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11/10/2021 02:22 Os Klarsfeld: o casal que caça nazistas há meio século | EL PAÍS Semanal | EL PAÍS Brasil

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REPORTAGEM

Os Klarsfeld: o casal que caça


nazistas há meio século
Desde que a paixão uniu suas vidas no metrô de Paris numa tarde de
1960, Serge e Beate Klarsfeld se dedicam a três coisas: amar-se,
discutir e seguir a pista dos piores criminosos nazistas foragidos ou
escondidos após a II Guerra Mundial

Borja Hermoso

Serge e Beate Klarsfeld, em Paris. / LEA CRESPI

29 NOV 2019 - 12:53 BRST

Certamente Klaus Barbie, o Carniceiro de Lyon, passou o resto de


sua vida amaldiçoando aquele inútil membro das SS que não olhou
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sob o fundo falso do armário. Daquele armário no apartamento de


Nice, onde se escondiam o pequeno Serge Klarsfeld, sua irmã
Georgette e sua mãe, Raïssa. O pai da família, Arno Klarsfeld, judeu
e membro da Resistência, que tinha instalado o esconderijo salva-
vidas, havia acabado de ser detido pelo esquadrão liderado pelo
sinistro Alois Brunner em 30 de setembro de 1943. A de Nice foi
uma das piores incursões antijudaicas da história. Arno Klarsfeld
acabaria sendo deportado e posteriormente assassinado em
Auschwitz. O pequeno Serge acabaria se tornando anos depois,
juntamente com sua mulher, Beate, o maior caçador de nazistas da
história, com perdão de Simon Wiesenthal, o outro grande
predador das ruínas do III Reich.

Entre seus troféus de guerra sempre se destacará o olhar pequeno


e morto de Klaus Barbie. Ele foi encontrado na Bolívia em 1971.
Atendia pelo nome de Klaus Altmann e era um próspero homem de
negócios protegido, sucessivamente, pelas ditaduras de Barrientos
(que o nomeou administrador da Transmarítima Boliviana e
assessor dos serviços secretos bolivianos), Banzer e García Meza.
Durante anos, Barbie acreditou estar a salvo de qualquer perigo.
Mas Serge e Beate Klarsfeld conseguiram, depois de um tortuoso
processo de documentação, busca e perseguição de mais de 15 anos
—incluindo várias viagens de Beate a La Paz, com passaporte falso
e disfarçada, e encontros duríssimos com as autoridades do país—,
que em 1983 o Governo boliviano extraditasse para a França o
antigo chefe da Gestapo em Lyon.

MAIS INFORMAÇÕES

Os últimos julgamentos contra o nazismo

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O herói que, sem enxergar, salvou judeus cegos e surdos do horror nazista

Não teriam conseguido sem a colaboração do jornalista da televisão


pública francesa Ladislas de Hoyos, que conseguiu entrevistar
Barbie em La Paz. Durante a conversa, De Hoyos mostrou a Klaus
Barbie uma foto de Jean Moulin, líder da Resistência francesa
contra a ocupação nazista, que tinha sido torturado até a morte por
Barbie. O Carniceiro de Lyon pegou a fotografia e disse que não
conhecia aquela pessoa. Mas deixou suas impressões digitais na
imagem. Foi sua perdição.

Apesar de todos os obstáculos e todas as ameaças —os Klarsfeld


escaparam de dois atentados, um com carro-bomba e outro com
pacote explosivo, ambos provavelmente perpetrados pela
organização criminosa Odessa—, Barbie foi julgado em Lyon em
1987 e condenado à prisão perpétua. Era o começo do fim para o
temível Sturmführer, para aquele que havia sido o carrasco das 44
crianças judias da colônia de férias de Izieu, enviadas por ele para o
campo de concentração de Drancy em 1944 para, poucos dias
depois, serem mortas com gás em Auschwitz —em um dos
episódios mais sinistros no genocídio perpetrado pelo III Reich.

