia europeia e americana insistem no facto de que a estrutura fundiária
europeus nas colónias de Jerusalém e foi através do mundo cristão que se difundiu, madeirense, nos séculos XV e XVI, era resultado da presença da escravatura. Estamos perante um
pois no mundo árabe os escravos raramente surgem associados à cultura e industria falso pressuposto, ao afirmar-se de que a cultura açucareira só admitia mão-de-obra escrava. Com
açucareiras20. As colónias italianas do Mediterrâneo Oriental foram o primeiro isso pretendia-se estabelecer uma visão reducionista da sociedade e força de trabalho na ilha. Ao
ensaio da nova dinâmica sócio-económica, que depois alastrou ao Ocidente até à mesmo tempo pretendia-se afirmar a Madeira como o caso americano em miniatura. Nada há que
Sicília e daí teriam passado à Madeira. permita uma aproximação das plantações madeirenses às do outro lado do Atlântico. A ideia fas-
Plantação21 é o conceito adoptado pela historiografia para definir a estrutura cinou alguns historiógrafos madeirenses. Foi, de acordo com isso, que se fez coincidir a mancha da
social, política e económica imanente da cultura da cana-de-açúcar. Tal empresa escravatura com a das áreas de maior colheita de açúcar, mesmo sem dados que o testemunhassem.
industrial, segundo os estudiosos22, teve origem no surto açucareiro do Mediterrâneo Estávamos perante uma associação insofismável, que nem os dados documentais poderiam refutar.
Oriental do século XI e avançou para o Atlântico a partir de meados do século XV. Com isto ignorou-se a realidade histórica mas também as especificidades próprias do arquipélago.
É um conceito que não tem conciliação possível com a estrutura fundiária Todos acharam interessante a suposição e ninguém ousou analisar de forma precisa a estrutura
madeirense que esteve na base da cultura da cana-de-açúcar. A trilogia rural fundiária madeirense, procurando o fundamento disso na documentação disponível.
madeirense está muito longe da brasileira. A presença dos escravos na Madeira condicionou de forma evidente os mecanismos reguladores São Benedito.séc. XVII
É opinião corrente que a simbiose perfeita entre a escravatura e a agricultura, da sociedade ao nível político-institucional e religioso. Eles, porque estranhos à sociedade europeia
com especial relevo para o cultivo da cana-de-açúcar, só começou a esboçar-se no ramificada na ilha, implicaram o estabelecimento de normas definidoras da convivência social. É
século XV com a experiência madeirense. Até as escassas referências à utilização do necessário referir que na Madeira, ao contrário do que sucede nas sociedades escutistas do outro
escravo em tais tarefas (em Mesoptâmia, Zanzibar, Sudão e Sicília) não apontam lado do Atlântico, ambas as mundividências se entrecruzam gerando uma convivência social pecu-
para um dominância capaz de justificar o sistema23. Aliás, no entender de W. D. liar. Não há lugar para senzalas. Aqui o escravo faz parte do quotidiano do senhor e a ele deveria
Philips Jr24, a ligação escravo/açúcar só tem lugar no Atlântico com o caso manter-se ligado: não havia separação entre o mundo do escravo e do livre. Ao contrário procura-
madeirense, sendo as situações do mundo cristão e islâmicas esporádicas. É caso va-se impedi-lo. Com as normas, sob a forma de postura, procurava-se, perpetuar a situação uma
para perguntar: onde foi o autor (ou as fontes de informação) buscar os elementos vez que tudo o que a isso fosse contrário podia pôr em perigo a ordem estabelecida. Os fugitivos ou
para tal afirmação? Todos os autores que refere levaram a que fosse enredado no os escravos encontrados isolados ou em grupo constituíam um problema para a sociedade. Eram
quase sempre uma fonte geradora de conflituosidade social. É isso que as posturas combatem, ao
vedarem aos escravos um espaço de encontro e convívio. O espaço de convívio social do escravo
Adoração dos Reis Magos.secXVI. 16. Slavery (...), Manchester, 1985, 67, 76-80, 93.
Capela dos Reis Magos 17."Plantations, sugar cane and slavery" in Roots and branches: current directions in slave studies. Historical reflections, T. VI, n1 estava delimitado e sujeito a inúmeras limitações.
[igreja de Machico]de Branca Teixeira 1, 1979, 85-119.
18. Ob.cit., p. 122.
19. W. D. Philips, Ibidem, 76-80. Todavia Yoro Fall (Escravatura, Servidão e reconquista", in Portugal no Mundo, I, Lisboa, 1989,
303-4) é de opinião diferente.
20. Conforme o define R. SCHERIDAN "The plantation was an absolutley un precedented social,economic and political institu-
tion in the organization of agriculture", citado por S. MINTZ, Sugar and Society in the Caribean, New Haven, 1970, XIV.
Confronte-se Max WEBER, História Económica e Social, México, 1974.
21. S. W. MINTZ, Sweetness and Power, New York 1986, 50 - 51; S. M. GREENFIELD "Madeira and the beginings of sugar culti-
vation and plantation slavers" in Comparative perspectives on New World Plantation Societies, New York, 1979, 236-252; idem
"As ilhas da Madeira e de Cabo Verde: rumo a uma sociologia comparativa de diferenciação colonial", in II Colóquio
Internacional de História da Madeira, Funchal, 1989. 25. No Brasil a média de produção por escravo era de 50 a 60 arrobas, enquanto nas Antilhas, em geral, era de 64 (H. G. Amorim
22. V. M. GODINHO, Ob. cit., IV, 201; W. D. PHILLIPS Jr., Ob. cit., 146, 186. PARREIRA, "História do Açúcar em Portugal" in Anais, III, T. I., Lisboa, 1952, 152), sendo nas francesas de 750 arrobas (G.
23. Ob. cit., 118, 146, 222-228. MATIN, Histoire de l'Esclavage, Paris, 1948, 122) e na Jamaica, no século XVIII era de 250 arrobas (M.CRATON, Sinews of
24. Ibidem, 225, 226. Empire (...), Londres, 1974.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

acentuada no Funchal, onde o número de proprietários de escravos é três vezes superior ao de


canaviais. Nas "Partes do Fundo" ela não ultrapassa o dobro, no século XVI, e nas comarcas da
Calheta, Ponta do Sol e capitania de Machico apresentava valor inferior. Se compararmos o
número de escravos com o dos proprietários de canaviais e engenhos de açúcar, deparamo-nos com
a mesma situação. Enquanto no século XV a proporção é diminuta, na centúria seguinte, excepto
em Ponta do Sol e Machico, atinge valores elevados, sendo a média no Funchal de dez escravos por
proprietário, quatro na Ribeira Brava e três na Calheta.
PROPRIETÁRIOS DE ESCRAVOS, De acordo com o açúcar arrecadado, no século XVI, caberia a cada escravo o seguinte número
CANAVIAIS E ENGENHOS de arrobas:

A distribuição geográfica dos proprietários de escravos adequa- Funchal ..................................13,5


se à mancha da expressão da escravatura no arquipélago. A capi- Ribeira Brava .......................92
tania do Funchal tem a supremacia com 86% dos proprietários e Ponta do Sol.......................400,5
87% dos escravos, adquirindo maior expressão no século XVI. No Calheta ................................223,5
global da circunscrição definida pela capitania do Funchal, temos, Machico ...............................159,4
mais uma vez, o recinto do Funchal numa posição cimeira com
74% do número de proprietários. A par disso a cidade, com as duas Os valores estão muito aquém da média estabelecida para as Antilhas e Brasil26. Será isto
freguesias principais de que possuímos documentos - Sé e São demonstrativo de que não é tão evidente na Madeira a relação entre o escravo e o açúcar ? Pode-
Pedro - apresentam 64% do número de proprietários, distribuindo- se chegar à mesma conclusão quando comparamos os escravos com o número de engenhos na ilha.
se os restantes pelas outras da capitania do Funchal (23%), Enquanto nas Antilhas e América do Sul o valor por engenho oscila entre os 800 e 10027, aqui, no
Machico (11%) e Porto Santo (2%). global, não ultrapassaria os 30, sendo a média mais elevada no Funchal (com 77 escravos) e Ribeira
A elevada concentração dos escravos no espaço urbano revela, Brava (com 24 escravos). É de salientar, ainda, que, no total de 46 proprietários de engenhos 16 são
mais uma vez, que estamos perante uma escravatura essencial- do Funchal. Os dados disponibilizados pela investigação levam-nos a concluir o seguinte: num total
mente doméstica, com pouca ou nenhuma relação com a vida 502 produtores de açúcar apenas 78 (15,5%) são possuidores de escravos. Para o século dezassete é
rural. A presença é testemunhada através de registos paroquiais. maior o número (39%) de proprietários de canaviais com escravos, mas aumenta sem existir qual-
Isto quer dizer que os escravos residem junto do senhor e que todo quer relação de causa e efeito entre ambas as realidades. Assim, por exemplo, Maria Gonçalves,
o quotidiano se desenrola na cidade. Raras vezes surgem indícios viúva de António de Almeida, é quem surge com o maior número de escravos, sendo diminuta a
da relação com o meio rural como guardiães e trabalhadores das produção de açúcar.
Escravas. Prata com contraste do México. terras do proprietário, entregues a colonos. A comparação do número de escravos, que estes possuem, com o número de arrobas de açúcar
Século XVIII. Museu da Quinta das Cruzes.
Não é fácil estabelecer uma relação entre o proprietário, o escravo e as actividades sócio-profis- dos canaviais apresenta, igualmente, valores díspares, pelo que estaremos perante uma prova evi-
sionais. Raramente ao proprietário surge associada a profissão ou estatuto social: do total em causa dente da intervenção do trabalho livre: a média do século dezasseis oscila entre 10 e 1329,5 arrobas
apenas 23% aparecem nestas condições. No grupo evidenciam-se aqueles que estavam ligados à por escravo. Por outro lado os proprietários com maior número de escravos, como Francisco
estrutura eclesiástica (25,2%) e militar (24,9%), seguidos dos múltiplos ofícios dedicados ao comér- Betencor, Pedro Gonçalves e António Correia, não são, de modo algum, os maiores produtores de
cio (20%). Para cada uma das áreas há uma categoria dominante. Assim, no primeiro, a situação é açúcar. Apenas João Esmeraldo, Simão Acioli e João Rodrigues Castelhano se apresentam como
assumida pelo padre (68%), no segundo pelo capitão (83%) e no terceiro pelo mercador (69%). Mais excepção. Pedro Gonçalves, do Funchal, com 17 escravos, o maior número por proprietário, decla-
uma vez é possível testemunhar a dimensão patriarcal assumida pela escravatura na ilha. Também rou em 1509 a produção de apenas 140 arrobas. Já Gonçalo Fernandes de Calheta, que em 1494
isto indicia o pouco escrúpulo do clero para com este grupo social.
Quando estabelecemos uma comparação entre o número de proprietários de escravos e o de 26. De acordo com Luís M. DIAZ SOLER (Historia de la esclavitud negra em Puerto Rico, Rio Pedras, 1965,155) um engenho de
canaviais verificamos que em todas as áreas o primeiro grupo é superior ao segundo. O facto poderá água para laborar necessitava de 37 escravos, entretanto Cirio F. CARDOSO (Negro Slavery (...), Washington, 1983) refere que
ser considerado um indicativo seguro de que nem todos os proprietários de escravos se dedicavam um engenho idêntico em Vera Cruz necessitava de 80 a 100 escravos, e para o Brasil Eduardo Correia LOPES ( A Escravatura
(...), Lisboa, 1944, 112) apresenta o número de 100 escravos para a laboração de cada engenho.
à safra açucareira, nem todos os escravos existiam para isso. A diferença entre os dois grupos é mais 27. A.R.M., Julgado de Resíduos e Capelas, fls. 321 v1-321, 22 de Junho: contrato de partilhas.

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produzia 1611 arrobas e em 1534 surge com 3707 arrobas, com 10 escravos. do Atlântico a percentagem poderia atingir os 28%. Se enquadrarmos os escravos na fundiária dos
Outro aspecto definidor da escravatura resulta do número de escravos disponíveis para cada pro- proprietários, concluiremos pela fraca vinculação à cultura do açúcar: em 104 detentores em
prietário. Também aqui a Madeira afasta-se do Novo Mundo. Não encontrámos proprietários com simultâneo de escravos e bens fundiários, apenas 9 (9%) são possuidores de canaviais. Os restantes,
duzentos ou mais escravos. O número mais elevado de escravos não ultrapassava os 14 apresenta- na maioria, possuem searas e vinhedos. Depois nos signatários de canaviais merece apenas refer-
dos por João Esmeraldo na fazenda da Lombada da Ponta do Sol. Na maioria (63%) os valores ência Bartolomeu Machado, no Funchal, com 10 escravos.
ficam-se por 5 escravos. Tendo em conta o número mínimo de mão-de-obra imprescindível para a Convém esclarecer que não se pretende afirmar que não existe ao nível da Madeira qualquer
laboração de um engenho, seremos forçados a afirmar que a grande força de trabalho que anima- relação entre o escravo e o açúcar, mas e apenas enunciar que ela não atingiu o mesmo nível de São
va os engenhos não era escrava, mas sim livre. É necessário ter em conta que o número de escravos Tomé ou das áreas açucareiras do outro lado do Atlântico. Na Madeira o escravo está indissoci-
aqui referenciado para João Esmeraldo tem como base as disposições testamentárias de 152228. A avelmente ligado à cultura mas nunca com a dimensão que se tem pretendido atribuir. Daí resul- Captura de escravos na costa africana.

informação não combina com outra fornecida por Gaspar Frutuoso29, que fala da posse de oitenta tam as inúmeras informações avulsas que testemunham a relação:
escravos para uma fazenda que produzia vinte mil arrobas de açúcar, o que daria uma média por primeiro foram os guanches, que se evidenciaram como mestres de
escravo de 250 arrobas. Serão o testemunho da época áurea da safra, em princípios da centúria engenho, depois os negros e mulatos, que surgem também aí com uma
quinhentista. Na verdade são consentâneos com a média de escravos necessária à actividade dos activa intervenção. É necessário lembrar, ainda, que as condições de
engenhos. A par disso o máximo que conseguimos reunir foi de vinte escravos de Ayres de Ornelas afirmação da escravatura e açúcar nas ilhas do Mediterrâneo
e Vasconcelos (1556-1587), mas para pai e filho. Na Madeira a tendência era para a existência de Atlântico, as Antilhas e Brasil foram diferentes pelo que a comparação
um reduzido número de escravos por proprietário. Com um ou dois escravos temos 58% e com mais é vista por nós como um mero exercício académico. Por fim, refira-se
de cinco a percentagem não ultrapassa os 11%. O grupo dos que possuíam mais de dez escravos não que na Madeira é evidente uma forte incidência da escravatura no
suplanta os 2%. Estes proprietários surgem, mais uma vez, no Funchal, entendido como o conjunto meio urbano, relacionada com os serviços e ofícios, o que condiciona
das duas freguesias e comarca. o baixo nível de arrobas de açúcar por escravo. Por tudo isto não será
O perfil do proprietário de escravos madeirense define-se pelo reduzido número da presença, despropósito afirmar que a situação evidenciada pela escravatura
pois 89% possuem entre um e cinco escravos. Não havia lugar para uma excessiva valorização da madeirense não resultou apenas da cultura da cana-de-açúcar, que
força de trabalho, no campo e cidade. A dimensão das oficinas e das arroteias não o permitia. Isto influenciou a estrutura económica da ilha nos séculos XV e XVI.
torna-se mais evidente quando estabelecemos uma relação entre o escravo e o património do pro-
prietário. De acordo com os dados disponíveis apenas foi possível estabelecer para dez propri-
etários. Situam-se, maioritariamente, no século XVII pelo que as fazendas são dominadas pelas vi-
nhas. Apenas com João Rodrigues Mondragão está expressa a trilogia rural madeirense. Nas fazen-
das era possível ver-se searas, vinhas e canaviais. A EVOLUÇÃO DO AÇÚCAR E DOS ESCRAVOS
A tudo isto acresce o facto de haver por parte do proprietário rural pouco empenho em aumen-
tar o investimento em mão-de-obra escrava. Nunca ultrapassa os 5% do valor total do capital. A situ-
ação, mais uma vez contrasta com o sucedido do outro lado do Atlântico, onde sobe até os 28%, mas A presença do escravo na constituição da sociedade madeirense,
encontra similar valoração nos Açores. Caso houvesse uma relação directa entre a presença do desde o século XV, não é um fenómeno isolado, enquadrando-se no
escravo e as tarefas agrícolas era natural que o proprietário se procura desviar parte do investi- contexto sócio-económico em que o arquipélago emergiu: a falta de
mento de capital para a aquisição deles. Ao nível do valor do capital investido pelos proprietários mão-de-obra braçal para as novas arroteias e a maior necessidade dela
madeirenses na mão-de-obra escrava também se verifica uma disparidade em relação ao que sucede por parte de culturas como a cana sacarina, geraram a procura; a ini-
no continente americano. Na Madeira o valor oscilava entre os 2 e os 5%, enquanto, do outro lado ciativa descobridora do Atlântico, em que os madeirenses foram
activos protagonistas, propiciou as vias para o encontro. Foi de acordo
com isto que a escravatura ganhou importância na sociedade
28. Livro segundo das Saudades da Terra, 124. madeirense e atribuiu-lhe uma situação particular. E é aqui que deve-
29. Lothar SIEMENS y Liliana BARRETO, "Los esclavos aborigenes canarios en la isla de la Madera (1455-1505)", in Anuario de
Estudios Atlanticos, n1 20, 1974, 111-143. Aqui utilizamos o termo canário para designar os escravos oriundos do arquipélago remos encontrar a explicação para a posição assumida na ilha.
das Canárias, não obstante esse termo querer significar os habitantes de Gran Canária. Mas segundo Gaspar FRUTUOSO (Ob. O evoluir do processo sócio-económico interno, associado às novas
cit., livro primeiro, p. 73) "desta (Gran Canaria) tomaram o nome geral de canários os habitadores das outras, ainda que tam- condições estabelecidas pelo mercado atlântico contribuíram, ainda
bém seus particulares nomes".

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que paulatinamente, para a desvalorização da componente escrava na estrutura social do arquipéla- A partir de meados do século XV, são assíduas as referências a escravos canários na ilha da
go. A menor utilidade do escravo no sector produtivo e a maior procura por outros mercados e Madeira como pastores e mestres de engenho30. A presença na ilha deveria ser importante nas últi-
sociedades condicionaram a deslocação da mão-de-obra escrava. As queimadas haviam terminado, mas décadas do século XV. Os documentos clamando por medidas para controlar a rebeldia são
os poios estavam de pé e a cana-de-açúcar deixou de marcar a vida agrícola madeirense. Perante indício disso. Muitos deles mantiveram-se na Madeira fiéis à tradição do pastoreio ou então fir-
isto não havia mais lugar para o escravo no meio rural e os possuidores perderam o seu poder maram-se como exímios mestres de engenho.
aquisitivo perante as propostas mais vantajosas do espaço americano. Os poucos que perpetuaram O comprometimento dos madeirenses com as viagens de exploração e comércio ao longo da
a situação, por mais uma centúria, foram aumentar a criadagem dos fidalgos da cidade e passaram costa africana, e a importância do porto do Funchal no traçado das rotas, definiram para a ilha uma
a alimentar a classe de indigentes e criminosos. posição preferencial no comércio dos escravos negros da Guiné. Deste modo não seria difícil de
Os escravos que surgem no mercado madeirense são na quase totalidade de origem africana, afirmar, embora nos faltem dados, que os primeiros negros da costa ocidental africana chegaram à
sendo reduzida ou nula a presença daqueles de outras proveniências, como o Brasil, América Madeira muito antes de serem alvo da curiosidade das gentes de Lagos e Lisboa.
Central e Índia. Isto pode ser resultado, por um lado, da distância ou das dificuldades no tráfico e, A situação da Madeira e dos madeirenses nas navegações supracitadas, a par da extrema carên-
por outro, das assíduas medidas limitativas ou de proibição, como sucedeu no Brasil e Índia. cia de mão-de-obra para o arroteamento das diversas clareiras abertas na ilha pelos primeiros
Apenas o mercado africano, dominado pela extensa costa ocidental, em poder dos portugueses, povoadores, geraram, inevitavelmente, o desvio da rota do comércio de escravos, surgindo o
não foi alvo de quaisquer proibições. Aí as únicas medidas iam no sentido de regular o tráfico, como Funchal, em meados do século XV, como um dos principais mercados receptores.
sucedeu com os contratos e arrendamentos. Há vários indícios de que o comércio de escravos era activo e de que a Madeira era uma placa
O litoral Atlântico do continente africano, definido, primeiro, pelas Canárias e Marrocos e, giratória para esse negócio com a Europa. Em 149231 a coroa isentava os madeirenses do pagamento Ídolo de Tara relacionado com
depois, pela Costa e Golfo da Guiné, Angola, era a principal fonte de escravos. E aí a Madeira foi da dízima dos escravos que trouxessem a Lisboa. A situação, resultante da petição de Fernando Pó, festividade da Terra. Gran Canaria
buscar a mão-de-obra necessária para abrir os poios e, depois, plantar os canaviais. Primeiro foram revela que havia já na ilha um grupo numeroso de escravos e que muitos deles eram daí levados
os escravos brancos das Canárias e Marrocos. Depois os negros das partes da Guiné e Angola. para o reino.
As condições particulares da presença portuguesa no Norte de África definiram aí uma forma A prova da existência de um activo comércio de escravos entre a Madeira e Cabo Verde surge
peculiar de aquisição. Os escravos eram sinónimo de presas de guerra, resultantes das múltiplas em 156232 e 156733. As dificuldades sentidas na cultura do açúcar levaram os lavradores a solici-
pelejas, em que se envolviam portugueses e mouros. Para os madeirenses, que defenderam com tarem junto da coroa, facilidades para o provimento de escravos na Guiné, com o envio de uma
valentia a soberania portuguesa, os escravos mouros surgem ao mesmo tempo como prémio e embarcação para tal efeito. O rei acedeu à legítima aspiração dos lavradores madeirenses e orde-
testemunho dos feitos bélicos. Eram poucos os que podiam ostentar os triunfos de guerra. Outra nou que, após o terminus do contrato de arrendamento com António Gonçalves e Duarte Leão - ,
forma de aquisição era o corso marítimo e costeiros, prática de represália comum a ambas as partes. isto é, em 1562, aqueles pudessem enviar anualmente uma embarcação a buscar escravos. Em 1567
Aborígenes das ilhas Canárias no século XV. Idêntica situação ocorreu na Índia onde alguns dos madeirenses também se evidenciaram nas foi necessário regulamentar, de novo, o privilégio atribuído aos madeirenses, sendo-lhes concedido
Vinhentas do livro Le Canarien. 1402
diversas campanhas militares, como sucedeu com Tristão Vaz da Veiga. o direito de importar anualmente, por um período de cinco anos, de Cabo Verde e dos Rios de
Na Costa Africana, além do Bojador, os meios de abastecimento de escravos eram outros: Guiné, cento e cinquenta peças de escravos, dos quais cem ficariam no Funchal e cinquenta na
primeiro tivemos os assaltos e razias, depois o trato pacífico com as populações indígenas. Tudo isto Calheta.
implicava uma dinâmica diferente para os circuitos de comércio e transporte. Aqui os cavaleiros e Também aqui a maior incidência é na freguesia da Sé com (68%), sendo em todas as freguesias
corsários são substituídos pelos mercadores. que compõem a área do Funchal de 82%. Por aqui seria possível de afirmar que o porto do Funchal
A presença dos guanches na Madeira é um facto natural. Para isso contribuíram a proximidade manteve uma constante animação no trafico negreiro, sendo maior a incidência no período de 1591
da Madeira e o empenho dos madeirenses na iniciativa henriquina. Decorridos, apenas, 26 anos a 1640 e de 1670 a 1679. O primeiro momento coincide com a reafirmação da cultura da cana-de-
sob o início do povoamento da Madeira, os madeirenses embrenharam-se na complexa disputa pela açúcar na ilha, mercê da invasão holandesa do nordeste brasileiro. A quebra da década de vinte
posse das Canárias ao serviço do senhor, o infante D. Henrique. Tais condições definiram a pre- poderá ser entendida como resultado do assalto e pressão holandesa sobre o mercado de escravos
sença madeirense no mercado de escravos, surgindo, na primeira metade do século XV, algumas
incursões de que resultou o aprisionamento de escravos. Referem-se três (1425, 1427, 1434) que par- 30. A.R.M., Câmara Municipal do Funchal, tomo I, fls. 223 vo-225, sentença régia isentando os moradores da Madeira do paga-
tiram da Madeira. Mais tarde, com a expedição à costa africana de 1445 o madeirense Álvaro de mento de dízima nos escravos que levarem para Lisboa, para seu serviço, publ. in Arquivo Histórico da Madeira, Vol. XVI, 1973,
nº 161, pp. 269-271.
Ornelas fez um desvio à ilha de La Palma onde tomou alguns indígenas que conduziu à Madeira. 31. A.R.M., Documentos Avulsos, cx. 2, n1 194.
Aliás, nas inúmeras viagens organizadas por portugueses entre 1424 e 1446, surgem escravos, que 32. Idem, Câmara Municipal do Funchal, t. 3, fl. 137 vo-138.
depois são vendidos na Madeira ou em Lagos. 33. A.R.M. Câmara Municipal do Funchal, t. 1, fls. 262v1-269v1, regimento régio de 12 de Outubro, in Arquivo Histórico da
Madeira, XVII (1973), doc. Nº 203, p. 356.

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africanos, com a tomada de S. Jorge de Mina em 1622. evoluir dos dois actos. Caso estejam comprometidos com a faina agrícola seria natural que os casa-
O preço médio do escravo na Madeira, estabelecido nos inventários, variou de acordo com o mentos tivessem lugar num momento de acalmia e não de intensa actividade. Os nubentes prefe-
aparecimento de novos mercados geradores do produto e enquadra-se na conjuntura dos destinos. rem os meses aquém das sementeiras (Janeiro/Março) e das colheitas da cana-de-açúcar
Em Lisboa na década de quarenta do século dezasseis, o valor oscilava entre os dez e doze mil reis, (Maio/Junho), cereais (Julho/Agosto) e vinho (Setembro) para concretizar os casamentos. Apenas
para em princípios do século XVI descer a 4 e 6 mil reis, adquirindo na década de sessenta valor há uma coincidência com a safra do açúcar, devido a englobar um mês casamenteiro (Junho) ou,
superior a 20 mil reis, duplicando da década de trinta do século XVII. No caso da Madeira apenas então, a situação poderá significar a pouca importância que a cultura assumia na ilha no período
dispomos do valor do preço dos escravos a partir de 1561, desconhecendo-se qual a evolução até de 1538 a 1700.
então. Da informação disponível até ao ano de 1700 dá-se conta de uma tendência altista no perío- O açúcar entrou em crise na primeira metade do século XVI, em data anterior ao início dos
do de 1591 a 1610, de 1650 e 1691 a 1700. Certamente que as duas tendências iniciais são resulta- registos paroquiais. Talvez explique a razão de no século XVI o número de casamentos ser menor
do da conjuntura subsequente à perda de soberania portuguesa a favor de Castela, pois ela condi- que na centúria seguinte. A expressão é inversa em relação ao coito, que dá lugar à procriação, que
cionou de forma evidente o mercado de escravos que ficou a saque dos ingleses, franceses e holan- se afirma com maior clareza no século XVI. Todavia, deverá ter-se em conta que a maior actividade
deses. dos escravos em face da safra açucareira poderá ter efeito contrário, no sentido de que possibilita-
O segundo momento foi pautado na ilha por um ressurgimento da cultura da cana sacarina o va um maior convívio social capaz de propiciar o relacionamento sexual, legitimado pelo casa-
que deverá ter influenciado decisivamente a elevada valorização da mão-de-obra escrava. Por outro mento.
Navios negreiros, 1821 lado, o período posterior à Restauração da soberania portuguesa foi marcado por guerras em três É necessário não esquecer que a primeira metade do século XVII foi pautada pela reafirmação
áreas (Portugal, Brasil e Angola) que implicaram a saída de inúmeras forças braçais da ilha para da cultura da cana-de-açúcar mas que isso não alterou em nada a conjuntura dos casamentos e bap-
combater nas frentes de luta. tismos: 60% dos casamentos e 49% das concepções tiveram lugar na primeira metade da centúria.
Numa tentativa de estabelecer o valor real do preço do escravo estabelecemos uma comparação Se atendermos às principais áreas de produção açucareira, definidas pelo epíteto de partes do
dele com o de alguns produtos correntes e bens móveis referidos nos testamentos. Por aqui é evi- fundo, constatamos uma idêntica frequência dos casamentos e concepções. A primeira metade do
dente, no primeiro quartel do século XVI e nas décadas de quarenta a sessenta da centúria século XVII foi pautada por um elevado número de concepções (59%) e de casamentos (30%).
seguinte, uma elevada valoração do escravo no mercado madeirense. A situação coincide com A partir daqui a explicação plausível para a incompatibilidade de informações poderá ser a pre-
iguais momentos de afirmação da cultura dos canaviais. Ainda, comparado o valor com o da sol- sença da mão-de-obra escrava na cultura açucareira, no período de 1538 a 1700, não terá sido tão
dada de um trabalhador ou oficial mecânico, constata-se as diminutas possibilidades de serem pro- importante como à partida possa parecer, ou então ela resulta da nova conjuntura acima referen-
prietários de escravos. ciada. As condições orográficas da ilha não favoreciam o assíduo convívio social entre os vários gru-
A curva de nascimentos de escravos define-se por dois rumos distintos: primeiro uma tendência pos sociais do campo, pelo que os momentos mais destacados da faina agrícola eram, por vezes,
para a subida vertiginosa até à década de trinta do século XVI, quebrada por momentos de desci- propiciadores desta sociabilidade. Não se perca de vista que, por exemplo, quanto à safra vitiviní-
da entre 1551-70, 1581-90, 1601-10, 1621-30, a que se segue um crescimento, contrariado apenas na cola, a situação é diferente, pois é reduzido o número de enlaces (5%) e de concepções (8%) que tive-
década de setenta do século XVII. A fase de afirmação da natalidade dos escravos coincide com o ram lugar.
período de retorno da cana-de-açúcar na ilha, enquanto o segundo momento está relacionado com Outra associação possível poderá estar na curva evolutiva da produção de açúcar e da libertação
a crise da segunda metade da centúria setecentista, marcada pela concorrência do açúcar brasileiro dos escravos. Aqui há uma perfeita consonância. O número de libertos evoluiu de acordo com a
e dificuldades no mercado interno. A conjuntura altista é abonada pelos escravos adultos baptiza- economia açucareira madeirense. A crise da produção e comércio de açúcar, a partir do final do
dos, dado denunciador de desusada procura de escravos, que se repercute de forma decisiva na último quartel do século XVI, vai ao encontro do aumento do número de alforrias, cuja curva
natalidade dos escravos. ascendente se verifica a partir da década de vinte, culminando no final da centúria. O movimento
A expressão geográfica da natalidade dos escravos assenta numa área litoral da vertente sul inverso, na primeira metade do século XVII, poderá associar-se também a novo incremento da cul-
definida pelas freguesias da Sé, São Pedro, Câmara de Lobos. Na vertente norte a representativi- tura da cana-de-açúcar. Tudo isto foi provocado pela ocupação holandesa do estado de
dade é reduzida. Ainda na primeira área, se tivermos em conta as freguesias urbanas e suburbanas Pernambuco. A afirmação dos canaviais foi curta e repercutiu-se na curva das alforrias da segunda
do Funchal, concluiremos que elas surgem com a quase totalidade dos escravos baptizados na metade da centúria.
Madeira, nas centúrias em análise. Por isso estamos perante uma forte expressão urbana da escra- Ao invés a expressão geográfica das alforrias é dissonante com a mancha principal dos canavi-
vatura madeirense. Note-se que era também aí que se encontrava a maior parte da população da ais. Por isso é mais evidente no Funchal, Câmara de Lobos e Caniço, áreas que estão muito longe
ilha. de ser as de maior afirmação dos canaviais.
Depois, importa saber qual a implicação que isso poderá assumir o calendário agrícola no

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TRABALHO PARA ESCRAVOS E LIBERTOS ceiro. Mais tarde, em 160544 é Jorge Rodrigues, homem baço, forro, quem reclamava de Pedro
Agrela de Ornelas três mil réis de serviço que fizera no engenho em 1604. Jean Moquet45 em 1601
O escravo aparece ligado à cultura dos canaviais mas sem atingir a mesma proporção de S. Tomé dá conta de uma activa intervenção dos escravos na faina dos engenhos, uma vez que terá presen-
ou do Brasil: em 149634 a coroa dava conta da simbiose ao estabelecer a proibição de venda, por ciado um "grand nombre d'esclaves noirs qui travaillent aux sucres dehors la ville". É o único teste-
dívidas, de bens de raiz "nem escravos nem espravas", animais e aparelhos de engenho, permitin- munho denunciador da presença dos escravos na economia açucareira que não encontra funda-
do apenas a transacção nas "novidades" arrecadadas. Noutro documento de 150235, acerca das mento nos dados documentais disponíveis.
águas de regadio, o monarca refere que era hábito os proprietários mandarem "os espravos e homes Certamente que a única particularidade do serviço dos escravos nos engenhos madeirenses
de soldada que tem de reger seus canaveaes". residia no facto de trabalharem de parceria com homens livres ou libertos, destacando-se aqui os
À ligação do escravo à fase de cultivo e amanho dos canaviais também se pode atestar a presença trabalhadores de soldada: em 157846 António Rodrigues, trabalhador, declara em testamento que
dele nas diversas tarefas ligadas à laboração do engenho. O regimento dos alealdadores de 150136 havia trabalhado sob as ordens de Manuel Rodrigues, feitor do engenho de D. Maria.
refere o serviço especializado, aí diz-se que os mestres e lealdadores que fizessem açúcar quebrado As actividades ou ofícios dos libertos não estavam longe daqueles que executavam ou exerciam
sujeitavam-se a severas penas e, numa alusão clara à presença deles, ordena-se que, caso eles fossem quando escravos. No meio rural a eterna ligação à terra e, na cidade, a vinculação aos trabalhos
cativos, a coima correria pelo proprietário. oficinais ou os serviços domésticos, continuaram a demarcar o quotidiano. A maioria dos libertos
O serviço dos escravos poderia assumir duas situações distintas: ajudante dos oficiais da safra, vivia do trabalho diário ao serviço de outrem. Isto favoreceu a existência de fortes laços de soli-
ou os mesmos operários especializados. Em 148237, numa demanda sobre a qualidade do açúcar dariedade entre eles e os outros trabalhadores livres, o que nunca agradou às autoridades munici-
"temperado", depõem perante a vereação do Funchal os mestres de açúcar, Vaz e André Afonso: o pais. A par disso inúmeros encargos de alforria expressam a obrigatoriedade de a soldada arrecada-
primeiro referia que, por ter estado ausente nas Canárias, um homem, seu cativo, havia temperado da pelos respectivos forros ser utilizada para cumprir as obrigações com aquele acto. De entre os
o açúcar, enquanto o segundo, também fora da ilha, havia entregue o mesmo trabalho a um moço inúmeros caso referenciados merece a nossa atenção o de Pedro, que fora escravo de Isabel Dinis,
que o servia de soldada. vendedeira, que ficará cinco anos de soldada "a quem por ele mais der", sendo o dinheiro arrecada-
Aos testemunhos denunciadores da participação do escravo, como serventes, na cultura e fabri- do para o resgate de um cativo dos mouros47.
co do açúcar também se poderão juntar outros que demonstram terem actuado na qualidade de O escravo em muitas sociedades, para além da função económica, também se afirmou pelo valor
oficiais de engenho: primeiro tivemos os escravos canários que se apresentaram na ilha como sumptuário, sendo em várias delas uma forma de distinção social48. Na Madeira, a exemplo das
Engenhos no Brasil
exímios mestres de açúcar, como se poderá verificar pela cautela posta em 149038 e 150539, quanto diversas áreas europeias, isto é evidente, como se poderá verificar na obra de Gaspar Frutuoso. Diz
à expulsão40. Temos, ainda, notícia de dois escravos que foram mestres de engenho, e não sabemos ele a respeito de Machico: "havia muitas mulatas e muito bem tratadas e de ricas vozes, que é sinal
se eram ou não guanches: em 148641 Rodrigo Anes, o Coxo, da Ponta do Sol, estabeleceu em testa- de antiga nobreza de seus moradores, porque em todas as casas grandes e ricas há esta multipli-
mento a alforria de Fernando, mestre de engenho. Ao lado deste trabalhador escravo temos outros cação dos que as servem"49. Na Lombada do Arco da Calheta vivia Dona Isabel de Abreu, viúva de
mancebos de soldada de quem era devedor. Em 150042 no testamento de João Vaz, escudeiro, ref- João Rodrigues de Noronha, filho do capitão do Funchal, com duas fazendas "muito grossas",
ere-se que o escravo, Gomes Jesus, era mestre de açúcar. tendo ao serviço uma moura como "privada sua"50.
Em 160243 Belchior Dias, caldeireiro e preto, surge como credor de serviços prestados a um ter- A partir da crise da cultura da cana-de-açúcar o excesso de mão-de-obra escrava disponível terá
provocado uma mudança de sector de actividade e um aumento das alforrias. O escravo transfere-
se do campo para a cidade vindo alimentar o numeroso grupo de serviçais das casas senhoriais e
as oficinas. É necessário ter em consideração que ao lado dos escravos para o serviço da casa havia
34. Ibidem, t. 1, 98-98vº, carta régia de 25 de Fevereiro, in Ibidem, nº 258, 429-431.
35. Ibidem, t. 1, fls. 83vo-94, regimento de 27 de Março, in Ibidem, nº 246, 412-413.
36. A.R.M., Câmara Municipal do Funchal, nº 1297, fl. 45, vereação de 20 de Abril de 1482.
37. A.R.M. Câmara Municipal do Funchal, t. 1, fls. 34vº, 36vº, carta de 9 de Março, in Arquivo Histórico da Madeira, XVI (1973),
doc. nº 145, pp. 241-242. 44. Voyages, liv. 1, p. 50, cit. por V. M. GODINHO, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, IV, Lisboa, 1983, 201.
38. Ibidem, t. 1, fls. 107-107 vº, carta régia de 22 de Janeiro, in Ibidem, n1 284, pp. 451-452. 45. A.R.M., Misericórdia do Funchal, nº 684, fl. 539vº, testamento de 23 de Julho.
39. Ao contrário do que refere Manuela MARRERO ("De la esclavitud en Tenerife", in Revista de História, nº. 100, 1952, 434) os 46. A.R.M., Misericórdia do Funchal, nº 710, fls. 50vo-54, 19 de Agosto de 1511.
escravos também estiveram ligados à safra do açúcar, referenciando-se pelo menos um mestre de açúcar em Telde (M. LOBO 47. Esta opinião é corrobada por B. BENASSAR (Valladolid au siècle d'or (...), Paris, 1987) e Vitorino Magalhães GODINHO (ibi-
CABRERA, Esclavos Indios en Canarias, Madrid, 1983 em separata, p. 528, nota 55). dem, 198-201), sendo o primeiro criticado por Luís FERNANDEZ MARTIN, Comediantes, esclavos y mouriscos en Valladolid.
40. Arquivo Histórico da Madeira, III, 1933, 154-159. Siglos XVI y XVII, Valladolid, 1988, 129.
41. A.R.M., Capelas, cxa. 118, nº 4, testamento de 9 de Janeiro. 48. Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, 103.
42 . ARM, Misericórdia do Funchal, nº.684, fls. 717-717vº, 17 de Outubro. 49. Ibidem, 260.
43. Ibidem, nº 684, fl. 370, testamento de 26 de Agosto. 50. Eles surgem com assídua frequência nos registos de crismas da freguesia da Sé, A.N.T.T., Cabido e Sé do Funchal, nº 36.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

os livres, referenciados como criados51. O serviço doméstico era por norma uma atribuição dos escravo. Aqui é, mais uma vez, evidente o carácter sumptuário do escravo, pois os donos situam-se
escravos do sexo feminino, pois os do masculino ocupavam-se nas tarefas agrícolas, artesanais ou, maioritariamente no sector de serviços (82%). O escravo estaria ligado aos serviços não produtivos
então, eram homens de soldada ao serviço de outrem. A par disso à mulher estavam ainda reser- da casa dos membros do clero (24%), dos oficiais das companhias de ordenanças (19%) e dos fun-
vadas outras tarefas, surgindo vendedeiras de fruta e lavadeiras. O exercício da actividade de venda cionários das instituições régias e locais (16%). O grupo de agricultores (3%) é reduzido. É necessário
de produtos agrícolas no mercado local pelos escravos estava sujeito a inúmeras regulamentações, ter em atenção que os dados usados surgem, preferencialmente, a partir de meados do século XVI,
limitativas do exercício doloso. Eram dados ao furto do senhor e dos compradores, amealhando, momento em que o açúcar deixa de ter importância na agricultura e comércio madeirenses. Esta
por vezes, quantias para conseguir a alforria. conjuntura sócio-económica da ilha deverá ter pesado nisso. A partir de então o escravo alheia-se
Os escravos do sexo masculino exerciam diversas tarefas nos mais variados sectores de activi- do sector produtivo, passando a reforçar o grupo de serviçais das principais famílias, tal como o
dade. Tanto poderiam ser artesãos como agricultores, almocreves e homens de soldada. É cons- testemunham alguns estrangeiros que nos visitaram.
tante a presença nos livros de receita e despesa de obras, como a da alfândega do Funchal. Os Já o dissemos, mas nunca é por demais referi-lo, na Madeira a escravatura não é necessaria-
senhores usavam-nos também para os substituírem no serviço de construção das fortificações, a que mente sinónimo de cana-de-açúcar e vice-versa56. Aqui, ao contrário do que sucede no Brasil, por
todo o cidadão deveria participar com um dia de trabalho. exemplo, estamos perante dois fenómenos que, em poucos momentos se cruzam. Nos séculos XVII
O aparecimento na ilha se liga de modo directo com a pastorícia52 e agricultura. A safra açu- e XVIII é mais evidente o distanciamento entre ambas as realidades. A partir da listagem, que dis-
careira, por um lado, a vivência pastoril dos canarios53, por outro, fizeram com que eles, os pomos, dos proprietários de canaviais e escravos é possível traçar os possíveis laços de união das
primeiros escravos na ilha, se evidenciassem como pastores, agricultores e técnicos e nos serviços duas realidades57. De acordo com o livro do quinto de 1600 constata-se que o número de propri-
de engenho. A documentação, como vimos, é prenhe em referências a esta múltipla intervenção dos etários de canaviais e escravos (39%) é superior à situação da primeira metade do século XVI, mas
escravos na economia madeirense. Dos demais, para além daqueles que referenciamos em separa- que o número não tem qualquer relação directa com os níveis de produção. Assim, por exemplo,
do, na safra do açúcar, apenas surgem cinco com ofício, sendo dois almocreves, um alfaiate, um sur- Maria Gonçalves, viúva de António de Almeida, é quem surge com o maior número de escravos,
rador e uma vendedeira54. sendo diminuta a produção de açúcar.
A actividade declarada para os libertos poderá elucidar-nos sobre a que exerciam quando A conclusão possível é que na Madeira, a exemplo do que sucedeu nas Canárias58, a mão-de-obra
escravos, caso a alteração de estatuto social não conduzisse a qualquer mudança. Aqui, para além utilizada nos engenhos era mista, sendo composta por escravos, libertos e livres, que executavam
do grupo comprometido com a safra do açúcar, surge uma multidão sem actividade determinada, tarefas diferenciadas, sendo os serviços pagos em dinheiro ou açúcar59. Neste grupo de escravos
vivendo na maioria na condição de domésticos, assumindo especial importância, no último incluíam-se os que pertenciam ao proprietário do engenho mas também outros que aí serviam como
domínio, os do sexo feminino. Os libertos com um ofício surgem com maior frequência no Funchal, gente de soldada. Apenas um exemplo para elucidar a situação. De acordo com o testamento de Rui
sendo quase nulos nas freguesias rurais. Mendes de Vasconcelos é possível fazer uma ideia da composição social do grupo de trabalhadores
Para o sexo masculino, o relacionamento através do casamento com os diversos homens habili- de um engenho60. Um grupo significativo de almocreves, escravos ou de soldada, executavam um
tados com um ofício, poderá ser um indício caracterizador da situação sócio-profissional. O rela- conjunto variado de tarefas de transporte de lenha e fechos de cana. Dos operários especializados
cionamento preferencial é com os trabalhadores, aliás já testemunhado e regulamentado pelas pos- são referidos, um refinador de meles, um prenseiro, mulato e um António Jorge filho de um mestre
Capela de Nossa Senhora de Penha França,
fundada em 1680 por António Teixeira Dória,
turas: do total de setenta e sete enlaces matrimoniais, trinta e dois foram com trabalhadores, nove de açúcar. O quadro completa-se com um Pedro, mulato, que foi de Pedro de Brito.
no local onde se diz ter existido um templo de mouros. com homens do mar, sete com almocreves, quatro com cantoneiros e sapateiros e três com Também no Brasil estávamos perante uma mão-de-obra mista, mas acontece que os escravos
lavradores. dominavam os serviços. Eles tanto podiam ser pertença do proprietário do engenho de canaviais,
Outro dado que poderá, ainda, apontar-se no sentido de uma possível identificação sócio-profis- ou de outrem, que os alugava. É aqui que se radica a principal diferença entre a ligação do escravo
sional do escravo é o ofício do proprietário, pois segundo A. Franco Silva55, por ele se conhece o do ao açúcar na Madeira e do outro lado do Atlântico. Em termos concretos quer dizer que a cultura
da cana-de-açúcar poderia subsistir na Madeira sem a presença do escravo. Por isso é anacrónico
51. Na ilha do Pico (Açores) os escravos não podiam ser pastores, Arquivo dos Açores, XII, 404-445, alvará de 3 de Junho de 1511.
52. Sobre as actividades pastoris dos escravos é extensa a bibliografia em Canárias: Manuel LOBO CABRERA, La Esclavitud en 56. Apenas para o século XVII, uma vez que para a centúria seguinte ainda não foi feito o levantamento dos escravos. Confronte-se
Las Canarias Orientales (...), Las Palmas, 1982, 239; idem, "Los galegos en Canarias (...)", 217; idem, "Los indigenas trás de la o nosso estudo sobre Os escravos no arquipélago da Madeira. Séculos XV a XVII, Funchal, 1991 Aborígenes de Canárias
conquista (...)",Instituto de estudios Canrios.50 aniversario(1932-1982),vol.II, Santa Cruz de Tenerife, 1982, 241-243; Eduardo 57. F. FERNANDEZ-ARMESTO, The canary islands after the conquest, Oxford, 1982, 85; Manuel LOBO CABRERA, La esclavi-
AZNAR VALLEJO, La Integración de las islas Canarias en la Corona de Castilla, La Laguna, 1983, 200-204; Manuela MAR- tud en las Canarias orientales en el siglo XVI, Las Palmas, 1982, 232-246, idem, Grupos humanos en la sociedad canaria, Las
RERO, La Esclavitud en Tenerife (...), Santa Cruz de Tenerife, 1968, 93-109. Palmas, 1979, 36, idem, Los Libertos en la sociedad canaria del siglo XVI, Santa Cruz de Tenerife, 1983, 50-61.
53. A.R.M., Câmara Municipal de Machico, nº 109, 86 vº, 9 de Maio de 1696, João de Castro, almocreve do capitão Manuel Barbosa. 58. Alberto Vieira, O Comércio Inter-Insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 57.
54. La Esclavitud en Sevilla (...), Sevilha, 1979, 194 59. ARM, Misericórdia do Funchal, nº.684, fls.52-62vº, 16 de Abril de 1569.
55. Os Escravos na Madeira. Séculos XV a XVII, Funchal, 1991 60. Ibidem, t. 1, fls. 83vo-94, regimento de 27 de Março, in Ibidem, nº 246, 412-413.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

referir aqui a simbiose entre os escravos e os canaviais. A Madeira poderá ser considerada o começo Atlas de Lázaro Luís.1563

da ligação mas nunca uma situação em miniatura daquilo que surgirá mais tarde no continente
americano.
Em síntese, poderemos afirmar que, na Madeira, a exemplo do que sucedeu nas Canárias, a
mão-de-obra utilizada nos engenhos era mista, sendo composta por escravos, libertos e livres, os
quais executavam tarefas diferenciadas, sendo os serviços pagos em dinheiro ou açúcar61. No grupo
incluíam-se os que pertenciam ao proprietário do engenho mas também outros que aí serviam
como gente de soldada. Também no Brasil a mão-de-obra era mista, mas acontece que os escravos
dominavam os serviços. Eles tanto podiam ser pertença do proprietário do engenho de canaviais,
ou de outrem, que os alugava. É aqui que se radica a principal diferença entre a ligação do escravo
ao açúcar nas ilhas e do outro lado do Atlântico.
Os escravos que surgem no mercado madeirense são na quase totalidade de origem africana,
sendo reduzida ou nula a presença daqueles de outras proveniências, como o Brasil, América
Central e Índia. Isto pode ser resultado, por um lado, da distância ou das dificuldades no trafico e,
por outro, das assíduas medidas limitativas ou de proibição, como sucedeu no Brasil e Índia.
Apenas o mercado africano, dominado pela extensa costa ocidental, em poder dos portugueses,
não foi alvo de quaisquer proibições. As únicas medidas foram no sentido de regular o tráfico, como
sucedeu com os contratos e arrendamentos. O litoral Atlântico do continente africano, definido,
Escravos africanos. primeiro, pelas Canárias e Marrocos e, depois, pela Costa e Golfo da Guiné e Angola, era a prin-
Gravura Hansburgk Mair-1509 cipal fonte de escravos. Foi aí que a Madeira foi buscar a mão-de-obra necessária para abrir os poios
e, depois, plantar os canaviais. Tivemos primeiro os escravos brancos das Canárias e Marrocos.
Depois os negros das partes da Guiné e Angola.
As condições particulares da presença portuguesa no Norte de África definiram aí uma forma
peculiar de aquisição. Os escravos eram sinónimo de presas de guerra, resultantes das múltiplas
pelejas, em que se envolviam portugueses e mouros. Para os madeirenses, que defenderam com
valentia a soberania portuguesa, os escravos mouros surgem ao mesmo tempo como prémio e teste-
munho dos feitos bélicos. Eram poucos os que podiam ostentar os triunfos de guerra. Outra forma
de aquisição era o corso marítimo e costeiros, prática de represália comum a ambas as partes.
Idêntica situação ocorreu na Índia onde os madeirenses também se evidenciaram nas diversas
batalhas aí travadas, como sucedeu com Tristão Vaz da Veiga. Na Costa Africana, além do Bojador,
os meios de abastecimento de escravos eram outros. Os assaltos e razias deram depois lugar ao trato
pacífico com as populações indígenas.
O processo de formação das sociedades insulares da Guiné foi diferente do da Madeira e Açores.
A distância do reino e as dificuldades de recrutamento de colonos europeus devido à insalubridade
do clima condicionaram, de modo evidente, a forma de expressão étnica. A par de um reduzido
número de europeus, restrito em alguns casos aos familiares dos capitães e funcionários régios, vie-
ram juntar-se os africanos, que corporizaram o grupo activo da sociedade. Mas a presença de negros,
sob a condição de escravos, incentivada no início, foi depois alvo de restrições. O espírito insubmis-
so, de que resultaram algumas e sérias revoltas em S. Tomé, foi a principal razão das medidas.

61 Informações para a Estatística Industrial. Publicadas pela Repartição dos Pesos e Medidas. Districto de Leiria e Funchal, Lisboa,
1863.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Mulher do Congo com criança. No caso da Madeira refere-se, com base em Gaspar Frutuoso, que os escravos representariam em
Albert Eckhout. 1641
1552 cerca de 14% do total dos habitantes do Funchal e 29 % de toda a ilha, mas os dados por nós
compulsados para toda a ilha e relacionados com o recenseamento de 1598 ficam-se por 5%,
enquanto nas Canárias orientais tal percentagem rondaria os 15%. A percentagem do grupo nos re-
gistos paroquiais é reduzida, não ultrapassando na totalidade os 3%. Os valores mais elevados
surgem nos baptismos e casamentos em 1590 com,
respectivamente, 12% e nos óbitos de 1569 com 19%66.
Quando a cultura e fabrico do açúcar retornam
no século XIX já a escravatura havia sido abolido,
sendo o sistema organizado de forma distinta.
Enquanto no mundo rural perpetuava-se o tradi-
cional sistema de “contrato de colónia”, na labo-
ração dos engenhos de açúcar estávamos, em muitos
casos, com um trabalho especializado, agora execu-
tado por engenheiros ou técnicos devidamente
habilitados, a que se juntava o pessoal assalariado. A
evolução tecnológica obrigou a uma especialização
do pessoal. Apenas nas fábricas de aguardente, em
que o processo era mais simples, não requerendo
muitos conhecimentos técnicos e químicos.
No levantamento da situação industrial da ilha
feito por Francisco Paula Campos e Oliveira62 con-
stata a falta de conhecimentos por parte do pessoal
envolvido nos engenhos de açúcar e aguardente: A
falta de manuaes das differentes industrias, dos
quaes poderão tirar grandes vantagens muitos fabri-
cantes e artistas, tornando-se ao mesmo tempo po-
pulares as diferentes sciencias que às industrias se
ligam imediatamente, é uma falta sensível, e con-
corre para o nosso atraso industrial…”63
De acordo com outro registo da situação industrial da ilha de 190964 sabemos qual o pessoal
empenhado no funcionamento de pelo menos dois engenhos. O engenho do Torreão apresentava- Trabalhadores do engenho do Hinton,
se com 251 trabalhadores, maioritariamente operários pagos ao salário diário de trabalho. Do pes- em princípios do século XX

soal técnico especializado menciona-se: químicos, cozedores, chefes de bateria, ajudantes de labo-
ratório e engenheiros mecânicos. Nas demais fábricas, tirando a Companhia Nova no Funchal com
33 trabalhadores, o número de operários rondava a pouco mais de uma quinzena.

62 . Para a situação da Madeira nos séculos XV e XVII veja-se o nosso estudo Os Escravos da Madeira. Séculos XV a XVII, Funchal,
1991
63 . Ibidem, p.7
64 . Victorino José dos Santos, Relatorio dos Serviços da Secção Technicos de Industria no Funchal no ano de 1907, in Boletim do
Trabalho Industrial, nº.24, 1909, p.19

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ANEXO: OFÍCIOS LIGADOS AO AÇÚCAR CAIXEIRO


DATA NOME LOCAL DATA NOME LOCAL
1539 Álvaro Pires Ribeira Brava 1561-1599 João Fernandez Funchal
MESTRE DE AÇÚCAR 1540 Silvestre Dinis Funchal 1568-77 Manuel Rodrigues Funchal
DATA NOME LOCAL DATA NOME LOCAL 1540 Nicolau Gonçalves Funchal 1570 Niculau Fernandez Funchal
1482 Mestre Vaz 1565 João Martins Serra Água
1542-53 João Francisco Funchal 1573-1697 Manuel Rodrigues Funchal
1482 André Afonso 1570-74 Gaspar Luís Câmara Lobos
1542 Lourenço Anes Funchal 1576 Álvaro Gonçalves Funchal
1486 Fernando, escravo de Rodrigo 1571 Francisco Gonçalves Funchal
1542 Heitor Lopes Funchal 1576 Pedro Afonso Funchal
Anes o Coxo Ponta do Sol 1574 Pedro Vaz Funchal
1500 Gomes Jesus, 1576 Diogo Esteves Funchal 1543 Pedro Anes Funchal 1580-83 Gonçalo Vieira Funchal
escravo de João Vaz 1577 Manuel Martins Ribeira Brava 1543 Afonso Anes Funchal 1584 Francisco Gomes Funchal
1512 Manuel Roiz 1579 Francisco Gonçalves Ribeira Brava 1543-56 Bartolomeu Roiz Funchal 1584 Álvaro Anes Funchal
1539-1581 João Fernandes Funchal 1580 Manuel Martins Calheta 1546 Pedro Alvares Funchal 1584-98 Afonso Rodrigues Funchal
1539 Baltasar Fernandes Ribeira Brava 1582 Baltasar Fernandes Calheta 1546 Manuel Afonso Funchal 1597 Álvaro Luís Funchal
1543-70 António Gonçalves Funchal 1582-84 Manuel Martins Funchal 1546-56 Rodrigo Anes Funchal 1600 João Gonçalves Funchal
1543 Jorge Fernandes Ribeira Brava 1584 Domingos Sardinha Funchal 1549 Álvaro Nunes Funchal 1601-1605 Manuel Gonçalves Funchal
1543 António Oliveira Ribeira Brava 1590 Gonçalo Fernandes Santo António 1551 João Martinz Funchal 1609 Vicente Pereira Funchal
1548 Francisco Pires Ribeira Brava 1590 Baltasar Gonçalves Funchal 1551-53 Francisco Brás Funchal 1610 Melchior Rodrigues Funchal
1548 Manuel Martins Ribeira Brava 1590 António Fernandes São Martinho 1551 Domingos Gil Funchal 1615 Sebastião Alvares Funchal
1554 Pedro Fernandes Funchal 1591 António Alvares Funchal
1551 António Rodriguez Funchal 1617 Pedro Fernandez Funchal
1554-81 Manuel Afonso Funchal 1593 Manuel Afonso Funchal
1551-55 Francisco Fernandes Funchal 1618 Vicente Faria Funchal
1556 Gaspar Piris Funchal 1598-1600 Sebastião Sardinha Funchal
1554 Lourenço Anes Funchal 1620 Afonso Pires Funchal
1557-94 Gregório Fernandes Ribeira Brava 1598 Gonçalo Jorge Funchal
1558-81 Roque Fernandes Funchal 1601 Pedro Martins Funchal 1554 Francisco Nunes Funchal 1625 Francisco Riscado Funchal
1560-81 João Fernandes Funchal 1606 António Costa Funchal 1555 Francisco Dias Funchal 1632 Miguel Fernandez Funchal
1561 Gaspar Fernandes Funchal 1619 Domingos Gomes Ponta Sol 1555 Manuel Dias Funchal 1632 Manuel Gomes Porto da Cruz
1564 Jorge Fernandes Funchal 1620 Gonçalo Fernandes Funchal 1556 Pedro Fernandez Funchal 1634 Pedro Pestana S. Vicente
1564-99 Marcos Gonçalves Funchal 1633 Manuel Pires Ponta Sol 1556 Belchior Rodrigues Funchal 1634 Domingos Fernandez Arco S. Jorge
1556 João Delgado Funchal 1639 Francisco Dias S. Vicente
1556 Álvaro Moniz Funchal 1644 Bertolomeu Fernandez Calheta
CALDEIREIRO
1557 António Gonçalves Funchal 1677 Manuel Rodrigues Funchal
DATA NOME LOCAL DATA NOME LOCAL
1541 Garcia Alvares Ribeira Brava 1581 Domingos Fernandes Funchal 1558 Clemente Gil Funchal 1682 Miguel Fernandez Funchal
1541 Francisco Vaz Ribeira Brava 1582 Baltasar Gonçalves Funchal 1561-1601 Belchior Roiz Funchal 1698 José Vieira Funchal
1547 Jerónimo Gonçalves Funchal 1582-1623 António Rodrigues Funchal
1551 Baltasar Rodrigues Funchal 1584 Domingos Sardinha Funchal PURGADOR
1551-53 João Delgado Ribeira Brava 1593 Tomé Gonçalves Funchal
DATA NOME LOCAL DATA NOME LOCAL
1553 Manuel Afonso Funchal 1594 Manuel Rodrigues Funchal
1542-88 Gonçalo Gonçalves Caniço 1548 Manuel Carvalho Funchal
1558 Gaspar Gonçalves Funchal 1600 António Rodrigues Funchal
1543 Francisco Vicente Funchal 1548-55 Francisco Afonso Calheta
1559 Diogo Dias Funchal 1601 Domingos Martins Funchal
1559 Francisco Anes Funchal 1601 Cristóvão Dias Funchal 1543-1613 António Gonçalves Funchal 1549 Pedro Vaz Funchal
1559 Roque Fernandes Funchal 1622 Francisco Fernandes Funchal 1543 Gonçalo Fernandes Funchal 1554-1561 Belchior Rodrigues Funchal
1568-81 Gonçalo Anes Funchal 1623 António Rodrigues Funchal 1544 Gonçalo Anes Funchal 1558 Gil Anes Funchal
1570 João Afonso Funchal 1641 Manuel Gomes Ribeira Brava 1545 João Martins Calheta 1561-1582 Manuel Fernandes Funchal
1574 Francisco Moniz Funchal 1656-70 Manuel Fernandez Funchal 1547 João Anes Calheta 1558 Júlio Anes Funchal
1578 João Gonçalves Funchal 1657 António Coelho Funchal 1548 Gonçalo Ramalho Funchal 1558-1562 João Dias Funchal

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

OUTROS OFÍCIOS
DATA NOME LOCAL DATA NOME LOCAL DATA NOME LOCAL
1564-1601 João Fernandes Funchal 1589-98 António Gonçalvez Funchal Cozedor meles 1556-72 António Gonçalvez Funchal
1568 António Rodrigues Funchal 1591 Manuel Gonçalves Funchal 1559 Pedro Mendes Funchal
1570 André Pires Funchal 1594 Diogo Gonçalves Funchal 1567-1574 João Fernandez Funchal
1570-78 João Pires Funchal 1594 Francisco Pires Funchal 1574 Manuel Fernandes Funchal
1571 José Gonçalves Ribeira Brava 1596 António Fernandez Funchal 1574 João Pires Funchal
1571-75 João Gonçalves Funchal 1596 Francisco Esteves Ribeira Brava Confeiteiro 1551 Maria Gomes Funchal
1573-1613 Manuel Rodrigues Funchal 1598 Manuel Carvalho Funchal 1556-57 Francisco Fernandez Funchal
1574-1607 Manuel Gonçalvez Funchal 1598-1606 Manuel Roiz Funchal 1657 Adrião Gomes Funchal
1574 António Afonso Câmara Lobos 1598-1616 Bastião Gomes Funchal Conserveiro 1607 João Dias Funchal
1576 Gonçalo Fernandez Ribeira Brava 1600 Belchior Lopes Funchal Escumeiro 1577 Gaspar Fernandez Calheta
1577-1598 Francisco Fernandez Funchal 1601 Melchior Gonçalvez Funchal Feitor Engenho 1584 João Velho (de Pedro de Agrela) Funchal
1578-83 Pedro Alvares Funchal 1604-1632 Gaspar Sardinha Funchal Refinador 1543 Jerónimo Martins Funchal
1580 Bertolomeu Nunes Funchal 1608 Gonçalo Anes Funchal 1543 Vaz Funchal
1583 João Gonçalvez Funchal 1613 Inocêncio Gomes Funchal 1555-1564 António Gonçalvez Funchal
1583 Pedro Gonçalvez Funchal 1620 Belchior Martins Funchal
1583 Francisco Martins Funchal 1622 Diogo Gomes Funchal
1583 Afonso Roiz Funchal 1629 Belchior Gomes Funchal
1584-1609 Francisco Fernandez Funchal 1629 Diogo Dias Funchal
1586 Manuel Pires Ponta Sol

PRENSEIRO CANAVIEIRO
DATA NOME LOCAL DATA NOME LOCAL
1551 Francisco Lopes Funchal 1542 Manuel Afonso Funchal
1552 André Rodrigues Funchal 1551 Diogo Gonçalves Funchal
1552 António Dias Funchal 1556 Gonçalo Rodrigues Funchal
1564 Domingos Fernandes Funchal 1562 Bastião Gonçalves Funchal
1570 Manuel Fernandes Funchal 1563 António Mendes Funchal
1574 Pedro Gonçalves Funchal 1577 Pedro Anes Calheta
1580 Jorge Gonçalves Funchal 1578-84 Gaspar Gonçalves Funchal
1590 Belchior Luís Funchal 1580 Pedro Martins Calheta
1584 Belchior Afonso Funchal
1591 Francisco Borges Funchal
MOEDOR
DATA NOME LOCAL
1574 João Dias Funchal
1578 Domingos Gonçalves Funchal
1580 Bastião Pereira Funchal
1655 Diogo Fernandes Funchal

314 315
CAPÍTULO 4

o mercado do AÇÚCAR,
álcool e aguardente
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O MERCADO DO AÇÚCAR,
ÁLCOOL E AGUARDENTE
Na Cristandade Ocidental o açúcar demorou em tornar-se o manjar de todos. Por muito tempo
foi uma raridade e usado quase sempre como um medicamento. O açúcar tornou-se num elemen-
to inquestionável na farmacopeia ocidental, como o provam textos desde Galeno a Hipócrates.
Apenas no século dezasseis para as chamadas drogas orientais. Os textos de Garcia da Horta e
Tomé Pires assim o denunciam.
A aplicação farmacológica do açúcar no século XVI está documentada nas receitas e despesas
dos hospitais das misericórdias e esmolas da coroa em açúcar aos hospitais -Todos os Santos em
Lisboa (1506), Misericórdias do Funchal (1512) e Ponta Delgada (1515) – e conventos – Guadalupe
(1485), Évora (1497), Beja (1500), Aveiro (1502), Coimbra (1510), Vila do Conde (1519). A tradição
árabe da dádiva do açúcar e doces conquistou a coroa portuguesa, que não se fez rogada em dádi-
vas, usando para isso parte significativa do açúcar arrecadado na ilha1.
A situação do açúcar como raridade manteve-se por muito tempo. Foi só no século XIX que se
começou a generalizar o consumo. Mesmo assim continua a estar associado às farmácias e boticas.
Proudhon refere que "o açúcar é toda a farmácia do pobre". Na verdade o açúcar era um suple-
mento capaz de suprir a insuficiência calórica. E se tivermos em conta que o principal problema
de sociedade do antigo regime era a desnutrição das populações, resultante da pobreza calórica de
dieta alimentar, teremos a explicação para os efeitos benéficos do consumo. A alimentação era
pouco variada e, quase só, assente no consumo de pão. A ingestão diária de calorias era inferior a
2000, quando hoje os padrões médios oscilam entre 3000 a 4000. A isto liga-se a constância das
crises de subsistência que contribuíram para agravar a situação.
A falta de pão não é só sinónimo de fome, mas também de doença e instabilidade social. A

1. PEREIRA, Fernando Jasmins. O açúcar Madeirense de 1500 a 1537. Produção e preços. Lisboa: Instituto Superior de Ciências
sociais e Politica Ultramarina, [1970?]. Sep. de Estudos políticos e Sociais, Vol. VII, nº' 1, 2 e 3, 1969. BRAGA, Paulo Drumond,
"O açúcar da ilha da Madeira e o mosteiro de Guadalupe", in Islenha, 9, 1991, 43-49. SALGADO, Anastacia M. e Abílio José,
Porto do Funchal. Gravura do século XIX O Açúcar da Madeira e algumas instituições de assistência na Península e Norte de Africa, durante a 1ª metade do século XV,
Lisboa, 1986.

318 319
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

maior parte dos moribundos, acolhidos pelos hospitais apresenta os mesmos sintomas. Por isso o da conjuntura do mercado do açúcar em finais do século XV. O aparecimento de novos mercados
açúcar, pelo elevado valor calórico, era a mezinha indispensável. Um dos muitos indícios da fé que produtores, como a Madeira, fez baixar o preço, provocando a generalização do consumo. A
os nossos antepassados depositavam no poder fortificante destes produtos está na ração obrigató- importância que assumiu o açúcar na economia madeirense mede-se pelo facto de ter assumido a
ria estabelecida para a dieta de bordo das caravelas. Ambas supriam as deficiências calóricas e função de medida e moeda de troca e pagamento dos mais diversos serviços. Para isso contribuiu,
reforçavam a fraca capacidade imunológica. não só, a afirmação no quotidiano, mas também, a falta crónica de moeda na ilha4.
Nas áreas produtoras como a Madeira o consumo de açúcar acabou por adquirir importância
desde muito cedo. Os chamados desperdícios da laboração do açúcar,
como escumas, rescumas, melaço, tinham entre os locais habituais con- O CONSUMO DO AÇÚCAR
sumidores. Além disso o acto de chupar o suco da cana, que muitos de nós
terão gravado na memória, é antigo. Já Giulio Landi2, cerca de 1530, refere A safra começava em Março mas só em Agosto havia disponível para distribuir às conserveiras
ser usual os madeirenses comerem "em jejum canas maduras e frescas e que fabricavam a casca e conserva. A partir daqui eram mais de trinta dias de árdua tarefa até que
dizem que rejuvenescem para dar sensualidade ao corpo, para refrescar o o produto estivesse disponível para a exportação. Da existência ou não de açúcar e da qualidade
fígado, para saciar a sede, e para branquear os dentes". A isto acresce uma dependia a disponibilidade para o fabrico dos derivados, que activavam o comércio com as praças
receita das mulheres grávidas, consistente em "sopas de pão torrado deita- do Norte da Europa, donde nos províamos de cereais e manufacturas5.
do na última cozedura do suco das canas, cobrindo depois com gemas de No século XVII a indústria de derivados de açúcar era muito instável, dependendo das possibi-
ovo", considerada como meio para "recuperar as forças perdidas", para lidades de oferta de açúcar brasileiro e da procura do produto acabado pelos mercadores europeus.
além de confortar o estômago e intestinos e dar boa disposição ao ventre. A correspondência de Diogo Fernandes Branco e W. Bolton testemunham de forma evidente a rea-
Sem dúvida que o maior consumo do açúcar não foi nos fármacos mas lidade. Diz o último em 7 de Agosto de 1697: "Pensou-se fazer uma grande quantidade de conser-
sim nos manjares nobres, sob a forma de doce - alfenim, alféola-, conservas va de citrinos mas muitos fabricantes desistiram por não saberem se os barcos os viriam buscar"6.
e casca de fruta. Em qualquer dos casos a Madeira ficou célebre. A doçaria As indústrias da casquinha, conservas de fruta e confeitos mantiveram-se durante muito tempo
conventual fez as delícias dos manjares reais, dos ingleses, franceses e como uma actividade da economia familiar, não acompanhando a queda da produção de açúcar
flamengos. A tradição do fabrico do alfenim, que hoje se perdeu, fez dos madeirense, pois à falta dele alimentou-se do importado do Brasil. No decurso do século XVII a
madeirenses exímios escultores do doce. Ficou célebre a embaixada de casquinha concorreu com o vinho nas exportações, situando-se em 1698 em segundo lugar7.
Simão Gonçalves da Câmara ao papa Leão X em 15083. Vasco da Gama Entretanto a elevada valorização do vinho conduziu para segundo plano e à quase extinção. Em
levou-o para oferecer ao Samorim de Moçambique. E pela mesma via da 1779 o Governador refere que a manufactura da casquinha, a principal de todas, estava quase extin-
rota da Índia deverá ter chegado ao Japão onde ainda hoje persiste, sob a ta8. A crise, que começara na década de setenta, motivou a atenção das autoridades que procu-
Machico, 2002 designação de "alfeito". ravam reavivar as exportações. Neste contexto surgiu em 1782 uma proposta de Francisco Xavier
O princípio fundamental que regeu o movimento de circulação do açúcar foi a necessidade de Veríssimo e José Rodrigues Pereira, comerciantes do Funchal, pedindo o exclusivo do fabrico da
suprir as carências dos mercados europeus, em substituição do oriental, cada vez mais de difícil casquinha9.
acesso. Foi a conjuntura que impôs a cultura no novo espaço atlântico e ditou as regras. A pre- Em terra onde os canaviais adquiriram desusada importância na economia agrícola era natural
mência do consumo interno de açúcar é uma exigência tardia, gerada por novos hábitos alimenta- a dominância da doçaria na culinária regional. Na memória de todos persistem as receitas con-
res ou das contingências do mercado do produto. No último caso assume importância o dispêndio ventuais, pois que as demais se perderam. Nos conventos de Santa Clara, Mercês e da Encarnação
de açúcar na industria de conservas e casca como resultado da solicitação dos veleiros que deman- a doçaria é uma arte que ocupa de forma dedicada as freiras10. Os doces faziam-se em momentos
davam o Funchal. Acresce ainda que a vulgarização do açúcar no quotidiano madeirense derivou festivos para consumo interno ou para retribuir os benfeitores. Das suas mãos saíram os bolos de

2. António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros. 1455-1700, Funchal,1981, p.86


3 . Stegagno-Picchio, Luciana, O Sacro Colégio de Alfenim, in Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira, Lisboa, 6. António Aragão, Ob. cit., p.341
1990, pp.181-190. 7 . J Cabral do Nascimento. Documentos para a História das Capitanias da Madeira, Lisboa, 1930.
4. Alberto Vieira, O Comércio Inter-Insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, pp.54-59 8 . AHU, Madeira e Porto Santo, nº.518.
5. A correspondência de Diogo Fernandes Branco (ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº. 19) é muito elucidativa sobre a 9 . Ibidem, nº.615-616
ambiência fabril e comercial que serve de fundo a esta realidade. Confronte-se as cartas de 14 de Julho de 1649, 20 de Junho de 10. Cabral do Nascimento, As Freiras e os Doces do Convento da Incarnação, in Arquivo Historico da Madeira, vol. V, Funchal,
1550 publicadas em Alberto Vieira, O Público e o Privado na História da Madeira Vol. I. Correspondência Particular do 1937; Eduarda Maria de Sousa Gomes, O Convento da Encarnação do Funchal, Funchal, 1995, pp.138-142; Cousas & Lousas Açucareiros.
Mercador Diogo Fernandes Branco (1649-1652), Funchal, CEHA, 1996. das Cozinhas Madeirenses, Funchal, 1988. Museu da Quinta das Cruzes.

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mel, talhadas, batatada, coscorões, arroz-doce e queijadas. Cada doce tinha a sua época: a batata- cozinha: “Contudo a especialidade da Madeira está na secção dos doces. É imensa a sua variedade;
da pelo Natal, os coscorões no Entrudo, as talhadas na Páscoa e no dia de Nossa Senhora da fazem-nos de formas imaginosas e dão-lhes nomes extraordinários. Chama-se ovos moles um
Encarnação. género opulento de leite-creme. Ovos reais, quando eles ficam, com a aletria, em fios, e servem para
De entre todos o bolo de mel persiste e afirma-se como o rei da doçaria madeirense. Em muitas das decorar outros doces. Vi um leão britânico feito de pão-de-ló, tão grande como um gato, coroado
receitas junta-se quase sempre uma porção de vinho Madeira. Um das receitas mais conhecidas é a das de prata e com muitas estrelas pelo corpo; a juba e a extremidade da cauda eram de ovos reais. No
freiras do Convento da Encarnação11. É também com vinho Madeira que o mesmo deve ser servido. outro lado da mesa estava a águia americana confeiçoada com os mesmos ingredientes. A uns
Aliás, o Vinho Madeira é uma das melhores iguarias para acompanhar a doçaria regional ou doutras bolinhos precioso dão o nome de beijos de frade. Certa massa em forma de sincelos denomina-se
paragens. O Bolo de mel domina e perpetua a tradição do açúcar e a arte da doçaria madeirense.12 lágrimas. Mas de todos os nomes o mais estranho é o toucinho-do-céu aplicado em geral a umas
A presença do açúcar na culinária é uma constante, quer com as sobremesas, quer como “condi- fatias, que também podem tomar o aspecto de perna de porco ou até cordeiro. ” Aliás, segundo ela,
mento de comer”. Uma das formas de expressão do consumo do açúcar tem a ver com a presença “a especialidade da Madeira está na secção dos doces. É imensa a sua variedade; fazem-nos de for-
dos açucareiros na dispensa familiar. Nas casas-museus, que dispõem de colecções particulares, mas imaginosas e dão-lhes nomes extraordinários.“16 Nos anos vinte a cidade estava servida de onze
como é o caso da Quinta das Cruzes e Frederico de Freitas, é possível encontrar algumas peças em confeitarias. Hoje, o único testemunho que resta dessa importante industria do doce madeirense é
prata e porcelana, cujo uso local é difícil de atestar. Alguns são ainda testemunho do açúcar como o bolo de mel. O alfenim manteve-o a tradição dos ex-votos das festas do Espírito Santo na ilha
uma raridade, por isso apresentam-se com chave13. Terceira, único local onde ainda persiste a tradição.
No século XIX a doçaria teve divulgação através das pastelarias. Um das mais famosas foi a No século XIX eram também muito apreciados os sorvetes e doces gelados feitos com neve trazi-
Pastelaria Felisberta criada em 1837 na Rua da Carreira. Também ficou célebre a doçaria da pani- do do alto das montanhas para o Funchal. Ficou famosa a casa de Baxixa, tal como testemunha John
ficação Blandy na rua do Hospital Velho. A tradição do chá, dos saraus dançantes deve ter con- Dix17. Este fabricava os melhores sorvetes, servindo-se da neve que recolhia da casa de gelo das mon-
tribuído para uma cada vez maior valorização do doce no quotidiano e um aumento do consumo tanhas. A partir de 1867 o fabrico de gelo por John Peyne & Son com água das Fontes de João Diniz
do açúcar. tornava mais fácil o fabrico de sorvetes. Na década de vinte persistem ainda duas fábricas de gelo
No século dezoito os ingleses trouxeram para a ilha a valorização deste espaço com os estuques que continuarão por muito tempo a deliciar a gulodice dos amantes dos refrescos de Verão.
pintados. A mesa estava sempre a conduzir com o ambiente. Loiças e porcelanas brasonadas, da A partir do século XIX a generalização dos refrigerantes fez aumentar as necessidades de açú-
companhia das índias, rivalizavam com os apetitosos conteúdos de acepipes, carne, peixe, doces e car. Consumia-se ainda cerveja, ginger-beer (limonada de gengibre) e água mineral. No século XIX
frutas. Tudo isto era rematado por toalhas de linho bordadas e de ramos de flores de garridas cores. os ingleses viriam a alterar o hábito ao introduzirem a cerveja. A primeira fábrica foi implantada
Os testemunhos da opulência de algumas das mesas madeirenses repetem-se. A imperatriz do na ilha por João Park em 1840, a que se sucederam outras na década de cinquenta, como foi o caso
México, D. Carlota Joaquina casada com o Imperador do México, Maximiliano, em 1560 ficou da de Victorino José Figueira (1856) e José de Freitas (1859). Temos alguns dados sobre a produção
impressionada com todo o fausto da recepção no Palácio de S. Lourenço: O jantar foi magnífico. de cerveja. O primeiro produzia 326 hectolitros de cerveja branca e preta e 58 de ginger beer, já o
Tudo quanto se encontrava sobre a toalha, candelabros, centro, desaparecia quase debaixo de uma segundo apresentava 340 de cerveja branca e preta e 60 de ginger beer. Mas muitos estrangeiros
profusão de flores, que substituíam graciosamente a riqueza metálica e às quais serviam de com- preferiam a cerveja importada tal como nos refere Rudolfo Schultze em 1864, todavia a concor-
plemento pães e açúcar com diversas bandeirinhas”14. rência da cerveja inglesa e alemã não afectava a madeirense, muito apreciada pelos locais e conside-
Uns anos mais tarde, Isabella de França15 continuava deslumbrada com as sobremesas doces da rada de superior qualidade.
Em 1872 H. P. Miles fundou a Atlantic Brewery e em 1890 Manuel Alves de Araújo surge com
11 .Álvaro Manso de Sousa, O Bolo de Mel das Freiras da Encarnação, in Das Artes e da História da Madeira, 1948-1949, p.51. a fábrica Leão. A primeira, que produzia água de soda, limonada gasosa e cerveja, apresentava o
12. Ana Maria Ribeiro, O Fabrico dos Bolos de Mel na Calheta, Xarabanda, 5, 1994, 23-26; João C. Nascimento, As Freiras e os equipamento adequado ao engarrafamento já avançado em relação às demais mas que ainda esta-
Doces do Convento da Incarnação, Arquivo Histórico da Madeira, V, 1937. IDEM, A Restauração e o convento da Encarnação,
Funchal, 1940. IDEM, O que as Freiras Comem, AHM, V, 1937. Álvaro Manso de Sousa, O Bolo de Mel das Freiras da va muito longe das actuais linhas de engarrafamento. Em 1908 em duas unidades do Funchal fa-
Encarnação, Das Artes e da História da Madeira, 1948-49. IDEM, Um Ovo por Um Real, DAHM, Funchal, 1948-49, p.68. IDEM, bricava-se 666 hectolitros de cerveja branca e preta e 118 de ginger beer. Uma cerveja custava 30
Os Bolos de Mel do Ti Caetano, DAHM, vol.I, nº4, 1950. Pe. Manuel Juvenal Pita Ferreira, O Natal na Madeira. Estudo fol- réis enquanto um ginger beer ficava pelos 20 réis. A crise da década de trinta obrigou à fusão de
clórico, Funchal, 1956. André Simon e Elizabeth Craig, Madeira, Wine, Cakes and Sauce, Londres, 1933. Emanuel Ribeiro, O Rapaz do mel e rapadura. Gravuras do século XIX. J.
Doce Nunca Amargou..., Lisboa, 1928. todas as pequenas industrias numa só unidade industrial, dando lugar à Empresa de Cervejas da Gellatly.1840; E. G. Smith, 1842. Casa Museu
13 . De acordo com informação fornecida pela Dr. Teresa Paz, directora do Museu da Quinta das Cruzes, o Museu dispõe de 16 açú- Madeira que hoje domina o mercado local. Frederico de Freitas.
careiros, sendo 5 em porcelana, 1 em casquinha, 2 em prata e marfim e os restantes em prata. Note-se que são maioritariamente
de finais do século XVIII ou da centúria seguinte.
14 . Un Hiver à Madère. 1859-1860,Viena, 1863, Cf. J. Cabral do Nascimento, A Arquiduquesa Carlota e as suas Impressõaes de
16 . Ibidem, p.174
Viagem, in Arquivo Histórico da Madeira, Vol. IX, 1951, p.99
17 . A Winter in Madeira… New York, 1850.
15 . Jornal de uma visita à Madeira e a Portugal(1853-1854), Funchal, 1970, p.174

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O Consumo de açúcar foi em crescendo, nomeadamente no período posterior à Segunda Guerra fortificação dos vinhos parece ser mais tardio. As referências são mais frequentes a partir de mea-
Mundial. Não existem dados exaustivos sobre a situação, mas os poucos disponíveis assim o evi- dos do século XVIII. Em 1704 W. Bolton refere que se fazia a adição de aguardente de França aos
denciam. vinhos de exportação, tendo recebido desde Londres 10 pipas18. No Porto a prática generalizou-se a
partir de 173019. O mercador Francis Newton refere em cartas de 1752 e 1753 que o uso de adicionar
Ano económico Consumo KGS aguardente aos vinhos era corrente20. Acontece, ainda, que os mercadores da Nova Inglaterra e
1863 165.000 Virgínia eram favoráveis à adição de aguardente. Na correspondência comercial dos mercadores
1888 300.000 ingleses é insistente a referência ao efeito benéfico da fortificação dos vinhos com aguardente21.
1897 853.444 A História do alambique remonta ao tempo dos Romanos, mas foram os árabes que aper-
1898 988.568 feiçoaram o mecanismo e o divulgaram na bacia mediterrânica22. Em Portugal está documentado
1908 910.000 desde o século XVI. Na Madeira não sabemos quando surgiu o primeiro mas, de certeza que no
1911 1.219.200 século XVI deveriam existir uma vez que está documentada a exportação de aguardente para
1912 1.219.200 Angola e o Brasil. A referência mais antiga a um alambique é de 1667, altura um que o convento
1913 1.320.800 de Santa Clara vendeu uma caldeira de cobre de fazer aguardente a Manuel da Fonseca, mercador,
1960-61 6.220.111 por 31$200 réis23. Depois disso só em 1745 surge nova informação sobre um outro alambique que
1961-62 6.341.557 funcionava no Seixal, no Norte da Madeira24.
1962-63 6.393.697 Desde 177725 temos indicação sobre o trato do vinho da Madeira com aguardente importada de
1963-64 6.850.687
França. Num requerimento dos negociantes solicitando a entrada de aguardente, a Junta, tendo em Sistema mecânico de bombas. L. Colson, 1905
1964-65 6.969.612
conta o momento de crise e o facto dos poucos vinhos ainda exportados serem loteados com a
1665-66 6.857.723
aguardente, por razão da sua generosa qualidade e por outra esquisita, de se não perceber a lotação
1666-67 7.237.846
dela com os vinhos, se fazia decente a sua entrada, mas de modo controlado, pois que não impede
1667-68 7.285.291
a extracção do pouco que nesta ilha se fabrica... nem também obsta o consumo interior, tanto pelo
1968-69 7.075.530
alto preço com que entra a de França sem se poder por isso reexportar, a menos aplicar-se a outro
1969-70 7.269.012
uso que não seja aquela mesma utilíssima lotação. Que igualmente as mesmas forem introduzidas
1970-71 7.518.406
1971-72 7.433.280
voltam a sair na extracção do vinho que facilitam e engrossam os direitos da Alfândega por entra-
da e por saída. Sendo de maior atenção a grande qualificadíssima qualidade de ser o género, que

Fonte: Relatório sobre as Industrias de Açúcar e 18 . The Bolton Letters. The Letters of an English merchant in Madeira, Funchal, 1960, p.34; Rupert Croft-Cooke, Madeira, p.39
Álcool da Madeira, Administração–Geral do Álcool, 19 Alarte, Vicencio [A Agricultura das Vinhas e tudo o que Pertence a ellas até o Perfeito Recolhimento do Vinho e Relação das
Lisboa, 1972 suas Virtudes e da Cepa, Vides, Folhas e Borras, Lisboa, na Officina Rela Reseandesina, 1712] recomendava o uso de três galões
de aguardente por pipa de vinho.
20 Rupert Croft-Cooke, Madeira, London, 1961, p.50
21. Em carta de John Leacock para o seu irmão refere-se o seguinte: …as brandy is such na essential help to the wines, we shall make
it a constant rule to give all our wines that go round a sufficient portion. We find that all those houses who are most noted for
putting an extra quantity of it in their wines meet with more success in pleasing their correspondentsthan whose who ships much
better wines, that do not adopt method of makingthem up.. Indeed in the course of eight or nine months continual agitation on
board a vessel, the extra fire and spirit of the brandy must be much exhausted & softened, and the wine receive the strength
which is quite different when the wines remain quiet and undisturbed in our stores, then the additional dose of brandy as you
O ÁLCOOL E A AGUARDENTE know from experience takes away the flavour & pleasantness of the wine and is very apt to give it a disagreeabke hars twang.
[Rupert Croft-Cooke, Madeira, London, 1961, pp.57-58]
22. João Inácio Ferreira Lapa, Artes Chimicas, Agrícolas e Florestaes ou Technologia Rural, vol. I, Lisboa, 1865; Avelar Machado,
Bolo e broas de mel. Engenho da Calheta Do suco da cana também se pode extrair álcool e aguardente. Acontece que no primeiro momen- Subsídio para a História da Destilação, Informação Vinícola, nº.10, 1950, pp.1-2: idem, O Alambique através dos Tempos, in
to de afirmação da cultura da cana sacarina a utilização foi quase só para o fabrico de açúcar. Já Informação Vinícola, nº.13, 1950, p.4; Margarida Ribeiro, Alguns Aparelhos de Destilação em Portugal, in Boletim Cultural da
Assembleia Distrital de Lisboa, Lisboa, 1989, nº91, t.I, pp.125-147
no segundo momento a valorização foi para o álcool e aguardente. 23 . ANTT, Convento de Santa Clara, maço 2, 10 de Maio de 1667.
A Madeira desde o século XVI que exportava aguardente para o Brasil e Angola, mas o uso na 24 . João Adriano Ribeiro, Porto Moniz. Subsídios para a História do Concelho, Porto Moniz, 1996, p.93.
25. ANTT, PJRFF, nº 942, pp. 19/20.

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sem empecer a extracção do nosso concorre a dar-lhe reputação e maior valor em preço e que política receber de fora as produções e manufacturas de que o país não carece, antes abunda.
depois de pagar direitos a S. M., constitue com decoro do reino as espécies activas dos nossos vi- Eram os ingleses que traziam grandes somas de aguardente de França, Itália e Espanha e as
nhos, visto que os desta ilha na concorrência dos mais da Europa e ainda dos do nosso reino só tem adulteravam na viagem, pelo que se interditou a entrada em 1760. Apenas se permitiu o tráfico e
puridade e preferível estimação na fermosa consistência em que por decurso do tempo se vão ele- começou a haver a arbitrária permissão de entrada de pequeno número de pipas de aguardente de
vando a tal grandeza e generosidade, que constituem as delicias dos que a preços altos os compram; França, para adubar alguns vinhos de embarque; liberdade, que foi crescendo de dia para dia ate
pureza e tão substanciosa que pelos muitos anos em que os outros a pedem nesses mesmos o enorme abuso que chegou esta importação, que por ser uma infracção às leis deve ser sistemati-
adquirem e sustentam os desta ilha. camente abolida. A proibição das aguardentes francesas justificava-se em razão do impasse que se
Em consulta de 31 de Maio26, sobre o mesmo assunto, argumenta-se com a concorrência dos vi- vivia: Muitos especuladores estão à espera de que se firme a proibição das aguardentes estranhas
nhos estrangeiros no mercado internacional e a necessidade do da ilha ganhar mercado, não pelo na ilha para fazerem apontar imediatamente nas máquinas aperfeiçoadas para entrar na sua labo-
PRODUÇÃO DE ÁLCOOL E AGUARDENTE(em litros)
baixo preço, o que era impossível, mas pela qualidade e propriedade de se melhorar com o tempo. ração, não se animando a isso pelo perigo de perderem o seu cabedal e a sua esperança. Isto é um
Ora, tendo em conta que a duração e distinta qualidade dos vinhos depende da indispensável incentivo poderoso para que se decida a sua positiva proibição quando antes, muito principalmente
lotação de aguardente de França, principalmente naqueles que pela sua riqueza, como produzidos havendo na ilha, actualmente, aguardente bastante e sobeja para os vinhos que produzir a colhei-
Claustro do Convento de Santa Clara em terras impróprias, lhes faltam os espíritos para se conservarem e que a dita lotação vem o fazer ta próxima. Não será porém fora de prudência para evitar qualquer paralisação que a demorada
decorosa a reputação do reino, e a sua utilidade e a leva-los, ou conservá-los reciprocamente útil, chegada das novas caldeiras pode ocasionar, ou as cautelas dos comerciantes possam opor em ódio
tornava-se útil a introdução limitada, pois que tinham a estimável qualidade de não fazerem as da desta inovação salutífera, dar-se algum tempo para que as aguardentes, que não tiveram tempo de
terra, conhecida a lotação dos vinhos pelo impermutável benefício que lhes fazem. ser contra mandadas, sejão admitidas a despacho da Alfândega. Todas as manifestações contrárias
A Junta autorizou em 178227 a entrada de 20 vasilhas de aguardente de França, e em 179328 vinham de sectores próximos dos ingleses: A proibição de todas e quaisquer aguardentes, é um
aceitou um contrato com particular por nove anos a 1200 réis por galão. A propósito comentava-se: poderoso meio de salvar a ilha da inevitável desgraça, que ameaça; toda esta província instanta-
Primeiramente tem a experiência demonstrado com a magnificência, que os vinhos desta ilha, neamente o pede, e esteja V. M. persuadido, que só estas pessoas aditas aos ingleses e por eles sub-
único, mas muito considerável ramo dele, sendo concertado com as genuínas aguardentes de ornadas, ou miseráveis publicanos, que preferem o seu particular interesse ao bem da pátria e a feli- CONSUMO DE AGUARDENTE em litros

França conservam por meio deste benefício a sua primitiva e generosa qualidade e senão arriscam cidade comum, ou na Alfândega fazem criminosas especulações em o próprio e parte da nação
a decair dela, como tem acontecido, introduzindo-se em seu lugar aguardentes adulteradas,... que podem duvidar desta verdade e afectar (sic) ser de opinião contrária.
não só adulteram os vinhos, mas os fazem perder a superior qualidade que dá origem à sua extra- A 9 de Outubro30 foi permitida a entrada das aguardentes sobrecarregadas com gravosos direi-
ordinária exportação. tos. Daí ter-se enviado nova representação às cortes em 19 de Abril de 182231 contra a medida surgi-
A questão foi de novo ateada nos anos vinte do século XIX. As aguardentes importadas perdem da de surpresa., A resolução de Outubro deu azo a acesa polémica, nas colunas do Patriota
importância. A 23 de Agosto de 182129 a Câmara do Funchal em petição às Cortes clamava pela Funchalense, perdurando até que a lei de 31 de Julho de 1822 proibiu a entrada das aguardentes
interdição de entrada, como forma de acudir à crise, e para que os vinhos de sua produção fossem estrangeiras e sobrecarregou as nacionais com 60.000 réis de direitos por pipa32. F. Manuel Alves33
adubados só com as aguardentes fabricadas nesta província, que não só podem abastar, mas que refere a necessidade de importação de 2000 pipas de aguardente de França, uma vez que esta
são de qualidade e quilates superiores a todas as aguardentes conhecidas, não podendo, de modo aguardente é de qualidade tão superior, que parece um pouco difícil suprir a sua falta e isto prin-
algum, ser igualadas em bondade por outra alguma conhecida, uma vez que operam tanto no con- cipalmente pelas seguintes razões: a diminuta porção, que aqui se faz de aguardente da terra, por
certo e trato dos nossos vinhos, em uma medida dada, quando produz o dobro de aguardente de falta das caldeiras de moderna invenção, tem muito fleuma e um gosto agenebrado que por isso
França, além do benefício, que resulta da sua natureza homogénea. Elas só tem um fumo, a que comunica um sabor desagradável dos vinhos. Para Diogo Dias de Ornelas34 a exposição era um elo-
chamam fleuma, causado pelas máquinas imperfeitas, que ora se fabricam. É por certo, que ainda gio camuflado ao comércio da aguardente francesa, pois que o importante era contrariar a impor-
lançado nos vinhos com este sabor, passados quatro, ou seis meses este desaparece e se não con- tação, apoiado nas seguintes razões: 1- porque ela aumenta e torna mais difícil a exportação dos
hece de maneira alguma e nunca se percebe sendo laudas no mosto, antes pelo contrário lhes dá nossos vinhos, em razão de importação de 3 para 4 mil pipas. 2- porque nos faz dependentes dos
uma qualidade realçada. As medidas assentavam na máxima de ser um erro capital na economia

30. Idem, T. 15, fols. 24/26.


26. Idem, nº 411, pp. 32/33. 31. Vide O Patriota Funchalense, nº 9, pp. 1/3, nº 25, p. 4, nº 30, p. 2, nº 31, p. 4., in Alberto Vieira, História do Vinho da Madeira.
27. Idem, nº 942, fol. 96. Documentos e Textos, Funchal, 1993, p. 99
28. Idem, nº 761, pp. 196/197. 32. Patriota Funchalense, nº 123, pp. 3/4.
29. ARM, RGCMF, T. 15, fols. 100vº/104, 263/264., in Alberto Vieira, História do Vinho da Madeira. Documentos e Textos, 33. Idem, nº 9, p. 3.
Funchal, 1993, p.95 34. Idem, nº 11, pp. 3/4.