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O casal no julgamento do dirigente nazista Kurt Lischka. Colônia, 1979. / LAURENT MAOUS / GAMMA-RAPHO
(GETTY IMAGES)

Por isso é fácil supor que Klaus Barbie deve ter pensado por muitos
anos sobre aquele soldado de Brenner que não viu um menino
escondido no armário de Nice. Bernie morreu de leucemia, em
1991, na prisão de Lyon.

Levaram ao banco dos réus carrascos


como Klaus Barbie, Kurt Lischka e Herbert
Hagen. Escapou-lhes Alois Brunner: seu
único espinho atravessado

Décadas depois, o menino tem 84 anos, é advogado, historiador e


escritor e está sentado em uma caótica sala com pastas cheias de
recortes de imprensa, fotografias e livros antigos incrustada em um
pátio interno do distrito VIII de Paris. O judeu francês de origem
romena mantém um discurso que parece uma argumentação
jurídica, mistura de dados, expressividade e autoridade: “Barbie foi
soberano em suas decisões. Era o chefe da Gestapo em Lyon, um
personagem aterrorizante que não teve de pedir permissão a
ninguém de cima para as maldades que cometeu. Ele, e só ele, deu a

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ordem de deter e deportar as crianças judias da residência de Izieu.


Era culpado, por isso o encurralamos e o perseguimos até ele ser
julgado na França. Outros nazistas, na guerra, cumpriam ordens
militares, sua culpabilidade pode ser discutida. A de Barbie é
indiscutível”, afirma Serge Klarsfeld.

Sua esposa, Beate Klarsfeld, 80 anos recém-completados, se junta à


conversa. Alemã, filha de um soldado da Wehrmacht, sua vida
mudou naquela tarde de 1960 na estação de metrô Porte de Saint-
Cloud, de Paris. O jovem estudante de Direito e a jovem estudante
alemã que trabalhava como babá se olharam, começaram a
conversar e não se separaram mais. Ele contou sua experiência
pessoal com o nazismo e o assassinato de seu pai. Ela atravessou o
limite que separa a indiferença do compromisso e, pelas mãos dele,
se tornou a mais dura das ativistas contra a impunidade dos ex-
colaboradores de Hitler. Desde então, na atividade do casal
Klarsfeld como farejadores de nazistas, ela foi sempre a mão dura, a
pessoa de ação, a força de choque, frente à reflexão, a serenidade, o
estudo das leis e a paciência de seu marido. Um tandem azeitado,
preciso, implacável.

Beate Klarsfeld no seu escritório, em Paris. / LEA CRESPI

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“O caso das crianças de Izieu”, conta Beate Klarsfeld, “foi dantesco,


mas ainda pior foi a operação do Vél d’Hiv [velódromo de inverno]
de Paris por parte da polícia francesa em 1942, com 4.000 crianças
judias sendo detidas, separadas de seus pais e deportadas para
Auschwitz, onde foram todas assassinadas. Aquelas mães estavam
convencidas de que, por serem francesas, aquelas crianças não
seriam incomodadas pela polícia francesa, mas… Foi um crime
horrível, e o principal argumento contra aqueles que, como Marie
Le Pen, reivindicam hoje que o marechal Pétain seja reabilitado”.

Capítulos como o de Barbie e Izieu, ou como o do passado nazista


do ex-secretário-geral da ONU Kurt Waldheim, ou como os
relativos à localização, perseguição e julgamento de ex-nazistas
como Kurt Lischka, Herbert Hagen e Ernst Heinrichsohn, ou como
o que evoca o fracasso na caça de Alois Brunner —o sinistro lugar-
tenente de Adolf Eichmann, o tenente-coronel das SS –, salpicam as
páginas de Mémoires, o livro publicado pelos Klarsfeld em 2015 e
que se lê como um autêntico thriller.