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estrangeiros, por falta de indústria nacional, o que é um grande mal. 3- porque favorece o cia, para terem mais um artigo de contrabando e de monopólio e com fim para
monopólio de 11 ou 12 negociantes (quasi todos estrangeiros) com notável detrimento público. 4- reduzirem o preço do nosso vinho B mais Ínfima expressão.
porque em consequência dessa importação se fazem muitos contrabandos, e se cometem (segundo O polémico Estrela do Norte41 atacou, não só a opinião do Sr. Alves, como o decreto
dizem) gravíssimas peculatas. 5- porque de envolta com essa aguardente entram outras bebidas aprovado em Cortes, que permitia a entrada das aguardentes nacionais, pois as pipas de
espirituosas, que nos vem arruinar nos bens, e na saúde, fazendo grande estrago na população com aguardente, que entram em nosso porto são mais temíveis, que os corsários insurgentes42,
as epidemias que elas originam neste clima, como a experiência o tem mostrado. 6- porque ele não que podem olhá-las como outros tantos inimigos, que lhes vem roubar o sangue e dar
é tão superior como V. M. diz, pois que sendo deitada em vinho fraco, tanto degenera, que por fim morte violenta aos seus interesses.
à força de aguardente que é preciso deitar-lhe, transforma-se o vinho nela. O que não sucede ao O redactor de O Patriota Funchalense, N. C. Pitta43 considerava a lei de 9 de Outubro,
vinho bom e generoso, porque este conserva-se ate com água, sendo em pouca quantidade. 7- como prejudicial, porque no comércio com o reino não havia contrapartida: Numa tal
porque nos tira, todos os anos dois milhões de cruzados, pouco mais, ou menos. 8- porque não dá colisão, antes continuasse a importação de aguardente estrangeira, pois como esta era
Convento de Santa Clara.
lugar a que se fervam os nossos vinhos de ínfima qualidade e por conseguinte concorre para que importada pelos ingleses e estas são quasi os únicos consumidores e exportadores do
Gravura do século XIX estes com facilidade e falsificados se embarquem, com empate dos vinhos bons e nosso descrédito. nosso vinho, era-nos mais vantajoso receber deles a aguardente, dando-lhes em troca
9- finalmente, porque proibindo-se essa importação, sacudiremos parte do jugo em que jazemos vinho, que recebê-la de Portugal, que nos arruína, levando o nosso numerário e impedir
manietados e em vez de darmos o nosso dinheiro em troco de aguardente francesa, talvez que em do que fervamos os nossos vinhos, na certeza de não acharmos compradores, por terem
breve nós recebamos grande cópia de numerário pela nossa. A isto contrapõe Francisco Manuel igual género de Lisboa muito mais barato44. Mais uma vez os privilégios exclusivos eram
Alves35 os inúmeros prejuízos provocados pela proibição: 1- privar o erário do rendimento, de 50 anti-constitucionais, ficando-se pelo meio-termo, pedindo-se apenas um aumento dos
contos de reis anualmente, 2- perder o benefício de exportação dos vinhos, que se embarcam em direitos de importação da aguardente nacional de 7.600 réis para 40.000 réis, esperando
troco, para pagamento da aguardente de França, 3- o risco que há de que os vinhos do norte desta que esta medida pudesse funcionar como medida impeditiva.
ilha rebaixa muito de preço, com grande perda dos lavradores e dos senhorios das terras, ou que a A discussão permite tirar várias ilações sobre a índole sócio-económica do movimen-
aguardente da terra seja muito cara, com prejuízo dos habitantes.... to a favor e contra a importação de aguardente estrangeira. A maior parte dos proprietários
Para o cidadão que assina hum português36 a aguardente que entrava na ilha não era boa, o que rurais do Norte e Sul eram favoráveis à interdição das bebidas, porque consideravam a
se demonstrava pela quantidade que se gastava para fortificar o vinho. A boa aguardente de França, medida vantajosa para as vendas, aliviando as próximas colheitas ou o vinho armazenado
que se importava directamente, era muito reduzida, a outra exportada de Londres para aqui, que não tivesse saída. Os comerciantes que se dedicavam ao comércio das aguardentes
sabido é que lá foi enfraquecida com água para a pôr no quilate lã permitido a essa aguardente, estrangeiras eram de opinião contrária. Para os ingleses e acólitos, a entrada das
ademais vem de Espanha e Itália muitas vezes adulterada. Além disso a introdução estava na aguardentes era um meio de fácil saque. Já os pequenos proprietários do Norte exerceram
origem da estagnação dos vinhos e da desgraça dos madeirenses. Desta forma era útil a interdição uma forte pressão, uma vez que o destino das colheitas dependia da solução encarada.
de entrada e a concessão de empréstimos pelo erário público para compra de alambiques para des- A instabilidade política no continente provocou alguma desconfiança das instituições
tilar o vinho baixo da ilha. A medida proibitiva mereceu a gratidão dos proprietários, uma vez que locais perante a iminência de novas medidas que pudessem surgir de Lisboa. Assim, em
contribuía para o escoamento dos stocks de vinho. Foi assim que se manifestaram os proprietários 8 de Agosto de 182345, após a Vila-francada (em Maio), a Câmara representava para que
António de França Neto37 e Diogo de Ornelas38, para quem a lógica do Sr. F. Manuel provoca náuse- com a mudança das causas se não faça alguma alteração naquelas providentes leis, visto Desidratador Reimbert, 1923.
Desenho de J. H. Ferraz.
as, esclarecendo-se acerca da pessoa em causa: Deve saber-se que o Sr. Francisco Manuel Alves não haver ainda, quem tendo só em consideração os seus próprios interesses e em nenhuma conta a
é proprietário, nem negociante de vinhos e que por dever de amizade e interesse é mui afeiçoado prosperidade pública desta província declama e representa contra a disposição destas leis". Mas o
a alguns senhores negociantes ingleses. Declaro isto, não para ofender, mas para o critério avaliar- Conde de Subserra por aviso de 12 de Março de 182446 sossegou-os confirmando-as.
nos"39. O articulista Hum Português40acrescentava a discussão o seguinte: A aguardente que eles nos
trazem será porventura um efeito da sua filantropia? Não será antes para nos por na sua dependên-
41. Idem, nº 26, pp. 3/4
42. Os corsários insurgentes surgiram entre 1818/9, actuando de modo especial no mar circunvizinho dos Açores e Madeira. Estes
corsários eram de proveniência argentina e actuavam aqui contra os portugueses e espanhóis em represália da acção da invasão
35. Idem, nº 11, p. 4. portuguesa em face da guerra da Argentina. Até ao momento era desconhecida a sua acção nesta área, só uma investigação por
36. Idem, nº 12, pp. 3/4. nós feita e m vias de publicação deu-nos a possibilidade dessa descoberta.
37. Idem, nº 13, pp. 3/4. in Alberto Vieira, História do Vinho da Madeira. Documentos e Textos, Funchal, 1993, pp. 195-197 43. Patriota Funchalense, nº 40, pp. 1/2.
38. Idem, nº 13, p. 4; nº 14, p. 4. 44. Idem, p. 1.
39. Idem, nº 14, p. 4. 45. ARM, RGCMF, T. 15, fols. 99vº/100, vide representação de 3 de Janeiro de 1823; idem, T. 15, fols. 119vº/121.
40. Idem, nº 14, p. 3. 46. ARM, RGCMF, T. 15, fols. 133/134vº.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

As constantes alterações e a extrema fragilidade do sistema político, na primeira metade do sécu- indústria alambiques próprios para fazer sem os defeitos com que então se destilava, porém agora
lo XIX, contribuíram para o arrastar da crise porque as medidas tardavam em chegar e as soluções que a falta de comércio, minorando a exportação dos vinhos promoveu esta indústria mandando
provisórias eram ineficazes e pelo imperfeito rotativismo de domínio dos diversos interesses con- muitos vir de França os melhores alambiques nos quais se faz a maior perfeita destilação, seria para
duzia a uma variedade opção em face dos acontecimentos, que se materializava muitas vezes em os empreendedores a admissão pedida, um mal gravíssimo e para sua indústria e ate talvez tornar
soluções ou medidas diferentes, de acordo com os interesses em jogo. Assim, enquanto em 179447 na aguardente desta ilha um ramo de exportação preferível às de outro país, atendendo à melho-
se proibiu a entrada de certa porção de aguardente de Valença, em 181048 tivemos medidas de ria dos vinhos que é extraída.
excepção com a permissão de entrada de 3.600 galões de aguardente, livre de impostos para a tropa Os comerciantes que teimavam no negócio rendoso das aguardentes restava apenas o afronta-
ocupante da ilha. Em 1821 deu-se entrada a 6 pipas de aguardente de Londres para José Rebello49 mento às medidas interditivas com o recurso ao contrabando. A costa entre Machico e a Calheta
e de 180 pipas de Bordéus para T. H. Edwards & Ca.50. Mas já em 1822 o juiz da Alfândega apreen- oferecia enseadas desprotegidas e não vigiadas pelas forças militares, o que facilitava o contraban-
deu uma pipa de aguardente a Philip N. Searle, dizendo ser estrangeira51, mas por sentença do do57. A primeira referência surge em 1823, com a apreensão pelo juiz da Ribeira Brava58, no lugar
Feitor da fazenda de Lisboa em 182552, confirmou-se ser fabricada na ilha do Faial em alambique, de Baixo do termo da Vila da Ponta do Sol, e do juiz da Alfândega na baía do Funchal de 7 pipas,
dando-se a devida autorização de entrada. O caso demonstra a disparidade de opções entre Lisboa da chalupa inglesa George the Fourth59. Em 182560 a Junta denunciou o contrabando de aguardente
e a ilha. Pelo menos assim o devia entender o comerciante que em face da apreensão fez apelo aos praticado pelos navios franceses Le Renard e L'Americaine, sob a complacência de quatro guardas
Aguardente. Engenho do Porto da Cruz tribunais do reino e não aos da ilha. de número da Alfândega: não pode a Junta deixar de estranhar que haja pessoas tão pouco zelosas
Em 1823 gerou-se acesa polémica acerca de um requerimento de Murdoch Wille & Ca., casa da do seu crédito e de sua mesma pátria que por tão ridículo interesse sacrifiquem o maior bem dela Alambique
companhia nova, em que solicitava a admissão de 400 pipas de aguardente de França. A Junta em com desprezo da mais sábia e providente lei constituindo-se os autores de semelhante falta pouco Engenho
do Porto
face do pedido solicitou o parecer das câmaras de Machico, Calheta, Ponta do Sol, S. Vicente53 e do dignos da estimação pública e de qualquer carácter de representação que os distinga, ou classe de da Cruz
Funchal54. Os comerciantes e proprietários do Funchal em representação conjunta manifestaram-se comércio a que pertençam61.
contra o requerimento, apontando: Já ninguém duvida que os novos alambiques destilam com nos- Para o ano de 182762 ficou reservado o maior escândalo de contrabando até então praticado no
sos vinhos aguardente de superior qualidade, tanto para consumo de vinhos novos, como de velhos, Funchal. A apreensão de certa quantidade de aguardente a Francis Gordos foi o mote. A Câmara
enquanto guardado de um para outro ano, capaz de rivalizar com a melhor, que aqui nos tem vindo e a opinião pública em geral63, manifestaram-se contra o sucedido apontado a necessidade de medi-
de França, desta verdade estão todos convencidos, ate às casas de comércio estrangeiras da maior das severas, como o derramamento no calhau. No entanto, inadvertidamente, a Junta em 7 de
inteligência, dignidade e respeito. Pressente-se a força do novo comerciante enriquecido com os Outubro a admitiu a aguardente e solicitou à Câmara a permissão para o livre consumo. Em 183964
lucros das novas fábricas de destilação contínua e que começaram a dominar e fazer valer os seus foi encontrada a boiar no mar uma pipa de aguardente, perdida do contrabando, arrematada em
interesses. Entrávamos na época dos alambiques e dos proprietários de fábricas de destilação há hasta pública. Ainda, segundo Ruppert-Coock65, um navio alemão teria desembarcado na baía de
pouco enriquecidos. A opinião terá acento na Câmara do Funchal, por intermédio, certamente de Câmara de Lobos 300 caixas de gin que escondeu na furna dos lobos, sendo depois encontradas,
Severiano de Freitas Ferraz, daí a negativa ao requerimento citado antes se manifestando pela apli- por um par de namorados.
cação imediata da lei de 2 de Janeiro de 182455. Perante a inépcia da vigilância da costa e a continuidade da acção fraudulenta na baía do
Idêntica força se fez sentir na decisão da Junta em 17 de Março de 182456, ao indeferir a mesma Funchal, através da manifesta corrupção de grande número de guardas da Alfândega, perguntava-
pretensão assim justificada: Apesar que as Juntas passadas tenham muitas vezes representado a se o articulista do Funchalense Liberal: De que serve então dizer - fica proibida a importação das
necessidade absoluta de entrada de semelhante género ate persuadidas que das aguardentes de aguardentes estrangeiras na ilha da Madeira - se se desprezam os meios de tornar efectiva essa Aguardente
França dependia a estima e particular conceito que os vinhos da Madeira tinham no mercado proibição?.O Correio da Madeira, em 1851, lamentava a triste sorte da ilha com o aparecimento Engenho
estrangeiro, tem-se realmente conhecido que esta opinião provinha da falta que então havia da tardio dos alambiques: Se nas grandes e felizes épocas desta ilha houvesse alambiques, não teriam do Porto
da Cruz

47. ANTT, AF, nº 238, fols. 2vº. 57. ANTT, PJRFF, nº 763, fols. 169/169vº.
48. Idem, nº 238, fols. 137vº, 141. 58. Vide o Defensor da Liberdade, nº 25, p. 2; nº 28, p. 1; nº 36, p. 1; O Funchalense Liberal, nº 1, pp. 2/3; nº 6, pp. 1/3; Correio da
49. Idem, nº 240, fols. 20/21vº. Madeira, nº 113, pp. 1/2, nº 115, pp. 5/6, nº 119, p. 3, nº 120, p. 3; Ruppert Crooft Coock, ibidem, pp. 87/88.
50. Idem, nº 240, fols. 33vº, 49/49vº, 54vº/55vº, idem, PJRFF, nº 405, pp. 335, 378, nº 406, fol. 20, nº 450, pp. 7/8. 59. ANTT, AF, nº 240, fols. 73vº, 89vº.
51. ANTT, AF, nº 240, fols. 68vº, 89vº, nº 406, fol. 53vº. 60. Idem, nº 240, fol. 72vº.
52. Idem, nº 240, fol. 175vº. 61. ANTT, PJRFF, nº 406, fol. 173.
53. ANTT, PJRFF, nº 774, p. 126. 62. Idem; veja-se O Funchalense Liberal, nº 6, pp. 2/3, nº 7, pp. 2/3.
54. Idem, nº 406, fol. 84. 63. ARM, RGCMF, T. 16, fols 67vº/69vº.
55. Idem, nº 406, fol. 91vº; ARM, RGCMF, T. 15, fols. 129vº/130. 64. O Defensor da Liberdade, nº 28, p. 1, nº 35, p. 1.
56. ARM, RGCMF, T. 15, fols. 117vº/119. 65. ANTT, PJRFF, nº 467, fol. 75vº.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

exportado para os mercados estrangeiros vinho de má qualidade que muito desacreditou o nosso de toda a ilha69. Em 182270 junta-se a fábrica de destilação de Severiano Alberto de Freitas Ferraz
comércio, e este erro manifesto nos teria reduzido há extrema indigência, não vir a providente, a com dois custosos e aperfeiçoados destinatários, aonde se tem fabricado a mais perfeita
mil vezes bem calculada e restauradora medida consignada na carta de lei de 2 de Agosto de 182266. aguardente.
Mais afirmava que a defesa do vinho, em face da concorrência do Porto e Xerez, deveria ser afronta- A Junta tomou a iniciativa de solicitar a João Francisco de Oliveira, encarregado de negócios em
da com medidas de defesa da reputação e qualidade. Minorando os gravames do nosso vinho, facili- França, um alambique de destilação contínua71. Em Fevereiro de 182372 o Tesoureiro geral solicitou
tando-lhes e promovendo-lhe o consumo e guerreando o contrabando da aguardente - que é uma dois alambiques no valor de 5000 francos (80 mil reis). Em Abril73 recomendava-se o envio via
traiçoada investida, um hostil assalto ao nosso produto já tão sobrecarregado e vítima do flagelo da Londres, que talvez seja menos dispendioso, mais seguro. No mesmo ano Severiano de Freitas
pauta - que embaraça a nossa agricultura, dificulta o nosso comércio, rouba-nos o pão de nossas Ferraz construiu um alambique de destilação contínua baseado no modelo francês, contribuindo
famílias, o interesse de nosso trabalho e ate cedo nos esbulhará de nosso tecto protector67. para isso as viagens que havia feito a França para se instruir na química de destilação de vinhos. O
A importação das aguardentes é apontada como uma das origens da crise. Até 1821 argumenta- Patriota Funchalense não deixou passar a oportunidade, fazendo o elogio das potencialidades da
va-se a favor da de França, como meio único e necessário para o trato dos vinhos. Mas a partir de região e dos sábios que abarcava: não é a primeira vez que temos visto engenhosas produções de
então tivemos medidas proibitivas, justificadas pela produção e boa qualidade da aguardente da mecânicas de um hábil e patrício, Severiano de Freitas Ferraz, e por isso faltaríamos aos deveres
terra e dos novos alambiques de destilação contínua em funcionamento. O ano de 1821 marca a de patriota, se deixássemos de anunciar aos nossos concidadãos um novo alambique de vapor, que Pesos manuelinos

viragem do domínio do grande comércio das aguardentes de França, sob a alçada dos ingleses, para aquele cidadão acaba de construir. A simplicidade do seu mecanismo o faz um tanto mais
o dos proprietários de fábricas de destilação contínua, interessadas no comércio dos vinhos do recomendável e a perfeição do espírito que destila, parece-nos superior ao que temos visto. Seria
Norte por meio da destilação, no que certamente se nota um predomínio dos proprietários do Norte para desejar que vista a determinação do soberano congresso em mandar vir alambiques de França
em relação aos do Sul. A partir daqui processou-se uma momentânea alteração das rotas da para se venderem ou arrendarem por conta da Fazenda Nacional nesta província, se fizesse aqui a
aguardente, via Gibraltar ou Inglaterra, lesando de modo directo os ingleses, a parte mais interes- despesa com a mão-de-obra, concedendo-se a quem teve tanto trabalho o empréstimo de 500.000
sada no negócio. Sucederam-se reclamações, mas iam longe os tempos áureos de 1640 e 1810. A réis para o fabrico daquele alambique em ponto grande, pois só deste modo se anima a indústria e
única possibilidade de furar o embargo estava no contrabando. Foi necessário reconverter os velhos remunera os trabalhos de quem deseja ser útil à Pátria74.
circuitos do negócio. Mas enquanto isto sucedia a crise dos anos 50 e 70 fê-los arrumar as malas e Perante a situação a Junta a 2 de Setembro75 anulou o pedido de um alambique, justificando a
partir. atitude pelo facto de Severiano de Freitas Ferraz ter inventado um maquinismo de alambique de
Em 1821 temos referência de três alambiques de destilação contínua, em notícias que colhemos destilação contínua, no qual afiançava melhores resultados do que o dos últimos inventos de
no Patriota Funchalense68. O de Frederico Castro Novo funcionava aos Moinhos, destilando vinhos França existentes neste país. A posição estava baseada no parecer dos químicos e engenheiros da
Sociedade Funchalense dos Amigos das Artes e das Ciências que mostraram os mais lisonjeiros
resultados do mesmo invento. A Junta logo emprestou 600.000 reis para a construção do novo
Evaporador de triplo efeito. F. Scard, 1913 66. Idem, nº 407, fol. 189vº.
67. Idem, ibidem, pp. 88/89.
alambique, animando ao mesmo tempo a continuação de novos inventos. Em 182676 o mesmo
68. TERTULIANO TORÍBIO DE FREITAS VERGOLINO: Anuncia aos respeitáveis patrícios seus Tertuliano Toríbio de Freitas
Vergolino, que faz aguardente de vinho e de borra, toda capaz para concerto de vinho; de borra para ser boa J preparada e
restilhada e sendo de vinho extraída do quilate que seu dono quiser, pela primeira destilação feita de vinho por 2.600 reis cada FREDERICO CASTRO NOVO: Faz-se saber aos proprietários e negociantes, que achando-se estabelecidos os alambiques da últi-
pipa de 23 almudes, entregando a produção com quilate subido e as aguardentes fracas correspondentes, pipa de barra com 23 ma invenção, que trouxe de França Frederico Castro Novo e tendo-se já fervido neles vinhos, ainda os da mais baixa qualidade,
almudes primeira destilação por 2.600 reis e pelo preparativo e destilar 100 reis por cada galão que estufar, tudo feito sem se verifica conseguir-se a mais perfeita aguardente, que rivaliza bom a melhor de França, o que promete a esta província as
impostura [Patriota Funchalense, nº 36, p. 4.]. maiores vantagens, portanto os que quiseram ferver vinhos, se dirigirão aos seus directores, que pelo resultado se lisonjeiam con-
PEDRO PETRELI SANTA CRUZ: Pedro Petreli Santa Cruz, estabelecido com uma fábrica de destilar aguardente, no sítio dos vencê-los do que tão francamente lhes anunciam [Idem, nº 81, p. 4.]. Frederico Castro Novo, desejando manifestar ao respeitáv- Pesagem de cana no Engenho do Hinton
Moinhos, notícia ao público, que ele faz aguardente de diversas qualidades, fazendo uma de que já se pode fazer uso para os el público o vivo interesse que torna sem ser-lhe útil, fazer prosperar o estabelecimento que vem de procurar a esta província
vinhos novos e outra que passados alguns meses serve para se deitar em vinhos, sem que se possa conhecer se foi feita na terra com os novos destinatários d'aguardente faz saber que o preço dos cozimentos ficam reduzidos a 100 reis por almude de vinho,
ou em França [Idem, nº 36, p. 4.]. Pedro Petreli Santa Cruz, tendo observado que com alguma inconsideração se escreveu con- assegurando que as grandes despesas, que deve fazer, são o forte motivo de não poder prestar-se mais comodamente, como sin-
tra as aguardentes fabricadas nesta província supondo-se-lhes imperfeições, que na verdade não existem, faz saber ao respeitáv- ceramente desejava [ Idem, nº 85, p. 4.].
el público desta mesma província, que na sua fábrica, nos Moinhos, ele tem dado provas no curto espaço de três meses de que 69 . Cf. Pregador Imparcial da Verdade, no.44, 47, 49 [1827]
na sua fábrica faz aguardentes de melhor qualidade de que muita de que se importa neste país, tendo oferecido mostras delas 70. RGCMF, T. 15, fols. 24/26.
sem imperfeições, que conservadas alguns meses aparecem como as de melhor lote que vem de França, o que tendo feito 71. ANTT, PJRFF, nº 759, pp. 442/443.
patente ao soberano congresso, por tais tem sido acreditadas, mostrando assim a este público que a chegada do alambique, que 72. Idem, nº 759, p. 445.
mandou vir de França pelo seu colega Frederico Castro Novo, proporcionará a este país de fazer aguardente superior à 73. Idem, nº 759, pp. 442/443.
estrangeira. Anunciando o exposto, ele assegura aos habitantes desta província que em breve lhe demonstrará sua asserção de 74. Nº.125, p.2
um modo que se convençam os que falavam teoricamente e que não duvida auxiliar as observações dos que duvidam de uma 75. ANTT, PJRFF, nº 763, pp.146vº-147.
verdade hoje conhecida de mor parte dos inteligentes desta cidade [Idem, nº 57, p. 4.]. 76. AHU, Madeira e Porto Santo, nº.9480

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

inventor possuía a melhor fábrica de destilação da ilha que, segundo informação com a limitação do fabrico e consumo da bebida. A situação do álcool, tendo em conta o destino
de 182777, se compunha de cinco perfeitos aparelhos de destilação contínua final, vai depender da forma como evoluir a economia vitivinícola.
habilmente dirigidos, e com toda a vigilância e exactidão.
As leis proibitivas, a partir de 1822, foram um incentivo à proliferação das UTILIZAÇÃO DA CANA-DE-AÇÚCAR
fábricas de destilação78. Os alambiques expandiram-se rapidamente no em toneladas
perímetro da cidade e meio rural onde o vinho assumia importância. É o caso Ano Açúcar Álcool Aguardente
da vertente Norte, onde se produziam os vinhos apropriados para a destilação. 1912 48.360 19.109 3.707
Em 1827, Frederico de Castro Novo tinha montada uma oficina para construção 1913 50.861 14.116 4.019
de alambiques novos ou concerto de velhos79. Já em 1851 J. J. Nóbrega80 refere 1914 54.521 11.574 2.970
para o Funchal seis caldeireiros, latoeiros e funileiros. Segundo J. Silvestre 1915 57.403 10.064
Ribeiro existiam na ilha, em meados do século XIX, treze alambiques, sendo 1916 56.689 15.373 3.836
1917 39.459 16.269 1.552
três no Funchal, um em Santa Cruz, um em Ponta do Sol, um em Porto Moniz,
1918 26.775 17.500
um em Ponta Delgada, três em S. Vicente, dois em S. Jorge e um no Faial, que
ferviam em média por ano 7 a 8000 pipas81. Em 1785, segundo G. Pery82 o
O álcool, usado no processo de vinificação do
número elevava-se a 15. Dos três existentes em 1821 se evoluiu de modo rápido,
vinho, era resultado da destilação directa da garapa
em cerca de 30 anos para 13, cujo número estacionou, apenas subindo em 1875
ou melaço importado, ou então dos resíduos do fab-
mais três.
rico do açúcar. Era a partir da última situação que se
Caldeira de triplo efeito. Desenho de J. H. Ferraz A distribuição geográfica dos alambiques pelas áreas produtoras de vinho é elucidativa. Na ver-
conseguia a maior parte do álcool produzido anual-
tente Sul, onde se produziam os melhores vinhos e em maiores quantidades, temos apenas cinco,
mente, donde se conseguia extrair cerca de 1% da
sendo três no Funchal e os outros dois, distribuídos em áreas onde se colhiam os mais fracos do Sul
cana usada.
- Santa Cruz e Ponta do Sol . A vertente Norte, origem da maioria dos vinhos baixos, apresentava
oito alambiques, com três em S. Vicente e dois em S. Jorge. Ambas as freguesias eram consideradas
Álcool produzido em litros
as de maior produção no Norte. A luta em prol da qualidade e boa reputação do vinho passava pela
Ano resíduos garapa total
destilação dos vinhos baixos do Norte e daí a instalação de fábricas de destilação contínua. 1912 483.600 245.943 729.543
A partir de finais do século XIX mudou o panorama económico da ilha com a valorização da 1913 508.640 260.454 769.064
cana-de-açúcar na agricultura, donde se fabricou álcool e aguardente para uso local e exportação. 1914 545.210 192.515 737.725
Caldeiras Fives-Lille,1878
A disponibilidade da aguardente de cana levou à utilização no tratamento do vinho até 196783. Por 1915 574.030 21.129 552.901
outro lado o Governo foi forçado a estabelecer regras no sentido de disciplinar e travar o consumo 1916 566.890 246.345 813.235
excessivo de aguardente. Em 1911 concedeu-se o monopólio do fabrico de açúcar à casa Hinton84. 1917 394.590 100.915 495.505
A cana continuou a ter como principal destino o fabrico de açúcar, todavia a aguardente e de
forma especial o álcool assume uma dimensão especial na indústria no decurso da primeira metade A produção estava reservada ao processo de vinificação sendo a comercialização feita directa-
do século XX, sendo acompanhado de perto pela aguardente. A situação mudou a partir de 1919 mente entre as empresas e os engenhos matriculados, que em 1927 eram apenas três, com a possi-
bilidade de comercializar 800.000 litros para a vinificação e 376.000 litros para o consumo como
aguardente. Em 1909 recomendava-se o uso de 50 litros de álcool em cada pipa de vinho de 500
77. Defensor da Liberdade, nº.26, p.4 litros, passando por decreto de 1913 para 55 litros.
78. Veja-se as declarações da câmara nas representações de 1821 e 1822 e teremos uma antevisão deste movimento, ARM, RGCMF,
T. 15, fols. 100vº/104, 24/26. in Alberto Vieira, História do Vinho da Madeira. Documentos e Textos, Funchal, 1993, pp. 99-101 As fábricas matriculadas poderiam importar melaço com esta finalidade quando a produção de
79. ANTT, PJRFF, nº 763, fols. 146vº/147. cana da ilha não chegasse para satisfazer as necessidades locais de açúcar e álcool, usufruindo de
80. AHU, Madeira e Porto Santo, nº 9480. uma redução dos direitos de entrada de 30 para 5 réis, como se pode ver pelos decretos de 1903 e
81. "Apontamentos Estatísticos sobre a Cultura da Vinha na Ilha da Madeira, in Correio da Madeira, nº 114, p. 1, confirmado por
J. J. Nóbrega em 1851. 1911. De acordo com o decreto de 1913 todos os viticultores tinham direito a 11% de álcool, calcu-
82. Geografia Estatística Geral de Portugal e Colónias, Lisboa, 1875, pp. 3/9. lado a partir do mosto produzido, declarado na alfândega.
83. A questão motivou aceso debate na imprensa e em folhetos avulso. Cf. Benedita Câmara, ob. Cit., pp.168-169
84. Benedita Câmara, A Madeira e o Proteccionismo Sacarino (1895-1918), in Análise Social, vol. XXXIIII (145), 1978, pp.117-143.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

A grande oferta de aguardente de cana fez disparar o consumo em princípios do século local ou com as importações dele do Brasil. Neste último caso sabe-se que em 1680 foram impor-
XX. Em 1909 a ilha consumia dois milhões de litros de aguardente, sendo as fábricas não tadas 2.575 arrobas para o fabrico de casca90. Aliás, de acordo com uma informação dada ao
matriculadas responsáveis pela disponibilização no mercado de 1.710.400 litros85. O excessivo Governador da ilha, D. António Jorge de Melo referia-se que "é a casquinha negócio muito grande
consumo levou a que a Madeira recebesse o epíteto de “ilha da aguardente”, pelo decreto de porque há anno que se carregão com aquella terra mais de 20 embarcações de hã so doce para o
1911, que estabeleceu um travão através da expropriação de fábricas e o estabelecimento de qual he necesareo comprar assucar da terra ou mandalo vir do Brasil"91.
um limite para a produção. Tal como se deduz de um documento de 146992 o fabrico de conservas era indústria importante
O consumo excessivo da aguardente levou o governo a estabelecer um conjunto de medi- para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava "molheres de boas pesoas e muytos
das no sentido da limitação. a conceder em 1928 a distribuição em regime de monopólio, por pobres que lavraram os açuquares bayxos em tamtas maneyras de conservas e alfeni e confeitos de
25 anos, à Companhia da Aguardente da Madeira. Em 1939 fecharam-se 39 das 48 fábricas que am grandes proveytos que dam remedio a suas vidas e dam grande nome a terra nas partes
em funcionamento. A situação teve reflexos na produção vitivinícola, uma vez que conduziu onde vam...". A actividade estava vedada ao estrangeiros e mestres de açúcar, uma vez que apenas
à proibição de funcionamento dos alambiques para queimar as borras ou os vinhos de infe- aos “vizinhos e naturaes da ilha” era permitido fazer conservas, alfenim e confeitos93. A fama Convento de Santa Clara.
rior qualidade. A companhia faliu e o estado acabou entregando o comércio do produto aos alcançada pela arte da confeitaria está testemunhada na embaixada enviada por Simão Gonçalves Gravura do século XIX
engenhos do Hinton e as pequenas unidades industriais que se mantiveram na Calheta, da Câmara ao Papa. Segundo Gaspar Frutuoso94 compunha-se de "muitos mimos e brincos da ilha
Machico e Porto da Cruz. de conservas, e o sacro palácio todo feito de assucar, e os cardiais todos feitos de alfenim, dorna-
Com a criação da Junta Nacional do Vinho toda a actividade de controlo do álcool para a dos a partes, o que lhes dava muita graça, e feitos de estatura de hum homem".
beneficiação do vinho passou a depender da delegação regional, passando em 1979 para o No fabrico das conservas e doces variados merecem atenção as freiras do Convento de Santa
Instituto do Vinho da Madeira até 1992, altura em que foi liberalizada a venda por imposição Clara, da Encarnação e Mercês95. Aliás em 168796 Hans Sloane referia-se de forma elogiosa aos
da CEE. doces e compotas que comeu no Convento de Santa Clara, e ao referir que "nunca vi coisas täo
boas". Segundo Emanuel Ribeiro os conventos femininos foram os “sacrários da doçaria”. 97
Um breve relance pelos livros de receita e despesa do Convento da Encarnação98, das Mercês99,
Misericórdia do Funchal100, e Recolhimento do Bom Jesus101, constata-se as assíduas despesas com
Afenim da ilha Terceira. 2003 AS CONSERVAS E DOÇARIA a compra de açúcar da ilha ou do Brasil para o consumo interno. A Misericórdia do Funchal para
além das esmolas que recebia em açúcar ou marmelada consumia açúcar que comprava. Do
Parte significativa do açúcar produzido na ilha, e mais tarde importado do Brasil, era usado no primeiro tanto se poderia dar aos doentes ou vender para fora. Em 1636 gastaram-se 6.180 réis na
fabrico de conservas e de doçaria. São vários os testamentos denunciadores da mestria dos compra de 3 arrobas de açúcar para os doces da procissão das Endoenças102. Ademais são conheci-
madeirenses no fabrico destes produtos. Em meados do século quinze Cadamosto86 refere a feitura das outras despesas na compra de abóbora, ginjas, peras, marmelos para o fabrico de doce. Em 4
de "muitos doces brancos perfeitíssimos", enquanto em 1567 Pompeo Arditi87 dá conta da "conser- de Junho de 1700 a Misericórdia do Funchal gastou 101.500 réis na compra de 34 arrobas para o
va de açúcar" que se fazia no Funchal "de óptima qualidade e muita abundância". E esta tradição
perpetuou-se na ilha para além do fulgor da produção açucareira local, pois segundo Hans Sloane88
em 1687 o madeirense produzia "açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, 90. ANTT, PJRFF, n1 954.
indo ainda comprá-lo ao Brasil". Dois anos depois John Ovington89 refere a indústria da conserva 91. Joäo Cabral do Nascimento, Documentos para a História das Capitanias da Madeira, Lisboa, 1930.
de citrinos que se exportava para França. Foram as compotas que mais despertaram a atenção, pois 92. AHM, vol. XV (1972), n1 18, pp. 47-49.
93. Ibidem, vol. XVI, 1973, pp.198-199, 241.
nunca havia visto “coisas tão boas”. A cidra existia em abundância na Ponta de Sol, Ribeira Brava, 94. Ob. cit., pp. 248-249. Confronte-se Luciana Stagagno Picchio, "O Sacro Colégio de Alfenim. Considerações sobre a civilização
Machico e Câmara de Lobos (Ribeira dos Socorridos). do Açúcar na ilha da Madeira e noutras ilhas", in Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1990,
A indústria manteve-se por todo o século XVII, suportada com o pouco açúcar da produção pp. 181-190.
95. Emanuel Ribeiro, O Doce Nunca Amargou..., 1928, pp. 17, 34, 59.
96. António Aragão, Ibidem, p. 158.
97. O Doce nunca amargou… doçaria Portuguesa. História. Decoração. Receituário, Coimbra, 1928, p.34, 59.
85. Henrique A. Vieira de Castro, Bases para a Solução da Questão Saccharina e Meios de Combater o Alcoolismo na Madeira, 98. ARM, Convento da Encarnação, n1 14 a 16. Cf. Eduarda Sousa, O Convento da Encarnação do Funchal. Subsídios para a sua
Funchal, 1911. História 1660-1777, Funchal, CEHA, 1995.
86. António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p. 37. 99. Otília Rodrigues Fontoura, OSC, As Clarissas na Madeira. Uma presença de 500 Anos, Funchal, CEHA, 2000, pp.345-347.
87. Ibidem, p. 130. 100. ARM, Misericórdia do Funchal, nº 342 a 345, 492-509.
88. Ibidem, p. 158. 101.ARM, Recolhimento Bom Jesus, nº.18, 20
89. Ibidem, p. 198. 102. Ibidem, n1 498, fl. 131v1.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

fabrico de doces a serem consumidos ao longo do ano103. Para o DATA DESTINATÁRIOS AÇÚCAR
período de 1694 a 1700 a mesma instituição gastou 634.400 réis na Arrobas Arráteis Barris
compra de 227 arrobas de açúcar e 14 canadas de mel. 1501.Outubro.02 Estribeiro do rei 57 8
Maior e mais assíduo foram o consumo de açúcar no Convento 1504.Janeiro.10 Guarda reposte 12
da Encarnação no período de 1671 a 1693104. Aí, de acordo com o 1507.Setembro.25 Rei 34
1508. Novembro.03 Rei 40
registo mensal dos gastos com as compras de produtos para a dis-
1510.Fevereiro.13 Rei 37 13 ?
pensa do convento pode-se ficar com uma ideia da sazonalidade do
1510.Maio.13 Guarda reposte 12
consumo da doçaria. No caso deste convento destacam-se a
1511.Junho.18 10
Quinta-Feira de Endoenças e o Natal. Na última festividade dis-
1512.Setembro.11 Guarda reposte 36
tribuía-se a cada freira, para a Consoada, 8 libras de açúcar. Além
1513.Janeiro.17 Guarda reposte 14
disso parte significativa do açúcar de várias qualidades, era usado
1513.Dezembro.16 Rei 40
para o "tempero do comer" e fazer conserva. No total despende-
1516.Setembro.18 Feitor Flandres 12
ram-se 190 arrobas de açúcar por estes vinte e dois anos para um 1520.Julho.10 Guarda reposte 30 Sistema de bombagem. Século XIX
total aproximado de seis dezenas de recolhidas. Ficou célebre o 1521.Outubro.04 Guarda reposte 60
chamado bolo de mel das freiras da Encarnação que se manteve 1521.Outubro.15 Rei 60
Caldeiras. Século XIX até a actualidade com a mais importante herança da época açucareira.105 1528. Outubro.20 Rei 30
Na actualidade é a doçaria que mantém activa a cultura e as três fabricas. No período do 1528.Novembro.20 Guarda reposte 20
Carnaval e do Natal, popularizado como a festa, o consumo de mel dispara, havendo anos em que 1530.Agosto.05 Feitor em Flandres 15
a produção não dá para satisfazer as necessidades do consumo caseiro e das pequenas unidades 1532.Fevereiro.26 Guarda reposte 20
industriais. 1533. Fevereiro.29 Guarda reposte 150
Um dos factores de promoção da indústria ao nível das conservas foi a importância assumida 1533.Novembro.17 Flandres 12
pelo Funchal como porto de escala de abastecimento para a navegação atlântica. Muitas embar- 1534.Fevereiro.06 Guarda reposte 307
cações que aí aportavam tinham como intuito se fornecerem de conservas de citrinos, necessárias 1535. Maio.15 100 10
à dieta de bordo. 1536.Março.30 60
O consumidor preferencial das conservas e doçaria madeirense era a Casa Real portuguesa. Foi 1550.Abril.10 Rainha 137 25,5
D. Manuel quem divulgou as qualidades na Europa. Assim ficaram como o principal presente, den- 1561.Julho.26 Guarda reposte 107 16
tro e fora do reino, sendo o exemplo seguido por Vasco da Gama, que também ofertou o xeque de
Moçambique com conservas da ilha106. Os confeiteiros, que fabricavam as conservas, eram pagos O rei havia estabelecido a partir de 1520109 o envio anual de 10 arrobas de conserva para o feitor
pela Fazenda Real. Sabemos que em 1513 Diogo de Medina recebeu 8$000 réis pelo fabrico de 40 de Flandres, quantidade que foi elevada para 12 arrobas em 1525110. Sabemos ainda que em Janeiro
arrobas e conserva para o rei. Já em 1521 Inês Mendes recebeu 92$000 réis por 60 arrobas com o de 1524 Francisco Dhane comprou conservas e marmelada para enviar a Flandres111. Para os anos
mesmo destino107. No período de 1501 a 1561 a Casa Real consumiu 1129 arrobas e 58 barris de açú- de 1524 e 1525112, temos disponíveis alguns dados sobre as exportações de conservas de frutas nas
car em conservas e frutas secas108. alfândegas de Santa Cruz e Funchal113:

103. Ibidem, nº 347.


104. ARM, Convento da Encarnação, nº 14 a 16; confronte-se João Cabral do Nascimento, "As freiras e os doces do Convento da
Incarnação", in Arquivo Histórico da Madeira, Vol. V (1937), pp. 68-75.
105. Álvaro Manso de Sousa, O Bolo de Mel das Freiras da Encarnação. In Das Artes e da História da Madeira, Funchal, 1948-1949, 109 . Braamcamp Freire, "A Feitoria de Flandres", in Arquivo Histórico Português, VI, p. 371; Sousa Viterbo, ibidem, p. 11.
p.51. 110. F. J. Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI existentes no Corpo Cronológico, vol. I, Lisboa, 1990, p.321.
106. Confronte-se Sousa Viterbo, Artes e Indústrias Portuguesas - A Indústria Sacarina, II0 Série, Coimbra, 1910, pp. 10-11. 111. John Everaert, Marchands Flamands a Lisbonne et l’Exportation du Sucre de Madère (1480-1530), in Actas do I Colóquio
107. Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI existentes no Corpo Cronológico, Vol. I, Lisboa, 1990, Internacional de História da Madeira.1986, Funchal, DRAC, vol. I, 1989, p.455.
pp. 120, 168 112. Fernando Jasmins Pereira, Livros de contas da Madeira. 1504-1537, Coimbra, 1985.
108. Informações recolhidas nos documentos publicados por Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI 113. F. J. Pereira, Livros de Contas da Madeira, Vol. II, Funchal, 1989, pp.79, 82, 101; vol. II (Funchal, 1990), pp.89, 90, 92, 93,95,
existentes no Corpo Cronológico, Vol. I, Lisboa, 1990. 127, 130, 136, 138, 149, 154, 170, 171, 172, 173, 182, 243.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

TIPO CONSERVAS FRUTAS ANO DESTINO CONSERVA AÇÚCAR


Arrobas Arratéis Arrobas Arratéis 1649/Mai/23 frol de laranja
Branco 34 10 17 16 limão 99,5 arrobas
Escumas 45 4 - - 6 arrobas
Rescumas 25 - 16 10 1649/Jul/2 S. Malo casca
Meles - - 14 - Hamburgo casca
Outros 25 - 48 29 20a. casca
1649/Jul/14 Rochela 300 a. casca
Os livros do quarto e quinto do açúcar informam-nos sobre o dispêndio que dele se fazia no 1649/Out/18 Rochela 114 a. casca seca
fabrico de conservas, frutas seca e marmelada114. Nisso gastaram-se cerca de quatrocentas arrobas Rochela casca seca
de açúcar de vários tipos, sendo a maioria para consumo dos proprietários do referido açúcar. 1649/Dez/17 Amesterdão 22 a. conserva
A partir de meados do século XVII torna-se difícil reconstituir o movimento comercial de 92 a. conserva
derivados do açúcar. A documentação é escassa e a informação mais elucidativa encontra-se na cor- 1650/Jul/20 Rochela casca
respondência comercial de três mercadores: Diogo Fernandes Branco (1649-1652), William Bolton 1650/Nov./20 Holanda 34 a. casca
(1696-1715) e Duarte Sodré Pereira (1710-1712). Afora isso temos outro documento esclarecedor 10 a. de limão
sobre a referida exportação na década de quarenta. Manuel de Cea em 1646115 terá exportado o Rochela 37 a. casca
seguinte açúcar e derivados: 1651/Jul/3 Rochela 10 caixas casca
Bordeus Casca
QUANTIDADE TIPO DESTINO VALOR em reais 1652/Set/8 Rochela casca 60 caixas
19 caixas Branco 165$000 Flandres casca
4 caixas mascavado Amesterdão casca
17 caixões Casca Hamburgo 206$500 1652/Set/24 Rochela 50 caixões casca
12 caixões Casca em flor 2.111$400
18 caixões Casca Hamburgo 224$864 A correspondência de William Bolton117 refere-nos, também, que a conserva de citrinos estava
2 caixões Flor Hamburgo em grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo usada para o abastecimento
12 caixões casca 160$000 das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas para Lisboa, Holanda e França.

Diogo Fernandes Branco parece ter sido o principal interveniente do comércio com os portos DATA BARCO CARGA DESTINO
nórdicos, quase só baseado na exportação de casca e conservas. Para o curto período que dura a 1697/Jul./1 Francês açúcar Tenerife
correspondência é evidente a importância assumida no comércio116. Assim, em 1649, não obstante 1698/Set/2 Galeota conserva de citrinos Holanda
o açúcar da produção local ser de mau qualidade, a falta de cidra e tardar a vinda dos navios do 1699/Ab./14 3 caixas de citrinos Inglaterra
Brasil, a procura manteve-se activa, gerando dificuldades aos fornecedores, como Diogo Fernandes 1699/Jul/6 brigue francês conserva de citrinos França
Branco, que tiveram que socorrer-se de todos os meios para poder satisfazer a encomenda. A con- 1699/Nov./13 Português conserva em calda e seca Roterdão
juntura conduzia inevitavelmente ao aumento do preço do produto. A situação continuou de modo 1700/Mai./1 Galeota 7 caixas de conserva de citrinos Londres
que em Novembro de 1651 carregaram na ilha 9 navios franceses. No ano imediato inverteu-se a 1700/Set./4 1 caixa de conserva de citrinos Londres
situação. A casca abundou e em Outubro ainda tardavam em chegar os navios para a levar ao des- 1707/Maio/24 1 caixa de conserva
tino, o que era motivo para preocupação. 1709/Out./2 Mary açúcar e conservas Amesterdão

Duarte Sodré Pereira118 surge, nos anos imediatos, como o continuador do comércio. A activi-
dade mercantil, neste lapso de tempo, esteve dedicada, também ao comércio do açúcar do Brasil e
114. F. J. Pereira, Livros de Contas da Madeira, Vol. II, Funchal, 1989, pp.79, 82, 101; vol. II (Funchal, 1990),
115. ARM. Arquivo da Família Ornelas, caixa. 7, pasta 3, 4 de Novembro de 1652. 117. António Aragão, ob. cit., pp.318-367
116.ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº.19 118. Maria Júlia de Oliveira e Silva, Fidalgos-mercadores no século XVIII. Duarte Sodré Pereira, Lisboa, 1991.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

à exportação de casca para o norte da Europa, nomeadamente, Amesterdão. A partir da corres- esmola 12 arrobas de açúcar, enquanto a de Santa Cruz
pondência comercial sabe-se que exportou a seguinte quantidade de casca: recebeu em 1682124 apenas 2 arrobas de açúcar. O
Mosteiro de Jesus em Aveiro, que recebia 10 arrobas de
DESTINO CAIXÕES CAIXOTES ARROBAS OUTROS açúcar por ano, reclamava em 1648125 pelas esmolas
Amesterdão 435 desde 1643, como isso não aconteceu nomeou em
Hamburgo 1 1652126 um procurador para proceder à cobrança.
Lisboa 1205 2 1 Sabemos ainda que em1686127 o Mosteiro de Belém em
Faial 3 1 Castela tinha direito a 50 arrobas de açúcar de esmolas,
Londres 1 sendo procurador o Provedor da Fazenda.
A par disso também se regista a utilização tem-
porária dos lucros arrecadados pela Coroa na ilha com
O DISPÊNDIO DO AÇÚCAR DOS DIREITOS o açúcar, no custeamento das despesas com os socorros
às praças africanas128 ou no provimento das armadas129.
Do açúcar laborado há que distinguir aquele que pertence aos proprietários de canaviais e enge- Acresce, ainda, a política de ofertas estabelecida por D.
nho e o que é da coroa, por arrecadação do almoxarifado dos quartos ou da Alfândega, resultante Manuel I, que em muito contribuíram para o enriqueci-
dos direitos que oneravam a produção (quarto/quinto/oitavo) e saída na Alfândega (dízima). mento do património artístico da Madeira130.
Enquanto a cobrança era feita directamente nas alfândegas do Funchal e Santa Cruz, o primeiro
poderia ser recolhido pela estrutura institucional criada para o efeito - o almoxarifado dos quartos
(1485-1522) - ou o cargo da anterior. Ainda poderia suceder a arrecadação por contratadores, maio- AS FORMAS DE TROCA
ritariamente estrangeiros, que oscilava entre as 18.507 e 31.876 arrobas entre 1497 e 1506119.
O açúcar arrecadado pela coroa, tal como nos elucida F. J. Pereira120, era usado para cobrir as Diversificada é também a forma como o lavrador
despesas ordinárias, na carregação directa e vendas aos mercadores e/ou sociedades comerciais. Na despendia o açúcar da safra. As vendas directas aos
primeira despesa estavam incluídos, a redízima dos capitães, os gastos pessoais do monarca, da mercadores, muitas vezes de antemão, associam-se os
Casa Real, as esmolas, para além das despesas com os soldos dos funcionários, do transporte e pagamentos de dívidas ou por trocas de produtos e
embalagem do açúcar. A despesa variou entre as 1.070 e 2.114 arrobas, sendo a média anual no serviços. Os livros do quarto e do quinto, como forma
período de 1501 a 1537 de 1622 arrobas. No caso das esmolas é de realçar as que se faziam às de controlo dos direitos em jogo, contabilizam a forma
Misericórdias - Funchal (1512), Ponta Delgada em S. Miguel (1515), Todos os Santos em Lisboa como os lavradores despendiam o açúcar. Daqui poderá
(1506 -, Conventos - Santa Maria de Guadalupe (1485), Jesus de Aveiro (1502) e Conceição de saber-se quem eram os principais compradores, como o
Évora. A par disso também se regista a utilização temporária dos lucros arrecadados pela Coroa no uso no pagamento de serviços131. No global tivemos
custeamento dos socorros às praças africanas ou no provimento das armadas121. A contrapartida cerca de 81.280 arrobas distribuídas por 2.492 com-
estará na política de ofertas estabelecida por D. Manuel I, que em muito contribuiu para o enrique- pradores. Alfândega do Funchal. Bartolomeu João. 1654
cimento do património artístico da Madeira122.
As dádivas da coroa às instituições hospitalares e conventos mantiveram-se mesmo em momen-
tos de dificuldade do século XVII. Sabemos que a Misericórdia do Funchal recebia em 1647123 como 124. ANTT, PJRFF, nº.966, fls.231-232vº, 3 de Março de 1682.
125. ANTT, PJRFF, nº.980, fls.283-283vº, 1 de Fevereiro de 1648.
126. ANTT, PJRFF, nº.980, fls. 469-472, 16 de Novembro de 1652
119. Confronte-se F. Jasmins Pereira, O Açúcar Madeirense, de 1500 a 1537. Produção e Preços, Lisboa, 1969, 55-69. 127. ANTT, PJRFF, nº.966, fls. 450-451vº, 7 de Janeiro.
120. Ibidem, 69-93. 128. Confronte-se nome citado, O Comércio Inter-Insular nos Séculos XV e XVI, p. 23; Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, vol.
121. No período que decorre de 1508 a 1514 foram gastas 1.000 arrobas com as despesas de socorro a Safim. Confronte-se nome cita- II, Lisboa, 1978, pp. 29-71, 281-322.
do, O Comércio Inter-Insular nos Séculos XV e XVI, p. 23; Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, vol. II, Lisboa, 1978, pp. 129. No período que decorre de 1508 a 1514 foram gastas 1.000 arrobas com as despesas de socorro a Safim.
29-71, 281-322. 130. Este ofereceu uma cruz processional para a Igreja da Sé (1528), uma pia baptismal à Ribeira Brava, uma escultura em madeira
122. Ofereceu uma cruz processional para a Igreja da Sé (1528), uma pia baptismal à Ribeira Brava, uma escultura em madeira e e colunas em mármore para a matriz de Machico.
colunas em mármore para a matriz de Machico. 131. Apenas para o Funchal em 1536, Ribeira Brava em 1517 e 1536, Ponta do Sol em 1526 e 1537 e Calheta em 1509, 1514 e 1534;
123. ANTT, PJRFF, nº.980, fls. 136vº-137vº, 13 de Fevereiro de 1647; ibidem, nº.965ª, fls. 340-340vº, 20 de Janeiro de 1662. veja-se Fernando Jasmins Pereira, Livros de Contas da Ilha da Madeira 1502-1537, vol. II, Funchal, 1989.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

DISPENDIO DE AÇUCAR NA CAPITANIA DO FUNCHAL. 1509-1537

COMARCA DATA COMPRADORES ARROBAS


AÇUCAR MEDIA
Calheta 1509 532 26360 49,5
1514 286 12795 44,7
1534 270 7886 29,2
Funchal 1530 522 11453 21,9
R0 Brava 1517 456 10177 22,3
1536 170 3499 20,5
Ponta Sol 1526 163 6727 41
1537 93 2383 25,6
TOTAL - 2492 81280 32

Fonte: José Perreira da Costa, Livro de Contas da ilha da Madeira. 1504.1537, vol. II, Funchal, 1989.

A tendência do movimento do comércio do açúcar é para a disseminação pelos pequenos com-


pradores, acabando com os interesses monopolistas de algumas casas comerciais, que haviam domi-
nado o comércio na época de apogeu. O lavrador, o proprietário do engenho serviam-se usualmente
do produto da safra para o pagamento da mão-de-obra assalariada que necessitavam. Entre 1509 e
1537 há referência a diversos pagamentos em açúcar por serviços prestados na lavoura e laboração
do engenho e, mesmo na compra de qualquer manufactura ou prestação de serviço artesanal.
Os pagamentos dos serviços da safra do açúcar atingem 31,41%, sendo 16,62% no cultivo e apa-
nha da cana e 14,59%, sendo dominados pelos sapateiros (27,62%) e ferreiros (24,48%). As obrigações
para o pagamento do trigo açoriano com açúcar surgem apenas entre 1509 e 1519. No global temos
43,34% em moeda e 56,86% em açúcar132. Neste curto período de dez anos movimentaram-se 964,5
arrobas de açúcar em troca de 235,5 moios de trigo, o que perfaz uma média de 4 arrobas de açú-
car por moio de trigo, avaliado em cerca de 1$000 reais.
Registe-se, ainda, que a distribuição diversificada dos lucros acumulados por proprietários de
canaviais e mercadores de açúcar contribuiu para um manifesto progresso da sociedade madei-
rense no século dezasseis, com evidentes reflexos no quotidiano e panorama artístico e arquitec-
tónico133.

Fábrica William Hinton & Sons. 1935


132. ANTT, Corpo Cronológico, II, pp. 5, 21, 33, 36-38, 41-43, 46, 79, 185.
133. David Ferreira de Gouveia, "O Açúcar e a Economia Madeirense (1420-1550). Consumo de Excedentes", Islenha, nº 8 (1991),
pp. 11-22

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CAPÍTULO 5

rotas
E MERCADOS
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ROTAS E MERCADOS

Uma das funções privilegiadas das ilhas nos últimos quinhentos anos foi o serviço de escala
oceânica de apoio a todos os que sulcavam o oceano em distintos sentidos. Primeiro de descobri-
mento, que abriram os caminhos para as rotas comerciais, e depois escalas do percurso de afir-
mação da Ciência através das expedições científicas que dominaram os areópagos europeus a par-
tir do século XVIII. Umas e outras entrecruzam-se por diversas vezes e revelam-nos quão impor-
tante foi para a Europa o mundo das ilhas.
O Atlântico surge, a partir do século XV, como o principal espaço de circulação dos veleiros,
pelo que se definiu um intricado liame de rotas de navegação e comércio que ligavam o velho con-
tinente às costas africana e americana e as ilhas. A multiplicidade de rotas, que resultado da com-
plementaridade económica das áreas insulares e continentais, surge como consequência das formas
de aproveitamento económico aí adoptadas. Tudo isto completa-se com as condições geofísicas do
oceano, definidas pelas correntes e ventos que delinearam o traçado das rotas e os rumos das via-
gens.
A mais importante e duradoura de todas as rotas foi sem dúvida aquela que ligava as Índias (oci-
dentais e orientais) ao velho continente, que galvanizou o empenho dos monarcas, populações
ribeirinhas e acima de tudo os piratas e corsários, sendo expressa por múltiplas escalas apoiadas
nas ilhas que polvilhavam as costas ocidentais e orientais do mar: primeiro as Canárias e raramente
a Madeira, depois Cabo Verde, Santa Helena e os Açores. Nos três arquipélagos, definidos como
Mediterrâneo Atlântico, a intervenção nas grandes rotas faz-se a partir de algumas ilhas, sendo de
referir a Madeira, Gran Canaria, La Palma, La Gomera, Tenerife, Lanzarote e Hierro, Santiago,
Flores e Corvo, Terceira e S. Miguel. Em cada arquipélago afirmou-se uma ilha, servida por um
bom porto de mar como o principal eixo de actividade. No mundo insular português, por exemplo,
evidenciaram-se, de forma diversa, as ilhas da Madeira, Santiago e Terceira como os principais
eixos.

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Planisfério anónimo, dito de Cantino. 1502 da Índia, Brasil e Guiné, marca o início da viragem. Ao provedor competia a superintendência de
toda a defesa, abastecimento e apoio às embarcações em escala ou de passagem pelos mares açori-
anos. Além disso estava sob as suas ordens a armada das ilhas, criada expressamente para com-
boiar, desde as Flores até Lisboa, todas aquelas provenientes do Brasil, Índia e Mina.
Entre 1536 a 1556 há notícia do envio de pelo menos doze armadas. Depois, procurou-se garan-
tir nos portos costeiros do arquipélago um ancoradouro seguro construindo-se as fortificações
necessárias. A estrutura de apoio fazia falta aos castelhanos na área considerada crucial para a
navegação atlântica, e por isso por diversas vezes solicitaram o apoio das autoridades açorianas.
Mas, a ineficácia ou a necessidade de uma guarda e defesa mais actuante obrigou-os a reorganizar
a carreira, criando o sistema de frotas. Desde 1521 as frotas passaram a usufruir de uma nova estru-
tura organizativa e defensiva. No começo foi o sistema de frotas anuais artilhadas ou escoltadas por Naufrágio no Funchal. Gravura do século XIX

uma armada. Depois a partir de 1555 o estabelecimento de duas frotas para o tráfico americano:
Nueva Espana e Tierra Firme.
O activo protagonismo do arquipélago açoriano e, em especial, da ilha Terceira é referenciado
com certa frequência por roteiristas e marinheiros que nos deram conta das viagens ou os literatos
açorianos que presenciaram a realidade. Todos falam da importância do porto de Angra que, no
dizer de Gaspar Frutuoso, era "universal escala do mar do poente"2. A participação do arquipélago
As rotas portuguesas e castelhanas apresentavam um traçado diferente. Enquanto as primeiras madeirense nas grandes rotas oceânicas foi esporádica, justificando-se a ausência pelo posiciona-
divergiam de Lisboa, as castelhanas partiam de Sevilha com destino às Antilhas, tendo como pon- mento marginal em relação ao traçado ideal. Mas a ilha não ficou alheia ao roteiro atlântico,
tos importantes do raio de acção os arquipélagos das Canárias e Açores. Ambos os centros de apoio evidenciando-se em alguns momentos como escala importante das viagens portuguesas com desti-
estavam sob soberania distinta: o primeiro era castelhano desde o século XV, enquanto o segundo no ao Brasil, Golfo da Guiné e Índia. Inúmeras vezes a escala madeirense foi justificada mais pela
português, o que não facilitou muito o imprescindível apoio. Mas, por um lapso tempo (1585-1642), necessidade de abastecer as embarcações de vinho para consumo a bordo do que pela falta de água
o território entrou na esfera de domínio castelhano, sem que isso tivesse significado maior segu- ou víveres frescos. Não se esqueça que o vinho era um elemento fundamental da dieta de bordo,
rança para as armadas. Apenas neste período se intensificaram as operações de represália de sendo referenciado pelas qualidades na luta contra o escorbuto. Acresce ainda que ele tinha a
franceses, ingleses e holandeses. As expedições — que teremos oportunidade de referir mais adiante garantia de não se deteriorar com o calor dos trópicos, antes pelo contrário ganhava um envelheci-
— organizadas pela coroa espanhola na década de oitenta com destino à Terceira tinham uma dupla mento prematuro. Era o chamado vinho da roda, tão popular nos séculos seguintes. Motivo idên-
missão: defender e comboiar as armadas das Índias até porto seguro, em Lisboa ou Sevilha, e ocu- tico conduziu à assídua presença dos ingleses, a partir de finais do século dezasseis.
par a ilha para aí instalar uma base de apoio e de defesa das rotas oceânicas. A escala açoriana jus- A proximidade da Madeira aos portos do litoral peninsular, associada às condições dos ventos e
tificava-se mais por necessidade de protecção das armadas do que por necessidade de reabasteci- correntes marítimas foi o principal obstáculo à valorização da ilha no contexto das navegações
mento ou reparo das embarcações. Era à entrada dos mares açorianos, junto da ilha das Flores, que atlânticas. As Canárias, porque melhor posicionadas e distribuídas por sete ilhas em latitudes difer-
se reuniam os navios das armadas e se procedia ao comboiamento até o porto seguro na penínsu- entes, estavam em condições de oferecer o adequado serviço de apoio. A situação conturbada que
la, furtando-os à cobiça dos corsários, que infestavam os mares. aí se viveu, resultado da disputa pela posse pelas duas coroas peninsulares e a demorada pacifi-
Desde o início que a segurança das frotas foi uma das mais evidentes preocupações para a nave- cação da população indígena, fizeram com que a Madeira surgisse no século XV como um dos prin-
gação atlântica pelo que as coroas peninsulares delinearam, em separado, um plano de defesa e cipais eixos do domínio e navegação portuguesa no Atlântico. Tal como nos refere Zurara a ilha foi
apoio. Em Portugal tivemos, primeiro, o regimento para as naus da Índia nos Açores, promulgado desde 1445 o principal porto de escala para as navegações ao longo da costa africana. Mas, o maior
em 1520, em que foram estabelecidas normas para impedir que as mercadorias caíssem nas mãos conhecimento dos mares, os avanços tecnológicos e náuticos retirou ao Funchal a posição charneira
da cobiça do contrabando e corso. A necessidade de garantir com eficácia tal apoio e defesa das nas navegações atlânticas, substituído pelos portos das Canárias ou Cabo Verde. Já a partir de
armadas levou a coroa portuguesa a criar, em data anterior a 1527, a Provedoria das Armadas, com princípios do século XVI a Madeira surgirá apenas como um ponto de referência para a navegação
sede na cidade de Angra1. A nomeação em 1527 de Pero Anes do Canto para provedor das armadas atlântica, uma escala ocasional para reparo e aprovisionamento de vinho. Apenas o surto económi-

1. Confronte-se o nosso estudo sobre O Comércio inter-insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 17-24. 2. Livro sexto das Saudades da Terra, Cap.II.

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co da ilha conseguirá atrair as atenções das armadas, navegantes e aventureiros. Em síntese, as ilhas ta no sector de serviços de apoio à navegação comercial e de passageiros
são as portas de entrada e saída e por isso mesmo assumiram um papel importante nas rotas atlân- vai depender de uma outra política, a dos portos francos.
ticas. Mas para sulcar longas distâncias rumo ao Brasil, à costa africana ou ao Indico, era necessário O Funchal foi no século XVIII um centro chave das transformações
dispor de mais portos de escala, pois a viagem era longa e difícil. sócio-políticas entro operadas, de ambos os lados do oceano, fruto da
As áreas comerciais da costa da Guiné e, depois, com a ultrapassagem do cabo da Boa forte presença da comunidade inglesa e o facto a ter transformado num
Esperança, as indicas tornaram indispensável a existência de escalas intermédias. Primeiro Arguim importante centro para a afirmação colonial e marítima, a partir do sécu-
que serviu de feitoria e escala para a zona da Costa da Guiné, depois, com a revelação de Cabo lo XVII. A vinculação da ilha ao império britânico é bastante evidente
Verde, foi a ilha de Santiago que se afirmou como a principal escala da rota de ida para os por- no quotidiano e devir histórico madeirenses dos séculos XVIII e XIX3. A
tugueses e podia muito bem substituir as Canárias ou a Madeira, o que realmente aconteceu. Madeira, no decurso do século XVIII, firmou a vocação atlântica, contri-
Outras mais ilhas foram reveladas e tiveram um lugar proeminente no traçado das rotas. É o caso buindo para isso o facto de os ingleses não dispensarem o porto do
de S. Tomé para a área de navegação do golfo da Guiné e de Santa Helena para as caravelas da rota Funchal e o vinho madeirense na estratégia colonial. As diversas actas de
do Cabo. Também, a projecção dos arquipélagos de S. Tomé e Cabo Verde sobre os espaços vizi- navegação (1660, 1665), corroboradas pelos tratados de amizade, de que
nhas da costa africana levou a coroa a criar duas feitorias (Santiago e S. Tomé) como objectivo de merece relevo o de Methuen (1703)4, foram os meios que abriram o cam-
controlar, a partir daí, todas as transacções comerciais da costa africana. No Atlântico sul as prin- inho para que a Madeira entrasse na área de influência do mundo
cipais escalas das rotas do Índico assentavam nos portos das ilhas de Santiago, Santa Helena e inglês5. Aos poucos, a comunidade ganhou uma posição de respeito na
Ascensão. Aí as armadas reabasteciam-se de água, lenha, mantimentos ou procediam a ligeiras sociedade madeirense que, por vezes, se tornava incomodativa6. A pre-
reparações. Releva-se, ainda, a de Santa Helena como escala de reagrupamento das frotas vindas sença e importância da feitoria inglesa, no decurso do século XVIII, é
da Índia depois de ultrapassado o cabo, isto é, missão idêntica à dos Açores no final da travessia uma realidade insofismável. A comunidade inglesa passou a usufruir na ilha de um estatuto dife- Funchal. Gravura do século XIX
oceânica. A função da ilha de Santiago com escala do mar oceano foi efémera. A partir da década renciado que lhe dava a possibilidade de possuir um cemitério próprio, desde 1761. Também os
de trinta do século XVI as escalas são menos assíduas. O mar era já conhecido e as embarcações mesmos tiveram direito a igreja própria, enfermaria, conservatória7e juiz privativo. Esta opção,
de maior calado permitiam viagens mais prolongadas. Apenas os náufragos dos temporais aí apare- embora da primeira vez colhesse o governador de surpresa, parece ser desejada, pois em 1898 o
cem à procura de refúgio. governador de S. Miguel, depois de tomar conta do sucedido, manifestou o desejo que o mesmo
O posicionamento das ilhas no traçado das rotas de comércio e navegação atlântica fez com que sucedeu nos Açores, para evitar o perigo dos franceses8. A presença de armadas inglesas no Funchal
as coroas peninsulares dirigissem para aí todo o empenho nas iniciativas de apoio, defesa e controlo era constante sendo o relacionamento com as autoridades locais amistoso, sendo recebidos pelo
do trato comercial. As ilhas foram assim os bastiões avançados, suportes e símbolos da hegemonia governador com toda a hospitalidade9. Relevam-se as de 1799 e 1805, compostas, respectivamente
peninsular no Atlântico. A disputa pelas riquezas em circulação tinha lugar em terra ou no mar cir- de 108 e 112 embarcações10. Para além disto era assídua a presença de uma esquadra inglesa a
cunvizinho, pois para aí incidiam os piratas e corsários, ávidos de conseguir ainda que uma magra patrulhar o mar madeirense, sendo a de 1780 comandada por Jonhstone11. A partir de meados do
fatia do tesouro. Uma das maiores preocupações das autoridades terá sido a defesa dos navios. Mas século XIX o Funchal especializa-se como porto de escala de navios de passageiros, com especial
no caso das ilhas da Guiné isso nunca foi conseguido, tardando, ao contrário do que sucedeu na destaque para os ingleses. Para isso contribuiu a tradicional presença britânica e a afirmação da
Madeira, Açores e Canárias, o delineamento de um sistema defensivo em terra e no mar. Isto expli- ilha com estância turística. Daqui resulta que o porto funchalense no viu quebrado o protagonismo
ca a extrema vulnerabilidade destes portos, evidente nas inúmeras investidas inglesas e holandesas
na primeira metade do século XVII. 3. Desmond GREGORY, The Beneficent Usurpers. A History of the British in Madeira, London, 1988.
O século é marcado por uma mudança total no sistema de rotas do Atlântico. Os progressos no 4. Public Record Office, FO 811/1, cartas dos privilégios da nação britânica com Portugal desde 1401 a 1805.
desenvolvimento da máquina a vapor fizeram com que se elaborasse um novo plano de portos de 5. J. H. FISHER, The Methuen a Pombal. O Comércio anglo-português de 1700 a 1770, Lisboa, 1984, p. 29.
6. Em 1754 o Governador Manuel Saldanha Albuquerque lamenta o exclusivo do comércio inglês na ilha (AHU, Madeira e Porto
escala, capazes de servirem de apoio à navegação como fornecedores dos produtos em troca e do Santo, nº.48-49).
carvão para a laboração das máquinas. Nos Açores o porto de Angra cedeu o lugar aos da Horta e 7. Public Record Office, FO 811/1, fls.278, 31 de Janeiro de 1724.
Ponta Delgada, enquanto em Cabo Verde a ilha de Santiago foi substituída pela de S. Vicente, lugar 8. Em 27 de Fevereiro de 1808 o governador madeirense havia-lhe enviado uma carta relatando o sucedido. Confronte-se: Arquivo
dos Açores, vol.XI, 359-360, 373-379; Francisco d’Atayde de Faria e MAIA, Subsídios para a História de S. Miguel e Terceira.
que disputava com as Canárias. Entretanto o Funchal viu reforçada pela dupla oferta como porto Capitães-generais 1766-1831, 2ª edição Ponta Delgada, 1988.
carvoeiro e do vinho da ilha, o que fez atrair inúmeras embarcações inglesas e americanas. A par 9. Public Record Office, FO 63/7, sabe-se que por ordem de 14 de Junho de 1722 as embarcações com destino às colónias per-
disso a posição privilegiada que os ingleses gozavam na ilha levou a que eles se servissem do porto maneciam alguns dias no Funchal. A 20 de Janeiro de 1786 são 20 barcos em tal situação, coordenada pelo cônsul.
10. AHU, Madeira e Porto Santo, nº.1125, 1620, 22 de Outubro de 1799 e 7 de Outubro de 1805
do Funchal como base para as actividades de corso contra os franceses e castelhanos. A nova apos- 11. Ibidem, nº.545, 22 de Janeiro de 1780.

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na navegação atlântica, antes pelo contrário recobrou forças e novas funções face aos novos desafios interesses por ingleses e alemães16. A Horta rapidamente se transformou num nó de amarração de
da navegação oceânica. cabos submarinos que ligavam a Europa, América, África do Sul e Brasil, assinalando-se em 1926
Nos Açores assiste-se no decurso do século XVII a uma clara mudança dos espaços portuários a existência de quinze cabos17. O mesmo acontecia na ilha de S. Vicente onde amarrou o cabo inglês
de dimensão intercontinental. Assim, a Horta pela posição charneira no grupo central e pelo em 1874.
destaque que assumiu no apoio à baleação dos americanos acabou por assumir a posição de porto A definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e económicos
oceânico de apoio às pescarias, ao comércio americano e de fornecimento de carvão, retirando derivados da conjuntura expansionista europeia mas também das condições internas, oferecidas
importância ao de Angra. Esta posição foi reforçada na segunda metade do século XIX com a amar- pelo meio. Elas tornam-se por demais evidentes quando estamos perante um conjunto de ilhas dis-
ração aí dos cabos submarinos. Por outro lado o grande centro económico do arquipélago é a ilha persas no oceano. São ilhas com a mesma origem geológica, sem quaisquer vestígios de ocupação
de S. Miguel, o que implica a valorização do porto de mar. Também em Cabo Verde ocorreram humana, mas com diferenças marcantes ao nível climático. Os Açores apresentavam-se como uma
idênticas mudanças que levaram à desvalorização de Santiago em favor de S. Vicente. O porto zona temperada, a Madeira como uma réplica mediterrânica, enquanto nos dois arquipélagos
oceânico transformou-se num oásis oceânico das embarcações conduzidas a vapor que aí deman- meridionais eram manifestas as influências da posição geográfica, que estabelecia um clima tropi-
davam o necessário abastecimento de carvão e num eixo destacado de amarração de cabos sub- cal seco ou equatorial. Daqui resultou a diversidade de formas de va-
marinos. O processo será evidente a partir 1838 quando se criou a vila nas proximidades do Porto lorização económica e social. As condições morfológicas estabelecem as
Grande e se procedeu à instalação do primeiro depósito de carvão pelo cônsul inglês John Rendall. especificidades de cada ilha e tornam possível a delimitação do espaço
A situação muda a partir de 1883, pois a agressividade espanhola através dos portos francos de Las e a sua forma de aproveitamento económico. Aqui o recorte e relevo
Palmas e Santa Cruz de Tenerife associada à modernização do porto francês de Dakar conduziram costeiro foram importantes. A possibilidade de acesso ao exterior
à desvalorização dos portos portugueses nas ilhas. através de bons ancoradouros era um factor importante. É a partir daqui
Já a presente centúria atribui uma dimensão distinta às ilhas. Assim, o jogo de interesses entre que se torna compreensível a situação da Madeira definida pela exces-
o continente europeu e americano fez com que algumas ilhas se transformassem em peças chave da siva importância da vertente sul em detrimento do norte.
hegemonia económica. Daqui resultou a evidente disputa entre Alemanha e Inglaterra por con- A mudança de centros de influência foi responsável porque os
seguir traze-las à esfera de influência. Note-se que a política dos sanatórios foi o subterfúgio usado arquipélagos atlânticos assumissem uma função importante. A tudo isso
por alemãs para iludir as pretensões expansionistas no Atlântico. Na base disto está o conflito gera- poderá juntar-se a constante presença de gentes ribeirinhas do
do pela questão dos sanatórios na Madeira, que teve como instigador a Inglaterra12. Aqui, mais uma Mediterrâneo, interessadas em estabelecer os produtos e o necessário
vez a Inglaterra usufruiu de uma posição favorável ao reivindicar a tradição histórica da aliança13. suporte financeiro. A constante premência do Mediterrâneo nos
A percepção da importância das ilhas na afirmação da hegemonia marítima britânica levou primórdios da expansão atlântica poderá ser responsabilizada pela
Thomas Ashe (1813)14 a reivindicar para os Açores a transformação num protectorado britânico. dominante mercantil das novas experiências de arroteamento aqui
Nos anos vinte os vapores começaram a ceder lugar às "máquinas voadoras" e paulatinamente a lançadas. Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao
aviação civil foi conquistando o mercado de transporte de passageiros. Mesmo assim as ilhas con- comprometerem-se com o processo atlântico, não puseram de parte a tradição agrícola e os incen- Embarcações séculos XVI
tinuaram por muito tempo a manter o papel de apoio às rotas transatlânticas. Nos Açores tivemos tivos comerciais dos mercados de origem. Por isso na bagagem dos primeiros cabouqueiros insu-
a ilha de Santa Maria, enquanto em Cabo Verde idêntico papel foi atribuído à ilha do Sal desde lares foram imprescindíveis as cepas, as socas de cana, alguns grãos do precioso cereal, de mistura
193915. com artefactos e ferramentas. A afirmação das áreas atlânticas resultou do transplante material e
Até ao aparecimento e vulgarização da telegrafia sem fios a estratégia de circulação da infor- humana de que os peninsulares foram os principais obreiros. O processo foi a primeira experiên-
mação assentava nas ilhas. A Madeira, a Horta e São Vicente foram de novo motivo de disputa e cia de ajustamento das arroteias às directrizes da nova economia de mercado. A sociedade e econo-
mia insulares surgem na confluência dos vectores externos com as condições internas dos multi-
facetado mundo insular. A concretização não foi simultânea nem obedeceu aos mesmos princípios
12. Gisela Medina Guevara: As Relações Luso-Alemãs antes da Primeira Guerra Mundial. A Questão da Concessão dos Sanatórios
da Ilha da Madeira, Lisboa, 1997
13. Cf. António José Telo, Os Açores e o Controlo do Atlântico, Lisboa, 1993. 16. Paul Kennedy, “Imperial Cable Comunications and Strategy, 1870-1914”, in The English Historical Review, vol. LXXXVI, 1971;
14. ASHE, T(homas), History of the Azores on Western Islands; Containing an Account of the Government, Laws and Religion, Francis M Rogers, ob.cit., pp.175-190, 209-230; Charles Bright, Submarine Telegraphs: Their History, Construction and
the Martners, Ceremonies and Character of the Inhabitants and demonstrating the Importance of these Valuable Islands to Working, London, 1898; K. C. Baghahole, A Century of Service. A Brief History of Cable and Wireless Ltd 1868-1968, London,
the British Empire, Ed. Sherwood, Neely, and Jones, Londres 1813. Confronte J. Reis Leite, “ 1970; K. R. Haigh, Cableships and Submarine Cables, London, 1968; H. H. Schenck(org.), The World’s Submarine Telephone
15. Francis M. Rogers, Atlantic Islanders of the Azores and Madeiras, Massachusetts, 1979, pp.191-208; R. E. G. Davies, A History Cable Systems, Washington DC, 1975.
of the Worlds Airlines, London, 1964. 17. F.S. Weston, “Os Cabos Submarinos nos Açores”, in Boletim do Núcleo Cultural da Horta, vol. III, nº.2, 1963.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

organizativos pelo facto de a mesma resultar da partilha pelas coroas peninsulares e senhorios Embarcações séculos XIX

ilhéus. Por outro lado a economia insular é resultado da presença de vários factores que intervêm
directamente na produção e comércio.
Ao nível do sector produtivo deverá ter-se em conta a importância assumida, por um lado, pelas
condições geofísicas e, por outro, pela política distributiva das culturas. É da conjugação de ambas
que se estabelece a necessária hierarquia. Os solos mais ricos eram reservados para a cultura de
maior rentabilidade económica (o trigo, a cana de açúcar, o pastel), enquanto os medianos ficavam
para os produtos hortícolas e frutícolas, ficando os mais pobres como pasto e área de apoio aos dois
primeiros. A Madeira, que se encontrava a pouco mais de meio século de existência como
sociedade insular, estava em condições de oferecer os contingentes de colonos habilitados para a
abertura de novas arroteias e ao lançamento de novas culturas nas ilhas e terras vizinhas. Assim
terá sucedido com o transplante da cana-de-açúcar para Santa Maria, S. Miguel, Terceira, Gran
Canária, Tenerife, Santiago, S. Tomé e Brasil.
A tendência uniformizadora da economia agrícola do espaço insular esbarrou com vários
obstáculos que, depois, conduziram a um reajustamento da política económica e à definição da
complementaridade entre os mesmos arquipélagos ou ilhas. Nestas circunstâncias as ilhas con-
seguiram criar os meios necessários para solucionar os problemas quotidianos - assentes quase sem-
pre no assegurar os componentes da dieta alimentar -, à afirmação nos mercados europeu e atlân-
tico. Assim sucedeu com os cereais que, produzidos apenas nalgumas ilhas, foram suficientes, em
condições normais, para satisfazer as necessidades da dieta insular, sobrando um grande excedente
para suprir as carências do reino.
Um dos objectivos que norteou o povoamento da Madeira foi a possibilidade de acesso a uma
nova área produtora de cereais, capaz de suprir as carências do reino e praças africanas e feitorias
da costa da Guiné, a situação era definida por aquilo que ficou conhecido como o “saco de Guiné”.
Entretanto os interesses em torno da cultura açucareira recrudesceram e a aposta na cultura era
óbvia. A mudança só se tornou possível quando se encontrou um mercado substitutivo. Assim
sucedeu com os Açores que, a partir da segunda metade do século dezasseis, passaram a assumir o
lugar da Madeira. O cereal foi o produto que conduziu a uma ligação harmoniosa dos espaços insu-
lares, o mesmo não sucedendo com o açúcar, o pastel e o vinho, que foram responsáveis pelo
afrontamento e uma crítica desarticulação dos mecanismos económicos. A par disso todos os pro-
dutos foram o suporte, mais que evidente, do poderoso domínio europeu na economia insular.
Primeiro o açúcar, depois o pastel e o vinho exerceram uma acção devastadora no equilíbrio latente
na economia das ilhas. A incessante procura e rendoso negócio conduziram à plena afirmação,
quase que exclusiva dos produtos, geradora da dependência ao mercado externo. Para além de ser
o consumidor exclusivo destas culturas, surge como o principal fornecedor dos produtos ou arte-
factos de que os insulares carecem. Perante isto qualquer eventualidade que pusesse em causa o sec-
tor produtivo era o prelúdio da estagnação do comércio e o prenúncio evidente de dificuldades, que
desembocavam quase sempre na fome. A estrutura do sector produtivo de cada ilha moldou-se de
acordo com isto, podendo definir-se em componentes da dieta alimentar (cereais, vinha, hortas,
fruteiras, gado) e de troca comercial (pastel, açúcar). Em consonância com a actividade agrícola ve-
rificou-se a valorização dos recursos disponibilizados por cada ilha, que integravam a dieta ali-

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mentar (pesca e silvicultura) ou as trocas comerciais (urzela, sumagre, madeiras). A historiografia vem defendendo única e exclusivamente a vinculação da ilha ao Velho Mundo,
A valorização do Atlântico nos séculos XV e XVI conduziu a um intrincado liame de rotas de realçando apenas a importância desta relação umbilical com a mãe-pátria. Neste sentido os séculos
navegação e de comércio que ligavam o Velho Continente ao litoral atlântico. Esta multiplicidade XV e XVI seriam definidos como os momentos áureos deste relacionamento, enquanto a conjun-
de rotas resultou das complementaridades económicas e de formas de exploração adoptadas. Se é tura setecentista seria a expressão da viragem para o Novo Mundo, em que o vinho assume o papel
certo que os vectores geraram as referidas rotas, não é menos certo que as condições mesológicas de protagonista e responsável destas trocas comerciais. Os estudos realizados confirmam que a si-
do oceano, dominadas pelas correntes, ventos e tempestades, delinearam o rumo. As mais impor- tuação do relacionamento exterior da ilha não se resumia apenas a estas situações19. Á margem sub-
tantes e duradouras de todas as traçadas foram sem dúvida a da Índia e a das Índias, que galvani- sistiram outras que activaram também a economia madeirense, desde o séc. XV. As conexões com
zaram as atenções dos monarcas, da população europeia e insular, dos piratas e corsários. os arquipélagos próximos (Açores e Canárias) ou afastados (Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe) foram
No traçado de ambas situava-se o Mediterrâneo Atlântico com uma actuação primordial na motivo de uma aprofundada explanação, que propiciou a necessária valorização na estrutura com-
manutenção e apoio à navegação atlântica. As ilhas da Madeira e das Canárias surgem nos séculos ercial madeirense20. Aqui ficou demonstrada a importância assumida pelos contactos humanos e
XV e XVI como entreposto para o comércio no litoral africano, americano e asiático. Os portos comerciais, que no primeiro caso, resultou da necessidade de abastecimento de cereais e, no segun-
principais da ilha da Madeira, Gran Canaria, La Gomera, Hierro, Tenerife e Lanzarote animam-se do, das possibilidades de intervenção no trafico negreiro, mercê da vinculação às áreas africanas Porto do Funchal. 1820
Porto do Funchal. Gravura século XIX
de forma diversa com o apoio a essa navegação e comércio nas rotas da ida, enquanto nos Açores, da Costa da Guiné, Mina e Angola. Para além deste privilegiado relacionamento com o mundo
com as ilhas de Flores, Corvo, Terceira, e S. Miguel, surgem como a escala necessária e funda- insular, a praça comercial madeirense foi protagonista de outros destinos no litoral africano ou
mental da rota de retorno. Segundo Pierre Chaunu a rota das Índias de Castela assentou em qua- americano e rosário de ilhas da América Central. No primeiro rumo ressalta a costa marroquina,
tro vértices fundamentais: Sevilha, Canárias, Antilhas, Açores18. A Madeira mantinha-se numa onde os portugueses assentaram algumas praças, defendidas, a ferro e fogo, pelas gentes da ilha21.
posição excêntrica, pois apenas servia as rotas portuguesas do Brasil e da costa africana. No século XVI, com a paulatina afirmação do novo mundo americano costeiro e insular, depara-se
A participação madeirense na carreira das Índias foi esporádica, justificando-se a ausência pela à ilha um novo destino e mercado, que pautará o relacionamento externo nas centúrias posteriores.
posição marginal em relação à rota. Todavia, a Madeira representa um porto de escala muito O novo mundo e mercado foram para muitos uma esperança de enriquecimento ou a forma de
importante para as navegações portuguesas para o Brasil, Golfo da Guiné e Índia. Desde o século assegurar a posse de bens fundiários.
XV que ficou demarcada a posição da escala madeirense para as explorações geográficas e comer- Em qualquer das situações o estreitamento dos contactos depende, primeiro, da presença de
ciais dos portugueses na costa ocidental madeirense para as explorações geográficas e comerciais uma comunidade madeirense que pretende manter o contacto com a terra mãe e depois das possi-
dos portugueses na costa ocidental africana. A opção pela Madeira adveio dos conflitos latentes bilidades de uma troca favorável. Neste contexto a oferta de vinho por parte do madeirense e à
com Castela pela posse das Canárias. A expansão comercial de finais do século XV, com a abertu- procura pelos agentes do trafico negreiro, para de forma enganadora oferecerem aos sobas
ra da rota do Cabo, veio valorizar mais uma vez esta escala aquém equador, surgindo inúmeras africanos, ou do outro lado do Atlântico saciar a sede do europeu a troco do açúcar, foi o principal Porto do Funchal. Gravura século XIX
referências, em roteiros e relatos de viagens, à escala madeirense. Os mesmos ingleses que uti- motor do relacionamento. A situação influenciou decisivamente a estrutura comercial da ilha, a
lizaram as Canárias tocavam com assiduidade a Madeira, onde se proviam de vinho para a viagem. partir da segunda metade do século XVI. Desde então as conexões comerciais adquiriram uma
A Madeira, como as Canárias, muito raramente foi escolhida como escala de retorno - uma vez maior complexidade, fazendo com que a Madeira, através do seu vinho, se transformasse num
que essa missão estava, por condicionalismos geográficos, reservada aos Açores. Todavia verificou- ponto importante do circuito de triangulação, que passou a dominar os contactos entre os portos
se ocasionalmente a escala das embarcações vindas da Mina Índias e Índias na Madeira. A posição da costa ocidental africana a americana e as Antilhas. Neste contexto foi exemplar e decisiva a
demarcada do Mediterrâneo Atlântico no comércio e na navegação atlântica fez com que as coroas acção de dois madeirenses -Diogo Fernandes Branco e Francisco Dias- que aqui e agora pre-
peninsulares investissem aí todas as tarefas de apoio, defesa e controle do trato comercial. As ilhas tendemos revelar. A eles associam-se dois ingleses- Bartolome Cuello e William Bolton- que mati-
eram os bastiões avançados, suportes e símbolos da hegemonia peninsular no Atlântico. A disputa
pela riqueza em movimento neste oceano será feita na área definida por elas, pois para aí incidiam
piratas e corsários ingleses, franceses e holandeses, ávidos das riquezas em circulação nas rotas
19. “O comércio de cereais dos Açores para a Madeira no século XVII”, in Os Açores e o Atlântico (séculos XIV-XVII), A.
americanas e indicas. Uma das maiores preocupações das coroas peninsulares terá sido a defesa das Heroismo, 1984; “O comércio de cereais das Canárias para a Madeira nos séculos XVI e XVII”, in VI Colóquio de História
embarcações que sulcavam o Atlântico em relação às investidas dos corsários europeus. A área Canario Americana, Las Palmas, 1984; “Madeira e Lanzarote. comércio de escravos e cereais no século XVII”, in IV Jornadas
definida pela Península Ibérica, Canárias e Açores era o principal foco de intervenção do corso de História de Lanzarote e Fuerteventura, Arrecife de Lanzarote, 1989.
20. O comércio inter-insular(Madeira, Açores e Canárias) nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987.
europeu sobre os navios que transportavam açúcar ou pastel ao velho continente. 21. A.A.SARMENTO, A Madeira e as praças de África. dum caderno de apontamentos, Funchal, 1932: Robert RICARD, “Les
places luso-marocaines et les Iles portugaises de l’Atlantique”, in Anais da Academia Portuguesa de História, II série, vol.II,
1949; António Dias FARINHA, “A Madeira e o Norte de África nos séculos XV e XVI”, in Actas do I Colóquio Internacional
18. Sevilla y América. Siglos XVI y XVII, 43-48. de História da Madeira.1986, vol.I, Funchal, 1989, pp.360-375.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

zaram de forma diversa o relacionamento externo da ilha. O posicionamento periférico do mundo insular condicionou a
A definição dos espaços políticos fez-se, primeiro de acordo com os paralelos e, depois, com o subjugação do comércio aos interesses hegemónicos do velho conti-
avanço dos descobrimentos para Ocidente, no sentido dos meridianos. A expressão real resultava nente. Os europeus foram os cabouqueiros, responsáveis pela trans-
apenas da conjuntura favorável e do acatamento pelos demais estados europeus. Mas o oceano e ter- migração agrícola, mas também os primeiros a usufruir da quali-
ras circundantes podiam ainda ser subdivididos em novos espaços de acordo com o protagonismo dade dos produtos lançados à terra e a desfrutar dos réditos que o
económico. Dum lado as ilhas orientais e ocidentais, do outro o litoral dos continentes americano comércio propiciou. Daí resultou a total dependência dos espaços
e africano. insulares ao velho continente, sendo a vivência económica moldada
A partilha não resultou dum pacto negocial, mas sim da confluência das reais potencialidades de acordo com as necessidades. Por isso é evidente a preferência do
económicas de cada uma das áreas em causa. Neste contexto assumiram particular importância as velho continente nos contactos com o exterior dos arquipélagos. Só
condições internas e externas de cada área. As primeiras foram resultado dos aspectos geo-climáti- depois surgiram as ilhas vizinhas e os continentes africano e ameri-
cos, enquanto as últimas derivam dos vectores definidos pela economia europeia. A partir da maior cano. Do velho rincão de origem vieram os produtos e instrumentos
ou menor intervenção de ambas as situações estaremos perante espaços agrícolas, vocacionados necessários para a abertura das arroteias, mas também as directrizes
para a produção de excedentes capazes de assegurar a subsistência dos que haviam saído e dos que institucionais e comerciais que os materializaram. O usufruto das
ficaram na Europa, de produtos adequados a um activo sistema de trocas inter-continentais, que possibilidades de um relacionamento com outras áreas continentais,
mantinha uma forte vinculação do velho ao novo mundo. O açúcar e o pastel foram os produtos no caso do Mediterrâneo Atlântico, foi consequência de um
que deram corpo à última conjuntura. aproveitamento vantajoso da posição geográfica e em alguns casos
O recurso aos africanos, como escravos ou não, foi a solução mais acertada para transpor o uma tentativa de fuga à omnipresente rota europeia.
primeiro obstáculo. Eles tinham uma alimentação diferente dos europeus, baseada no milho zabur- O arquipélago canário, mercê da posição e condições específicas
ro, no arroz e inhame, culturas que aí, nas ilhas ou vizinha costa africana, medravam com facili- criadas após a conquista, foi dos três o que tirou maior partido do
dade. Perante isto os poucos europeus que aí se fixaram estiveram sempre dependentes do trigo, comércio com o Novo Mundo. A proximidade ao continente africano, bem como o posicionamen- Porto do Funchal. Gravura século XIX
biscoito ou farinha, enviados das ilhas ou do reino, ou tiveram que se adaptar à dieta africana. to correcto nas rotas atlânticas, permitiram-lhe a intervir no tráfico intercontinental. Para os
Junto ao cereal plantaram os bacelos donde se extraia o saboroso vinho de consumo corrente ou Açores, o facto de as ilhas estarem situados na recta final das grandes rotas oceânicas possibilitou-
usado nos actos litúrgicos. A extrema dependência dos espaços continentais, com especial destaque lhes algum proveito com a prestação de inúmeros serviços de apoio e do eventual contrabando.
para o europeu, não foi apenas apanágio dos primórdios da ocupação das ilhas. A situação persis- Fora disso encontrava-se a Madeira, a partir de finais do século XV. Por muito tempo este comér-
tiu por mais de quatro séculos, mantendo-se na periferia da economia europeia e do mercado colo- cio foi apenas uma miragem. E só se tornou uma realidade quando o vinho começou a ser o preferi-
nial actuando de acordo com os ditames que regem a política colonial. As culturas dominantes do das gentes que embarcaram nas aventuras rumo ao Indico ou ao continente americano. Perante
quase sempre em sistema de monocultura obedecem a tais requisitos. Sucedeu assim com os panos isto o vinho madeirense afirmar-se-á em pleno a partir da segunda metade do século dezassete.
e a cana sacarina em Cabo Verde, com o cacau em S. Tomé e Príncipe, com a laranja nos Açores e Rumos diferentes tiveram os arquipélagos de S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde: a proximidade da
o vinho na Madeira. costa africana e a permanente actividade comercial definiram a inegável vinculação ao continente
As ilhas assumiram um papel evidente no traçado das rotas comerciais atlânticas, sendo os prin- africano. Por muito tempo os dois arquipélagos pouco mais foram do que portos de ligação entre a
cipais pilares. A posição estratégica no meio do Atlântico valorizou-se nas transacções oceânicas. América ou a Europa e as feitorias da costa africana.
Ao mesmo tempo a riqueza reforçou a vinculação ao velho continente através de uma exploração O comércio das ilhas com o litoral africano, exceptuando o caso de Cabo Verde e S. Tomé, fazia-
desenfreada dos recursos ou pela imposição de culturas destinadas ao mercado europeu, como foi se com maior assiduidade a partir das Canárias do que da Madeira ou dos Açores. Mesmo assim a
o caso da cana sacarina e do pastel. Mais a sul as feitorias de Santiago, Príncipe e S. Tomé, para Madeira, mercê da posição charneira no traçado das rotas quatrocentistas, teve aí um papel rele-
além de centralizarem o tráfico comercial em cada arquipélago, firmaram-se, por algum tempo, vante. Os madeirenses participaram activamente nas viagens de exploração geográfica e comércio
como os principais entrepostos de comércio com o litoral africano. Santiago manteve, até meados no litoral africano, surgindo o Funchal, nas últimas décadas do século XV, como um importante
do século dezasseis o controlo sobre o trato da costa da Guiné e das ilhas do arquipélago com o entreposto para o comércio de dentes de elefante. Além disso a iniciativa madeirense bifurcou-se.
exterior. E foi também o centro de redistribuirão dos artefactos e mantimentos europeus e de escoa- Dum lado estavam as praças marroquinas a quem a ilha passará a fornecer os homens para a defe-
mento do sal, chacinas, courama, panos e algodão. Enquanto a primeira situação, com o evoluir da sa, os materiais para a construção das fortalezas e os cereais para sustento dos homens aí aquarte-
conjuntura económica, foi perdendo importância, a segunda manteve-se por muito tempo, definin- lados. Do outro a área dos Rios e Golfo da Guiné, onde se abastecia de escravos, tão necessários
do uma trama complicada de rotas. que eram para assegurar a força de trabalho na safra do açúcar.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Funchal. Gravura do século XVII DISPENDIO DE AÇUCAR NA CAPITANIA DO FUNCHAL 1509-1537

COMARCA DATA COMPRADORES ARROBAS


AÇÚCAR MEDIA
Calheta 1509 532 26360 49,5
1514 286 12795 44,7
1534 270 7886 29,2
Funchal 1530 522 11453 21,9
R0 Brava 1517 456 10177 22,3
1536 170 3499 20,5
Ponta Sol 1526 163 6727 41
1537 93 2383 25,6
TOTAL - 2492 81280 32
Porto do Funchal. Gravura século XIX
Fonte: José Pereira da Costa, Livro de Contas da ilha da Madeira. 1504.1537, vol. II, Funchal, 1989.

A tendência do movimento do comércio do açúcar é para a disseminação pelos pequenos com-


pradores, acabando com os interesses monopolistas de algumas casas comerciais, que haviam domi-
nado o comércio na época de apogeu.
O lavrador, o proprietário do engenho serviam-se usualmente do produto da colheita para o
pagamento da mão-de-obra assalariada que necessitavam. Entre 1509 e 1537 há referência a diver-
sos pagamentos em açúcar por serviços prestados na lavoura e laboração do engenho e, mesmo na
compra de qualquer manufactura ou prestação de serviço artesanal. O pagamento dos serviços
relacionados com a cana e açúcar atingem 31,41%, sendo 16,62% no cultivo e apanha da cana e
14,59%, sendo dominados pelos sapateiros (27,62%) e ferreiros (24,48%).
As obrigações para o pagamento do trigo açoriano com açúcar surgem apenas entre 1509 e 1519.
No global temos 43,34% em moeda e 56,86% em açúcar23. No curto período de dez anos movi-
mentaram-se 964,5 arrobas de açúcar em troca de 235,5 moios de trigo, o que perfaz uma média
de 4 arrobas de açúcar por moio de trigo, avaliado em cerca de 1$000 reais.
Registe-se que a distribuição diversificada dos lucros acumulados por proprietários de canaviais
AS FORMAS DE TROCA e mercadores de açúcar contribuiu para um manifesto progresso da sociedade madeirense no sécu-
lo dezasseis, com evidentes reflexos no quotidiano e panorama artístico e arquitectónico24.
Diversificada é também a forma como o lavrador despendia o açúcar da safra. As vendas direc-
tas aos mercadores, muitas vezes de antemão, associam-se os pagamentos de dívidas ou por trocas
de produtos e serviços. Os livros do quarto e do quinto, como forma de controlo dos direitos em OS PREÇOS DO AÇÚCAR
jogo, contabilizam a forma como os lavradores despendiam o açúcar. Daqui poderá saber-se quem
eram os principais compradores, como o uso no pagamento de serviços22. No global tivemos cerca Não é fácil estabelecer com clareza a evolução dos preços do açúcar no mercado insular porque
de 81.280 arrobas distribuídas por 2.492 compradores.