O que aconteceu com os nazistas pode se


repetir. Os extremos se mobilizam fácil; as
pessoas moderadas, não. É preciso que
estejamos vigilantes”
Beate Klarsfeld

Sem dúvida o momento da verdade na vida de Beate Klarsfeld


chegou numa tarde de 1968 em Berlim Ocidental. Ocorria o
congresso da União Democrata Cristã (CDU) sob a liderança do
então chanceler alemão, Kurt Georg Kiesinger. Beate Klarsfeld já
tinha escrito vários artigos contra o passado nazista de Kiesinger,
ex-subdiretor do departamento de Radiodifusão do Ministério de
Relações Exteriores de Hitler. Como tantos outros antigos
responsáveis pelo aparato nacional-socialista, Kiesinger vivia de
forma tranquila e respeitada na Alemanha, onde havia se estendido
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um manto de esquecimento sobre os crimes nazistas contra o povo


judeu. O último daqueles artigos custou à fervorosa ativista seu
emprego no Escritório Franco-Alemã da Juventude, uma honorável
fachada que procurava lavar a má imagem da Alemanha depois da
derrota do nazismo e que estava dirigida por outro ex-funcionário
nazista de alto escalão, Walter Hailer.

Beate Klarsfeld no seu escritório, em Paris. / HULTON ARCHIVE


(GETTY IMAGES)

Beate Klarsfeld penetrou no congresso da CDU com uma credencial


falsa, conseguiu subir ao palco, colocou-se atrás de Kiesinger e lhe
deu uma sonora bofetada que acabou fazendo história. “Foi uma
bofetada simbólica”, recorda Beate Klarsfeld, “primeiro, uma
bofetada de uma jovem alemã contra seu pai nazista; depois, da
juventude alemã contra o nazismo em seu conjunto. Simbolizou a
rebelião da juventude do meu país contra o fato de que houvesse
criminosos nazistas vivendo tranquilamente na Alemanha e
ocupando cargos na política, na universidade, na empresa, na
advocacia… Enquanto eu dava a bofetada em Kiesinger, no
Parlamento de Berlim havia 123 ex-nazistas em postos de
responsabilidade. Muitos alemães defendiam a tese de que era
preciso perdoar, esquecer e contar com aqueles criminosos porque,
afinal de contas, tinham experiência”.

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A jovem Beate é contida após esbofetear o ex-dirigente nazista e chanceler alemão Kurt Georg Kiesinger
em Berlim, em 1968. / AP

Nesse sentido, recorda o episódio de perseguição a que ela e seu


marido submeteram Kurt Lischka, ex-chefe da Gestapo em Paris
durante a ocupação. Tanto ele como Herbert Hagen —ex-chefe do
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Estado Maior da direção da polícia alemã— e Ernst Heinrichsohn


—ex-subtenente das SS— sofreram nas garras do casal Klarsfeld. Os
três, responsáveis pela deportação e morte de milhares e milhares
de judeus franceses, foram julgados e condenados a penas de 7 a 10
anos de prisão. A Operação Lischka foi a mais complicada. Serge e
Beate, que o tinham encontrado pela lista telefônica, conceberam
um plano para sequestrá-lo na saída de seu domicílio em Colônia. A
ideia era copiar a ação realizada em 11 de maio de 1960 em Buenos
Aires pelo Mossad, os serviços secretos israelenses, que ali
neutralizaram Adolf Eichmann. O responsável pela solução final
contra o povo judeu tinha sido detectado na Argentina pelo
caçador de nazistas Simon Wiesenthal. Eichmann foi sequestrado,
drogado e introduzido em um avião rumo a Jerusalém, onde foi
julgado, condenado à morte e executado. Mas os Klarsfeld não
tinham os meios do Mossad. E o metro e noventa de estatura de
Kurt Lischka não facilitavam as coisas. Tiveram que desistir e
limitar-se a assediá-lo e a gravá-lo com uma câmera em diversas
ocasiões na saída de sua casa. Mas a estratégia funcionou: o ex-
tenente-coronel da Gestapo parisiense acabaria no banco dos réus.
“Pouquíssimos daqueles monstros foram conduzidos a um tribunal.
Figuravam tranquilamente com seus nomes na lista telefônica. Para
quem tinha perdido seus pais ou irmãos nos campos de
concentração, aquilo era insuportável…, mas para muitos alemães
era o normal”, recorda Beate Klarsfeld.