23. ANTT, Corpo Cronológico, II, pp. 5, 21, 33, 36-38, 41-43, 46, 79, 185.
24. David Ferreira de Gouveia, “O açúcar e a economia madeirense (1420-1550). Consumo de excedentes”, Islenha, nº 8 (1991), pp.
22. Apenas para o Funchal em 1536, Ribeira Brava em 1517 e 1536, Ponta do Sol em 1526 e 1537 e Calheta em 1509, 1514 e 1534; 11-22.
veja-se Fernando Jasmins Pereira, Livros de contas da ilha da Madeira 1502-1537, vol. II, Funchal, 1989.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

não existem núcleos documentais que permitam a reconstituição de séries. Os dados disponíveis A partir da década de setenta o preço do açúcar entrou em quebra acentuada, situação teste-
são avulsos e desconexos. Além disso dever-se-ão juntar outras condicionantes que influem de munhada nas intervenções do senhorio a partir de 1469, que insiste na solução do monopólio para
forma decisiva nos preços. Em primeiro lugar está a falta crónica de moeda nas ilhas e o recurso ao o comércio. A negação dos madeirenses a semelhante solução levou o Duque D. Manuel a avançar
açúcar como meio de troca, a que se associa nos séculos XV e XVI a insistente desvalorização. O com novas medidas. Assim, em 1496 fixa os preços em 350 réis para o açúcar da primeira cozedu-
açúcar, como moeda de troca, é uma realidade quer na Madeira, quer nas Canárias, mas foi no últi- ra e 600 ao da segunda, e passados dois anos opta por estabelecer uma cota máxima de exportação
mo arquipélago que adquiriu melhor expressão25. que se cifrava em 120.000 arrobas. Os dados disponíveis revelam o movimento de quebra do açú-
A lei da oferta e da procura condicionava de forma evidente a evolução do preço do açúcar ao car.
longo do ano. É de notar uma variação mensal de acordo com o período da safra do açúcar e da O primeiro açúcar feito em Machico vendeu-se a 2000 réis arroba. Já em 1469 o preço estava em
presença de embarcações interessadas no trato26. Daqui resulta que os preços mais elevados surjam 500 arrobas para o de uma cozedura e 750 para o de duas, Em 1472 temos a notícia que subiu para
nos meses de Junho e Julho, precisamente no momento em que se disponibilizava o primeiro açú- 1000 réis a arroba, mas deverá ser uma situação particular resultante da quebra acentuada da
car do ano e, por isso, a afluência de mercadores era maior. São evidentes, ainda, outras variações moeda, pois que em 1478 regressou à normalidade. O movimento de queda foi uma constante até
sazonais no próprio mês de acordo, como é óbvio, com a lei da oferta e da procura. princípios do século XVI e só a revolução dos preços inverteu a situação, evidente na década de Preço da arroba de açúcar
vinte em ambos os arquipélagos. A situação foi comum à Madeira e Canárias. Em ambos os casos
PREÇO MÉDIO MENSAL DA ARROBA DE AÇÚCAR BRANCO NA MADEIRA é evidente uma inversão de marcha a partir da década de trinta que pode ser entendida com a pre-
JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ sença concorrencial de açúcar de outras áreas, nomeadamente do continente americano29.
1508 - - 315 - 320 320 290 - 283 286 501 305 A oferta não se resumia apenas ao açúcar branco, pois a ele devem juntar-se os subprodutos,
1524 450 500 500 - 500 515 535 560 650 - - - como as escumas, rescumas, mel, remel, mascavado e mel mascavado e depois alguns derivados,
como as conservas e casquinha, que em qualquer dos arquipélagos tiveram grande importância. Em
O açúcar branco apresentava dois preços, consoante fosse de uma ou duas cozeduras. Na Tenerife as escumas e rescumas eram cotadas a metade do preço do branco, enquanto na Madeira
Madeira o último preço correspondia em 1496 a quase o dobro do primeiro. Se tivermos em conta, e Gran Canaria a relação só é possível com as rescumas, uma vez que as escumas são muito mais
que em 15 000 arrobas da primeira cozedura ficava apenas 10 000 na segunda, nota-se uma forte valorizadas. É, ainda, possível estabelecer uma relação entre os subprodutos e o açúcar branco,
valorização do produto final27. A insistência no açúcar de segunda cozedura é considerada condição expressa nos níveis de produção e preço. Em Gran Canaria no século XVI a relação fazia-se da
necessária para a valorização do produto, impedindo que chegasse ao mercado europeu em más seguinte forma: em 2500 arrobas de açúcar correspondem 60% ao branco, 12% às escumas, 8% de
condições, mas acima de tudo era uma medida benéfica que reduzia para metade a oferta do açú- rescumas e 20% de açúcar refinado. O mesmo sucede na Madeira no período de 1520 a 153730. Preço do açúcar por arroba
car, o que favorecia a competitividade do produto numa altura que o mercado se pautava por exce- Os dados disponíveis nos livros de receita e despesa do Convento da Encarnação do Funchal
dentes. permitem acompanhar a evolução dos preços de consumo no Funchal para o período de 1669 a
Os dados disponíveis para 1530 evidenciam esta diferente valoração28: 176931. O século XVIII foi dominado por uma tendência altista que se manteve até à década de
sessenta da mesma centúria.
Qualidade Preço/Arroba O açúcar da produção local continua a estar presente, embora em referências escassas. Os dados
Branco 600 identificam uma diferença significativa no preço, situação que perdurou até ao século XX e denun-
mascavado 450 ciadora da incapacidade da ilha em sobreviver neste mercado tão competitivo.
Escumas 400
rescumas 250
meles 400

25. V. M. GODINHO, “Preços e conjuntura do século XV ao XIX” in DHP, Vol. III, pp. 488-516;José Gentil da SILVA, “Echanges 29. AHM, Vol XV, p. 46, 14 de Julho de 1469; p. 229, 11 de Janeiro de 1490; pp. 313, 318, 3 de Setembro de 1495; pp. 372-380;
et troc: l’exemple des Canaries au debut du XVI siécle” in Annales, XVI, nº 5, Paris, 1961, pp. 1004-1011; Manuel LOBO Gaspar FRUTUOSO, Livro Primeiro das Saudades da Terra, p. 113; Armando de CASTRO, “O sistema monetário” in História
CABRERA, Monedas, Pesos y Medidas en Canarias en el siglo XVI, Las Palmas, 1989, pp. 10-13; Benedicta RIVERO de Portugal, Vol. III, Lisboa, 1983, pp. 236-238; Manuel LOBO CABRERA, El Comercio Canario Europeo bajo Felipe II,
SUÁREZ, Ob. cit., pp. 147-148. Funchal, 1988, pp. 117.
26. Fernando Jasmins PEREIRA, Estudos sobre História da Madeira, Funchal, 1991, pp. 232-234. 30. Manuel LOBO CABRERA, ibidem, p. 116; Fernando Jasmins PEREIRA, Estudos sobre História da Madeira, Funchal, 1991,
27. AHM, Vol XV, pp. 64, carta de 3 Setembro de 1472. pp. 219-224.
28. Sousa Viterbo, Artes Industriais Portuguesas - A Indústria Sacarina, Coimbra, 1909, p.16, 28. 31. Eduarda Maria de Sousa Gomes, O Convento da Encarnação do Funchal, Subsídios para a sua História, Funchal,
1995,pp.185-196

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Ano Mês Açúcar da terra Açúcar mascavado oscilações, mercê da conjuntura do mercado consumidor e da concorrência
1683 Março 2$000 dos mercados insulares e americanos.
Abril 1$500 D. Manuel, comprometido com a posição vantajosa dos estrangeiros, mercê
1684 Abril 4$500 dos privilégios que lhes concedera, actuou de modo ambíguo, procurando sal-
1745 Outubro 3$000 vaguardar compromissos e ao mesmo tempo atender às solicitações que eram
1746 Dezembro 4$500 1$800 dirigidas. Estabeleceu limitações à residência dos estrangeiros no reino, fazen-
Fonte: Eduarda Maria de Sousa Gomes, O Convento da Encarnação do Funchal, Subsídios do-a depender de licenças especiais; quanto à Madeira definiu a impossibili-
para a sua História, Funchal, 1995,pp.185-196 dade de vizinhança sem licença, ao mesmo tempo interditava a revenda no
mercado local. A câmara, por seu turno, baseada nestas ordenações e no dese-
No século XIX encontrámos em alguma imprensa dados sobre o preço de venda ao público do
jo dos moradores, ordenou a saída até Setembro de 1480, no que foi impedida
açúcar.
pelo senhor. Somente em 1489 se reconhece a utilidade da presença de
estrangeiros na ilha, ordenando D. João II a D. Manuel, então Duque de Beja,
ANO Açúcar pedra Branco mascavado Melaço
que os estrangeiros fossem considerados como “naturais e vizinhos de nossos
(arroba) (arroba) (arroba) (galão)
reinos”.
Areado à rama areado à rama
Uma contagem da documentação disponível no Registo Geral da Câmara
1834 3$500 3$400 2$600 2$200 $500
a 2$900 a 2$300 a $550
do Funchal32 evidencia que a grande preocupação de D. Manuel era com a economia e adminis- Porto do Funchal. Século XIX

1838 1$200 3$500 2$800 2$300 2$300 $559


tração. As questões em torno da produção e comércio do açúcar foram uma preocupação perma-
a 4$500 a 4$800 a 3$200 a 2$500 nente enquanto senhor e Rei. A partir dos anos oitenta o mercado do açúcar madeirense enfrenta
1842 4$000 2$900 2$200 $450 uma crise de crescimento. Primeiro, a procura europeia conduzira a que se colocasse no mercado
1847 4$000 2$300 1$750 açúcar de má qualidade. Depois, o alargamento da área produtiva e do açúcar disponível não acom-
a 2$000 a 2$600 a 2$200 $350 panhado pelo aumento da procura. A crise de subprodução obrigou a coroa a intervir em 149833 no
1863 24145 1$770 sector comercial estabelecendo um sistema de contingentamento dos valores de exportação para os
principais mercados que passa a ser feito sob o regime de monopólio da coroa. A medida justifica-
va-se, pois o açúcar era “huma das mays proveytosas de nosos reygnos se poderia perder” sendo
“proveyto de bem comum da dita ylha mays ainda de todos nosos reygnos”. Na verdade, a Madeira
O COMÉRCIO ATLÂNTICO E O AÇÚCAR. era uma das principais jóias da coroa.
Os problemas do mercado açucareiro na década de 90 conduziram ao ressurgimento da políti-
A Madeira foi no começo o mais importante entreposto. Os descobrimentos aliam-se ao comér- ca xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre Abril e meados de
cio e, por isso, desde meados do século XV, manteve-se um trato assíduo com o reino, activado com Setembro, para comerciar os produtos, não podendo dispor de loja e feitor. D. Manuel apenas em
as madeiras, urzela, trigo e, depois, com o açúcar e o vinho. O movimento alargou-se às cidades 149634 reconheceu o prejuízo que as referidas medidas causavam à economia madeirense, afugen-
nórdicas e mediterrânicas, com o aparecimento de estrangeiros interessados no comércio do açú- tando os mercadores, pelo que revogou as interdições anteriormente impostas. As facilidades con-
car. O arquipélago canário, tardiamente associado ao domínio europeu, manteve desde o século cedidas à estadia dos agentes forasteiros conduziriam à assiduidade da frequência na praça, bem
XVI um activo comércio com a Península. No tráfico intervêm os peninsulares e italianos. Após a como à fixação e intervenção de modo acentuado na estrutura fundiária e administrativa.
conquista, castelhanos, portugueses e italianos repartem entre si o comércio das ilhas. Os flamen- O regime do comércio do açúcar madeirense nos séculos XV e XVI, segundo opinião de
gos e ingleses, que delinearão as rotas de ligação ao mercado nórdico, surgem num segundo Vitorino Magalhães Godinho35, “vai oscilar entre a liberdade fortemente restringida pela inter-
momento. Múltiplas descrições, de finais do século XVI, evidenciam a posição dominante das Ilhas venção quer da coroa quer dos poderosos grupos capitalistas, de um lado, e o monopólio global,
de Tenerife e Gran Canaria na economia do arquipélago.
O comércio do açúcar destaca-se no mercado madeirense dos séculos XV e XVI como o princi-
pal animador das trocas com o mercado europeu. Durante mais de um século a riqueza das gentes 32. Arquivo Histórico da Madeira, vols. XV-XIX, 1972-1990.
da ilha e o fornecimento de bens alimentares e artefactos dependeu do comércio do produto. O 33. AHM, vol. XVII, p. 372.
34. ARM, RGCMF, T. I, fls.55-55vº, 3 de Setembro de 1495, in AHM, vol.XVI, 1973, p.313.
mesmo sucedeu nas Canárias, a partir do século XVI. Todavia, a venda e valor sofreram diversas 35. Os Descobrimentos e Economia Mundial, vol. IV, p.87.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

primeiro, posteriormente um conjunto de monopólio cada


qual em relação com uma escápula de outra banda”. O
comércio apenas se manteve em regime livre até 146936,
altura em que a baixa do preço veio condicionar a inter-
venção do senhorio, que estipulou o exclusivo aos mer-
cadores de Lisboa. Isto não agradou ao madeirense, habitua-
do que estava a negociar directamente com os estrangeiros.
Mesmo assim o Infante D. Fernando decidiu em 147137 esta-
belecer o monopólio a uma companhia formada por Vicente
Gil, Álvaro Esteves, Baptista Lomelim, Francisco Calvo e
Martim Anes Boa Viagem. Da decisão resultou um aceso
conflito entre a vereação e os referidos contratadores.
Passados vinte e um anos a ilha debatia-se ainda com difi-
culdades no comércio açucareiro, pelo que a coroa retomou
em 148838 e 149539 a pretensão do monopólio, mas apenas
conseguiu impor um conjunto de medidas regulamentadoras
da cultura, safra e comércio, que ocorrem em 149040 e 149641.
A política, definida no sentido da defesa do rendimento do
açúcar, saldou-se num fracasso, pelo que em 1498 foi tentada
uma nova solução, com o estabelecimento de um contingente
Porto de Antuérpia de cento e vinte mil arrobas para exportação, distribuídas pelas diversas escápulas europeias42.
Estabilizada a produção e definidos os mercados do açúcar, a economia madeirense não neces-
sitava de tão rigorosa regulamentação, pelo que em 149943 o monarca acabou com algumas das prer-
rogativas estipuladas no ano anterior, mantendo-se, no entanto, até 1508 o regime de contrato para
venda, quando foi revogada a legislação anterior, ficando o trato em regime de total liberdade.
Assim, o definiu o foral da capitania do Funchal, em 1515, ao enunciar que “Os ditos açúcares se
poderão carregar para o Lavante e Poente e pera todas outras partes que os mercadores e pessoas
que os carregarem aprouver sem lhe isso ser posto embargo algum”44.

36. AHM, vol. XV (Funchal, 1972), nº.17, pp.45-47, 14 de Julho de 1469; nº.18, pp.47-49, 25 de Setembro de 1469.
37. ARM, RGCMF, T. I, fls.5vº-vi, 16 de Outubro de 1471, in AHM, vol.XV, 1972, p.57
38. ARM, RGCMF, T. I, fls.163-163vº, 25 de Abril de 1488, in AHM, vol.XVI, 1973, pp.209-210
39. ARM, RGCMF, T. I, fls.55-55vº, 3 de Setembro de 1495, in AHM, vol. XVI, 1973, p.313
40. ARM, RGCMF, T. I, fls.30vº-32, 11 de Janeiro de 1490 1488, in AHM, vol.XVI, 1973, pp.229-231 A partir de uma das medidas tomadas pela coroa, o contingentamento de 1498, para defesa do Anvers, em finais do século XVI
41. ARM, RGCMF, T. I, fls.262vº-269vº, 12 de Outubro de 1496, in AHM, vol.XVII, 1973, pp.350-358.
42. V.M. GODINHO, Ob. cit., IV, 87; A.R.M., C.M.F., registo geral, T, I, fls. 1-1vº, Alcochete, 14 de Julho de 1469, carta do infante
mercado do açúcar madeirense poder-se-á fazer uma ideia dos principais mercados consumidores.
sobre o trato do açúcar, in A.H.M., XV, 45-47;Ibidem, fls.1vº-2vº, 25 de Setembro de 1469, carta dos regedores do Funchal in As praças do mar do norte dominavam o comércio, recebendo mais de metade das escápulas esta-
A.H.M., XV, 47-49; Ibidem, fls. 5vº-6, Lisboa, 16 de Outubro de 1478, carta régia sobre o trato do açúcar, in A.H.M., XV, 57; belecidas. A Flandres adquire uma posição dominante, o mesmo sucedendo com os portos italianos
Ernesto GONÇALVES, “João Gomes da Ilha”, in A.H.M., XV, 40-47; Idem “João Afonso do Estreito”,in D.A.H.M., nº 17 (1954),
4-8 A.R.M., C.M.F., nº 1296, fls. 30vº-31vº, 11 e 28 de Outubro de 1471; Ibidem, nº 1296, fl. 41, 12 de Fevereiro de 1472, Ibidem,
para o espaço mediterrânico. Se compararmos as escápulas com o açúcar consignado às diversas
nº 2, 1296, fls. 52vº-53, 17 de Agosto de 1472. praças europeias no período de 1490 e 1550, verifica-se que o roteiro não estava muito aquém da
43. A.R.M., RGC.M.F., T. I, fls 293vº-294, 18 de Janeiro de 1499, AHM, vol.XVII, 1973, pp.382-383; A.R.M., RGC.M.F., T. I, realidade. As únicas diferenças relevantes surgem nas Praças da Turquia, França e Itália, sendo de
fls.79vº, 16 de Maio de 1499, AHM, vol. XVII, 1973, p.389
44. A.R.M., RGC.M.F., T. I, fls. 308vº-309, Sintra, 7 e 8 de Agosto de 1508, alvará régio, publ. A.H.M., XVIII, 503-504; Álvaro
salientar na última um reforço acentuado de posição, que poderá resultar da actuação das cidades
Rodrigues de AZEVEDO, “notas”, in Saudades da Terra, Funchal, 1873, 501. italianas como centros de redistribuição no mercado levantino e francês.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Os dados disponíveis para o comércio do açúcar na Madeira evidenciam a constância dos mer-
cados flamengo e italiano. O reino, circunscrito aos portos de Lisboa e Viana do Castelo surge em
terceiro lugar com apenas 10%. Observe-se que o porto de Viana do Castelo adquiriu, desde 1511,
grande importância no circuito e daí com Espanha e Europa nórdica. Aliás, no período de 1581 a
1587 Viana é o único porto do reino mencionado nas exportações de açúcar, mantendo, todavia,
uma posição inferior à 1490-1550. A função redistribuidora dos portos a norte do Douro ficara, já
evidenciada entre 1535 e 1550, pois das cinquenta e seis embarcações entradas no porto de
Antuérpia com açúcar da Madeira, dezasseis são do norte e apenas uma de Lisboa. Na primeira
50% são provenientes de Vila do Conde, 31% do Porto e 19% de Viana do Castelo. Aliás, em 1505 o
monarca considerava que os naturais da região tinham muito proveito no comércio do açúcar da
ilha. Em 1538 o trato era assegurado por um numeroso grupo de grupos de mercadores daí oriun-
dos. Entre eles estavam Aires Dias, Baltazar Roiz, Diogo Alvares Moutinho e Joham de Azevedo.
O mesmo sucedeu nas trocas com o mundo mediterrânico onde se contava com os entrepostos de
Cádis e Barcelona, que surgem no período de 1493 a 1537 com os portos de apoio ao comércio com
Génova, Constantinopla, Chios e Águas Mortas45.
Os dados da exportação para o período de 1490 a 1550, testemunham a situação. A Flandres Mercados do açúcar madeirense no século XVI
surge com 39% e a Itália com 52%. Todavia, é de salientar a posição dominante dos mercadores itali-
anos na condução do açúcar, uma vez que eles foram responsáveis pela saída de 78% do açúcar. No
início foram inúmeras as dificuldades para a presença de estrangeiros. Somente a partir da década
de oitenta do século XV surgiram os primeiros na condição de vizinhos, que se comprometeram
com a cultura e comércio do açúcar. Para a segunda metade do século dezasseis escasseiam os
dados sobre o comércio do açúcar madeirense. Somente entre 1581 e 1587 temos nova informação.
A ilha exportou 199.300 arrobas de açúcar para o estrangeiro e 4830 para o porto de Viana do
Castelo.
Bruges, cerca de 1550 A partir de princípios do século XVI o comércio do açúcar diversifica-se. A Madeira que na cen-
túria de quatrocentos surgira como o único mercado de produção debater-se-á, a partir de finais do
DESTINO ESCÁPULAS.1498 MERCADO.1490-1550 MERCADORES.1490-1550 século, com a concorrência do açúcar das Canárias, de Berbéria, de S. Tomé e, mais tarde, do Brasil
ARROBAS % ARROBAS % ARROBAS % e das Antilhas. A múltipla possibilidade de escolha, por parte dos mercadores e compradores,
FLANDRES 40.000 33 1O5896,5 39 11375,5 2 condicionou a evolução do comércio açucareiro. Todavia, o açúcar madeirense manteve uma situ-
FRANÇA 9.000 13 500 - 8469,5 2 ação preferencial no mercado europeu (Florença, Anvers, Ruão), sendo o mais caro. Talvez, devido
INGLATERRA 7.000 6 1438 1 1072 - ao favoritismo encontramos com frequência referências à escala na Madeira de embarcações que
ITÁLIA 21.000 30 140626 52 407530,5 80 faziam o comércio com as Canárias, Berbéria e S. Tomé. A situação deveria, de igual modo,
PORTUGAL 7.000 6 20657 10 23798 5 explicar a venda de açúcar madeirense em Tenerife, no ano de 150546. Exportação de açúcar. Século XVI
TURQUIA 15.000 13 2372,5 1 - - O comércio açucareiro na primeira metade do século XVI era dominado na Europa do Norte
OUTROS 32 - 68185 13 pelas ilhas e litoral do Atlântico, nomeadamente, entre as primeiras, a Madeira, Tenerife, Gran

45. Joel SERRÃO, “Nota sobre o comércio do açúcar entre Viana do Castelo e o Funchal...”, in Revista de Economia, III, 209-
212; Virgínia RAU, A Exploração e o comércio de sal em Setúbal, Lisboa, 1951; A.R.M., RGCMF, T. I, fls. 301-301vº, Lisboa,
15 de Março de 1505, carta régia, publ. in A.H.M., XVII, 453-454;Domenico GEOFFRÉ, Documenti sulle relazioni fra
Genova ed il Portogallo del 1493 al 1539, Roma, 1961, 18-20, 266-265, 268-270, 277-279, 284-285, 290-292, 309-310, José
Maria MADURELL MARIMÓN, art. cit., 486-487, 493-494, 497-499, 501-502, 521-522, 564-564.
46. Acuerdos del Cabildo de Tenerife, I, p. 83. Nº 447, 26 de Março de 1505.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

conservas e doces. O porto funchalense perdeu a animação que


o caracterizara noutras épocas. É aqui que surge o arquipélago
vizinho. O comércio canário, baseado nos mesmos produtos que
o madeirense, será um forte concorrente na disputa dos merca-
dos nórdico e mediterrânico. Os produtos dos dois arquipélagos
surgem, lado a lado, nas praças de Londres, Anvers, Ruão e
Génova. A única vantagem do madeirense resultava de ter sido
o primeiro a penetrar com o açúcar e o vinho no mercado
europeu, ganhando a preferência de muitos vendedores e con-
sumidores.
O porto de Cádis, importante praça comercial peninsular,
funcionou como centro de redistribuição e comércio no
Mediterrâneo. A conquista do mercado nórdico é posterior,
mercê do forte enraizamento do mercado no comércio e con-
sumo do açúcar madeirense. A primeira carga de melaço canário
enviada a Antuérpia, em 1512, não foi do agrado dos eventuais
clientes48. Somente a partir da década de trinta o açúcar canário
agradou em pleno ao gosto flamengo, beneficiando para isso da
quebra do açúcar madeirense e presença da comunidade fla-
Canaria e La Palma. Assim, na década de trinta os navios normandos ocupados neste comércio menga no arquipélago. O trato com as praças nórdicas era asse-
dirigiam-se preferencialmente à área. Convém anotar que a maioria das embarcações que rumavam gurado, em parte, pelos portugueses de Vila do Conde, Lisboa e
a Marrocos, com escala na Madeira à ida e no regresso, o que valorizou a Madeira no comércio Algarve, que faziam valer a maestria e experiência, adquiridas
com a Normandia. A situação dominante do mercado madeirense perdurou nas décadas seguintes, no trato do açúcar da Madeira. Em síntese, a colónia italico-fla-
não obstante a forte concorrência da ilha de S. Tomé que se firmou, entre 1536 e 1550, como o prin- menga, residente ou estante nas ilhas de Gran Canaria e
cipal fornecedor de açúcar à Flandres. Todavia, a posição cimeira da ilha de São Tomé só é patente Tenerife, foi o principal elo de ligação aos mercados de comércio
a partir de 1539. e consumo do açúcar. Aqui, como na Madeira, ambas as comu-
nidades esqueceram os antagonismos religiosos para se unirem
NAVIOS PORTUGUESES COM AÇÚCAR PAR ANTUÉRPIA 1536-155047 em prol duma causa comum, o comércio do açúcar, repartindo
ORIGEM AÇÚCAR CARGA MIXTA TOTAL entre si o domínio do mercado açucareiro.
CABO GUER 1 1 2
CANÁRIAS 1 5 6
CABO VERDE 1 7 8 O AÇÚCAR DO BRASIL
MADEIRA 28 28 56
SÃO TOMÉ 88 38 16
LISBOA 16 16
Foi o açúcar a principal das principais causas da rede de negó-
cios, que perdurou por alguns séculos. A Madeira, que até à
A Madeira, que até à primeira metade do século dezasseis havia sido um dos principais merca- primeira metade do século dezasseis havia sido um dos princi-
dos do açúcar do Atlântico, cedeu o lugar a outros mercados (Canárias, S. Tomé, Brasil e Antilhas). pais mercados do açúcar do Atlântico, cede lugar a outros
As rotas desviam-se para novos mercados, colocando a ilha numa posição difícil. Os canaviais (Canárias, S. Tomé, Brasil e Antilhas). As rotas divergiam para
foram abandonados na quase totalidade, fazendo perigar a manutenção da importante indústria de
Olinda
Pormenor de mapa de Luís Teixeira ca 1586
47. V. M. GODINHO, ob. cit., vol. IV, pp.98-99. 48. Vitorino Magalhães GODINHO, Ibidem, IV, 98.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

novos mercados, colocando a ilha numa posição difícil. Os canaviais foram abandonados na quase terra53. Nas décadas de trinta e quarenta parece ter havido um intervalo nas
totalidade, fazendo perigar a manutenção da importante indústria de conservas e doces. O porto transacções brasileiras, motivado pela ocupação holandesa, pois em 165054
funchalense perdeu a animação de outras épocas. A solução possível para debelar a crise da indús- refere-se que há dezoito anos não vinha açúcar e pau-brasil de Pernambuco.
tria açucareira madeirense, desde a segunda metade do século dezasseis, foi o recurso ao açúcar Após a Restauração da independência de Portugal o comércio com o
brasileiro, usado no consumo interno ou como animador das relações com o mercado europeu. Os Brasil foi alvo de múltiplas regulamentações. Primeiro, com a criação do
contactos com os portos brasileiros adquiriram importância, pois como o refere José Gonçalves monopólio de comércio, através da Companhia para o efeito criada e,
Salvador49 as ilhas funcionaram, no período de 1609 a 1621, como o “trampolim para o Brasil e Rio depois, com o estabelecimento do sistema de comboios para maior segu-
da Prata”. O mesmo esclarece que o relacionamento poderia ocorrer directamente entre os portos rança da navegação. Ressalva-se o caso particular da Madeira e Açores que,
insulares e os Brasileiros, ou de forma indirecta através de Angola, S. Tomé, Cabo Verde ou Costa a partir de 1650, passaram a poder enviar, isoladamente dois navios com
da Guiné, definindo-se um circuito de triangulação. São exemplo as actividades comerciais de capacidade para 300 pipas com os produtos da terra, depois trocados por
Diogo Fernandes Branco, no período de 1649 a 1652. Desde finais do século dezasseis que estava tabaco, açúcar e madeiras55. Depois, ficou estabelecido que os mesmos não
documentado o comércio do açúcar brasileiro nas ilhas, servindo os portos do Funchal e Angra podiam suplantar as 500 caixas de açúcar56. O movimento das duas embar-
como entrepostos para a saída legal ou de contrabando para a Europa. cações da Madeira fazia-se com toda a descrição, conforme recomendava o
O comércio do açúcar do Brasil, por imperativos da própria coroa e solicitação dos madeiren- Conselho da Fazenda, mediante as licenças e a entrega era feita no sentido
ses, foi alvo de frequentes limitações. Em 1591 ficou proibida a descarga do açúcar brasileiro no de favorecer todos os mercadores57.
porto do Funchal. Acontece que a medida não produziu qualquer efeito, pois em vereação de 17 de Para os navios envolvidos no trato brasileiro havia uma escrituração à
Outubro de 1596 foi decidido reclamar junto da coroa a aplicação plena da proibição, pois as parte na alfândega58. Dos dados compilados é bem visível a presença de
autoridades locais apostavam na defesa do açúcar de produção local, que então se promovia. Para outras embarcações não autorizadas, como se pode verificar pelo movi-
assegurar o controlo, os escravos e barqueiros foram avisados que, sob pena de 50 cruzados ou dois mento de entradas no porto do Funchal:
anos de degredo para África, não poderiam proceder ao embarque de açúcar sem autorização da Itamaraca (Recife) - séc. XVIII
câmara. Em Janeiro os vereadores proibiram António Mendes de descarregar o açúcar de Baltazar ANO NAVIOS LICENÇAS ANO NAVIOS LICENÇAS
entrados entrados
Dias. Passados três anos o mesmo surge com outra carga de açúcar da Baía, sendo obrigado a seguir
1640 1 1670 1
o porto de destino, sem proceder a qualquer descarga. O não acatamento das ordens do município
1648 1 1671 5
implicava a pena de 200 cruzados e um ano de degredo. As ordens da coroa em 1598 eram con- 1649 1 1672 1
cordantes com as intenções das autoridades municipais, ficando proibida a descarga de qualquer 1650 4 1674 2 1
açúcar na ilha.50 A situação repetiu-se com outros navios nos anos subsequentes: Brás Fernandes 1651 1 1675 2
Silveira em 1597, António Lopes, Pedro Fernandes o grande e Manuel Pires em 1603, Pero 1652 3 1676 1 3
Fernandes e Manuel Fernandes em 1606 e Manuel Rodrigues em 161151. 1653 1 1677 3 1
A pressão dos homens de negócio do Funchal envolvidos no comércio obrigou a que se esta- 1660 3 1678 3
belecesse uma solução de consenso. Em 1611 ficou estipulado que a venda de açúcar brasileiro só 1661 3 1679 1
seria possível após o esgotamento do da terra52. Depois estabeleceu-se um contrato entre os mer- 1664 1 1681 6
cadores e o município em que os primeiros se comprometiam a vender um terço do açúcar de 1665 3 1682 1
1666 1 2 1688 2
1667 1 1691 5
1669 4 TOTAL 60 8
59. Cristãos-novos e o Comércio no Atlântico Meridional, S. Paulo, 1978, p.247.
50. ARM, RGCMF, t. III, fls. 12vº-13vº.
51. ARM, RGCMF, t.III, fl. 44vº; Idem, DA, caixa IV, nº. 504; fls 12vº-13vº, refere-se as medidas proibitivas de 1591, 1597 e 1601;
Ibidem, nº.1314, fls.40vº-41vº; Idem, Câmara Municipal do Funchal, nº.1312, fls.7-8vº, nº.1313, fls.20-23, nº.1313, fls. 6, 49vº, 54. ANTT, PJRFF, nº. 296, fls. 4vº: 17 de Junho.
51, 52-52vº, 59, nº.1316,fls. 24-25, 33-33vº nº.1318,fls.37vº-38. 55. ARM, RGCMF, t.VI, fl. 100: 11 de Agosto de 1650.
52. AHM, vol.XIX (1990), pp.139-141 56. ARM, RGCMF, t.VI, fls.1695º-170: 3 de Julho de 1652
53. ARM, RGCMF, t. III, fl.103: 29 de Março de 1612. Em 1657 a proporção de cada açúcar transaccionado no porto do Funchal 57. ARM, RGCMF, t. VII, fl.24: 10 de Junho de 1664; ANTT, PJRFF, nº.960, fls.70vº-71, 25 de Maio de 1677;
deveria ser de metade [Ibidem, RGCMF, tomo IIfl.44Vº; t. III, fl. 103; idem, DA, caixa II, nº.250; Idem, CMF, nº.1315, fl.61; 58. ANTT, PJRFF, nº.964, fls.429-429vº: 16 de Agosto de 1663. Na documentação da Alfândega do Funchal, existem alguns
nº.1316, fls.39-39vº; nº.1322, fls.56-56vº ; nº.1333,fls.5vº-6vº.] livros.

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Alguns navios, fora do número estabelecido para a ilha, declaram serem vítimas de um naufrá- Ano Licenças
gio ou de ameaças de corsários, o que não os impedem de descarregarem sempre algumas caixas Baía Rio Pernambuco Saídas Entradas Total
de açúcar. Todavia os infractores sujeitavam-se a prisão e a pesadas penas, como sucedeu em 166459 1758 1 1 1 3 4
com Manuel Ferreira do Porto, em 166560 com Luís Ferreira o moço, e em 166961 com o Mestre 1759 3 3 3
Manuel Nogueira Botelho. 1760 1 1 2 2
1761 2 2 1
Ano Licenças 1762 2 1 3 1
Baía Rio Pernambuco Saídas Entradas Total 1763 1 1 2 3 2
1727 1 5 1764 2 1 3 3 2
1728 3 5 1765 1 2 3 4 3
1729 4 6 1766 4 3 7 6 3
1730 1 5 1767 1 1 2 3 4
1731 3 9 1768 2 3 5
1732 5 8 1769 2 3 5
1733 2 9 1770 1 2 3
1734 2 4 1771 3 2 5 1 4
1735 3 8 1772 2 3 6 5
1736 1 2 1 4 2 3 1773 2 1 3 5 5
1737 2 3 6 2 1 1774 1 1 1 3
1738 3 5 2 2 1775 1 1 3 3
1739 3 3 1776 5 3
1740 2 1778 3 6
1741 1 3 1779 2 2
1742 3 3 3 2 1780 2 5
1743 1 2 1781 2 1
1744 1 1 3 2 3 1782 1 6
1745 1 3 1 1 1784 1 2
1746 1 1 1 1785 1 1
1747 2 2 1786 1
1748 1 1 2 1787 1 1
1749 2 3 1 6 8 1788 1
1750 2 2 1 5 5 1789 2 1
1751 1 1 1 3 2 5 1790 2 2
1752 2 2 4 2 1791 3 4
1753 1 1 1 1 1 1792 2 2
1754 2 1 3 4 2 1793 1 3
1755 2 2 1 5 3 3 1794 1
1756 2 2 4 5 3 1795 1
1757 1 2 1 4 2 4 1797 2 1
1798 2 1
1799 1
59. ANTT, PJRFF, nº.296, fls.41-41vº: 4 de Novembro.
60. ANTT, PJRFF, nº.296, fls.42: 15 de Setembro. TOTAL 42 55 11 117 151 184
61. ANTT, PJRFF, nº.296, fls.52vº, 75vº-76.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

No século XVIII o movimento amplia-se, não obstante as recomendações para o respeito da ANO DESTINATÁRIOS NAVIOS CAIXAS ARROBAS
norma estabelecida no século anterior62. Para o período de 1736 a 177 conseguimos reunir 117 NÚMERO
licenças 563. 1640 7767 12769
As autorizações eram concedidas pelo Governador, em exclusivo aos mercadores madeirenses. 1671 64 6 33526
Merecem atenção Bento Ferreira, Francisco Luís Vasconcelos e Francisco Teodoro, pelo número de 1676 1 305 55
licenças conseguidas. Por determinação de 1664 pagavam um donativo de 50.000 réis, existindo no 1677 1 861
Funchal um comissário dos comboios, que procedia à arrecadação dos referidos direitos. No ano 1681 3 1257
de 167664 era Diogo Fernandes Branco quem os administrava. De acordo com as recomendações do 1682 30 1 4632
Conselho da Fazenda a arrecadação dos direitos de entrada do açúcar do Brasil era lançada em 1691 98 5 14536
1754-55 3 14273
livro próprio65. No século XVIII era taxado do seguinte modo66:
1773 6 9297
1783 3 4589
Arroba Caixas
Branco mascavado
Facto de particular interesse é participação das comunidades da companhia de Jesus da Baía,
1725 400 200
Rio de Janeiro e Maranhão, que usufruindo do privilégio de isenção dos direitos colocavam, tam-
1734 130 rs 600
bém, o açúcar das fazendas no mercado madeirense, conduzindo à ilha 82 caixas de açúcar, sendo
7 do Maranhão, 65 da Baía e 10 do Rio de Janeiro68.
A partir dos dados soltos, reunidos na documentação, procurámos avaliar a real importância das
No século XVII o grosso das exportações em torno do açúcar na ilha tem como origem o Brasil:
relações comerciais entre a Madeira e o Brasil, assentes, predominantemente, no açúcar. Para o
em 1620, do açúcar exportado, temos 23.560 arrobas do Brasil e 1.992 da Madeira, enquanto em
período de 1650 a 1691 identificamos 39 navios provenientes da Baía, Rio de Janeiro, Pernambuco
1650 surgem só 83 caixas do Brasil e 111 arrobas da Madeira. Para o período de 1650 a 1691 conse-
e Maranhão, com mais de 10722 caixas de açúcar:
guimos identificar 53 navios provenientes da Baía, Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraíba, Pará e
Maranhão, que conduziram ao Funchal mais de dez mil caixas de açúcar.
PROVENIÊNCIA AÇÚCAR NAVIOS
caixas caras sem indicar total
PROVENIENCIA AÇÚCAR NAVIOS
carga
Caixas feixos Carga1 total
Baía 2489 29 7 17
Baía 2489 29 7 17
Rio de Janeiro 4218 13 6 12
Rio de Janeiro 4218 13 6 12
Pernambuco 3343 71 9 18
Pernambuco 3343 71 9 18
Maranhão 57 31 - 1
Maranhão 57 1 31 -
Paraíba 615 - 2 5
Paraíba 615 2 5
Pará - - 1 1
Pará 1
TOTAL 10722 144 25 53
TOTAL 10722 144 2
(1) sem indicação do número de caixas e feixos de açúcar
Afora isso surgem ainda registos com a indicação dos destinatários do açúcar:
A estes valores dever-se-ão juntar alguns registos de despacho na alfândega, feito em livro
próprio, com a indicação dos destinatários do açúcar transportados:

62. ANTT, PJRFF, nº.970, fls.90vº-94vº, nº.971, fls.11-11vº, 12vº, 13-15vº, 106-108vº.
63. Cf. J. Abreu de Sousa, O Movimento do Porto do Funchal e a Conjuntura da Madeira de 1727 a 1810. Alguns Aspectos,
Funchal, 1989, pp.135 e segs.
64. ANTT, PJRFF, nº.966, sem referência: 2 de Maio.
65. ANTT, PJRFF, nº.965A, fls.429-429vº: 16 de Agosto de 1673 67. Em trinta e três destes não foi possível identificar o nº de arrobas de açúcar
66. ANTT, PJRFF, nº.396, fl.155vº, 14 de Agosto de 1734 68. ANTT, PJRFF, nº.496, fls.35-43.

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ANO ARROBAS Nº DESTINATARIOS ENTRADAS SAÍDAS


1640 771 12769 Brasil Total
1671 64 28465 1771 3011$936 10250$825 51689$076
1682 30 2475 1772 4775$702 14713$798 54103$475
1691 98 1428
O açúcar do Brasil teve um lugar importante na economia madeirense, não apenas por apoiar
1) incluem-se trinta e três em que não foi possível identificar o número de arrobas, devido ao mau estado do man- as indústrias de conserva e casca, mas, fundamentalmente pelo movimento de reexportação.
uscrito. Todavia, a década marca o início da quebra do comércio, que teve repercussões evidentes no negó-
cio de casca e conservas. Assim em 177970 o Governador João Gonçalves da Câmara refere que o
O açúcar brasileiro foi, na segunda metade do século dezassete, uma mercadoria importante do comércio da casca estava quase extinto.
comércio na ilha e das principais fontes de receitas para o erário régio. Aliás, a Madeira era um dos
pilares fundamentais do comércio com o Brasil, vivendo na quase total dependência, como se pode
corroborar pelo alvará régio de 164969, onde se afirma que “a maior parte do comercio da compa- DIOGO FERNANDES BRANCO: UM CASO EXEMPLAR
nhia era nessa ilha da Madeira donde suas armadas hiam de carregar vinhos…”. De acordo com
informações avulsas é possível reconstituir o rendimento para alguns anos: No circuito de escoamento e comércio do açúcar brasileiro é evidente a intervenção de
madeirenses e açorianos. A oferta de vinho ou vinagre era compensada com o acesso ao rendoso
ANO DIREITOS comércio do açúcar, tabaco e pau-brasil. Mas o trajecto das rotas comerciais ampliava-se até ao trá-
Brasil quinto fico negreiro, cobrindo um circuito de triangulação. Para isso os madeirenses criaram a própria
1650-52 3561$464 847$820
rede de negócios, com compatrícios fixos em Angola e no Brasil.
1656-57 3.585$542
Releva-se a figura de Diogo Fernandes Branco. A actividade incidia, preferencialmente, na
1659 1.416$554
exportação de vinho para Angola, onde trocava por escravos que, depois, ia vender ao Brasil por
açúcar. O circuito de triangulação fechava-se com a chegada à ilha das naus, vergadas sob o peso
O rendimento auferido pela alfândega com a entrada de açúcar era elevado e o valor atesta tam-
das caixas de açúcar ou rolos de tabaco. A partir daqui iniciava-se o processo de transformação do
bém a evolução do comércio.
produto em casca ou conservas. Era uma tarefa caseira que ocupava muitas mulheres na cidade e
ANO RENDIMENTO
arredores. Os mercadores, como Diogo Fernandes Branco, coordenavam o processo, uma vez que
Direitos sobre o açúcar do Brasil Total dos rendimentos
o produto depois de laborado deveria ter rápido escoamento. Os principais portos de destino situa-
1644 1.801$685 vam-se no norte da Europa: Londres, St Malo, Amburgo, Rochela, Bordéus.
1652-53 4.451$830 Diogo Fernandes é o interlocutor directo dos mercadores das praças de Lisboa (no caso Manuel
1656-57 3.585$542 Martins Medina), Londres, Rochela ou Bordéus, satisfazendo a solicitação de vinho e derivados do
1659 1.416$554 14.003$058 açúcar a troco de manufacturas, uma vez que o dinheiro e as letras de câmbio, raramente encon-
1660-62 3.469$799 travam destinatário na ilha. A par disso manteve a rede de negócios, apoiado em alguns mercadores
1664 884$583 de Lisboa e principais cidades brasileiras. São múltiplas as operações comerciais registadas na do-
1664-66 5.200$000 cumentação epistolar71. Á primeira vista parece-nos que o mesmo se especializou em duas activi-
1667-69 5.500$000 dades paralelas: o comércio de vinho para Angola e Brasil e o de açúcar e derivados para adocicar
1705-1733 3.889$900 os manjares dos repastos da mesa europeia.
A situação das actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco não é de modo algum episódi-
Para os anos de 1771 e 1772 é possível comparar a importância do produto no movimento geral ca, no contexto da estrutura comercial madeirense da segunda metade do século dezassete, pois
da alfândega do Funchal: comprova uma das dominantes do processo em que a ilha actua como intermediária entre os inte-
resses da burguesia comercial do Novo e Velho Mundo. Um dos componentes base do puzzle é con-

70. AHU, Madeira e Porto Santo, nº.518: 1 de Agosto


69. ARM, RGCMF, t. VI, fls. 99-99vº, 20 de Agosto 71. O Público e o Privado na História da Madeira, Funchal, 1996.

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stituído pelo porto do Funchal e toda uma chusma de pequenos burgueses que aguardam a opor- franceses e holandeses ficou já demonstrado por Frédéric Mauro76 para os anos de 1620 e
tunidade de singrar em tais negócios. Angola, Brasil são os outros dois vértices do triângulo. 1650.
Episodicamente surge-nos Barbados, que só singrou a partir de então com a afirmação hegemóni-
ca da burguesia comercial britânica no mundo atlântico.
OS MERCADORES DO AÇÚCAR.

O COMÉRCIO DE AÇÚCAR COM A EUROPA A Madeira atraiu a primeira vaga de mercadores forasteiros, mercê da prioridade da cul-
tura dos canaviais no processo de ocupação. Só o impediram as ordenanças limitativas da
Parte significativa do açúcar importado do Brasil era uti- residência na ilha. Todavia, em meados do século XV a coroa facultou a entrada e fixação de
lizado no fabrico de conserva e casca que depois se expor- italianos, flamengos, franceses e bretões, por meio de privilégios especiais, como forma de
tavam para as praças europeias, nomeadamente do Norte. assegurar um mercado europeu para o açúcar. Mas, o impacto e a influência foram lesivos
São poucos e avulsos os dados que o testemunham. Para o para os mercadores nacionais e coroa, sendo necessário impedir que os mesmos pudessem
ano de 1682 temos a saída de 15 embarcações, apresentando “asy soltamente trautar todos”, pelo que o senhorio proibiu a permanência na ilha como vizi-
destinos diversos. nhos. A questão foi levada às cortes de Coimbra de 1472-1473 e de Évora em 1481, recla-
mando a burguesia do reino contra o monopólio de facto, dos mercadores genoveses e judeus
DESTINO CARGA no comércio do açúcar, propondo a exploração a partir de Lisboa. O monarca comprometido com Venda de açúcar em França
AÇÚCAR CASCA CONSERVA a posição vantajosa dos estrangeiros, mercê dos privilégios que lhes concedera, actuou de modo
Sesimbra 6 ambíguo procurando salvaguardar os compromissos anteriormente assumidos e as solicitações dos
Canárias 410 170
moradores do reino, estabelecendo limitações à residência no reino e fazendo-a depender de
S.Miguel 28 caixas
Cádis 7 caixas
licenças especiais. Quanto à Madeira foi a impossibilidade da vizinhança sem licença expressa da
Bordéus 1 caixa 819 210 coroa e a interditação da revenda no mercado local. A Câmara baseada nas ordenações e no dese-
Rochela 6 caixas 2269 61 jo expresso dos moradores ordenara a saída até Setembro de 1480, no que foi impedida pelo sen-
Ruão 931 horio. Somente em 1489 foi reconhecida a utilidade da presença dos mercadores estrangeiros na
Londres 8 103 34 ilha, ordenando D. João II ao duque D. Manuel, então Duque de Beja, que os estrangeiros fossem
Amesterdão 953 292 considerados como “naturaes e vizinhos de nossos regnos”77.
Brandemont 108 Na década de noventa, de novo, os problemas do mercado açucareiro conduziram ao ressurgi-
Porto do Funchal. Gravura do século XIX TOTAL 418a./42 cxas 5353 603 mento da política xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre Abril
e meados de Setembro, para comerciar os produtos, não podendo ter loja e feitor na cidade.
O comércio do Funchal com a praça de Bordéus era significativo, tal como nos informa Didier
Somente em 1493 D. Manuel reconheceu o prejuízo que as referidas medidas causavam à econo-
Boisson72. Mas a partir de 1710 ele entrou em crise, repercutindo-se na cultura e comércio de casca73,
mia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou todas interdições anteriormente
um dos principais sustentáculos da produção local e da importação do Brasil. A isto associa-se a
impostas78. As facilidades concedidas à estadia dos forasteiros conduziram à assiduidade bem como
falta de citrinos, como nos refere em 1710 Duarte Sodré Pereira74. A correspondência do cônsul
francês no Funchal é, a este respeito, significativa: em 1717 ele referia que estavam a passar de
moda, enquanto em 1765 dava conta da reduzida exportação75. Duarte Sodré Pereira, que foi go- 76. Ob.cit., vol.II, pp.259, 261-262
vernador da Madeira no período de 1703 a 1711, desenvolveu uma importante actividade comercial 77. F. MAURO, ibidem, p. 225; ARM, RGCMF, T, I, fls. 5vº-6, Lisboa 6 de Octubro de 1471, carta régia sobre o trauto do açúcar,
em torno do açúcar do Brasil e da casca para os portos holandeses. A afirmação dos mercados in AHM, XV, 57; ibidem, fls. 148-148vº, Beja, 5 de Março de 1473, carta da infanta C. Beatriz acerca dos estrangeiros, in AHM,
XV, 68; H, Gama BARROS, Ibidem, X, 152-153; Ibidem, Vol. 330; V. RAU, O açúcar na Madeira /.../, p. 26, nota 27;
Monumenta Henricina, XV, Coimbra, 1974, 87-89;ARM, CMF, nº 1298, fl. 37, 22 Dezembro de 1484; Ibidem, fl. 68, 15 de Abril
72. Les Relations Commerciales entre les Marchands Protestants de Bourdeaux, le Portugal et Madère au debut des années 1680, de 1486; Ibidem, fl 87vº, 7 de Junho de 1486; ARM, RGCMF, T. I, fls. 292.293, Lisboa, 7 de Agosto de 1486; ANTT, Gavetas,
Bulletin des Espaças Atlantiques, nº.2(1987), 137-144. XV-5-8. Évora, 22 de Dezembro de 1489, sumariado in As Gavetas da Torre do Tombo, IV, Lisboa, 1964, 169-170.
73. Albert Silbert, ob .cit., pp.405-406; Maria Júlia de Oliveira e Silva, Fidalgos-mercadores no Século XVIII. Duarte Sodré 78. H. Gama BARROS, ibidem, X, 155; Fernando Jasmins PEREIRA, Alguns elementos para o estudo da Historia económica da
Pereira, Lisboa, 1992, p.105 Madeira [...], 139-162; ARM, RGCMF, T. I, fls. 262vº, Torres Vedras, 12 de Outubro de 1496, in AHM, XVII, 350-358; ibidem,
74. Maria J. Oliveira e Silva, ob. cit., p.105, nota 120, carta de 28 de Agosto. nº 1302, fls. 83-83vº, 26 de Novembro de 1496; ARM, RGCMF, T. I, fls. 291vº-292, Lisboa 22 de Março de 1498 in AHM, XVII,
75. Albert Silbert, ob .cit., p.406 369. Veja-se Álvaro Rodrigues de AZEVEDO “Anotações”, in Saudades da Terra, Funchal, 1873, 681-682.