Nem tudo deu certo. Seu objetivo frustrado leva o nome de Alois
Brunner. Localizaram o oficial da sinistra seção IVB4 da Gestapo e
comandante do campo de concentração de Drancy em 1982.
Souberam que estava em Damasco, onde vivia protegido desde 1954
pelo regime de Hafez al Assad com o nome de Aboud Hossein.
Viajaram à Síria para pedir sua extradição, mas, assim que
souberam da sua presença no país, os serviços secretos sírios —
para os quais Brunner tinha trabalhado— o levaram para o porão
de uma casa. Ali passaria 20 anos escondido. Em 2017, a revista
francesa XXI publicou que Alois Brunner havia morrido em 2001
naquele porão de Damasco.

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Serge Klarsfeld mostra o dossiê sobre Barbie, que foi localizado na Bolívia por ele e sua esposa.
Conseguiram que fosse julgado e condenado na França. / LEA CRESPI

“Não ter conseguido deter Alois Brunner é um espinho que temos


cravado na garganta, claro”, lamenta Serge Klarsfeld. “Entretanto,
temos o consolo de saber que teve uma existência desventurada
durante os 10 últimos anos de sua vida. Desde 1992, quando a
polícia o deteve em seu apartamento, até 2001, quando morreu,
ficou vivendo num porão úmido, quase sem se alimentar. Tinha
perdido os dedos de uma mão num atentado com pacote-bomba
que o Mossad cometeu contra ele quando vivia em Damasco, e
tinha perdido um olho em outro atentado… Acho que esse foi dos
serviços secretos franceses. Certamente, ficou claro que tinha gente
que não se esqueceu dele!”

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Apesar de seus feitos e de seu currículo, Serge e Beate Klarsfeld se


incomodam com o termo “caçadores de nazistas”, por considerá-lo
reducionista. “Já fomos, certamente, mas gostamos mais de nos
apresentarmos como defensores das almas judias perseguidas”,
explica o autor do livro Vichy/Auschwitz, cavaleiro da Legião de
Honra e que hoje mantém vivas instituições como o Centro de
Documentação sobre a Deportação de Crianças Judias e a
Fundação pela Memória do Holocausto. Considera que seu trabalho
foi e irá além do mero ativismo: um trabalho de divulgação e
conscientização: a partir da sua faceta científica de estudioso da
história do judaísmo, Serge Klarsfeld se aprofunda nos fatores de
fundo que podem explicar o que considera o ódio ao judeu:
“Durante muito tempo o motor desse ódio foi tão somente o
antissemitismo cristão. Historicamente os judeus viviam em guetos,
viviam entre eles, trabalhavam e estudavam ao mesmo tempo em
que se preparavam para a religião…, e graças à sua capacidade de
estudo e de trabalho acabaram na vanguarda dos bancos, da
política, do jornalismo…, e então muita gente não entendeu que os
judeus, que tinham conhecido no gueto, de repente fossem reis da
sociedade. E daí que no século XIX surgisse um forte
antissemitismo social, que hoje sobrevive em muitos lugares”.