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Casa de à fixação e intervenção na estrutura fundiária e adminis- intervenção marcante no trato do açúcar, na primeira metade do século XVI. A manutenção da
João
Esmeraldo trativa. rede de negócios foi assegurada pela acção directa dos mercadores, dos procuradores ou agentes
no A comunidade de mercadores estrangeiros na Madeira substabelecidos. Benedito Morelli em 1509-1510 tinha na ilha, como agentes para o recebimento do
Funchal.
foi dominada pela presença de italianos, flamengos e açúcar dos quartos, Simão Acciaiuolli, João de Augusta, Benoco Amador Cristóvão Bocollo e
franceses, que surgem no Funchal atraídos pelo tão solici- António Leonardo. Marchioni em 1507-1509 fazia-se representar em operações idênticas por
tado “ouro branco”. Os primeiros e de entre eles os flo- Feducho Lamoroto. João Francisco Affaitati, cremonês, agente em Lisboa de uma das mais impor-
rentinos e genoveses foram, desde meados do século XV, tantes companhias comerciais da época, participou activamente no comércio entre 1502 e 1526, por
os principais agentes do comércio do açúcar alargando meio de contratos de compra e venda dos açúcares dos direitos reais (1516-1518, 1520-1521 e 1529)
depois a actuação ao domínio fundiário, possível por e pagamentos em açúcar a troco de pimenta. O mesmo actuou, ainda, em sociedade com Jerónimo
meio da compra e laços matrimoniais. Na década de Sernigi, João Jaconde, Francisco Corvinelli e Janim Bicudo, quer isoladamente, tendo para o efeito
setenta, mediante o contrato estabelecido com o senhorio como feitores e procuradores na ilha, Gabriel Affaitati, Luca António, Cristóvão Bocollo, Capela
da ilha, detinham já uma posição maioritária na de Capellani, João Dias, João Gonçalves, Matia Manardi e Maffei Rogell.
sociedade criada para o comércio do açúcar, sendo repre- A presença do grupo de mercadores na sociedade madeirense foi muito acentuada. O usufruto
sentados por Baptista Lomellini, Francisco Calvo e Micer de privilégios reais, o relacionamento familiar favoreceu a mistura com a aristocracia terra-tenente
Leão. No último quartel do século juntaram-se Cristóvão e administrativa. A intervenção é notada na estrutura administrativa, abrangendo os domínios
Colombo, João António Cesare, Bartolomeu Marchioni, mais elementares do governo, como a vereação e as repartições da fazenda, todas com intervenção
Jerónimo Sernigi e Luís Dória. A este grupo seguiu-se, em directa na economia açucareira. São maioritariamente proprietários e mercadores de açúcar.
princípios do século XVI, outro mais numeroso que Instalaram-se nas terras de melhor e maior produção e tornaram-se nos mais importantes propri-
alicerçou a comunidade italiana residente, destacando-se, etários de canaviais. Assim, sucedeu com Rafael Cattano, Luís Dória, João e Jorge Lomelino, João
aqui, Lourenço Cattaneo, João Rodrigues Castigliano, Rodrigues Castelhano, Lucas Salvago, Giovanni Spinola, João Antão, João Florença e Simão
Chirio Cattano, Sebastião Centurione, Luca Salvago, Acciaiuolli e Benoco Amatori.
Giovanni e Lucano Spinola. Também, os franceses e flamengos, a exemplo dos italianos, surgem na ilha, desde finais do
O estrangeiro para manter a amplitude de operações século XV, atraídos pelo rendoso comércio do açúcar. No entanto, não se enraizaram na sociedade
comerciais nas ilhas contava com um grupo de feitores ou insular, mantendo uma condição errante. O interesse é única e exclusivamente a aquisição do açú-
procuradores: Gabriel Affaitati, Luca Antonio, Cristóvão car a troco dos artefactos, alheando-se da realidade produtiva e administrativa. O caso de João
Bocollo, Matia Minardi, Capella e Capellani, João Dias, Esmeraldo é a excepção. Os franceses afirmaram-se pelas operações de troca em torno do açúcar,
João Gonçalves e Mafei Rogell. O grupo inicial é, na enquanto os flamengos mantiveram uma posição subalterna e mesmo como grupo interveniente
maioria, constituído por italianos, ligados ao comércio do no mercado madeirense. Os franceses tiveram uma presença muito activa no comércio do açúcar,
açúcar, e que os segundos pertenciam a algumas famílias na primeira metade do século XVI. Surgem com frequência nas comarcas do Funchal, Ponta do
mais influentes. Sol, Ribeira Brava e Calheta, onde adquiram grandes quantidades de açúcar que transportavam
Os mercadores-banqueiros de Florença destacaram-se aos portos franceses nas embarcações. Evidenciaram-se mestre António, Archelem, António
nas transacções comerciais e financeiras do açúcar Coyros, António Caradas e Francisco Lido. Os últimos aliavam à Madeira a rede de negócios das
madeirense no mercado europeu. A partir de Lisboa, Canárias como ramificação das praças nórdicas e andaluzas.
onde usufruíam uma posição privilegiada junto da coroa, As escápulas, até 1504, e o produto dos direitos reais eram canalizados ao mercado europeu,
controlaram uma extensa rede de negócios que abrange a quer por carregação directa, quer ainda, por negócio livre ou a troco de pimenta. O açúcar era
Madeira e as principais praças europeias. Primeiro con- arrendado por mercadores ou sociedades comerciais, sedeados em Lisboa, sendo de destacar a
seguiram da Fazenda Real o quase exclusivo do comércio actuação dos italianos, como João Francisco Affaitati e Lucas Salvago.
do açúcar resultantes dos direitos reais por contrato direc- As operações comerciais em torno do açúcar, no período de 1501 e 1504, estiveram centralizadas
to a que se seguiu o exclusivo dos contingentes estabeleci- em mercadores ou sociedades comerciais que, a partir de Lisboa, controlaram o trato por meio de
dos pela coroa em 1498. Assim, tivemos Bartolomeu uma complicada rede de feitores ou procuradores. A intervenção, que se apresentava dominante
Marchioni, Lucas Giraldi e Benedito Morelli com uma nos três primeiros decénios do século, decresceu de forma acentuada na última década. Isto atesta

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que os mercadores estrangeiros, em face da conjuntura de instabilidade do mercado açucareiro 1500-1529, estava representado por Gabriel Affaitati, Luca Antonio, Cristóvão Bocollo, Capella de
madeirense nos primeiros trinta anos abandonaram o comércio fazendo-o substituir pelo de outras Capellani, João Dias, João Gonçalves, Matia Manardi, Mafei Rogell e Lucas Giraldi.
origens. Na segunda metade do século XVII o açúcar madeirense foi paulatinamente substituído pelo
A comunidade italiana controlava a quase totalidade do comércio do açúcar com as principais brasileiro. No circuito de escoamento e comércio é evidente a intervenção de madeirenses e açori-
praças europeias sendo seguida da portuguesa e da castelhana. Os mercadores nórdicos não apre- anos. A oferta de vinho ou vinagre era compensada com o acesso ao rendoso comércio do açúcar,
sentam uma posição de relevo nas operações. Isto demonstra, mais uma vez, que a rota e mercado tabaco e pau-brasil. Mas o trajecto das rotas comerciais ampliava-se até ao tráfico negreiro, cobrindo
flamengo se mantiveram sob o controlo da nossa feitoria. No período que decorre de 1490 a 1550, um circuito de triangulação. Para isso os madeirenses criaram a própria rede de negócios, com
verifica-se que os italianos detiveram o exclusivo do comércio na primeira década e a posição domi- compatrícios fixos em Angola e Brasil.
nante nas duas seguintes, sendo substituídos pelos portugueses na década de trinta, e também por Diogo Fernandes Branco é o exemplo perfeito da nova situação. A actividade incidia, preferen-
castelhanos e franceses. Ainda, no grupo dos mercadores estrangeiros nota-se uma tendência con- cialmente, na exportação de vinho para Angola, onde trocava por escravos que, depois, ia vender
centracionista, pois apenas os cinco principais detêm 71% do açúcar transaccionado. Todos apre- ao Brasil por açúcar. O circuito de triangulação fechava-se com a chegada à ilha das naus, vergadas
sentam valores superiores a dez mil arrobas, enquanto nos nacionais apenas um tem mais de 1080 sob o peso das caixas de açúcar ou rolos de tabaco. Depois seguia-se outro processo de transfor-
arrobas. João Francisco Affaitati, mercador cremonês de família nobre, chefe da sucursal em mação do produto em casca ou conservas. Era uma tarefa caseira que ocupava muitas mulheres na
Lisboa da companhia Affaitati, uma das principais da praça, surge no período de 1502 a 1529 como cidade e arredores. Os mercadores, como Diogo Fernandes Branco, coordenavam todo o processo,
o principal activador do comércio do açúcar madeirense, tendo transaccionado sete vezes mais açú- de acordo com as encomendas que recebiam, uma vez que o produto depois de laborado deveria
car que todos os portugueses. Durante o período, arrematou em 1502, as escápulas de Águas ter rápido escoamento. Os principais portos de destino situavam-se no norte da Europa: Londres,
Mortas, Liorne, Roma e Veneza. Conjuntamente com Jerónimo Sernigi, João Jaconde e Francisco St Malo, Amburgo, Rochela, Bordéus. Ele foi o interlocutor directo dos mercadores das praças de
Cornivelli conseguiu a venda do açúcar dos direitos (1512-1518, 1520-1521, 1529) e actuou em opera- Lisboa (no caso Manuel Martins Medina), Londres, Rochela ou Bordéus, satisfazendo a solicitação
ções diversas de compra directa de açúcar e da troca por pimenta ou dívidas. Para manter a ampli- de vinho e derivados do açúcar a troco de manufacturas, uma vez que o dinheiro e as letras de câm-
tude de actividades comerciais contava na ilha com um grupo numeroso de feitores ou procu- bio, raramente encontravam destinatário na ilha. A par disso manteve a rede de negócios, apoiado
radores: Gabriel Affaitati, Luca Antonio, Cristóvão Bocollo, Matia Manardi, Capella de Capellani, em alguns mercadores de Lisboa, e principais cidades brasileiras. São múltiplas as operações
João Dias, João Gonçalves e Mafei Rogell. Por outro lado aceitou procuração de Garcia Pimentel, comerciais registadas na documentação epistolar. À primeira vista parece-nos que o mesmo se espe-
Pedro Afonso de Aguiar e João Rodrigues de Noronha. cializou em duas actividades paralelas: o comércio de vinho para Angola e Brasil e o de açúcar e
A rede de negócios funchalense, em torno do trato do açúcar, foi criada e incentivada pelo mer- derivados para adocicar os manjares dos repastos da mesa europeia.
cador estrangeiro, alemão ou italiano, que aí aportou depois da escala em Lisboa. Ele controlou as As actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco não são de modo algum episódicas, no
principais sociedades intervenientes no comércio açucareiro, não obstante ter morada fixa em contexto da estrutura comercial madeirense da segunda metade do século dezassete, pois compro-
Lisboa, Flandres ou Génova. O domínio atinge, não só, as sociedades criadas no exterior com inter- vam uma das dominantes estruturais. A ilha como intermediária entre os interesses da burguesia
venção na ilha, mas também, o grupo de agentes ou feitores e procuradores substabelecidos no comercial do Novo e Velho Mundo. Um dos componentes do puzzle era o porto do Funchal, onde
Funchal. A escolha é criteriosa: primeiro os familiares, depois os compatrícios enraizados na uma chusma de pequenos burgueses que aguardam a oportunidade de singrar em tais negócios. Túmulo de Urbano Lomelino
sociedade e só, depois, os madeirenses ou nacionais. As principais casas intervenientes no trato açu- Angola, Brasil são os outros dois vértices do triângulo. Episodicamente surge-nos Barbados, que só
careiro madeirense podem ser definidos de acordo com o número de representantes, destacando- singrou a partir da afirmação hegemónica da burguesia comercial britânica no mundo atlântico.
se então, Baptista Morelli, B. Marchioni, Welser, Claaes, Charles Correa, Pero de Ayala e Pero de
Mimença. Os Welsers e Claaes actuaram na praça do Funchal por intermédio de agente estabele-
cido em Lisboa, respectivamente, Lucas Rem e Erasmo Esquet, que depois substabelecem feitores.
O primeiro tinha como interlocutores no Funchal, em princípios do século XVI, João de Augusta, OS ITALIANOS
Bono Bronoxe, Jorge Emdorfor, Jácome Holzbuck, Leo Ravenspurger e Hans Schonid.
Os procuradores e feitores, na condição de interlocutores dos mercadores europeus não se ligam A presença de italianos na Madeira deriva, não só, da implantação na península e manifesto
apenas a uma sociedade, pois distribuíram a acção por um grupo numeroso de societários. E, por empenho na revelação do novo mundo, mas também, da ilha se tornar numa importante área de
sua vez, não se prendem apenas a um representante, concedendo-os a um grupo variado de feitores produção e comércio do açúcar. Em Portugal e Castela eles procuraram os portos ribeirinhos de
e procuradores. Na primeira situação tivemos Benoco Amatori que representava B. Marchionni, B. maior animação comercial, e ai se evidenciaram como mercadores, mareantes e banqueiros. Aqui,
Morelli, Álvaro Pimentel e Jerónimo Sernigi. E, na segunda, João Francisco Affaitati que, entre os oriundos de Génova e Florença, cidades de grande animação comercial e marítima, abriram, nos

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

locais de fixação, novas vias para o comércio com o mercado mediterrânico. A partir de Lisboa ou mas casas ramificaram-se até aos portos do Funchal, Las
Cádis eles intervêm, primeiro, no comércio peninsular, e, depois, nas navegações e actividades de Palmas e Santa Cruz de Tenerife e, a partir daí, surgiu uma
troca no espaço atlântico. A situação torna-se evidente com a intervenção de António de Noli e nova rede de negócios. É de realçar a existência em ambos os
Alvise de Cadamosto. arquipélagos de agentes ou familiares da mesma casa: os
Os italianos, para além de divulgadores de novas técnicas comerciais, foram, também, quem, Adornos, Lomelinos, Jutinianos, di Negros, Salvagos,
depois dos árabes, esteve na origem da expansão de algumas culturas, como a cana-de-açúcar. A Espindolas e Dorias85. Todavia não se deverá esquecer que não
posição charneira da península itálica propiciara a hegemonia no mercado Mediterrâneo. Aí foram existe perfeita consonância entre a afirmação da cultura em
eles principais interessados no comércio de açúcar oriental. Por isso era inevitável a presença na ambos os arquipélagos. As Canárias afirmam num momento
expansão para Ocidente da cultura e comércio; em Chipre, Sicília e, depois, em Valença e no Algarve. de crise do mercado madeirense, podendo ser uma forma
É de salientar que, o maior ou menor impacto da presença, depende da dimensão adquirida pela clara de acompanharem a evolução da cultura e comércio.
cultura. Deste modo no Mediterrâneo Atlântico à mais elevada a presença na Madeira e nas Acresce, ainda, que o comércio do açúcar madeirense esteve,
Canárias, do que nos Açores79. Em ambos os arquipélagos adquiriram uma posição proeminente na quase sempre, sujeito a um apertado sistema de controlo por
agricultura e comércio, sendo o açúcar o principal interesse. parte da coroa, o que não sucede nas Canárias, onde as opera-
No Algarve80 ou em Valença à cultura se encontravam associados os italianos, nomeadamente ções estavam mais facilitadas86.
genoveses. De certo modo, poder-se-á considerar que os genoveses acompanharam o périplo da O rápido surto de desenvolvimento da Madeira na cen-
cana-de-açúcar para Ocidente e depois além-Atlântico. Por outro lado o empenho genovês no mer- túria quatrocentista, através da produção açucareira, gerou
cado atlântico terá a ver com a perda de posição no mercado mediterrânico, mercê da rivalidade a cobiça dos mercadores genoveses, que, por sentirem difi-
com Veneza e das ameaças propiciadas com o avanço turco. A perda de influência no mercado açu- culdades nas tradicionais rotas do Oriente, viam aqui um
careiro cipriota é compensada com a intervenção privilegiada nas ilhas atlânticas81. A situação é evi- local ideal para continuar os negócios. Já em meados da
dente na Madeira e nas Canárias, onde a comunidade italiana é dominada, desde o princípio, pelos centúria Cadamosto, um dos poucos venezianos que apor-
genoveses. A eles associavam-se, na primeira ilha, os florentinos82. Os venezianos continuarão até tou à Madeira, ao abordar a ilha ficara estupefacto com o
meados do século XVI empenhados no mercado do Mediterrâneo Oriental, de que Chipre foi, a grau de progresso atingido, despertando-lhe interesse a
partir de 1489, um dos principais pilares. próspera produção açucareira. Foi, na realidade, a partir
A rede de negócios estabelecida pelos italianos no Novo Mundo mantém as mesmas caracterís- desta data e, fundamentalmente, da década de setenta o
ticas das que detinham na Europa do Norte e Mundo Mediterrânico. A família à a chave do suces- açúcar ganhou uma posição dominante na produção e
so, a garantia da execução em plena segurança e a continuidade das referidas operações83. A partir comércio da ilha. E é precisamente a partir daí que se iden-
daqui é possível estabelecer a estrutura dos negócios, que tinha como porto de divergência a cidade tificam os primeiros italianos na Madeira: Francisco Calvo,
de origem. No caso do espaço atlântico podia ser Cádis ou Lisboa, importantes centros de con- B. Lomelino e António Spínola. São os primeiros que apare-
fluência e divergência das rotas comerciais do Novo Mundo. cem na ilha, atraídos pelo comércio do açúcar. Depois
Tendo em conta a importância que a Madeira e as Canárias assumiram no comércio do açúcar seguiram-se, nas décadas seguintes da centúria, os Dórias,
nos séculos XV e XVI, parece-nos inevitável a presença da comunidade italiana, nomeadamente João António Cesare, João Rodrigues Castelhano e
genovesa, nos principais portos de ambas as ilhas84. As representações em Lisboa e Cádis de algu- Jerónimo Sernigi. O grupo mais numeroso de italianos sur-
girá no primeiro quartel da centúria seguinte, época áurea
80. Note-se que em 1404 é referenciado em Quarteira um João da Palma, mercador genovês, com terras de canas, veja-se H. Gomes de do comércio de açúcar. De um total de 50 italianos referen-
Amorim PARREIRA, “História do Açúcar em Portugal”, in Anais (Junta de Investigações do Ultramar), vol. VII, t. 1, 1952, 18-19.
81. Confronte-se F. C. LANE, Venise une République maritime, Paris, 397-398. ciados na Madeira nos séculos XV e XVI, temos 25 desta
82. Confornte-se Alberto VIEIRA, ob. cit., quadros nº 1 e 3, 8-9-10. data, destacando-se os Aciauollis, Adornos, Catanhos e
83. F. C. LANE, ob. cit., 198; Manuel LOBO CABRERA, El Comercio Canario Europeo Bajo Felipe II, Funchal, 1988, 197.
84. Sobre os italianos em Canárias veja-se I. M. Gomez GALTIER, “El genovês Francisco de Cerca, prestamista y comerciante de
orchilla en Las Palmas de Gran Canaria en el decenio 1517-1526”, in Revista de História, XXIX, La Laguna, 1963-64; L. de LA
ROSA OLIVEIRA, “Francisco Riberol y la colonia genovesa en Canárias”, in Estudos Históricos sobre las Canarias Orientales, Túmulo de Micer Baptista. 1512.
Las Palmas, 1978, 169-289; M. LOBO CABRERA, “Los mercadores italianos y el comercio azucarero canario en la primera 85. Confronte-se Alberto VIEIRA, O comércio Inter-insular (…) quadros nºs 1 e 3; Manuel LOBO CABRERA, El Comércio
metad del siglo XV”, in Aspecti della vita economica medieval, Firenze, 1985, 268-282; M. MARRERO RODRIGUES, Canario Europeo Bajo Felipe II, pp. 188-198.
“Genoveses en la colonización de Tenerife 1496-1509”, in Revista de Historia, XVI, La Laguna, 1960, 52-65; H. SANCHO DE 86. Confronte-se Alberto VIEIRA, O comércio inter-insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, pp.27-40,129-137; Manuel LOBO
SOPRANIS, “Los Sopranis en Canarias 1490-1620”, in Revista de Historia, La Laguna, 1951, 318-336. CABRERA, El Comercio Canario Europeo Bajo Filipe II, Funchal, 1988, pp.108-120,141-150.

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Salvagos. espírito" dos italianos90.


A íntima ligação ao açúcar é manifesta quando procuramos o rastro no momento de crise de pro- Um dos aspectos que mais favoreceu a penetração da comunidade italiana na ilha, para além do
dução e comércio da cultura. A partir da década de trinta da centúria quinhentista é difícil encon- conhecimento dos "segredos" da produção e comércio do açúcar, foi a fácil naturalização de direi-
trara o testemunho na ilha, apenas os que nela criaram raízes familiares. A partir de então o mer- to, adquirida por alvará régio, ou de facto, por meio do relacionamento matrimonial com as prin-
cado madeirense sofreu a concorrência do açúcar doutras proveniências (Canárias, Cabo Verde, S. cipais famílias da ilha. A primeira situação foi o recurso necessário para travar as manifestações de
Tomé e Brasil) e, por isso mesmo, inúmeros italianos deixaram de aportar o Funchal para se diri- xenofobia, evidentes nos protestos lavrados nas cortes de 1459, 1472-73 e 1481-82, que também tiver-
girem aos novos destinos. Outros acompanharam o percurso de expansão da cultura no mundo am repercussão no Funchal, a partir do governo do senhorio do infante D. Fernando (1461-70)91. São
atlântico. Assim sucedeu com José Adorno e Paulo Dias Adorno, que saíram do Funchal em 1567 do domínio publico algumas cartas de naturalização, sendo de referir, no caso da Madeira, a con-
para se fixarem em S. Vicente no Brasil87. cedida em 147692 pela infanta D. Catarina a Bautista Lomelino. A carta surge, certamente, como
Na Madeira os genoveses foram, em simultâneo, mercadores e produtores de açúcar. Dos últi- resultado das manifestações contrárias dos madeirenses à presença no Funchal, em face do confli-
mos destacam-se Simão Aciaoli (Funchal), Benoco Amador (Funchal), António Espindola to gerado na década de setenta pelo contrato exclusivo para comércio de açúcar. A presença de
(Funchal), Jorge Lomelino (Funchal, Santa Cruz) Lucas Salvago (Ribeira Brava), António de Negro judeus e genoveses não era bem vista pelos madeirenses conforme se poderá concluir da recla-
(Ribeira Brava) e João Lido (Ponta do Sol), que surgem com uma posição de relevo na estrutura mação de 1461 ao infante D. Fernando93.
produtiva madeirense, como importantes produtores de açúcar, no período de 1509 a 1537. De acor- A coroa e o senhorio nunca aceitaram a política xenófoba dos madeirenses. Para ambos a opção
do com os dados disponíveis sobre a produção de açúcar para as três primeiras décadas do século era clara. Havia um compromisso anterior que deveria ser cumprido e de difícil revogação94. Retrato provável de Urbano lomelimo
XVI encontrámos os seguintes valores: Todavia até 1498 a possibilidade de acesso à ilha não esteve facilitada, dependendo das influências
do senhorio e coroa e da conquista da simpatia das gentes da ilha, uma vez que eles sempre se
PROPRIETÁRIO FUNCHAL R. BRAVA CALHETA MACHICO mostraram contrários àa intervenção dos estrangeiros.
1509 1530 1509 1517 1509 1530 Em 1498 o rei revogou todas as determinações em contrário, permitindo ou facilitando a pre-
Simão Acioli 1365 sença e permanência de qualquer estrangeiro na ilha95. O monarca interveio no comércio do açú-
Benoco Amador 2564 car, regulamentando-o por meio do estabelecimento de um contingente de exportação. Ficou esta-
António Espindola 560 belecido que a ilha exportaria cento e vinte mil arrobas, sendo cinquenta mil da sua responsabili-
João Florença 148 dade e as restantes distribuídas, primeiro pelos mercadores naturais, e, depois, pelos do reino, nos
Lucas Salvago 1020 quais o monarca queria que fossem incluídos Bartolomeu Florentim e Jerónimo Sernigi96.
Jorge Lomelim 135 576,5 A forma mais eficaz de naturalização e plena intervenção do estrangeiro na vida do madeirense
Antonio de Negro 1982,5 foi o recurso ao casamento. Funcionou para muitos italianos como a mais eficaz forma de pene-
João R. Castelhano 1227,5 tração na sociedade e conquista de uma posição de relevo ao nível fundiário e institucional. Assim
sucedeu com Simão Acciauolli, Benoco Amador, Chirio Cattaneo, João Usodimare, Urbano
Lomelino e João Salviati.
Entre todos afirma-se Jorge Lomelino, que se apresenta como proprietário de canaviais no
Simão Acciauolli casou com Maria Pimenta Drumond filha de pêro Rodrigues, almoxarife dos
Funchal (1530) e Santa Cruz (1530), sendo na última área um dos principais, a seguir a Jordão de
quartos (quinto), que tinha promessa do oficio para quem casasse com a filha. Foi assim que o
Freitas88. A par disso, Gaspar Frutuoso89, em finais do século XVI, esclarece-nos sobre a importân-
jovem italiano adquiriu uma posição proeminente na ilha, como proprietário e períodos de cargos
cia assumida por alguns na economia açucareira madeirense, referindo quatro como proprietários
de engenho: Simão Acioli (Funchal), Jorge Lomelino (Santa Cruz), Rafael Catanho (Santa Cruz) e
90. Ibidem, 103.
Luís Dória (Faial). O mesmo realça, ainda, a iniciativa de alguns, referindo o espírito empreende- 91. Alberto VIEIRA, O Comércio Inter-Insular (...), pp. 79-80.
dor de Rafael Catanho, que em Santa Cruz construiu uma levada para serviço do seu engenho em 92. A.R.M., C.M.F., t. 1, fl. 150 vo, carta de 30 de Dezembro, publ. in A.H.M., vol. XV, 73. Esta confirma outra de D. Afonso V
que gastou mais de cem mil cruzados. A situação só foi possível, segundo Frutuoso, pelo, "grande de 27 de Novembro de 1471 (A.N.T.T., Chancelaria de D. Afonso V, Lº. 29, fls. 53 vo) veja-se V. RAU, “Uma familia de mer-
cadores italianos em Portugal no século XV: os Lomellini”, in Estudos de História, vol. I, Lisboa, 1958, 13-57; veja-se ainda,
M. Rosário, Genoveses na História de Portugal, Lisboa, 1977, 291-319.
93. A.R.M., C.M.F., fl. 204-211, 3 de Agosto, publ. in A.H.M., vol. I, nº 4, pp.13-14
94. Virgínia RAU, “Privilégios e Legislação Portuguesa referentes a mercadores estrangeiros (séculos XV e XVI)”, in Estudos
87. José Gonçalves SALVADOR, Os Cristãos-Novos. Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro (1530-1680), S. Paulo, 1976, 88. sobre História Económica Social do Antigo Regime, Lisboa, 1984, 141-200.
88. Alberto VIEIRA, “O Regime de propriedade na Madeira. O caso do açúcar (1500-1537)”, in I.C.I.H.M., Funchal, 1989. 95. A.R.M., C.M.F., t. 1, fl. 291 vo 292: 22 de Março, publ. in A.H.M., XVII, nº 217, p. 367.
89. Livro Segundo das Saudades da terra, Ponta Delgada, 1979, pp. 103, 110, 130. 96. Idem, Ibidem, t. 1, fl. 69 vo.-75 vo: 21 de Agosto; publ. in Ibidem, nº 22, pp. 376-377.

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na administração da fazenda. Os italianos, em especial os florentinos e os genoveses, conseguiram implantar-se na Madeira,


Benoco Amador recorreu a uma viúva, Petronilha Gonçalves Ferreira, mulher de Esteves Eanes desde meados do século XV, como os principais agentes do comércio do açúcar, alargando depois
de Quintal, o que lhe propiciou a posse e usufruto de extensas propriedades em Santo António e a actuação ao domínio fundiário, por meio da compra e laços matrimoniais100. Na década de 70,
na Ponta do Sol. O património não mais parou de aumentar mercê da intervenção em múltiplas mediante o contrato estabelecido com o senhorio da ilha para o comércio do açúcar, detinham uma
operações de comércio e de crédito, tornando-se num importante proprietário e empresário97. João posição maioritária na sociedade criada para o efeito, sendo representados por Baptista Lomellini,
Salviati, que se casou com Isabel Álvares de Abreu, tornou-se num dos mais importantes proprie- Francisco Calvo e Micer Leão101. No último quartel do século juntaram-se Cristóvão Colombo, João
tários em Câmara de Lobos e Arco da Calheta. António Cesare, Bartoloneu Marchioni, Jerónimo Sernigi e Luís Dória. E, finalmente, em princí-
A capitania de Machico exerceu uma atracção especial por alguns dos italianos. Assim, os
pios do século XVI, surgiu outro grupo mais numeroso, que alicerçou a comunidade italiana resi-
irmãos Quírio e Rafael Catanho, que se fixaram na ilha a partir de princípios do século XVI,
preferiram o convívio dos capitães da vila, tendo o primeiro casado com Maria Cabral, filha de dente. Nos últimos tivemos: Lourenço Cattaneo, João Rodrigues Castigliano, Chirio Cattaneo,
Tristão Teixeira, terceiro capitão. Mais tarde, uma filha do enlace, Ângela Catanha, veio a casar Sebastião Centurione, Luca Salvago, Giovanni e Lucano Spínola.
com Diogo Teixeira, quarto capitão da capitania, que por ser inválido teve como tutor o sogro98. Os mercadores-banqueiros de Florença surgem na ilha e evidenciando-se nas transacções comer-
Outro genovês, João Usodimare, que também procurou o convívio do capitão de Machico, tendo ciais e financeiras em torno do açúcar madeirense no mercado europeu. A partir de Lisboa, onde
desposado a primeira filha, Tristoa Teixeira99. Entretanto Urbano Lomelino fixara-se em Santa detinham uma privilegiada posição junto da coroa, mantêm e orientam uma extensa rede de negó-
Cruz onde casou com Joane Lopes, filha de Isabel Correia de Santana. cios que abrange a Madeira e as principais praças europeias. Primeiro conseguiram da Fazenda
Os italianos conseguiram penetrar na sociedade e economia madeirense, adquirindo ai uma Real o quase exclusivo comércio do açúcar resultante dos direitos reais por meio do contrato.
posição de relevo. A adaptação à nova sociedade foi rápida, pelo que desde muito cedo surgem ao Depois apoderaram-se do açúcar em comércio, tomando o exclusivo dos contingentes estabelecidos
lado dos madeirenses na defesa da ilha contra as investidas dos corsários, como sucedeu em 1566, pela coroa, em 1498102. Na primeira metade do século XVI, Bartolomeu Marchioni, Lucas Giraldi
ou em África, na defesa das praças marroquinas. e Benedito Morelli com uma clara intervenção no trato do açúcar103.
Tal como já referimos, a Madeira e as Canárias, pelo fornecimento de urzela e açúcar, cativaram A manutenção da rede de negócios fazia-se por meio da intervenção directa dos mercadores ou
a atenção dos italianos. Nos séculos XV e XVI da relação dos estrangeiros ai residentes, contabi- por meio do recurso a procuradores e agentes substabelecidos. Benedito Moreli, em 1509-1510, esta-
lizamos 50 (5,2) e noventa e dois (16,9) mercadores italianos, respectivamente na Madeira e Canárias,
va representado na ilha por quatro agentes que tinham o encargo do recebimento do açúcar dos
representando, num e noutro caso, a comunidade estrangeira mais importante. A par disso, na
Madeira para os séculos XV e XVI, acrescentam-se mais outros 54 italianos, que de uma forma direc- quartos: Simão Acciuolli, João de Augusta, Beneco Amador, Cristóvão Bocollo e António
ta intervêm na vida socio-económica madeirense. A origem distribui-se da seguinte forma: Leonardo104. Marchioni, entre 1507-1509, fazia-se representar em operações de idêntica índole por
Feducho Lamoroto105.
CIDADE MERCADORES
João Francisco Affaitati, cremonês, agente em Lisboa de uma das mais importantes companhias
NÚMERO % São maioritariamente do Funchal conforme se poderá verificar: comerciais da época, teve uma activa participação no comércio, entre 1502 e 1526, por meio de con-
CREMONA 13 tratos de compra e venda dos açúcares dos direitos reais (1516-1518, 1520-1521 e 1529) e pagamen-
FLORENÇA 40 LOCAL SITUAÇÃO tos em açúcar a troco de pimenta106. Ele actuava, quer em sociedade com Jerónimo Sernigi, João
GENOVA 50 VIZINHO ESTANTE Jaconde, Francisco Corvinelli e Janim Bicudo, quer isoladamente, tendo para o efeito como feitores
ITALIA 1 CALHETA 2 4 e procuradores na ilha Gabriel Affaitati, Luca António, Cristóvão Bocollo, Capela de Capellani,
TOTAL 104 FUNCHAL 42 5 João Dias, João Gonçalves, Matia Manardi e Maffei Rogell.
PONTA DE SOL 1
100. Sobre a presença italiana na Madeira veja-se Charles VERLINDEN, ob. cit.; M. do Rosário: Genoveses na História de Portugal,
RIBEIRA BRAVA 1 Lisboa, 1977; Prospero PERAGALLO, Cenni in torno alla colonia italiana in portogallo nei Secoli XIV, XV e XVI, GÈnova,
SANTA CRUZ 5 1 1882; Domenico GEOFRI, “Le relazioni fra Genova e Madera nel I decenio del secolo XVI”, in Studi Colombiani, III, Génova,
1952, 435-483; Carlos PASSOS, “Relações Históricas Luso-italianas”, in Anais da Academia Portuguesa de História, 20 SÈrie,
VII, Lisboa,1856, 143-240; “Italianos na Madeira”, in A.H.M. V (1937), 63-67; Jacques HEERS, Gênes au XVE siècle, Paris,
97. João de Sousa, “Notas para a História da Madeira. Os italianos na ilha. Benoco Amador”, in Cidade Campo, supl. de Diário 1977, 335; Virgínia RAU, “Uma família de mercadores italianos em Portugal no século XV: os Lomellini”, in Estudos de
de Noticias, Funchal, 6 de Maio, 1984, 6. História, I, Lisboa, 1968, 33-36.
98. Confronte-se Gaspar Frutuoso, ob. cit., 152. 101. Virgínia RAU, O Açúcar na Madeira (...), 29.
99. Gaspar Frutuoso (Ibidem, 159), refere que esse casamento da filha do capitão do donatário de Machico foi com Micer João 102. Fernando Jasmins PEREIRA, O Açúcar Madeirense de 1500 a 1537 (...), 61-65.
Baptista, todavia esta opinião tem sido contestada por inúmeros estudiosos que apresentam a João Usodimare como parceiro 103. Ibidem, 61-91; Idem, Os Estrangeiros na Madeira, 88, 115-117 e 125-128.
da filha do capitão; para tal argumenta-se o facto de Micer João no seu testamento (“Misser João Baptista (1512). O Vigário 104. Idem, Os Estrangeiros na Madeira, 19, 27, 60, 105, passim.
Rodrigo Afonso Usademar (1581)”, in A.H.M., vol. II, 1932, 23) não a referenciar, como seria natural; confronte-se Peter 105. Ibidem, 115-118
CLODE, Registo Genealógico de famílias que passaram à Madeira, Funchal, 1952, 85, 321. 106. Ibidem, 22-26.

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A penetração do grupo de mercadores na sociedade madeirense foi muito acentuada107. O


usufruto de privilégios reais e o relacionamento familiar conduziram à plena inserção na aristo-
cracia terratenente e administrativa. Na maioria, apresentam-se como proprietários e mercadores
de açúcar e instalam-se nas terras de melhor e maior produção. Por compra ou laços matrimoniais,
tornam-se nos mais importantes proprietários de canaviais. Sucedeu, assim, com Rafael Cattaneo,
Luís Dória João Esmeraldo, João e Jorge lomelino, João Rodrigues Castelhano, Lucas Salvago,
Giovanni Spinola, João Antão, João Florença, Simão Acciaolli e Benoco Amatori. Também não se
coíbem, depois de naturalizados, de intervir na vida local. A intervenção na estrutura administra-
tiva madeirense abrangia os domínios mais elementares do governo, como a vereação e repartições
da fazenda, que incidem sobre a economia açucareira. Assim, surgem, como almoxarifes e prove-
dores da fazenda. A par disso têm uma forte intervenção na arrecadação dos direitos reais, surgin-
do ainda como rendeiros.
A presença da comunidade italiana na ilha, não obstante as resistências iniciais, foi salutar,
porque eles, para além de propiciar o maior desenvolvimento das relações de troca em torno do
açúcar, foram portadores das novas técnicas e meios de comércio. A eles se deve o incremento das
companhias e sociedades comerciais e o uso das letras de câmbio nas vultuosas operações comer-
ciais. Os florentinos experientes nas transacções financeiras, surgem ai com grande destaque,
sendo de realçar a acção de Feducho Lamoroto e de Francisco Lape108. A par disso a rede de negó-
cios em torno do açúcar, foi recriada e incentivada pelos mercadores, através de familiares e ami-
gos lançaram uma forte rede de negócios.
O domínio atingiu, não só, as sociedades criadas no exterior e com intervenção na ilha, mas tam-
bém, o numeroso grupo de agentes ou feitores e procuradores substabelecidos no Funchal. São
várias as sociedades, em que intervêm os italianos, para o comércio do açúcar ou arrendamento dos
direitos reais. Aí destacaram-se Bendito Morelli e Bartolomeu Marchioni, sobrinho e tio, que vi-
de Capellani, João Dias, Matia Manardi e Maffei Rojel 110. Lisboa. 1563
viam em Lisboa e actuavam em conjunto no trato do açúcar por meio de outros italianos, que
foram na ilha agentes, como Feducho Lamoroto, Benoco Amador. A par disso participaram em Tudo isto girava em torno do comércio do açúcar de que o mundo mediterrânico, dominado
sociedade com outros italianos - Simão Acciauolli, Luís Dória e António Spínola - no arrendamen- pelos italianos, deveria consumir 43% do valor exportado da ilha, conforme o estabelece a escápu-
to dos direitos de 1516.1518109. Entretanto, no período de 1506 a 1508, Benoco Amador, tio de Simão la de 1498. Aqui 30% ficava em Itália, sendo 42% para Veneza, 36% para Génova e os restantes 22%
Acciauolli, que foi procurador, havia participado noutras duas sociedades para arrendamento dos para porto Liorne e Roma.
direitos do açúcar e da alfândega, com outros compatricios - Quirino Catanho, Feducho Lamoroto.
Quanto ao comércio de açúcar, desde a década de setenta, que vinham actuando em sociedades ITÁLIA OUTROS DESTINOS
para tal fim. Na primeira que conhecemos participavam Batista Lomelino, Francisco Calvo e Micer arrobas % arrobas %
leão, tendo como objectivo o comércio de todo o açúcar produzido na ilha. A partir de 1498 com o ESCAPULAS 36.000 30 78.000 70
estabelecimento das escápulas de comércio surge, em 1502, uma sociedade em que intervêm MERCADO 140.626 52 130.896 49
António Salvago, João Francisco Affaitati, Jerónimo Sernigi, Francisco Corvinelli e João Jaconde, MERCADORES 407.530,5 80 112.900 21
todos italianos, para a venda das trinta mil arrobas das escápulas para os portos mediterrâneos -
Águas Mortas, Liorne, Roma e Veneza. O primeiro detinha na ilha uma importante rede de feitores Numa análise comparada, entre o valor das escápulas, o açúcar exportado e a intervenção dos
ou procuradores, de que se destacam Gabriel Affaitati, Luca António, Cristóvão Bocollo, Capello mercadores constata-se a afirmação dos italianos no comércio do produto. Note-se que eles, de acor-
do com o valor estabelecido para as escápulas, apenas tinham direito a 30% do açúcar exportado,
107. Ibidem, 23.
108. Alberto VIEIRA, ob. cit., 59.
109. Fernando Jasmins PEREIRA, O Açúcar Madeirense (...), 68-93. 110. Alberto VIEIRA, ob. cit., quadros nos. 13 e 14, pp. 204-205.

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mas na realidade receberam no período de 1490 a 1550, mais de metade do açúcar que saiu da ilha, Janela dita de Colombo. Quinta da Palmeira.
Pertenceu a Harry Hinton
deste 97% foi para ai enviado na década de 1501 a 1510. Para o período em que vigoraram as escápu-
las (1498-1499) apenas se conhece a saída de 2.909 arrobas para tal destino, isto é, apenas 8% do
total de arrobas para ai consignadas.
É de salientar que o comércio de açúcar madeirense para Itália se processou com maior incidên-
cia no período de 1490 a 1510, momento em que o mercado e mercadores daí oriundos encon-
traram condições favoráveis junto da coroa nos diversos contratos de compra de açúcar. A par disso
as operações de comércio em torno do açúcar, envolvendo italianos têm o apogeu na década inicial
de quinhentos, decaindo de forma acentuada nas seguintes. Aí merece destaque especial a acção de
quatro italianos que controlaram 64% do açúcar transaccionado.

MERCADORES ACÚCAR
ARROBAS %
João Francisco Affaitati 177.907,5 28,5
Feducho Lamoroto 32.039,5 5
Bartolomeu Marchioni 51.238 8
Benedito Morelli 50.348 8
Matia Manardi 134.423,5 21,5
Outros 179.604 29
TOTAL 625.559,5

João Francisco Affaitati, mercador cremonês de família nobre, chefe da sucursal em Lisboa da
companhia Affaitati, uma das principais da praça, foi no período de 1502 a 1529 o principal acti-
vador do comércio do açúcar madeirense, tendo transaccionado sete vezes mais açúcar que todos de Bartolomeu Perestrelo, também de origem italiana, capitão do donatário no Porto Santo. A
os portugueses. Em 1502 arrematou as escápulas de águas Mortas, Liorne, Roma e Veneza. Ainda, segunda situação fá-lo permanecer nas ilhas da Madeira e Porto Santo, por algum tempo, até à saída
conjuntamente com Jerónimo Sernigi, João Jaconde e Francisco Corvinelli a venda do açúcar dos para Castela, retornando às ilhas, em 1498, aquando da terceira viagem.
direitos (1512-1518, 1520-1521, 1529) e actuou em operações diversas de compra directa de açúcar e Diz a tradição, baseada no testemunho de Álvaro de Azevedo112 que o mesmo, aquando da estân-
da troca por pimenta ou dívidas 111. cia no Funchal, teria repousado nos aposentos de João Esmeraldo, no Funchal. A dedução, sem
Para manter as operações comerciais na ilha contava com um grupo numeroso de feitores ou qualquer prova documental, parece-nos estranha pois Cristóvão Colombo nunca trocaria o convívio
procuradores: Gabriel Affaitati, Luca António, Cristóvão Bocollo, Matia Minardi, Capella e dos compatrícios pelo fausto dos aposentos do referido mercador flamengo. Num e noutro momen-
Capellani, João Dias, João Gonçalves e Mafei Rogell. Por outro lado aceitou procuração de Garcia to havia já no Funchal uma importante comunidade de italianos, onde predominavam os geno-
Pimentel, Pedro Afonso de Aguiar e João Rodrigues de Noronha. O grupo inicial é na maioria for- veses. Em 1478, quando Colombo se deslocou pela primeira vez ao Funchal, deveria ter contacta-
mado por italianos, ligados ao comércio do açúcar, enquanto os segundos pertencem a algumas das do com Francisco Calvo, Baptista Lomelino e António Spínola. Aquando da segunda estância, já
famílias madeirenses mais influentes. casado, poderia associar-se ao convívio de outros patrícios, como João António Cesare, os Dórias.
Também Cristóvão Colombo fora atraído pelo ouro branco e beleza das donzelas madeirenses, E, finalmente, em 1498, na terceira viagem que fez às Índias, à passagem pelo Funchal a comu-
pois cá esteve, certamente em Agosto de 1478, ao serviço de uma sociedade de Ludovico nidade italiana era muito importante, tendo-se juntado aos já existentes, os florentinos Bartolomeu
Centurione, por intermédio do representante em Lisboa, Paolo di Negro, para comprar 2400 Marchioni, Jerónimo e Dinis Sernigi113.
arrobas de açúcar e conduzi-las a Génova. Depois, envolveu-se matrimonialmente com uma filha
112. Confronte-se Manuel C. de Almeida CAYOLLA ZAGALLO, Cristóvão Colombo e a Ilha da Madeira. A casa de João
Esmeraldo, Lisboa, 1945, 34-35; Agostinho de ORNELLAS, Memória sobre a residência de Colombo na ilha da Madeira,
111. Sabe-se disso a partir de um acto notarial de 25 de Agosto de 1479 sobre o não cumprimento de um contrato de remessa de Lisboa, 1892, 8-9.
açúcar da Madeira. 113. Manuel C. de Almeida CAYOLLA ZAGALLO, ob. cit., 34-36.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Em face do espírito de solidariedade que dominava a comunidade genovesa no estrangeiro, con- Madeira no açúcar, pastel e vinho conduziu ao estabelecimento de contactos assíduos com os por-
siderado um dos factores de sucesso das operações comerciais, parece-nos difícil aceitar uma ati- tos da Flandres e Inglaterra, que não era bem visto pelo tribunal. Isto deverá ter favorecido a pre-
tude contrária de Cristóvão Colombo, que nos inícios da acção na península havia servido algumas sença de uma importante comunidade, o que veio a avolumar as preocupações dos inquisidores.
casas comerciais. Os documentos privados do mesmo em lugar algum falam de flamengos, como As perseguições movidas pelo Santo Ofício conduziram a que muitos dos judeus se refugiassem
João Esmeraldo, mas sim de genoveses, como Paulo Dinegro, Baptista Espínola, ambos com fami- nas ilhas Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e, finalmente o Brasil. A juntar a isto está a crise da pro-
liares na Madeira114. Todavia a tradição é mais forte que o juízo histórico, e a casa de João dução açucareira madeirense em contrastante com a promissora cultura nas terras brasileiras que
Esmeraldo ficará como o albergue que acolheu o ilustre navegador nas passagens pela Madeira no conduziu a que a diáspora se alargasse até aqui. E de novo os judeus estarão ligados à produção açu-
período de 1478 a 1498. careira118.
Um dos factos comprovativos do interesse da comunidade sefardita pelo açúcar revela-se em
meados do século XVI em que a crise da produção madeirense fez alargar a diáspora a novos mer-
cados mais promissores como Pernambuco no Brasil. Para a comunidade judaica a Madeira foi o
Tribunal do Santo Oficio.
A COMUNIDADE SEFARDITA DA MADEIRA E O AÇÚCAR NO ATLÂNTICO. primeiro alvo da expansão europeia que os levou depois aos quatro cantos do Novo Mundo, acom-
panhando o rasto do açúcar e do tráfico dos escravos no atlântico. Perante isto importa conhecer
No Portugal dos séculos XV e XVI a comunidade sefardita detinha um papel destacado na qual o papel que assumiram no primeiro poiso da diáspora atlântica. Até ao estabelecimento do tri-
economia e finanças115. Judeu era sinónimo de negociante116. O despoletar do processo dos desco- bunal de inquisição em Portugal (1536) não é fácil identificar a comunidade judaica na documen-
brimentos atlânticos e os consequentes mercados e rotas comerciais fez com que a atenção estivesse tação. Todavia, a presença fazia-se sentir de forma evidente em múltiplos domínios de sociedade e
para aí virada assumindo idêntico protagonismo117. A Madeira, porque assumir um papel evidente economia portuguesa. A xenofobia, testemunhada pela documentação, fazia com procurassem
em todo o processo, será o primeiro pólo de atracção da comunidade. As perspectivas eram promis- iludir as crenças religiosas, apagando todo o rasto possível. Apenas com a instituição do tribunal
soras, pois o lançamento em meados do século XV da cultura açucareira transformou-a num dos do Santo Ofício foi possível estabelecer o rasto do grupo de convertidos ao cristianismo, e por isso
principais mercados atlânticos. A atracção principal era o açúcar que tinha procura no considerados cristãos-novos119.
Mediterrâneo e norte da Europa. E por ele a Madeira acolheu, primeiros judeus, genoveses e A Madeira não fugiu à regra e a xenofobia foi uma das armas entre a concorrência das diversas
venezianos e, depois, flamengos e franceses. Com o açúcar estavam encontrados os ingredientes sociedades mercantis. Na década de sessenta o principal alvo dos madeirenses era os judeus e ge-
fáceis para atrair os agiotas da finança e comércio internacional. noveses que monopolizavam o comércio do açúcar. Os moradores reclamaram em 1461 perante o
Nas ilhas foi evidente a conivência das autoridades com a presença da comunidade judaica, o infante D. Fernando no sentido de proibir a actividade na ilha, como compradores de açúcar ou
que resultou em facilidades à sua fixação quando perseguidos no reino. Em finais do século dezas- arrendadores dos direitos120. É fácil encontrar os judeus em ligação estreita aos genoveses, con-
seis foram arrolados 94 cristãos novos, mas em 1618 o número não passou de 5, quando sabemos trolando parte significativa do comércio rendoso gerado pelos novos espaços atlânticos. A presença
que em 1620 eram 58 os judeus que pagava a taxa. A presença da comunidade judaica era evidente. nas ilhas é evidente desde os inícios da ocupação. Difícil é encontrar o rasto da presença, pois tal
Os judeus, maioritariamente comerciantes, estavam ligados ao sistema de trocas nas ilhas, sendo como nos diz José Gonçalves Salvador121 “muitos vão para as ilhas e se acobertam sob a capa de
os principais animadores do relacionamento e comércio a longa distância. cristãos”.
A criação do tribunal do Santo Ofício em Lisboa conduziu a que avançassem no Atlântico: Os judeus estão envolvidos em todas as actividades, todavia, como nos refere Maria José Ferro
primeiro nas ilhas e depois no Brasil. Tal diáspora fez-se de acordo com os vectores da economia Tavares, “a actividade mercantil e a ocupação principal”. E parecem ter uma predilecção especial
atlântica pelo que deixavam atrás um rasto evidente na sua rede de negócios. O açúcar foi sem pelos negócios baseados no açúcar. Pelo menos é a opinião de José Gonçalves Salvado122, que é
dúvida um dos principais móbeis da actividade, quer nas ilhas, quer no Brasil. O relacionamento peremptório em afirmar que “os hebreus sefarditas aparecem identificados com as actividades li-
dos espaços com os portos nórdicos conduziu a uma maior permeabilidade às ideias protestantes, gadas ao açúcar primeiro nas ilhas adjacentes a Portugal e depois nas demais possessões”.
o que gerou inúmeras cuidados por parte do clero e do Santo Ofício. A incidência do comércio da
118. MELLO, José António Gonsalves de, Gente da nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco, Recife, 1989; RIBEMBOIM,
José Alexandre, Senhores de Engenho judeus em Pernambuco colonial 1542-1654, Recife, 1995; SALVADOR, José Gonçalves,
Os Cristãos-Novos. Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro (1530-1680), S. Paulo, 1976.
114. Cristóbal Colon. Textos y documentos completos, prólogo y notas de Consuelo Varela, Madrid, 1984, pp. 310 e 363.
119. Para a Madeira não existe estudo completo sobre a inquisição como é o caso de Paulo Braga, A Inquisição nos Açores, P.D.,
115. A Bibliografia é extensa, apenas destacamos os textos de Maria José Ferro Tavares. Vide Bibliografia no final.
1997.
116. cf. José G. Salvador, Os Cristãos-novos e o comércio no Atlântico meridional, S. Paulo, 1978, 149; António José Saraiva,
120. AHM, Vol. XV, 1972, 14-15, 3 de Agosto de 1461.
Inquisição e Cristãos Novos, Lisboa, 1994, 134-135. 121. Os cristãos novos e o comércio Atlântico Meridional, S. Paulo, 1978, 246.
117. Vide Maria José Ferro Tavares, os judeus na época dos descobrimentos, Lisboa, 1995.
122. Os magnatas do Tráfico Negreiro, S. P., 1981, 87.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

A estratégia dos judeus para o domínio do mercado açucareiro do espaço atlântico passa por A Madeira assumiu um papel fundamental na expansão do açúcar
uma estreita aliança com os mercadores flamengos e italianos nomeadamente os genoveses, denun- no espaço Atlântico e na definição das principais rotas e mercados do
ciada nas Cortes de 1471-72, mas continuou a progredir nos decénios seguintes. No caso do comér- produto. O ensaio da cultura na ilha provou as elevadas possibili-
cio do açúcar da Madeira é comum encontrar-se esta forma de actuação. Assim, quando o comér- dades económicas no novo espaço, fruindo de terrenos férteis e de
cio estava sujeito ao monopólio da Coroa, surgem aliados aos Leme, Lomellini e Marchione. No novas condições, como o recurso massivo à escravatura, que propicia-
caso do monopólio do comércio do açúcar com a Flandres foi uma sociedade entre os Leme e ram a produção e comércio em larga escala. Foi na Madeira que o açú-
Abravanel que o controlou. Já para as cidades italianas tivemos Moisés Latam e Guedelha car iniciou uma nova fase de fulgor que animou a economia atlântica.
Palaçam, associados de B. Marchione. Os madeirenses podem ser com propriedade definidos como os
De acordo com o livro de estimos do açúcar do Funchal em 1494123 é evidente a presença de arautos da expansão atlântica, mas foram os genoveses e venezianos
judeus, como Isaac Abeacar, Moisés Benagaçam e David de Negro nas transacções açucareiras, na que nos legaram o mercado. Juntam-se os judeus, que fugindo da
Portão dos Varadouros. ilha através de procuradores italianos como era o caso de Dinis Sernige, Lucas César, Sisto Inquisição acompanham o processo de avanço da cultura para o Sul e
Fotografia Perestrellos.1900
Lomellini. Segundo V. Rau os judeus junto com outros estrangeiros, aqui os genoveses dominavam Ocidente.
em 1494 as transacções açucareiras com 11.373 arrobas, o equivalente a 64% do total em causa124.
Esta posição não está longe da realidade e da posterior centúria, uma vez que os dados apurados
entre 1490 e 1550 apontam de novo para a esmagadora presença dos mercadores italianos com 80% O AÇÚCAR MADEIRENSE NOS SÉCULOS XVIII A XX
das operações comerciais125. Não obstante ser visível múltiplas operações de judeus e cristãos novos
no Funchal, apenas foi possível identificar os seguintes mercadores com este rótulo: No decurso do século XVIII a Madeira manteve-se como mercado
importador do açúcar brasileiro. Os hábitos ancestrais de consumo e
MERCADOR DATAS Açúcar arrobas Obs. existência de algumas industrias de conservas e casquinha
Vicente Afonso 1569-91
implicaram o movimento de importação, numa altura em que a ilha
Fernão Álvares 1555-66 211 Natural de Olivença
Luís Álvares 1591 vizinho de Santa Cruz
havia deixado de produzir. Por força disto as relações comerciais com
Francisco Fernandes Cea 1591 Loja Rua dos Mercadores o Brasil assumem particular significado, ainda que condicionadas
Gaspar Fernandes 1509-94 240 pelo politica de monopólio. A partir da Baia, Rio de Janeiro, ou
Manuel Gonçalves 1554-1570 Natural de Guimarães Recife chegava o açúcar, farinha de pau e mel127. Dona Guiomar de Sá
Gaspar Lopes Homem 1560-02 Natural de Ponte Lima assumiu aqui um papel destacado na segunda metade do século
Niculau Nunes 1591 XVIII128. À sua conta entraram 2058 arrobas de açúcar branco e 438
Álvaro Nunes 1594-617 de mascavado, com origem no Rio de Janeiro ou em Pernambuco.
António Pereira 1530-86 Natural de Braga, feitor da alfândega e rendeiro Mesmo depois de reabilitada a cultura da cana continuou a impor-
Diogo Lopes Pereira 1585-94 Vizinho de Nossa Senhora do Calhau
tar-se açúcar e nomeadamente o melaço, que depois tanto podia ser
Diogo Rodrigues, o velho 157,5
Duarte Rodrigues 1509-94 158
transformado em açúcar ou álcool para adubar os vinhos. A entrada do melaço estava permitida Portão dos Varadouros.

Manuel Rodrigues 1594 desde 1858. Com o regímen sacarino em 1895 foi uma das formas de compensação às fábricas Gravura de Frank Dillon.1850.

Francisco Roiz Tavira 1576-626 matriculadas, pela compra da cana a preço elevado e da permissão de entrada do álcool dos Açores
João Roiz Tavira 1568-626 e continente. Até 1904 temos informação do registo de 7 fábricas, mas da de W. Hinton assume uma
Rodrigo de Veiga 1594 Natural da ilha residente em Lisboa posição hegemónica com 50% do rateio do melaço a importar de acordo com o volume de cana
Francisco Roiz Vitória126 1591 adquirida. A fábrica do Torreão importou melaço de diversas proveniências, nomeadamente de
Hamburgo, Demerara, Benguela, para fabrico de álcool.
Os dados da importação do melaço revelam um incremento na década de oitenta e nos
primeiros anos do século XX.
123. Publ. V. Rau, O açúcar na Madeira, Funchal, 1962.
124. Ob. cit., p. 24 127. João José Abreu de Sousa, O Movimento do Porto do Funchal e a conjuntura da Madeira de 1727 a 1810. Alguns aspectos,
125. O Comércio Inter-Insular, Funchal, 1987, 130. Funchal, 1989, pp.135-172
126. é o único com o designativo de judeus, os demais são cristãos-novos. 128. Bernardete Barros, Dona Guiomar de Sá Vilhena. Uma mulher do Século XVIII, Funchal, 2001,pp.123-127

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Ruinas do Engenho do Torreão .2002 Não obstante desde 1853 termos os primeiros ensaios da produção de açúcar só passados dez
anos temos notícia das primeiras exportações para o continente e Açores, todavia representava uma
percentagem reduzida. Em 1869 temos informação que o iate português Ligeiro carregou açúcar
na Ponta de Sol com destino a Lisboa129. Além disso sabemos ainda que os métodos usados tor-
navam o produto muito dispendioso e pouco competitivo, pelo que a persistência da produção só
foi conseguida mediante medidas proteccionistas. Desta forma o número de fábricas foi reduzido e
acabou por ficar centralizado no engenho do Hinton. Até à primeira Guerra Mundial a produção
foi em crescendo mas sem alcançar as mil e quinhentas toneladas.
A entrada do açúcar madeirense estava isenta de direitos e só para o período de 1870 a 1876 se
cobrou 25% do que se lançava sobre o demais açúcar. A suspensão por cinco anos, sendo depois
novamente prorrogada por outros cinco anos, acontece por intervenção dos deputados madeiren-
ses, que reclamavam a abolição da lei de 27 de Dezembro de 1870130. A de 1903 confirma as regalias,
estabelecendo que o açúcar da ilha chegava ao continente isento de direitos. Tais condições favore-
ceram a entrada do açúcar madeirense no mercado nacional, situação que se alterou em 1926, pas-
sando o açúcar e melaço a serem considerados estrangeiros para efeitos fiscais131. Mesmo assim com
tantas regalias os madeirenses tinham dificuldade em assegurar a venda do seu açúcar no merca-
do continental, nomeadamente a partir da década de oitenta marcada por uma tendência muito
forte de baixa de preço no mercado mundial. Este conjunto de condições fez com que a principal
aposta dos engenhos madeirenses fosse para o fabrico de álcool e aguardente.
A informação disponível sobre o comércio de açúcar com o reino é escassa, permitindo elucidar
sobre a situação. O período que antecede a guerra foi o momento mais significativo. No final da
centúria anterior o movimento ascendente foi entravado pela doença em 1882.
Anos Açúcar Anos Açúcar
em toneladas em toneladas
1863 110 1908 720
Ano Melaço Ano Melaço 1867 159 1909 1.650
em toneladas em toneladas 1868 252 1910 1.869
1884 365 1900 1.477 1869 322 1911 2.456
1885 767 1901 1.116 1870 250 1912 3.324
1886 1.424 1902 999 1871 6 1913 3.467
1887 1.699 1903 908 1907 723 1914 3.922
1888 1.038 1904 2.311
1889 1.425 1905 2.299
1890 1.356 1906 777
1891 1.949 1907 395
1892 596 1908 109
1893 65 1909 198
1897 962 1910 637 129. ARM, Alfândega do Funchal, livro 164, fl.1971vº.
1898 1.469 1911 362 130. Pauta Geral das Alfandegas do Continente de Portugal e Ilhas Adjacentes. Nova edição official contendo as alterações decre-
1899 1.539 1913 0,6 tadas até Julho de 1882, Lisboa, 1882, pp.319-320; Discurso pronunciado em 20 de Março de 1876 na sessão de abertura da
Eschola Central…, Funchal, 1876, p.76
131. Ordens de Serviço da Direcção da Alfândega do Funchal-1926, Funchal, 1926, p.26

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

A fábrica do Torreão apresentava um valor significativo das exportações, como se poderá veri- A Madeira, ao mesmo tempo que exportava açúcar para o continente e Açores, também o impor-
ficar dos dados conhecidos para o período de 1866 a 1918132: tava de Angola e Moçambique, como se poderá verificar pelos dados disponíveis para 1878 a 1909.
A situação acontece porque havia sido atribuído o privilégio de importação de 550.000 por ano
ANOS MADEIRA Metrópole Açores ANOS MADEIRA Metrópole Açores
Consumo Consumo
em Kgs (em Kgs) (em Kgs) em Kgs (em Kgs) (em Kgs)
Anos Açúcar em kgs Anos Açúcar em kgs Anos Açúcar em kgs
866 90.000 1898 3.225
1878 77.687 1891 577.843 1904 547.467
1867 61.743 1899 2.925
1879 28.766 1892 117.368 1905 223.810
1868 168.183 1900 4.220
1880 14.423 1893 288.909 1906 87.985
1869 165.469 1901 33.900
1881 17.100 1894 342.989 1907 53.337
1870 14.960 1902 25.050
1882 12.635 1895 333.686 1908 31.767
1871 152.493 1903 4.800
1883 7.678 1896 113.033 1909 26.164
1872 203.650 1904 685.000
1884 32.566 1897 154.658 1911 369.996
1873 78.750 1905 902.000
1885 14.993 1898 200.571 1912 728.527
1876 78.750 1906 896.000
1886 1.665 1899 250.571 1913 541.486
1877 133.400 900 1907 1.004.000 722.903
1887 107.058 1900 220.774 1914 558.481
1878 202.500 4.815 1908 1.099.000 720.270
1888 334.171 1901 116.679 1915 549.985
1879 459.594 9.885 1909 1.135.000 1.650.670
1889 534.953 1902 187.026
1880 346.752 66.140 1910 1.029.000 1.868.050
1890 629.090 1903 560.735
1881 339.119 81.220 1911 1.228.000 2.456.850
1882 316.386 114.915 1912 1.278.000 3.368.550
1883 290.161 146.475 1913 1.304.000 3.467.830
O regime político estabelecido a partir de 1926 confirmou a hegemonia da fábrica Hinton,
1884 153.151 73.035 1914 1.290.000 3.922.900 dando-lhe a estabilidade necessária para o controle do mercado e garantir o lucro que há tanto
1885 79.537 47.595 1915 1.33.220 4.176.644 tempo reclamava. A fábrica insistiu sempre junto das autoridades nas elevadas perdas da safra,
1886 3.045 1916 1.656.310 3.713.000 ameaçando por diversas vezes encerrar as portas. Em 1969 a situação era crítica. O constante
1895 285 1917 1.377.599 2.381.000 aumento da mão-de-obra e a perda de qualidade da cana reforçou a ameaça, de que resultou o com-
1896 51.514 1918 1.900.000 627.000 promisso por parte do Estado de os compensar133. A situação perdurou até que a mudança de
1897 13.470 regime e a nova realidade político-económica torno insustentável a situação. A fábrica do Torreão,
perdidas as regalias monopolistas encerrou as portas e a ilha deixou de produzir açúcar, passando
a uma situação de dependência do mercado externo, nomeadamente das refinarias do continente.

133. De acordo com Relatório sobre as Industrias de Açúcar e Álcool da Madeira, Administração–Geral do Álcool, Lisboa, 1972.
132. Diplomas Principaes que interessam ao Regímen Saccharino da Madeira, sd., sl. As perdas do Hinton em 1971 foram estimadas em 5.125.000$00.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Engenho do Hinton. 2002


A minha opinião sobre a interpretação da lei de 24 de Setembro 1903 com
relação ao fabrico do assucar de melaço importado e à exportação do assucar de
canna da Madeira para o continente do reino.

No artº.5º é permittido o fabrico do assucar de melaço importado livre de todo


e qualquer imposto.
No artº. 6º permitte a exportação do assucar de canna da Madeira para o
Continente do reino livre de direitos.
O § único diz, que da quantidade do assucar de canna da Madeira e com
relação à sua entrada livre de direitos no reino, será deduzida a quantidade de
assucar de mellaço importado que for entregue ao consummo no archipelago, sem
dizer se essa deducção é feita na alfandega de destino ou se é deduzida pela fis-
calisação da fabrica determinando que só seja exportado livre de direitos o assucar
de canna da Madeira depois dessa deducção(o que me parece mais coherente).
Se quisermos interpretar a lei de forma a que o assucar de canna da Madeira
quando exportado para o continente seja deduzido o assucar do melaço, na alfan-
dega destinatária, é o mesmo que dizer que o assucar de melaço pagará direitos
como estrangeiro, quando pelo excesso de produção do assucar de canna da
Madeira, nos virmos obrigados a exportalo para o Continente, parecendo neste
caso que a lei limita a producção do assucar de canna, quando o espírito do legis-
lador é exactamente o contrario, foi lemitar a producção do assucar do melaço
para que seja consumido unicamente na Madeira ou no archipelago e em quanti-
dade não superior a 50% do assucar da canna, e serem essas as compensações que
a lei dá ao fabricante matriculado para o pagamento elevado do preço da canna e
da aguardente da mesma. Quanto mais comprar de canna e aguardente, meior
deve ser a compensação o que se não dá interpretando doutra maneira.
O artº 7º diz que, quando a quantidade de assucar importado para refinar e o
assucar de canna da Madeira for em quantidade egual ao do assucar do melaço
importado que for entregue ao consummo no archipelago e quando exportado,
pagará nas alfandegas destinatárias como se fosse estrangeiro.
É isto o que me parece a melhor interpretação à lei, visto ella ser feita para pro-
teger a agricultura, dando compensações às fabricas matriculadas pela obrigação
da compra de canna e aguardente, desenvolvendo a agricultura, e nunca limitan-
do-a, e não é quando essa agricultura chegou ao seu auge e que as fabricas são obri-
gadas a comprar maior quantidade de canna e aguardente, que se lhe deve
diminuir ou cortar por completo essas compensações.
Funchal 2 de Janeiro 1909
João Higino Ferraz

Arquivo de João Higino Ferraz, Copiador de cartas.1905-1913, fls-31-33

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CAPÍTULO 6

AÇÚCAR
e património
Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Sé do Funchal. Gravura o século XIX

AÇÚCAR E PATRIMÓNIO

O Funchal definiu-se no percurso histórico da Madeira como uma cidade portuária1. Desde o
início do assentamento europeu a dominância de uma economia de exportação estabeleceu deter-
minadas funcionalidades económicas que pautaram o ritmo de vida e evolução urbanística. Por
outro lado a História económica da ilha assentou na dependência externa e numa forte influência
do exterior. Acresce, ainda, que a Madeira esteve sujeita a diversos ciclos económicos (e não pro-
dutivos de monocultura como erradamente se pretende afirmar) que pautaram o percurso e tive-
ram reflexos na vida de cidade. A dominância de culturas de exportação provocou momentos de
prosperidade a que se seguiram inevitavelmente outros de crise. A elevada acumulação de capital
no primeiro momento provocou o “boom” da construção e valorização urbanística, mas os momen-
tos de dificuldade acabaram, muitas vezes, por apagar a memória. E, finalmente, nova época de
prosperidade económica conduzirá a profundas alterações que são a imagem da nova realidade, de
opulência. Os escombros do passado desaparecem da memória colectiva para dar lugar à nova situ-
ação. O Funchal por tudo isto foi uma cidade em permanente mutação e por isso mesmo será difí-
cil de encontrar na malha urbana núcleos que sejam testemunho de uma paragem no tempo.
Com uma economia em permanente mudança é difícil encontrar no Funchal a sobrevivência de
1. O tema das cidades portuárias tem merecido a atenção da Historiografia nos últimos anos. Cf. A. Guimerá e Dolores Romero,
Puertos y Sistemas Portuarios (siglos XVI-XX), Madrid, 1996; F. Broeze, Bridges of the Sea. Port Cities of Asia from the 16th-
20th centuries, Honolulu, 1989; F. W. Knight, Atlantic Port Cities. Economy, culture and Society in the Atlantic World, 1650-
1850, Knosville, 1991

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

uma cidade de uma determinada época, mas apenas os vestígios mais destacados dos momentos de Funchal hoje

prosperidade. Tudo isto porque o percurso histórico de cidade é o de uma urbe portuária. Foi a par-
tir do porto que se desenvolveu. E o facto de ser a porta aberta ao exterior conduziu a que per-
manecessem alguns rasgos característicos, como o provam as torres-avista-navios e a forma con-
centrada de valorização do núcleo urbano em torno da alfândega e cabrestante. Aqui situavam-se
as lojas e granéis de trigo. As torres altaneiras não são apenas apanágio da arquitectura madeirense,
pois vamos encontra-las noutras cidades portuárias do Mediterrâneo com é o caso de Cádiz,
Génova e surgem depois em Recife, S. Luís do Maranhão. Tenha-se em conta que a Casa da
Misericórdia é referida por Frutuoso pela função portuária: “...curando muitos enfermos e reme-
diando muitos pobres e necessitados, não somente da mesma ilha, mas que vêm de fora, de diver-
Mapa do Funchal de Mateus Fernandes,cerca de 1570. sas partes e navegações, ter a ela, que é rica e abastada, e piedosa escala e refúgio de todos.”2
Entre meados do século XV e da centúria seguinte o açúcar permitiu que se traçasse os limites
da nova cidade e as diversas funcionalidades do espaço. As primitivas casas de palha deram lugar
às de telha, aqui levantadas de forma imponente. E as ruas de terra batida começam a ser cal-
cetadas. A concorrência do açúcar de novos mercados produtores acabou por estagnar a economia
açucareira. E só a partir da segunda metade do século XVII o vinho assumiu o papel substitutivo,
mantendo-se em alta até princípios do século XIX. Daqui resultará um movimento de renovação da
urbe adequando-a às novas funcionalidades. As habitações subiram em número de pisos, deixando
o andar térreo de ser o espaço privilegiado de contacto para se transformar em loja de vinhos. A
crise prolongada do vinho no decurso de século XIX conduziu à afirmação de novas actividades
industriais com uma aposta nos artefactos, obra de vimes e bordados. Mas a crise dos anos trinta
e guerra fizeram da actividade um momento fugaz. Finalmente a partir dos anos sessenta torna-se
visível a transformação da cidade de acordo com as novas funcionalidades ditadas pelo turismo. A
face visível da nova realidade está na construção de hotéis e serviços de apoio
O recinto urbano era muito reduzido sendo envolvido por uma periferia rural. A primeira re-
Mapa do Funchal de Capt. Skinner 1775.
presentação disso está no mapa de Mateus Fernandes (c. 1570) e na descrição de Gaspar Frutuoso
(c. 1590). Ao longo da Ribeira de Santa Luzia, a mais importante em termos económicos da cidade ações da urbe. Em 1803, por força da aluvião pensou-se em mudar a cidade para o espaço entre o
estavam vários engenhos de açúcar. O primeiro de Zenobio Acioli estava situado no espaço envol- alto de Santa Catarina e o Ribeiro Seco, mas o projecto não avanço pelo que se preferiu apostar em
vente do actual Bazar do Povo, um pouco mais acima tínhamos outros três engenhos (aqui só são alterações no casco urbano de modo a evitar efeitos catastróficos das novas aluviões.
referenciados os das viúva de Duarte Mendes e de D. António de Aguiar). Nos engenhos de
Zenobio Acioli e da viúva nota-se uma arquitectura funcional definida pela actividade económica. AS ETAPAS - DE POVOADO A CIDADE.
Assim, junto ao engenho erguem-se os aposentos do proprietário. Senão, vejamos o que diz Gaspar
Frutuoso do primeiro: “em sumptuosas casas dentro em uma cerca bem amurada, onde tem um O Funchal, qual Fénix renascida, emergiu das cinzas do funcho que cobriam o amplo vale. Do
engenho de açúcar e casas de purgar açúcar.”3 Já no decurso do século XVIII a cidade perdeu os espaço ermo, apenas coberto de funcho, e ao que parece nunca maculado pelo homem, o português
rasgos de ruralidade e o recinto urbano desenvolve-se no apertado espaço entre as Ribeiras de S. fez erguer uma vila e depois fez uma rica cidade e sede de bispado. A viragem radical é traçada de
João e Santa Maria. A periferia avança até à Levada de Santa Luzia onde surgem as primeiras quin- modo ímpar por Gaspar Frutuoso. O retrato inicial, definido de acordo com o testemunho coevo
tas. É a imagem que nos transmite o plano do capitão Skinner (1775). A situação não se afasta da de Francisco Alcoforado, é bastante significativo em relação à mudança operada: “chegados ao for-
planta de Feliciano de Matos (1804). Foi a partir daqui que se sucederam as mais significativas alter- moso vale, que de lisos e alegres seixos era coberto, sem haver outro género de arvoredo, senão
Mapa do Funchal do Brigadeiro Oudinot. muito funcho que cobria o vale até ao mar por bom espaço (...). E pelo muito funcho que nele achou
lhe pôs o nome de Funchal (...). Chegado João Gonçalves ao Funchal começou a traçar a vila e a
2. Livro Primeiro das Saudades da Terra, p. 117.
3. Livro segundo das Saudades da Terra, P.D., 1979, p. 112.
dar as terras de sesmaria...”4. Entre esta imagem e a testemunhada cerca de cento e setenta anos,

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há uma grande diferença. A fisionomia mudou, o funcho deu lugar ao amplo e rico casario: “ outros como os de Pero Valdavesso, Francisco Salamanca, Tristão Gomes, Tristão Vaz de Cairos.
Grande e nobre cidade do Funchal, ali situada em lugar baixo, em uma terra chá, que do mais se Todos estavam vinculados directamente à produção e comércio do açúcar. No alto, num arrife onde
mostra aos olhos mui soberba e populosa, täobem assombrada nos edifícios como nos moradores, depois se ergueu o convento de Santa Clara, e depois junto ao calhau erguiam-se altaneiros os
não somente dela, mas também de toda a ilha.”5 Do funcho não havia rasto apenas o nome dado aposentos do capitão do Funchal, a primeira figura da vida do lugar. A imponência e fausto quo-
ao chão. Desde então até a actualidade a cidade não morreu, que é como quem diz esteve em per- tidiano dos salões e imediações não deixavam dúvidas a qualquer forasteiro: ali vivia o principal da
manente processo de transformação, tentando aderir às novas directrizes do progresso, expressas cidade. Visto do mar o actual Palácio de S. Lourenço impõe-se na paisagem.
nas formas de ver e praticar as soluções arquitectónicas. Por isso, ao contrário do que se possa pen- O crescimento da vila fez-se até 14856 de uma forma desordenada. Somente a partir de então
sar, a cidade é isso mesmo, o processo de permanente construção, quer agrade ou não ao nosso ficou definido um plano para o novo espaço urbano, que daria origem à nova cidade. D. Manuel
modo actual modo de ver e encarar o património construído. Recorde-se que os antepassados não doou aos funchalenses o chão, conhecido como o Campo do Duque, para aí se erguer uma praça,
se regiam pelos actuais padrões, mas de acordo com as necessidades e ambições. igreja, paços do concelho e alfândega. Tal como se pode concluir das ordens do mesmo os fun-
O Funchal, ao contrário de Pompeia, submergida pelas cinzas e por isso mesmo mantida intac- chalenses tinham plenos poderes para expropriar terrenos e estabelecer o novo traçado. Iniciava-se
ta para gáudio de turistas, foi primeiro uma vila e depois cidade em permanente transformação. então a destruição dos pequenos aglomerados de casas de palha para dar lugar à nova urbanização.
Para isso contribuíram os momentos de fulgor económico da ilha, que proporcionavam o dinheiro Podemos assinalar aqui o primeiro atentado contra o primevo património arquitectónico do
Funchal hoje para que a cidade se embelezasse com ricos palácios e templos religiosos, se defendesse com impo- Funchal. Delimitado por quatro pilares, símbolos dos poderes instituídos, foi traçado o recinto
nentes fortificações. Na falta de dinheiro acumulado, primeiro com o comércio do açúcar e, depois, urbano capaz de levar a vila à condição de cidade (1508) e depois sede de bispado (1518). Entretanto
do vinho a cidade não teria adquirido a monumentalidade e riqueza de elementos decorativos que o aformoseamento da vila continuava. Desde finais do século XV que se recomendava o calceta-
alcançou. Não passaria de um fantasma. Talvez, por isso mesmo, alguns tenham pretendido definir, mento das ruas e a substituição das pontes de madeira por novas de cantaria. Mas estas e outras
ainda que erradamente, dois momentos na vida da cidade: a cidade do açúcar e a cidade do vinho. recomendações concernentes ao aprumo da vila não conquistaram sempre a adesão dos fun-
Acrescente-se que são destes momentos os vestígios mais evidentes da transformação da malha chalenses que se queixavam das dificuldades económicas do comércio do açúcar, quando na reali-
urbana e da arquitectura dos edifícios, de que restam ainda hoje largos testemunhos. dade haviam gasto os haveres em novos aposentos.
No princípio da ocupação definiram-se duas áreas de assentamento: uma ribeirinha para as A cidade, que por comodidade poderemos designar dos mercadores de açúcar, anichou-se junto
gentes ligadas à actividade oficinal e do mar, outra interior onde a nova aristocracia resguardava ao calhau no acanhado espaço entre as ribeiras de Santa Luzia e de S. João. A dos mercadores do
os aposentos e haveres do olhar dos intrusos trazidos pelo mar. Do primeiro momento pouco resta, vinho para além de devorar o espaço avançou encosta acima, definindo o prolongamento das ruas
pois dos escombros fez-se erguer a cidade e a cantaria foi reutilizada. Apenas se poderá assinalar saídas da dos mercadores (hoje da alfandega) e de um cruzamento de novas. Mais uma vez entrou
aqui aquilo que se definiu com a zona velha da cidade, sujeito como é óbvio às inevitáveis alte- num prolongado processo de transformação que lhe atribuiu parte da actual fisionomia. Pensou-se
rações. Depois, a partir do último quartel do século XV, começou a estabelecer-se a ligação entre os até em transferi-la para um lugar mais seguro no alto de Santa Catarina. Mas o destino estava traça-
dois mundos, por intermédio dos mercadores. A partir de uma rua traçada junto ao calhau, entre do pelo que sobre o antigo foram surgindo novos templos para a devoção e novos espaços para
as ribeiras de Santa Luzia e S. João, começou a surgir a vila dos mercadores de açúcar, que fez moradia, servidos de amplos armazéns, tudo isto engalanado com as latadas de vinhas e rematado
avançar os tentáculos para Norte e Leste, abrangendo os primeiros núcleos de povoamento. com uma imponente cortina defensiva. De noite a cidade intra muros poderia dormir descansada.
A arquitectura da nova vila contrasta com a das anteriores, pela funcionalidade e riqueza. As Com o toque do sino de correr os portões haviam-se fechado e, por isso não havia lugar a folgares
casas térreas deram lugar às de sobrado, que passaram a ser cobertas de telha, enquanto o espaço fora de horas.
interior ganhou espaço e maior comodidade, associando-se a ele o armazém. As cantarias negras No tradicional espaço de animação comercial, situado na Rua da Alfandega e circunvizinhas
que delimitavam as entradas e as janelas são trabalhadas por exímios pedreiros. Portas adentro, há surgem outros testemunhos arquitectónicos de igual pujança. Alguns dos palácios do tempo do ful-
espaço para tudo. O quotidiano interioriza-se, surgindo espaços para o negócio, permanência e gor açucareiro foram transformados para as novas funções e enriquecidos com novos elementos
lazer. As sessões da câmara realizaram-se algumas vezes em praça pública, no adro da igreja, até decorativos da época, enquanto as pequenas casas térreas deram lugar à nova arquitectura em voga.
que se construiu os paços do concelho. Assim sucederá em muitas das novas habitações que Mais tarde muitos dos espaços foram enobrecidos pela burguesia comercial inglesa ou americana,
começaram a surgir nas duas décadas finais do século XV, sendo exemplo disso os imponentes que lhe enxerta elementos do classicismo.
aposentos mandados erguer por João Esmeraldo, na rua que foi baptizada com o seu nome, ou com
6. ARM, RGCMF, t. I, fls.85-286vº, 5 de Novembro de 1485, publ. Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVI, 1973, pp.189-190;
4. Relação de Francisco Alcoforado, publ. José Manuel de Castro, Descobrimento da Ilha da Madeira ano de 1420. Epanáfora fls.25-25vº, 3 de Outubro de 1486, publ. Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVI, 1973, pp. 200-201; fls.25vº-26, 20de Novembro
Amorosa…, Lisboa, 1975, p.92 de 1486, publ Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVI, 1973, p.202; fls. 163vº-164vº, 17 de Julho de 1488, Arquivo Histórico da
5. Gaspar Frutuoso, Livro Segundo as Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p.109 Madeira, vol. XVI, 1973, pp.212-213.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

A cana sacarina, ao contrário longe no reino, foi conseguida, por algum tempo, com o açúcar que a coroa arrecadava.
do que sucedeu com os demais A imagem que Gaspar Frutuoso nos transmite do Funchal no século XVI é de uma cidade mer-
produtos e culturas (vinha, gulhada no luxo e opulência. Foi isso que encontraram os corsários franceses em 1566. “…estando
cereais), não se resumiu apenas à a cidade do Funchal no mais alto e próspero estado que podia ser, mui rica de muitos açúcares e
intervenção no processo eco- vinhos, e os moradores prósperos, com muitas alfaias e ricos enxovais, (…) a mais e melhor riqueza
nómico. Ela foi marcada por evi- daquela terra eram jóias e ricas peças de móveis ricos, que mandavam trazer de flandres e outras
dentes especificidades capazes partes pelos contratantes e forasteiros, a troco de mercadoria da terra e de suas novidades, sem esti-
de moldarem a sociedade, que marem, nem sentirem a compra e custo de semelhantes coisas, ainda que custosas; porque casa
dela se serviu para firmar a houve de que levaram alcatifa que custou e valia oitenta mil reis.”9
dimensão económica. A impor- Não temos notícia de que com açúcar se tenha comprado pinturas em Bruges, Gant ou
tância a que o sector comercial Antuérpia, tão pouco as oficinas estariam interessadas na mercadoria, mas sabemos que com muito
lhe atribuía conduziu a que fosse do dinheiro recebido nas cidades pela venda do açúcar se compraram pinturas para oferendas a
uma cultura dominadora de igrejas ou capelas particulares. Muitos dos destacados proprietários de canaviais e engenhos esta-
todo (ou quase todo) o espaço beleceram legados pios e capelas nos templos sede da freguesia ou nas capelas que anexaram à Capela dos Reis Magos.
agrícola disponível, capaz tam- “fazenda”. Note-se que no período de 1509 a 1534 encontramos um grupo significativo de canaviais Estreito da Calheta

bém de estabelecer os contornos vinculados no Funchal, Calheta, Ribeira Brava e Ponta de Sol, que poderá ser sinónimo da existên-
de uma nova realidade social. cia de uma capela10.
Foi precisamente a tendência en-
volvente que levou a Histo- LOCALIDADE PROPRIETÁRIO CAPELAS
riografia a definir o período da Arco da Calheta João Fernandes Andrade
afirmação como o Ciclo do Diogo Fernandes de Andrade
Açúcar. Aqui não estávamos per- Pedro Gonçalves da Câmara
ante uma aplicação da teoria dos Estreito da Calheta Francisco Homem de Gouveia
ciclos económicos, mas pre- Funchal Fernão Favila Capela Nossa Senhora da Ajuda
tendia-se subordinar a tendência Funchal Simão Aciaioli Capela de Nossa Senhora da Natividade
para a afirmação da cultura na R. Socorridos (Funchal) Francisco Betencourt Capela de Nossa Senhora da Vitoria
Retábulo da Capela dos Reis Magos. vida económica e social com este conceito. A omnipresença da cultura, as múltiplas implicações Ribeira Brava Diogo de Teive
E. Calheta Funchal António Mialheiro Capela de Nossa Senhora da Encarnação
que gerou nos espaços em que foi cultivada levou alguns investigadores a estabelecer um novo
modelo de análise: os ciclos de produção assentes na monocultura.
Por outro lado temos algumas informações avulsas revelam-nos a compra de obras de arte por
O açúcar, acima de tudo, era um complemento fundamental na vida económica da ilha. Sucedeu
proprietários de canaviais. Zenóbio Acioli, um dos destacados proprietários do Funchal com enge-
assim até meados do século XVI e, depois, a partir de finais do século XIX, tudo mudou. A riqueza
nho dentro do recinto urbano, construiu às suas custas a capela de Nossa Senhora da Piedade e o
cumulou os proprietários mas também a arraia-miúda, sendo um factor de progresso social. Com
retábulo do Senhor do antigo convento de S. Francisco11. Em Santa Cruz, outro proeminente pro-
ele ergueram-se igrejas - a Sé do Funchal é um exemplo disso -, amplos palácios que se rechearam
prietário, construiu o convento de Nossa Senhora da Piedade, que existiu no espaço do actual aero-
de obras de arte de importação, testemunhos evidentes estão no actual Museu de Arte Sacra. A arte
porto12. Temos ainda outras notícias13.
flamenga na ilha pode muito bem ser considerada um dom do açúcar8. O progresso sócio-económi-
co da ilha, o protagonismo na expansão atlântica — nos descobrimentos e defesa das praças 9. Gaspar Frutuoso, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada,1979, pp.328, 333
africanas — só foi conseguido à custa da elevada riqueza acumulada pelos madeirenses. Todos, sem 10. Cf. Alberto Vieira, O Regime de Propriedade na Madeira. O Caso do Açúcar (1500-1537), in Actas do I Colóquio Internacional
diferença de condição social, fruíram da riqueza. Até a opulência e luxúria da própria coroa, lá de História da Madeira.1986, Funchal, DRAC, 1989, pp.539-611.
11. ARM, JRC, cx.148, no.1, 23 de Abril de 1598, testamento de Zenobio Acioli.
12. Jorge Valdemar Guerra, O Convento de Nossa Senhora da Piedade de Santa Cruz. Subsídios para a sua História, Islenha, 20
(1997), 125-156.
8. Cf. Museu de Arte Sacra do Funchal. Arte Flamenga, Lisboa, 1997; David Ferreira Gouveia, O Açúcar e a Economia 13. David Ferreira Gouveia, O Açúcar e a Economia Madeirense (1420-1550). Consumo de Excedentes, in Islenha, nº.8 (1991),
Madeirense (1420-1550). Consumo de Excedentes, in Islenha, nº.8 (1991), pp.11-22 pp.17-18

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

capitães não foram capazes de acompanhar o ritmo dos funchalenses.


Para muitos a Sé é o emblema da cidade do Funchal. O templo foi mandado construir por ordem
de D. Manuel, iniciando-se as obras em 149315. Erguido para ser a principal paróquia da vila,
acabou por ser a sede do novo bispado, criado em 1514 por Leão X a pedido de D. Manuel. A
sagração ocorreu em 18 de Outubro de 151716. O monarca demonstrou particular predilecção pelo
templo cumulando-o de ofertas: a pia baptismal, o púlpito, a cruz processional. Aqui misturam-se
vários estilos. São evidentes os traços do manuelino, na fachada, abside, no púlpito e pia baptismal.
O barroco está patente nas capelas laterais, como sucede na do Santíssimo Sacramento. Do con-
junto chama-se a atenção para o cadeiral apresenta-se com duas ordens de cadeiras, ricamente tra-
balhadas. Em madeira dourada sobressaem esculturas com cenas
bíblicas e do quotidiano madeirense do século XVI. Borracheiros
e escravos convivem com santos e outras figuras em poses consi-
deradas pouco dignas para o local onde se encontram17.
A primitiva Alfândega do Funchal foi criada em 1477 no Largo
do Pelourinho, por ordem da Infanta D. Beatriz, como forma de
controlar a arrecadação dos direitos de entrada e saída de mer-
cadorias. Não sabemos onde funcionou no princípio, pois só teve
edifício próprio a partir do século XVI, por plano de D. Manuel.
Aí esteve até 1962, altura em que mudou para modernas e novas
instalações. O edifício antigo ressuscitou das ruínas com o proces-
so autonómico, sendo adaptado para sede da actual Assembleia
Legislativa Regional da Madeira, inaugurada em 4 de Dezembro
de 1987. O projecto é da autoria do arquitecto Chorão Ramalho.
Salvou-se o que ainda restava da época manuelina. As salas dos
Contos e do Despacho são os melhores testemunhos da época. Da
DATA Proprietário Obra de arte IGREJA/CAPELA
época da primitiva construção, são visíveis, o tecto de alfarge18,
1491 D. Maria de Bethencourt Retábulo Capela dos Mártires/
arcarias góticas com capitéis das colunas e misulas com decoração
convento de S. Francisco do Funchal de elementos vegetais e figuras humanas, o portal armoriado da
1511 Nuno Fernandes Cardoso Retábulo da invocação de N. S. Igreja de S. João Latrão fachada norte e restos de arcarias góticas no interior.
da Misericórdia e S. João Baptista A ourivesaria e pintura da região do século XVI é uma dádiva do açúcar. Com o produto os
1524 Isabel Lopes Retábulo Igreja Madalena do Mar madeirenses conseguiram elevada riqueza que ostentaram nas capelas privadas, ou em ofertas aos ora- Antiga Alfândega do Funchal, hoje
gos de devoção. Igual comportamento teve a coroa para com os madeirenses19. D. Manuel foi um dos Assembleia Legislativa Regional
1536 “Moças do Caniço” Retábulo do altar mor Capela da Madre de Deus
que cumulou alguns templos da ilha com tesouros. A cruz processional da Sé do Funchal é um deles.
Sé do Funchal O Funchal foi, nos séculos XV e XVI, o principal centro do arquipélago. Desde os primórdios
da ocupação da ilha que o lugar como vila e desde 150814 como cidade foi o centro de divergência 15 . Fernando Augusto da Silva, A Sé Catedral do Funchal. Breve Notícia Histórica e Descritiva, Funchal, 1936; Manuel Juvenal
Pita Ferreira, A Sé do Funchal, Funchal, 1963; António Aragão, Para a História do Funchal, Funchal, 1987, pp.99-170
e convergência dos interesses dos madeirenses. À volta anichou-se um vasto hinterland agrícola, 16 . Rui Carita, A Igreja da Madeira nos séculos XV e XVI. O Documento de Sagração da Sé Catedral do Funchal, in I Colóquio
ligado por terra e mar. O povoado, traçado por João Gonçalves Zarco, começou por ser a sede da Internacional de História da Madeira, Funchal, 1990.
capitania do mesmo nome mas, a riqueza do vasto hinterland projectou-o para ser a primeira e 17. Emanuel Ribeiro, O Cadeirado da Sé do Funchal, Porto, 1930; Luíza Clode, O Cadeirado da Sé do Funchal, in DAHM, vol.
V, nº.30, 1960, pp.33-40
única cidade e porto de ligação ao mundo. Machico perdeu a batalha da afirmação, porque os 18 . Rui Carita, Os Tectos de Alfarge da Madeira. Século XVI, II Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1990
19. Manuel Cayola Zagallo, Algumas Palavras sobre o Património Artístico da Ilha da Madeira, AHM, 1934-49,vls. IV-VII, pp.26-
35, 85-100, 5-18, 129-141, 17-30, 129-138; Luiza Clode, A Arte Flamenga na Ilha da Madeira, in História das Ilhas Atlânticas,
14. ARM, RGCMF, t. I, fls.310-310vº, 22 de Agosto de 1508, publ. Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVIII, 1974, pp.514-515 vol. II, Funchal, 1997, pp.9-18; idem, Pintura Flamenga na ilha da Madeira, Atlântico, 1985, nº.3, pp.210-217.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Museu de
Arte Sacra

S. Pedro, S. Paulo e Stº


André, Séc. XVI. Proveniente
da Igreja de S.Pedro, Funchal

O museu de Arte Sacra do Funchal é hoje o principal repositório do património artístico lega-
do pelo açúcar. Encontra-se instalado no edifício construído por ordem de D. Luís de Figueiredo
de Lemos (1586-1608). São coevos a arcaria que dá para a Praça do Município e a capela. A Capela
anexa é dedicada a S. Luís de Tolosa, onde ficou sepultado o bispo, depois trasladado para a Sé. A
Capela apresenta um belo pórtico da cantaria negra. O Bispo D. José de Sousa de Castelo Branco
(1698-1721) anexou-lhe o Seminário. Com o terramoto de 1748 tornou-se necessária uma nova cons-
trução que chegou à actualidade. A República em 1910 atribuiu-lhe novas funções, pois aí funcio-
nou o liceu até 1942. A construção do novo liceu em 1950 levou à sua recuperação pela diocese que
aí fez instalar o Museu Diocesano de Arte Sacra20.
No conjunto do património construído destaca-se ainda a igreja e convento de Santa Clara. Na
igreja merecem a atenção do visitante, o coro, os azulejos hispano-mouriscos do coro de cima e o
S. Filipe, S. Tiago e os doadores. Séc. XVI.
Proveniente da Igreja do Socorro, Funchal. túmulo de Martim Mendes de Vasconcelos (impropriamente atribuído a João Gonçalves Zarco),

20. Manuel Cayolla Zagallo, Museu Diocesano de Arte Sacra do Funchal, in DAHM, 1956, vol. IV, nº.21, pp.25-28; Museu de Arte
Sacra do Funchal. Arte Flamenga, Funchal, 1997; João Lizardo, Algumas Notas sobre Pintura Flamenga e seus reflexos no
Museu de Arte Sacra do Funchal, Islenha, 26, 2000, pp.5-18; idem, Uma obra Desconhecida de Ian Gossaert Mabuse no Museu
de Arte Sacra do Funchal, Islenha, 1993, nº.13, pp41-46. Tríptico da Encarnação. Séc. XVI. Proveniente da Igreja de Nª. Srª. da Encarnação, Funchal

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diversificado podendo destacar-se o mobiliário inglês e português, composto por mesas, canapés,
cadeiras , armários e arcas.
Relacionado com o açúcar temos os açucareiros e as peças de mobília, ditas de caixa de açúcar.
Os açucareiros existentes, maioritariamente do século XIX, são de porcelana, casquinha, prata e
marfim21. Os armários e arcas feitos na ilha com madeiras do Brasil, conhecidos de “caixa de açú-
car”, são uma referência obrigatória22. Parte significativa arte significativa do acervo tem origem
nos conventos da cidade (Santa Clara e Mercês). A designação resulta do aproveitamento das
madeiras das caixas que transportavam o açúcar do Brasil até
ao Funchal. Depois generalizou-se a todo o mobiliário em
madeira de vinhático e til23. Um estudo recente, do Instituto
de José de Figueiredo24, sobre as madeiras das diversas peças
de mobiliário do Museu, encontraram-se madeiras do Brasil,
como jequitibá, imbuía, mogno do Brasil, angelim, casta-
nheira, canela, itaúba e tapinhoa. Isto condiz com a situação
das caixas de açúcar do Brasil, que segundo Warren Dean25
eram maioritariamente de Jequitiba e tapinhoa.
Na colecção de escultura merecem referência: a Virgem
com o menino, uma escultura flamenga do século XVI e o
retábulo da Natividade, também de origem flamenga, do sécu-
lo XV. A colecção de ourivesaria é variada, abarcando os
períodos do séc. XVI a XIX. No conjunto destacam-se algu-
mas salvas e o porta paz em prata dourada da igreja de Santa
Cruz. O mesmo poderá ser dito da colecção de porcelana, com
Convento de Santa Clara
especial relevo para a chamada porcelana da “Companhia das
genro de Zargo, falecido em 1493, coroado com uma imponente arcaria gótica. Sob o pavimento da Índias”.
capela mor estão as sepulturas dos três primeiros capitães do Funchal e descendentes. Ainda, no Em Machico a Igreja matriz evidencia-se pela porta lateral
coro de baixo podem ser presenciados um cadeirado e um órgão, que teria sido oferecido pelo rei de dupla arcaria gótica, virada para a praça, onde estão
D. Manuel. O altar-mor apresenta um sacrário em prata do séc. XVII, tendo como fundo um retábu- salientes duas colunas de mármore branco oferecidas por D.
lo de Nossa Senhora da Conceição, pintado no século XX por Alfredo Miguéis. Das capelas do con- Manuel. A fachada apresenta um portal em ogiva e uma Armários e arcas do Museu Quinta das Cruzes
vento merece a nossa atenção a de S. Domingos que ostenta um conjunto de azulejos flamengos do rosácea manuelina. A primeira igreja data do século XV e foi construída por iniciativa do capitão,
séc. XVI, ao que consta são únicos no país. Tristão Vaz. Da primitiva igreja pouco resta e o que se apresenta hoje ao visitante é fruto de diver-
Próximo ao Convento de Santa Clara está o Museu da Quinta das Cruzes, aberto ao público na sas transformações mantendo-se no entanto, o traçado primitivo. O campanário desgastou-se com
década de cinquenta com base nas colecções de César Gomes, a que se juntou em 1964 a de João o tempo e em 1844 foi necessário demoli-lo para se implantar um novo, só acabado em 1853.
Wetzler. O espaço engloba a casa de morada, a capela de Nossa Senhora da Piedade(1692) e um No interior, chama a atenção do visitante as capelas dos Reis Magos (hoje do Santíssimo
amplo parque ajardinado. O local tem grande significado na História da ilha, pois terá sido aqui Sacramento) e de S. João Baptista com arco e abóbada ogival. A primeira capela, fundada por D.
que João Gonçalves Zarco fez erguer a casa.
O edifício insere-se numa típica quinta madeirense servida de um majestoso jardim, onde a flora
de diversa origem convive com algumas pedras lavradas oriundas de igrejas e outros edifícios que 21 .O acervo do Museu dispõe de 5 em prata, 1 em casquinha, 2 em prata e marfim e 8 em prata.
foram demolidos, constituído por pedras de armas, lápides comemorativas e outros elementos 22. Estão contabilizados 15 armários e 2 arcas.
23. João Maria Henriques, A Caixa de Açúcar, DAHM, 1950, vol. I, nº.4, pp.28-29
arquitectónicos. Aqui estão reunidos vestígios do antigo Convento de Nossa Senhora da Piedade de 24 .Lilia Esteves, Identificação das Madeiras que Constituem um Núcleo de mobiliário Designado por “Caixas de Açúcar”, Quinta
Santa Cruz, uma janela manuelina em basalto do Hospital velho(1507). O recheio do museu é das Cruzes Museu, Maio de 1999.
25. Warren Dean, A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 1996 Museu da Quinta Das Cruzes

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Branca Teixeira, filha do primeiro capitão, Tristão Vaz, e por


o segundo capitão, Vasco Vaz Teixeira, foi destinada a jazida
dos familiares. O arco ogival é encimado com as armas dos
Teixeiras: “um escudo de azul, partido, tendo na 10 partição
uma ave fénix, de ouro e na 20 partição a cruz, de ouro,
potentea dos Teixeiras e, em diferença nesta 20 partição uma
flor-de-lis, solta”. Finalmente, temos a Capela do Espírito
Santo de Sebastião de Morais, cujas armas são ostentadas no
topo do arco. A capela-mor apresenta-se com um arco em
ogiva perfeita, sendo coroada pela capela-mor com uma estru-
tura de retábulo de cariz maneirista, com nichos para escul-
turas.
A primitiva igreja e Santa Cruz, foi construída no local
onde os primeiros povoadores ergueram uma cruz, por
ordem de João Gonçalves Zarco. O templo que hoje se apre-
senta ao visitante, sob a invocação de S. Salvador é de princí-
pios do século XVI, da responsabilidade de João de Freitas,
fidalgo da casa de D. Manuel e um dos principais proprie-
tários de canaviais do concelho, que obteve por provisão de
1502, a mercê da capela-mor onde ainda se encontra a sepul-
tura e da mulher, Guiomar de Lordelo. O templo abre-se em
3 naves, sendo visível no tecto, nomeadamente na abóbada
do altar-mor, ornamentos manuelinos: a Cruz de Cristo, a
Igreja matriz de Machico esfera armilar e o escudo, que surgem nas capelas laterais de São Tiago e Almas, fundadas respec-
tivamente por João de Morais e Gaspar Pereira de Vasconcelos do Porto Santo. Próximo da matriz
está o edifício da Misericórdia, instituída por testamento de Diogo Vaz em 1505, que teve edifício
próprio só a partir de 1530. LOMBADA DA PONTA DO SOL
Integrado na freguesia está a capela da Madre de Deus no Caniço. A capela foi estabelecida por
Isabel Álvares em 1536 mas as obras de construção do templo terão terminado dez anos depois. A Da Tabua pouco mais de meia légua está a Lombada de João Esmeraldo, de nação genovês,
fachada é dominada por um portal em volta perfeita e uma rosácea simples. Um quadro retabular que chega do mar à serra, de muitas canas de açúcar e tão grossa fazenda, que já se aconteceu
de tábuas pintadas do século XVI domina o interior do templo26. fazer João Esmeraldo vinte mil arrobas de sua lavra cada ano, e tinha como oitenta almas suas
Igreja A Igreja matriz da Ribeira Brava, onde Manuel Álvares foi baptizado e deu os primeiros passos cativas entre mouros, mulatos e mulatas, negros, negras e canários. Foi esta a maior casa da ilha
Matriz de
Santa Cruz no estudo do latim, é de três naves, embora bastante alterada com as remodelações do presente e tem grandes casarias de aposento, e engenho, e casas de purgar, e igreja. E depois do faleci-
século, são ainda visíveis alguns elementos quinhentistas: dois arcos góticos, o púlpito com um anjo mento de João Esmeraldo, ficou tudo a seu filho Cristóvão Esmeraldo, que o mais do tempo
na base e a pia baptismal, ofertada pelo rei D. Manuel. andava na cidade do Funchal sobre uma mula muito formosa, com oito homens detrás de si, qua-
Da primitiva igreja da Ponta de Sol temos apenas, devido às duas reconstruções, a capela do tro de capa e quatro mancebos em corpo, filhos de homens honrados, muito bem tratados, e
lado da epístola, onde se pode ver a sepultura do fundador, falecido em 1486. Como elementos de trazia grande contenda com o Capitão do Funchal sobre quem seria provedor da Alfândega de
maior destaque temos o tecto de alfarge da capela mor e a pia baptismal. A última é peça única de el-rei, que é uma rica coisa de renda de Sua Alteza e ricas casarias. Casou João Esmeraldo na ilha
Capela
da Madre cerâmica existente na ilha, tendo sido ofertada por D. Manuel. com Águeda de Abreu, filha de João Fernandes, senhor da Lombada do Arco.
de Deus.
Caniço
26. Cf. Ana Margarida Araújo, A Capela da Madre de Deus do Caniço, in Islenha, nº.2, 1988, 113-123. (Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p.124)

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Subindo a encosta depara-se-nos


o sítio da Lombada, uma extensão
de terreno que João Gonçalves
Zarco escolheu para o filho-segun-
do Rui Gonçalves da Câmara e que
aforou em 1493 ao flamengo João
Esmeraldo. Aí levantou a casa
solarenga, o engenho para moer a
cana e uma capela da invocação do
Espírito Santo, sagrada em 1508.
Do conjunto definido por Gilberto
Tecto. Igreja de Nª Srª do Loreto
Freire como a trilogia rural, restam
apenas a casa e a capela.
O lugar da Calheta dominou
uma importante área de canaviais,
afirmando-se desde o século XV
como o embarcadouro para o
escoamento do açúcar. Daqui resul-
tou a sua valorização em detrimen-
to do alto - a Estrela - onde João
Gonçalves Zarco havia feito
Tríptico. Descida da Cruz. Proveniente da Igreja da Ribeira Brava
doações de terras importantes aos
Cruz Professional. Portal. Igreja de filhos João Gonçalves da Câmara e
Igreja matriz da Nª Srª do Loreto D. Beatriz. Por isso, foi em 1502 Manuel. A pintura está representada através de dois painéis laterais de um tríptico, invocativos da
Calheta
elevado à categoria de Vila, inte- Virgem da Anunciação e do Anjo, hoje disponíveis no Museu de Arte Sacra.
grando no perímetro os mais No Estreito da Calheta, na primitiva povoação, surgiram algumas capelas vinculadas, sendo de
importantes canaviais, detidos por destacar a dos Reis Magos, construída cerca de 1529 por Francisco Homem de Sousa. Aqui todo o
ilustres calhetenses que singraram deslumbramento está no retábulo da escola flamenga, em madeira de carvalho policromada e
Sacrário na tarefa de revelação do mar oci- dourada, representando a Adoração dos Reis Magos. No Loreto é a célebre capela de Nossa
em ébano
e prata. dental, como foi o caso de João Senhora do Loreto, local de romaria e grande devoção. A capela que esteve integrada num solar
Igreja Afonso do Estreito e Fernão apresenta um alpendre sustentado por colunas de mármore branco de origem sevilhana. No inte-
matriz da
Calheta Domingues do Arco. rior o tecto é de alfarge.
A igreja matriz foi construída no
século XV. Entra-se por um portal
em ogiva e perante nós depara-se a Casa de João Esmeraldo. Ponta do Sol
Vila da
Calheta. única nave coberta de um tecto de
Gravura alfarge, que atinge inegável beleza
do séc.
XIX na capela mor, que é dominada
pelo sacrário em ébano com incrus-
tações de prata. A cruz procession-
Portal. Igreja matriz da Calheta
al do século XVI foi oferta do rei D.