Da esquerda para a direita, os ex-dirigentes nazistas Ernst


Heinrichsohn, Kurt Lischka e Herbert Hagen, durante seu
julgamento em Colônia, em 1980. / LUDOVIC MARIN (AFP)

É uma questão inegociável para este casal, um autêntico lobby em


si mesmo na defesa do povo judeu. Em um momento da conversa,
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abre-se a porta do escritório e entra Arno Klarsfeld, filho do casal e


o advogado que em 1998 mandou para a cadeia Maurice Papon,
prefeito de Bordeaux durante o regime colaboracionista de Vichy.
Mostra, na tela de seu celular, as mensagens que acaba de trocar
com Emmanuel Macron, no dia seguinte ao discurso em que o
presidente da República, perante as associações judaicas da França,
propôs endurecer a legislação contra os crimes de ódio racial na
Internet. “O antissemitismo não tem como desaparecer assim, de
repente… É uma doença da sociedade ocidental, e também da
Rússia, e do Oriente Médio, que de tempos em tempos ressurge sob
novas formas. Erradicá-lo em cada indivíduo pode levar séculos”,
adverte Serge Klarsfeld.

A conversa com a ativista valente e intransigente e com o velho


advogado de causas perdidas transcorre aos borbotões,
entrecortada pelas idas e vindas de ambos a procurar um recorte
de jornal, uma foto ou um documento gasto para corroborar suas
explicações. Velhos papéis com os rostos de Barbie, ou do doutor
Mengele, ou de Alois Brunner, ou de Walter Rauff, o oficial das SS
que inventou a câmara de gás portátil e que viveu confortavelmente
durante anos no Chile de Pinochet.

Em um desses momentos de anarquia dialética entre os Klarsfeld,


que não param de se interromper, Beate dá um soco na mesa e
expõe seus medos ante o velho fantasma que, adverte, volta a
percorrer a Europa a conta-gotas: “A indiferença é um perigo. Tem
gente que não vota porque acha que os problemas se arrumarão
sozinhos, mas não é assim. Olhe o que aconteceu na Alemanha com
os nazistas, aquilo pode se repetir; olhe o que está acontecendo
com alguns Governos na Europa, o que acontece na Itália, o que
podia ter acontecido na França, Hungria, Áustria, agora a extrema
direita ressurge na Espanha… Os jovens europeus às vezes não se
dão conta de tudo isto, porque desde o final da Segunda Guerra
Mundial vivem na riqueza e no conforto, e não lhes interessa a
história. É preciso que permaneçamos vigilantes. Os extremos se
mobilizam com facilidade, mas as pessoas moderadas, não”.

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Os Klarsfeld continuam em pé e continuam a postos. Já quase não


há mais SS nem gestapos para caçar, e os que há são nonagenários
doentes, ou personagens que não tiveram relevância na cadeia de
comando nazista, mas eles se ocupam de outros massacres, de
outras injustiças: em sua época as atrocidades da desaparecida
Iugoslávia, depois Ruanda, hoje Burundi… “Faz 15 anos que já não
restam grandes nazistas para perseguir”, explica Serge Klarsfeld,
“morreram, ou os que restam são de um nível muito baixo, simples
vigilantes de campo e coisas assim. Há promotores na Alemanha
que continuam acusando-os... Fazem isso porque lhes proporciona
renome social. Alguns deles – como Oskar Gröning, o contabilista
de Auschwitz –, quando não podem demonstrar sua inocência, são
condenados a quatro anos de prisão, porque o tribunal acredita que
‘contribuíram para o bom andamento do maquinário de
extermínio’. É o que fizeram também com John Demjanjuk
[conhecido como Ivan, o Terrível, ucraniano, membro das SS e
acusado de colaborar no assassinato de 28.000 judeus no campo de
concentração de Sobibor]. Outros são condenados apenas por
terem militado no partido nazista. Não é o tipo de justiça que
perseguimos. Lutamos toda a vida para processar gente que tenha
assinado algum documento, gente cujas ordens ou ações criminais
estivessem demonstradas com provas”.

Despedem-se, apertam a mão, voltam sobre seus passos, encerram-


se em seu escritório, entre seus papéis, entre as piores sombras da
história. Os Klarsfeld têm aspecto do que são: avós de rosto amável.
Detrás dessa fachada, sobrevive o olhar do predador. Meio século
de busca e captura. Meio século caçando nazistas.

Adere a

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