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CAPÍTULO 7

administração
e DIREITOS
Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Alfândega do Funchal(edifício do século XVI), hoje


Assembleia Legislativa Regional da Madeira7

ADMINISTRAÇÃO E DIREITOS
A estrutura institucional régia, aos poucos, ganhou nova dimensão. A forma de administração
periférica estabelecida pela coroa deixou de assentar na existência ou visita ocasional de fun-
cionários, passando à presença instituição. A primeira intervenção aconteceu no domínio da
Fazenda Real. Os funcionários, como o almoxarife (1452), passaram a partir de 14701 a estar su-
bordinados ao contador, sucederam-se as instituições, como a Alfândega e Provedoria, por impe-
rativo de uma maior intervenção e controlo da Fazenda Real. Em 14772 foram criadas alfândegas
em todas as capitanias. O Contador tinha a missão de superintender em tudo aquilo que se rela-
cionava com as finanças e os direitos senhoriais e depois régios, tendo ainda tutela sobre os resí-
duos, órfãos e o concelho.
No século XVI a estrutura ganhou maior dimensão com o cargo de Provedor da Fazenda, que
acumulava as funções de juiz da alfândega, e tinha por missão coordenar o aparelho fiscal. O cargo
em 1580 estava nas mãos do corregedor, com as funções de vedor da fazenda por os capitães que
as exerciam estarem ausentes da ilha.
A Provedoria da Fazenda funcionou até 1775, altura em que foi extinta para dar lugar à Junta
da Real Fazenda, que não resistiu à reforma liberal de 1834. Estas estruturas, primeiro da fazenda
senhorial e depois sob alçada régia, tinham por finalidade administrar os réditos e as imposições
lançadas sobre os produtos da terra, os moradores e actividades. Nas cartas de doação do senhorio
e capitanias estavam definidos alguns benefícios que depois tiveram sistematização nos forais e re-
gimentos.
A coroa está excluída até 1497 da fruição de todos os réditos da Madeira, a única excepção acon-
teceu em 1478 com o pedido extraordinário de empréstimo3. A riqueza estava na mira do Rei, pois
em 1497 quando a ilha passou para o domínio da coroa era clara a motivação: “é uma das princi-
pais e proveitosas coisas que nós, e real coroa de nosso reinos temos para ajudar, e sustento do esta-
do real, e encargos de nossos reinos”4.

1 . ARM, RGCMF, t. I, fls.145vº-146vº., 29 de Abril de 1466, publ. In Arquivo Histórico da Madeira, vol. XV, 1972, pp.49-50
2 . ARM, RGCMF, t. I, fls.231vº-233vº., 29 de Abril de 1466, publ. In Arquivo Histórico da Madeira, vol. XV, 1972, p.81
3 . Fernando Jasmins Pereira, A Participação da Madeira no Pedido de Empréstimo de 1478, in Estudos Sobre História da
Madeira, Funchal, 1991, 297-321
4 . ARM, RGCMF, t. I, fls.272vº-273vº., 27 de Abril de 1497, publ. In Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVII, 1978, pp.363-364.

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A dízima, isto é, um décimo do valor em causa, foi a mais importante imposição lançada no No primeiro registo das receitas do reino e possessões,
princípio da ocupação do arquipélago. Ao senhor, pelo exercício jurisdicional, era devida a dízima datado de 1506, a Madeira surgia com o valor mais ele-
de todo e qualquer rendimento fixo e de tudo aquilo que pudesse merecer qualquer mais valia, isto vado das comparticipações dos novos espaços insulares.
é, o pescado, produtos agrícolas e pecuários, e todos os produtos entrados e saídos da ilha. A Até à década de trinta do século XVI os réditos fiscais
Ordem de Cristo tinha direito à dizima de alguns serviços e produtos, estando neste caso, as lenhas, resultantes da produção e comércio do açúcar foram a
madeiras e pedras. De acordo com as Constituições Sinodais de 1578 era a “parte que Deus para si fonte de financiamento do reino e dos projectos expan-
reservou dos bens que deu ao povo”5 sionistas. Este rendimento em finais do século XV e
A coroa havia estabelecido em 1439, como incentivo às ligações com o reino, a isenção da dízi- princípios da centúria seguinte era superior a cem mil
ma e portagem de todas as mercadorias para aí enviadas6. A situação foi renovada por diversas arrobas, atingindo em 1512 as 144.065 arrobas, o que cor-
vezes e ainda em 1493 era solicitada a regalia que D. Manuel rejeitou7. A medida foi igual para responde a 45.380.475 reais.
D. Manuel todas as ilhas atlânticas e terá funcionado como um incentivo à fixação de colonos nos novos A partir daqui poderá concluir-se que os madeirenses
espaços. foram activos protagonistas da expansão lusíada dos sécu-
Os produtos de maior rentabilidade económica foram os que mereceram maior atenção em termos los XV e XVI emprestando a própria vida e réditos,
de imposições e controle. Estão neste caso o açúcar e o vinho. No caso do açúcar, começou por se one- arrecadados com a safra do açúcar, no financiamento
rar o processo de fabrico cobrando o Infante metade da produção dos que utilizassem as alçapremas e deste projecto e das exorbitâncias e caprichos quotidianos
um terço do que fora laborado em engenhos particulares. A partir de 14678 o valor a cobrar desceu para da Casa Real.
um quarto, situação que permaneceu até 15159, altura em que se quedou em um quinto. O empenhamento do senhorio e coroa no apoio e
A cobrança dos direitos e imposições fazia-se por arrendamento. Isto é, a coroa arrendava a financiamento da cultura resultava não só da importância
arrecadação, individualmente ou a sociedades comerciais, por prazos determinados, recebendo o na economia da ilha, mas também dos elevados réditos
valor correspondente. As sociedades no período de afirmação da economia açucareira foram muito que dele arrecadava com as múltiplas imposições fiscais.
disputadas por importantes sociedades comerciais europeias com sede em Lisboa, donde se desta- A elevada quantia de açúcar, resultante da tributação,
ca a presença de judeus e genoveses. servia para a coroa, no século XVI, custear as despesas do
Como forma de controlar e de prever a receita o senhorio determinou o estimo da produção de monarca, Casa Real, as dívidas aos mercadores
açúcar dos diversos proprietários de canaviais10. Para isso a vereação estabeleciam um rol dos esti- estrangeiros, o soldo dos funcionários do almoxarifado da
madores, isto é, aqueles que deveriam fazer a estimativa da produção de todos os canaviais. ilha, restando, ainda uma soma avultada para o comércio
directo por meio dos feitores em Flandres ou a venda a
Data Estimadores contrato aos mercadores nacionais ou estrangeiros. No período de 1501 a 1537 as despesas con- D. Manuel
1481, Dezembro.01 Nuno Gonçalves tabilizadas rondaram 2,8% (6.760$000), sobrando 476,293 arrobas no valor de 233646$0011.
João Lourenço o novo A importância assumida pela receita terá condicionado a política intervencionista do senhorio e
Tui Gonçalves de Velosa coroa, ao mesmo tempo que contribuiu para um maior empenhamento da estrutura administrati-
Gil Gonçalves va na referida cultura. Se contabilizarmos a documentação oficial no período de 1452 a 1517 con-
Álvaro Dinis stata-se que 20% incidem sobre o açúcar, sendo mais de 75% da pena de D. Manuel, quando Duque
Fernão Anes e Rei, o que demonstra o desmesurado empenhamento do monarca na promoção da cultura e a
situação caótica em que herdou o governo das coisas do açúcar da ilha. A intervenção manuelina
incidiu, preferencialmente, no comércio (32%) e defesa da qualidade do açúcar laborado (10%)12.
5. Constituições Sinodais do bispado do Funchal Feitas & Ordenadas por dom Ieronimo Barreto bispo do dito bispado, A fiscalidade surge assim como uma dominante na actuação das autoridades do reino que por
Lisboa, 1585. meio de diversos regimentos e lembranças definem o quantitativo a lançar e a forma de o arrecadar.
6. Cf Fernando Jasmins Pereira, Estudos Sobre História da Madeira, Funchal, 1991, p.110. Enquanto na alfândega o quantitativo é fixo (dízima de saída), o tributo que onera os produtores é
7. Cf Fernando Jasmins Pereira, Estudos Sobre História da Madeira, Funchal, 1991, p.155
8. ARM, RGCMF, t. I, fls.211vº-213vº, 29 de Abril de 1466, publ. in Arquivo Histórico da Madeira, vol. XV, 1972, pp.26-29
9. Cf Fernando Jasmins Pereira, Estudos Sobre História da Madeira, Funchal, 1991, pp.154-212
10 . O único livro de estimos conhecido foi publicado por RAU, Virgínia e MACEDO, Jorge, O açúcar na Madeira no século XV, 11 . Conforme F. J. Pereira, O açúcar madeirense..., pp. 79-83, ao preço médio de 500 rs. arroba.
Funchal, 1992. 12 . Veja-se documentos in Arquivo Histórico da Madeira, vols. XV-XVIII, 1972-74

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variável de acordo com o desenvolvimento da cultura na ilha. Assim, no início o infante estabele- Para os séculos XVII e XVIII manteve-se a mesma estrutura de arrecadação dos direitos da
cera o pagamento de metade do açúcar laborado nas alçapremas da ilha, que lhe pertenciam e com coroa, mas aqui adaptada à dimensão da cultura. Assim, para cada uma das áreas era provido um
a permissão dos engenhos particulares passaram a pagar uma arroba e meia mensal, enquanto as quintador, uma para cada uma das antigas comarcas, isto é, Funchal, Calheta, Ribeira Brava, Ponta
moendas, a água e tracção animal pagavam 1/2 do açúcar laborado. Em 1461, com o infante D. de Sol e Santa Cruz. Nas primeiras localidades era apoiado por um escrivão. Ambos tinham de
Fernando, uniformiza-se o direito a arrecadar, ficando em apenas 1/3, que de acordo com o regi- soldo um moio de trigo cada ano19. O provimento continuou no século XVII, mesmo com a pro-
mento de 1467 terá uma arrecadação mais eficaz13. A partir daí o açúcar a arrecadar passará a ser dução reduzida ou sem qualquer significado comercial.
1/4 da produção, lançado de acordo com o estimo antecipado feito por dois estimadores eleitos
pelos vereadores. DATA LOCAL QUINTADOR
O agravo manifestado pelos madeirenses em consonância com a conjuntura conturbada de 1646.Setembro.15 Ponta de Sol António Maciel da Fonseca
finais do século XV, forçaram D. Manuel a repensar o sistema de tributação do açúcar. Assim em 1652.Novembro.09
1507 o mesmo solicitou aos madeirenses um estudo sobre a melhor forma de lançar e arrecadar o 1661.Maio.07 Ribeira Brava Manuel Carvalho Valdavesso
mesmo direito. Correspondendo às pretensões dos madeirenses o monarca estipula o lançamento 1654.Maio.23 Ribeira Brava Francisco Vaz de Miranda
de apenas 1/5 da produção, a vigorar desde 1516, e define uma forma adequada de arrecadar com 1654.Abril.30 Calheta Pêro da Silva
o almoxarifado do açúcar e de diversas comarcas da ilha14. 1654.Novembro.10 Calheta Inácio Cabral Catanho
A forma de arrecadação definida em 1467 por D. Fernando mantinha-se em vigor e nela se esta- 1657.Julho.04 Calheta Gaspar de Sousa de Lira
belecia que o açúcar a tributar seria resultado de um estimo feito por dois homens-bons, eleitos 1658.Fevereiro.01 Santa Cruz João de Mendonça Vasconcelos
trienalmente em vereação, que percorriam os canaviais da ilha fazendo o estimo num livro 1661.Janeiro.03 Funchal João Baptista Catanho
próprio15. O tributo era depois arrecadado no engenho na altura da safra. Com D. Manuel esta- 1664.Janeiro.25 Funchal João D’ornelas Travassos
beleceu-se, a partir de 1485, nova operação de vistoria dos açúcares - os alealdamentos. Com isto 1664.Novembro.29 Funchal Jerónimo da Silva Caldeira
1678.Outubro.19 Santa Cruz Mariana Vasconcelos filha de João Mendes de Vasconcelos
pretendia-se confrontar o quantitativo produzido com o estimo e verificar a qualidade do produto
1679.Junho.05 Ponta de Sol Francisco Monteiro de Miranda
final. Os alealdadores eram eleitos anualmente em pelo senado da câmara16.
1679.Outubro.09 Santa Cruz Mariana Vasconcelos filha de João de Mendonça de Vasconcelos
Concluída a avaliação e vistoria da qualidade do açúcar procedia-se à recolha, que poderia ser
1681.Junho.02 Ponta de Sol Francisco Monteiro de Miranda
feita mediante cobrança directa ou arrendamento. No primeiro caso tal encargo estava entregue ao
Calheta Luís Moniz da Silva
almoxarifado, que com D. Manuel assume uma estrutura diversa com a criação de cinco comarcas
1683.Maio.28 Ribeira Brava Brás Spínola de Menezes
integradas no almoxarifado do açúcar, centralizado no Funchal17. Os arrendamentos que se rea-
1746.Fevereiro.12 Calheta António Dionísio de Oliveira
lizavam trienalmente foram de vida efémera, mercê dos prejuízos avultados acumulados pelo
almoxarifado e arrendatários entre 1506 e 1518. Os contratos no curto espaço da vigência foram Na década de cinquenta, não obstante o quinto do açúcar não se cobrado desde 1640, a Fazenda
dominados por mercadores ou sociedades comerciais estrangeiras, nomeadamente italianos18. Real estabeleceu o encargo de 80 réis por cada arroba de açúcar para a fortificação.20 Desde 1643
não eram quintados os açúcares dos engenhos e, não obstante a insistência para que fosse cobrado,
só em 1687o Provedor da Fazenda conseguiu por em pregão os ditos direitos do ano de 1687.21
PERÍODO DIREITOS ARROBAS Por mandado de 20 de Dezembro de 168622 foi ordenada a extinção, a partir de 30 de Julho, dos
BRANCO RESCUMAS TOTAL $
E MELES quintadores do açúcar de Santa Cruz, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta, por a ilha já não pro-
1571-73 24.769 15.802$852 duzir açúcar. Mas cedo se reconheceu o erro de tal medida, uma vez que o açúcar continuou a pro-
1581-86 6.060 2.434 8.494 duzir-se, ainda que em pequenas quantidades. Deste modo a partir do ano imediato a arrecadação
foi posta em arrematação23. Para o ano de 168724 foi arrematado por Manuel Vieira Gago no valor

19 . ANTT. PJRFF, nº.965ª, fls. 164-164vº, 6 de Novembro de 1654; ibidem, nº.966, fls.276vº-278, 15 de Janeiro de 1683.
13 . ARM, CMF, Registo Geral, t. I, fol. 226-229 v1. 20 . ANTT, PJRFF, nº965A, fl.86, 20 de Fevereiro de 1653.
14. F. J. Pereira, Alguns elementos..., pp. 179-80; idem, O Açúcar madeirense..., pp. 55-58 21 . Ibidem, nº. 396, fl. 65vº, 12 de Fevereiro de 1675, fls.6-6vº, 22 de Maio de 1675; fl.5, 27 de Agosto de 1675; fl. 63vº, 15 de
15 . Dos estimos elaborados apenas se preservou o de 1494, estudado por V. Rau. Novembro de 1675; fls.150vº, 27 de Setembro de 1653; no.969, fls.89vº-90, 25 de Fevereiro de 1687.
16 . ARM, CMF, t. I, fol. 219-221vº. 22. ANTT, PJRFF, nº.966, fls. 446vº-447.
17 Alguns dos referidos livros estudados por nós no estudo sobre “O regime de propriedade na Madeira...”. 23. Ibidem, n1-968, fls. 75vº-76, 25 de Fevereiro de 1687.
18 . F. J. Pereira, O açúcar madeirense..., pp. 62-66 24. Ibidem, fl. 76-vº, 10 de Março.

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de 285$000, e em 168825 por João Betencourt Vilela por 200$000. A partir do último ano os Cartas de H. Hinton
e J. H. Ferraz,
lavradores passaram a pagar apenas o oitavo da produção26. Também para os anos de 1744 e 174827 Arquivo particular
encontrámos o provimento de um escrivão dos quintos para a vila da Calheta, de seu nome, de João Higino Ferraz.
António Dionísio de Oliveira.
As dificuldades porque passou a cultura reflectiram-se na estrutura administrativa. Assim, em
167528 refere-se que há trinta anos que não se arrecadava os quintos, por isso se ordenou o confronto
dos livros do donativo com os de saída para se confirmar as ausências ao pagamento.
Para os séculos XVII e XVIII manteve-se a mesma estrutura de arrecadação dos direitos da
coroa, mas aqui adaptada à dimensão da cultura. Assim, para cada área era provido um quintador,
uma para cada uma das antigas comarcas, isto é, Funchal, Calheta, Ribeira Brava, Ponta de Sol e
Santa Cruz. Nas primeiras localidades era apoiado por um escrivão.

PERÍODO AÇÚCAR
ARROBAS ARRATÉIS QUARTO LIBRAS ONÇAS $
1620-1624 5.266 26 ?
1637-44 5.216 11 1
1643 924$560
1644 1590$180
1645 464 28 ? 1.917$710
1651 3.469$799
1652-54 3.649 21
1656-57 3.585$542
1659 544 6
1660-62 702 ? 16 1
1664-69 5.200$000
1670-72 1256 24 ?
1677-79 351 9?
1687 285$000 Na segunda metade do século XIX a principal preocupação das autoridades era criar incentivos
1688 200$000 ao retorno da cultura pelo que foram estabelecidas várias isenções de impostos. Em 1865 isentava-
1705 29 21 2 se de direitos a maquinaria e utensílios necessários para a montagem dos engenhos. Isto permitiu
1733 26 5$600 que a cultura votasse a adquirir importância, produzindo excedentes para exportação. Se em 1850
1734 120 qualquer saída de açúcar estava limitada, já em 1870 os mesmos que entrassem no continente
1735 1? 216 estavam sujeitos a $600 reis a arroba, o equivalente a cerca de 25% daquilo que pagavam os açú-
1740 9 1 cares estrangeiros, medida que foi suspensa por cinco anos em 1876 e renovada em 1878, 1881,
1741 7 8 1885, 1895, 190329. Isto permitiu que de uma opção inicial da cultura para assegurar o consumo ini-
1742 497 8 cial se avançou para uma nova situação de produção de excedentes, cujo escoamento é facilitado
1743 953 28 no quadro do mercado nacional.
De acordo com a política proteccionista e de incentivo à cultura estabeleceram-se entraves à
importação. Assim, com as leis de 1855, 1858, 1861 a importação do mel, melaço e melado do
25. Ibidem, fls. 77-vº, 3 de Abril Funchal pagava 4$000 reis por cada cem quilogramas, passando para 6$000 reis em 1880 e 1885.
26. Ibidem, fls, 48-vº, 5 de Outubro
27. ANTT, PJRFF, nº.912, fls. 184vº, 264, 12 de Fevereiro.
28. ANTT, PJRFF, nº.396, fl. 63vº, 15 de Novembro; ibidem, nº.966, fl.6-v1. 29 . Cf. Fernando Augusto da Silva, O Arquipélago da Madeira na Legislação Portuguesa, Funchal, 1941.

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Cartas de H. Hinton e J. H. Ferraz, Arquivo Torreão importava melaço de diversas origens, como Demerara, Trinidade, Cuba, Hamburgo,
particular de João Higino Ferraz.
Lisboa, Angola (Lobito)31, para o fabrico do álcool para a indústria vínica.
A par disso podemos acompanhar a intervenção nos bastidores, junto das autoridades ou das
pessoas ou meios, como a imprensa, capazes de influenciar a decisão dos políticos. O decreto de
1895, aqui considerada a “lei que tantos benefícios trouxe à Madeira”, que havia merecido a
aprovação unânime de todos os intervenientes pela comissão da Madeira, havia deixado de ser van-
tajoso para os industriais do sector. Desde 1897 vinham notando uma diminuição na desvantagem
atribuída, que virou prejuízo em 1901, por força do aumento do preço do melaço, do carvão mi-
neral e dos câmbios com que se faziam as transacções. Deste modo J. H. Ferraz em carta ao
Visconde de Idanha estabelece o retrato da situação dos industriais e apela à necessidade de
mudança do imposto que recaia sobre o melaço importado32.

FINANÇAS PÚBLICAS E O AÇÚCAR


Sucede que a partir do ano imediato começaram-se a sentir os efeitos negativos dos fungos que
atacaram o canavial, o que levou as autoridades, sob pressão dos armazenistas de vinho, a reivin- As finanças do reino foram demarcadas por um permanente deficit pelo que a coroa socorreu-
dicar a abolição do imposto municipal que recaía sobre o melaço importado para fabrico de álcool. se diversos meios para saldar a diferença. Desde o século XIV que a forma mais usual de o solu-
Na revisão da pauta de 1892 reclamava-se a situação que só foi atendida no regime sacarino estabe- cionar era o recurso a pedidos e empréstimos. A coroa cobria o deficit, despesas bélicas, a boda Antiga Sala do Despacho. Alfândega do Funchal

lecido em 189530. O melaço importado só podia ser usado para o fabrico de álcool e dependia dos dos príncipes, com esta forma de financiamento. Ficou célebre o empréstimo de sessenta milhões,
valores da colheita anual, de forma a não prejudicar os lavradores, sendo taxado em 30 reis ao lançado em 1478 para as despesas da guerra com Castela. Destes, um milhão e duzentos mil reais
quilo. Ao mesmo tempo salvaguardava-se a indústria nacional impondo pesados impostos sobre o foram lançados sobre os madeirenses, isto é, 2% do valor (valor altamente significativo se tivermos
álcool e bebidas estrangeiras. Em 1903 com a revisão do regime sacarino surge de novo uma em conta a capitação media e o facto de a ocupação da ilha ter-se iniciado a pouco mais de
redução substancial nos direitos de importação de melaço, medida contrariada em 1911. O incre- cinquenta anos), mas os madeirenses mostraram-se renitentes ao pagamento do imposto, argu-
mento da produção madeirense assim o obrigava. Entretanto em 1918 o açúcar madeirense entra- mentando a difícil situação em termos do abastecimento de cereais e o facto de terem já feito um
do no continente estava isento de qualquer imposto. empréstimo a coroa de 400 arrobas. O desfecho final da questão saldou-se numa redução do referi-
O decreto de 1911, que reformula o regime sacarino estabelece um imposto sobre o fabrico da do empréstimo para metade. Assim, os madeirenses manifestavam o repúdio face às exorbitantes
aguardente, criando-se um fundo gerido pela Junta Agrícola para apoio à agricultura. Foram despesas do reino e faziam valer os interesses e as franquias que corporizaram o inicial processo
nomeados contadores para procederem à cobrança do imposto nas fábricas. Extinta a Junta o de ocupação.
fundo passou a ser gerido desde 1919 pela Junta Geral. Todas as fábricas não matriculadas deve- O episódio revela o vigor demonstrado pelos madeirenses na defesa dos interesses tem e pode
riam pagar o imposto de 100 réis, passando a 150 reis a partir de 1914. Em 1926 surge nova situ- ser reafirmado no papel do senado da câmara do Funchal. Na verdade, a Madeira era desde 1433
ação de imposto a onerar o fabrico da aguardente, numa tentativa de travar o consumo excessiva um espaço fora do controlo da coroa, dependendo do Mestrado da Ordem de Cristo e tendo o
da mesma. Infante D. Henrique como senhor. O infante D. Henrique, como senhor da ilha recebia um tribu-
A versão oficial da realidade açucareira compila-se nos arquivos públicos e imprensa, mas os to de 1.500.000 reais, isto é 40,54% do total dos réditos da casa senhorial. João de Barros refere que
interesses particulares dos intervenientes no processo buscam-se na correspondência particular. O o mestrado da Ordem de Cristo auferia da ilha anualmente mais de sessenta mil arrobas de açú-
Arquivo da família Hinton deveria ser um importante repositório da História Económica da ilha, car. A riqueza estava na mira da coroa pelo que D. Manuel, que também foi senhor da ilha, deu a
mas ignora-se o paradeiro e às nossas mãos chegou apenas a correspondência de J. Higino Ferraz, machadada final no processo de auto governo dos madeirenses ao proceder em 1497 à “naciona-
um dos fiéis colaboradores de H. Hinton entre 1899 e 1930. Assim sabemos que a fábrica de lização” da Madeira. A carta régia que faz a ilha realenga, revertendo toda a riqueza para a coroa,

30 . As fábricas deveriam fazer junto dos municipios o manifesto das fábricas de açúcar, alcool e aguardente: ARM, Câmara 31 . Copiador de Cartas de J. H. Ferraz, 1899-1901, fls.11-12, 13vº-15, 16vº, 17, 18, 19, 23, 28 (1899), 35 (1900); Notas da Viagem
Municipal do Funchal, Administração do Concelho, nº.420-421(1895-1910), idem, ARM, Câmara Municipal do Funchal, a Africa em 1927, s.n.
nº.565; Idem, Câmara Municipal da Ponta de Sol, nº. 178-180. 32 . Copiador de Cartas de J. H. Ferraz, 1899-1901, fls.44-48

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é clara quanto ao peso económico nas finanças do reino: “he huma das principaes e proveitozas valor mais elevado das comparticipações dos novos espaços insulares. A situação manteve-se até
couzas que noz, e real coroa de nosso reynos temos para ajudar, e soportamento de estado real, e 1518 mas em 1588 era já evidente a valorização do mercado açoriano.
encargos de nossos reynos”. A ideia perdurou por muito tempo de modo que em 1836 ainda con- Até a década de trinta do século XVI os reditos fiscais resultantes da produção e comércio do
tinuava a afirmar-se “que é uma das mais preciosas jóias da coroa de Vossa Majestade”. açúcar asseguravam parte importante das fontes de financiamento do reino e projectos expansio-
Desde finais do século XV toda a riqueza deixou de pertencer ao senhorio e passou para o nistas. O rendimento em finais do século XV e princípios da centúria seguinte era superior a cem
usufruto da coroa, indo a tempo de financiar as grandes viagens oceânicas e a despesa excessiva da mil arrobas, atingindo em 1512 as 144.065 arrobas, o que corresponde a 45.380.475 reais. O açúcar,
Casa Real. Também, a partir daqui é evidente que a Madeira perdeu a capacidade reivindicativa depois de retirada a redizima, isto é, a décima parte que era propriedade do capitão do donatário,
perante a coroa. O centralismo régio está patente na submissão e pronto acatamento pela vereação era utilizado pela coroa de formas diversas, como meio de pagamentos dos salários, esmolas aos
de todos os regimentos e decretos régios. O arquipélago foi uma fonte importante de receita para conventos (Santa Maria de Guadalupe, Jesus de Aveiro, Conceição de Braga) e misericórdias
travar o endividamento do reino e manter a opulência da casa senhorial e real. Nos séculos XV e (Funchal, Lisboa, Ponta Delgada), benesses a príncipes e infantes da Casa Real e despesa aduaneira
XVI o principal sorvedouro de dinheiro dos novos espaços recém descobertos e ocupados era a da ilha, enquanto a parte sobrante era vendida, directamente em Flandres pelos feitores do rei, ou Pia baptismal.
Igreja matriz da
Casa Real, a carreira da Índia e as praças marroquinas. Apenas entre 1445 e 1481 os gastos da coroa por mercadores, por vezes, a troco de pimenta. Ribeira Brava
Cruz processional da
Sé do Funchal
em dotes e casamentos suplantaram as 812.500 dobras, enquanto que nas guerras com Castela se A aplicação da receita na ilha era eventual, resumindo-se às despesas eventuais como a cons-
despenderam 336.000 e na defesa das praças marroquinas o valor atingiu as 378.000 dobras. trução da Sé e alfândega do Funchal, que receberam, respectivamente, 1.000 e 3.000 arrobas de açú-
Entretanto, no período de 1522 a 1551, as despesas com a perda das naus da carreira da Índia, por car.
naufrágio ou corso, atingiram 352.150 dobras. O elevado encargo só poderia ser coberto com as Outra forma de D. Manuel compensar os madeirenses pelos elevados réditos que a ilha atribuiu
receitas arrecadadas nas ilhas e novos espaços coloniais. à coroa foram as diversas ofertas a alguns templos religiosos da ilha. A Sé do Funchal recebeu um
É evidente, que durante o século XV e primeiro quartel do seguinte, a principal fonte de recei- porta-paz e uma cruz processional; a igreja matriz da Ribeira Brava a pia baptismal; a de Machico
ta do mundo português estava no açúcar madeirense. As receitas advinham dos direitos lançados, as colunas de mármore do portal da parede lateral, a escultura a virgem e o menino, os pesos da
como o quarto e o quinto, e do comércio do açúcar apurado. No entanto, os dados financeiros Câmara; a da Calheta o sacrário em ébano e prata.
disponíveis não evidenciam de forma clara a situação. Perderam-se os livros de contas, mas os Deverá ainda incluir-se o pagamento dos inúmeros pedidos de socorro e abastecimento das
poucos disponíveis não nos atraiçoam quanto ao volume de negócios em favor da coroa. Primeiro, praças marroquinas, o provimento das armadas da Índia, por norma, em vinho. Sobre as assíduas
o senhorio e, depois o rei oneraram o produto com diversas tributações que conduziram a que despesas com o socorro às praças africanas podemos citar, a título de exemplo, o concedido entre
amealhassem elevadas quantias que usavam em benefício próprio, no pagamento de tenças, esmo- 1508 e 1514 a Safim. Gastaram-se mil arrobas de açúcar e 83.815 reais, enquanto em 1531 o provi-
las, empréstimos e dívidas. O açúcar da coroa em 1494 foi de 80.451 arrobas de açúcar que mento de vinhos as armadas da Índia orçou em 124.490 reais.
despendeu da seguinte forma: Em 1529 com o Tratado de Saragoça foi encontrada uma solução provisória que a curto prazo
Pia baptismal.
parecia agradar a ambas as partes. D. João III viu-se forçado a pagar 350.000 ducados para asse-
Redízima do capitão 12% gurar a posse das Molucas que afinal se encontravam dentro da área de influência de Portugal.
Colunas de mármore do portal da parede lateral. Duque, como senhor da ilha 7% Mais uma vez é possível assinalar uma ligação à Madeira, pois terá sido, segundo alguns, o
igreja de Machico
Tenças, mercês e presentes 4% madeirense António de Abreu o primeiro explorador. Por outro lado os madeirenses contribuíram
Desembargos 66% com avultada quantia de empréstimo para o pagamento do referido contrato. Manuel de Noronha
ficou com o encargo de arrecadar a contribuição madeirense. João Rodrigues Castelhano é refer-
Para o período de 1501 e 1537 o dispêndio de 29.696 arrobas de açúcar do almoxarifado dos enciado também como recebedor do referido empréstimo, tendo desembolsado 300.000 reais.
quartos teve o seguinte destino: Juntaram-se Fernão Teixeira com 150.000 reais e Gonçalo Fernandes com 200.000 reais. O paga-
mento fez-se nos anos de 1530-31 à custa dos dinheiros resultantes dos direitos da coroa sobre o açú-
Reposte 37% car.
Padrões 14% Os dados fiscais de 1531 permitem uma ideia da evolução da receita e despesa da ilha. Os rédi- Receitas 1506
Esmolas 34% tos sobre as rendas do açúcar foram de 6.990.573 reais de que se gastaram 10% nos vencimentos do
Diversos 15% clero da capitania do Funchal e 7% no pagamento do empréstimo que João Rodrigues Castelhano
a Coroa para pagar o contrato das Molucas. Mais de cinquenta por cento das receitas iam directa-
No primeiro registo das receitas do reino e possessões, datado de 1506, a Madeira surgia com o mente para o reino a engrossar os cofres da Fazenda Real. A partir desta informação, ainda que

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avulsa, conclui-se que os madeirenses foram activos protagonistas da expansão lusíada dos séculos Se atendermos apenas à partici- Escultura a virgem
e o menino.
XV e XVI emprestando a própria vida e reditos, arrecadados com a safra do açúcar, no financia- pação madeirense na receita da Igreja de Machico
mento do projecto e das exorbitâncias e caprichos quotidianos da Casa Real. coroa no decurso dos séculos XVI e
Foi com D. Manuel que se definiram as regras, ainda que rudimentares do orçamento. O XVII somos confrontados com uma
primeiro orçamento, que se conhece, data de 1526. De acordo com os dados disponíveis as receitas forte intervenção, tendo em conta a
fiscais orçaram em 166.347.611 reais, sendo 12.000.000 (= 7,2%) referentes apenas a Madeira, que superfície, que se articula de forma
conjuntamente com as demais possessões fora da Europa totalizavam 37.630.000 (= 23%). A cidade directa com as condições económi-
de Lisboa, que apenas arrecadava 5% das receitas, absorvia 17% das despesas, o que implicava o cas da ilha. Assim, o açúcar foi o
financiamento externo com o recurso aos réditos arrecadados noutras províncias nomeadamente principal gerador de um forte exce-
na Madeira, Açores e Costa da Guine. dente de riqueza que diminuiu de
EVOLUÇÃO DAS RECEITAS NAS ILHAS. 1607-168
forma espectacular com a crise do (em milhares de reis)
A Madeira, na primeira metade do século século XVII.
XVII, enfrentou dificuldades económicas que
se reflectiram nas fianças públicas. A fonte de
receitas transferiu-se para as demais pos- Perante o quadro somos forçados
sessões e mesmo os Açores atingem valores a afirmar que a partir do século
Sacrário em ébano e prata. mais elevados que a Madeira. A situação XVI os dados estatísticos revelam
Igreja da Calheta
vinha evoluindo assim desde 1588. O quadro que Portugal tinha a principal fonte
financeiro do ano de 1607 revela a pre- de riqueza nas ilhas e possessões
cariedade das finanças madeirenses conduzin- ultramarinas. Apenas a conjuntura
do a que a despesa representasse 94% da recei- resultante da união dinástica na
ta, o que correspondeu ao valor mais elevado. década de oitenta conduziu a uma
Mesmo assim a despesa não suplanta 1,5% do quebra acentuada da receita das
total. Já em 1619 é evidente a recuperação colónias. Em qualquer das circun-
EVOLUÇÃO RECEITAS. 1506-1588 (EM MILHARES DE REAIS)
económica da ilha subindo o saldo para os stâncias os novos espaços gerados
RECEITA DA MADEIRA: PERCENTAGEM EM RELAÇÃO AO TOTAL
cofres do reino a 5,9%. com os descobrimentos revelam-se DO REINO
em todos os momentos dos séculos
XVI e XVII como a mais valia e
Um dado abonador da nova situação está no principal fonte de financiamento.
facto de Francisco Rodrigues Vitória ter contrata-
do em 1602 a arrecadação da receita da ilha por
21.400$ réis, 1072 arrobas de açúcar e 2 arrobas de
cera. No quadro das ilhas a Madeira continuava a
apresentar uma posição destacada mas os Açores
assumem a posição cimeira no quadro das ilhas.
Por outro lado nas terras ultramarinas afirmam-se
em definitivo como a principal fonte de receita.
Aqui, a Índia assume uma posição cimeira.
MOVIMENTO FINANCEIRO DA MADEIRA. PERCENTAGEM
Assinala-se de novo que, em qualquer dos casos, a
EM RELAÇÃO AO TOTAL 1607 e 1619 despesa é muito diminuta, porque também a estru- EVOLUÇÃO PERCENTUAL DA RECEITA DO
REINO E POSSESSÕES
tura administrativa não era muito pesada.

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Funchal. 2003

ENCARGOS FISCAIS

Para o período da segunda metade do século XVII


dispomos de algumas cartas de quitação dos almoxa-
rifes, que permitem avaliar da dimensão das receitas
arrecadas como da importância dos diversos produtos
taxados no total.

Portão dos Varadouros(destruído em 1911).


ALMOXARIFE DATA TOTAL AÇÚCAR VINHO TRIGO
Gravura do século XIX
Arrobas Arráteis Pipas Almudes canadas moios alqueires
Cristóvão Faria 1620-24 49.264$261 52.266 261/2
Cristóvão Valente 1645 12.738$951 469 28 ? 338 274 32
1652-54 39.292$894 3.649 21 1035 21 11 819 45
1656-58 40.532$298 2.390 19 1.035 21 11 814 15
Luís Soares Pais 1660-62 49.546$497 702 12 1.038 ? 810 45 SUMÁRIO DA LEGISLAÇÃO
Luís Soares Pais 1670-72 70.178$733 1256 24 ? 1039 ? 822 45
Manuel Soares Pais 1677-79 62.389$244 351 9? 1340 ? 1 941 3 1855 17-Julho Lei aumentando para 4$000 reis em 100 arráteis direito importação mel
e melaço estrangeiro por 3 anos
Para os anos de 1670-167133 temos os dados diferenciados dos diversos produtos: 1858 14-Agosto Lei e decreto prorrogando por mais 3 anos isenção direitos importação
máquinas e utensílios de fabrico produtos da cana.
Produto 1670 1671 1672 1861 20.Agosto Lei fixando por mais 3 anos o imposto de 6$000 reis por 100 Kg, impor-
Vinho 346 ? 346 ? 346 ? tação mel, melaço e melado.
Açúcar 3629 423 470
1864 25 Junho Lei reduzindo direitos importação açúcar, na Madeira, aos da Pauta
Trigo 274 274 274
Geral das alfândegas
Frangos 12 12 12
Cabritos 12 12 12
27 Junho Lei renovando por mais 3 anos quantitativo do imposto sobre importação
Cevada 5 5 de mel e melaço estrangeiro: 6$000 reis, por 100 Kg
TOTAL 21.088$434 22.977$937 25.412$362 1870 27 Dezembro Decreto estabelecendo para o açúcar madeirense entrado no continente
o direito de $600 réis por arroba
33 . ANTT, PJRFF, nº.966, fl.5, 24 de Dezembro de 1675

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Alberto Vieira Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

1876 4 FEVEREIRO Carta de Lei suspendendo por cinco anos os direitos pagos pelo açúcar 1919 2 Fevereiro Lei estabelecendo imposto de revenda da aguardente
da Madeira no continente. 1925 23 MAIO Portaria, promulgando várias disposições relativas à entrada de
1878 4 FEVEREIRO Lei, admitindo no Continente, livre de direitos, por espaço de cinco anos, aguardente, álcool e bebidas alcoólicas, não especificadas, no
o açúcar produzido na Madeira. Arquipélago da Madeira.
1881 18 MARÇO Lei, prorrogando por cinco anos o prazo para a admissão do açúcar 24 JUNHO Decreto, introduzindo várias alterações na pauta dos direitos da impor-
da Ilha da Madeira, sem pagamento de direitos. tação e sujeitando os assúcares, importados no Arquipélago da Madeira
1884 25 JUNHO Lei reduzindo os direitos de importação do Açúcar na Ilha Madeira aos aos direitos estabelecidos para o Continente pelo presente decreto.
da pauta geral das alfândegas 26 JUNHO Rectificação do decreto n.º 10.864, que introduz várias alterações na
27 JUNHO Lei, prorrogando por 3 anos o prazo de lei, de 20 de Agosto de 1881 que pauta dos direitos de importação e sujeitos os assúcares importados no
fixou em 6$000 reis por cada 100 quilogramas do direito de importação arquipélago da Madeira aos direitos estabelecidos para o Continente,
do mel e melaço estrangeiro na Alfândega do Funchal. pelo mesmo decreto.
1886 22 MARÇO Lei, prorrogando por mais três anos, a isenção de direitos de importação 1926 12 NOVEMBRO Decreto autorizando a Junta Geral do Distrito do Funchal a estabelecer
sobre o açúcar produzido na Ilha da Madeira. um imposto sobre cada litro de aguardente fabricada no mesmo distrito
1895 30 DEZEMBRO Decreto, estabelecendo novos direitos sobre o açúcar superior e melaço e permitindo na Ilha da Madeira, pelo Porto do Funchal, a importação
da cana-de-açúcar, importados para consumo no Distrito do Funchal e mensal de 25.000 litros de vinho tinto do Continente e proibindo a
isentando de direitos a importação para consumo no Continente e Aço- alcoolização dos vinhos importados ou a sua lotação com vinhos pro-
res do açúcar originário da Ilha da Madeira. duzidos na Ilha da Madeira, bem conto a sua destilação. Proíbe também
1896 27-Março Carta de lei aprovada proposta Cortes de 16/03 do imposto de 15 reis Kg este decreto o desdobramento, de álcool em aguardente.
sobre todo o açúcar refinado que a 27/03 não esteja alfândegas 1928 31. Julho Decreto criando taxa “de salvação nacional” sobre o açúcar, gasolina e os
Continente e Ilhas nem completamente embarcado. óleos minerais leves importados
28-Abril Carta de lei sobre o imposto fabrico e consumo açúcar e situação espe- 1930 2 ABRIL Decreto 18155, isentando das guias de trânsito, a que se referem os arti-
cial Madeira gos 44º do Decreto 16083 e 160 do contrato aprovado pelo Decreto 16159,
15. Maio Decreto aprovando regulamento medição reservatórios fábricas desti- a aguardente velha, tipo rum, ou de bebidas similares, vendidas aos re-
lação álcool talhistas pela Companhia da Aguardente da Madeira, depois de devida-
1903 24 SETEMBRO Decreto que reforma o regime sacarino, determinando que o açúcar mente beneficiada ou quando pelos retalhistas seja revendida a particu-
exportado para o continente estava isento de direitos. lares em quantidade superior a 5 litros.
24 DEZEMBRO Regulamento do decreto de 24 de Setembro.
1911 20 MARÇO Decreto, aprovando as instruções provisórias para a cobrança do impos-
to de produção de aguardente no Distrito do Funchal.
1912 24 FEVEREIRO Decreto, estabelecendo as instruções provisórias que devem ser adop-
tadas para cobrança do imposto de produção de aguardente no Distrito
do Funchal durante o corrente ano sacarino.
28 DEZEMBRO Decreto, aprovando o regulamento para a cobrança do imposto da fabri-
cação de aguardente no Distrito do Funchal.
1913 4 JANEIRO Portaria, nomeando uma comissão para proceder à escolha dos conta-
dores destinados às fabricas de aguardente do Distrito do Funchal, para
o efeito da cobrança do respectivo imposto.
1916 25 FEVEREIRO Decreto, dissolvendo a comissão administrativa, nomeada pelo decreto
n.º 4830, para desempenhar as funções que competiam à Junta Agrícola
da Madeira, e encarrega outra de gerir o fundo constituído pelo imposto
de fabricação de aguardente no Distrito do Funchal.

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