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A sociologia da educação de Bourdieu na revista

Actes de la Recherche en Sciences Sociales

Ana Paula Hey*, Afrânio Mendes Catani* e


Cristina Carta Cardoso de Medeiros**

La sociologie de l’éducation est un chapitre, et non des moindres, de


la sociologie de la connaissance et aussi de la sociologie du pouvoir
[…]. Loin d´être cette sorte de science appliquée, donc inférieure
et bonne seulement pour les pédagogues […], elle se situe au fonde-
ment d´une anthropologie générale du pouvoir et de la légitimité1.
pierre bourdieu, La noblesse d’État, 1989, p. 13.

O presente artigo dedica-se ao esquadrinhamento das teses centrais desenvolvidas


por Pierre Bourdieu (1930-2002) relativas à educação, tendo como núcleo irradiador
a criação da revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales (arss). O sociólogo era
um acadêmico renomado quando, com 45 anos incompletos, criou o periódico, cujo
primeiro número circulou em janeiro de 1975. Ele o dirigiu até falecer, publicando
ali quase uma centena de artigos, cuja amplitude temática e empírica reflete a com-
posição profícua de seu “esporte de combate”.
Na França dos anos de 19602 as questões de educação não se constituíam em
objeto científico e a ‘nascente’ sociologia da educação vai contribuir para legitimá-las

* Universidade de São Paulo – usp.


** Universidade Federal do Paraná – ufpr.
1. A sociologia da educação é um capítulo, e não dos menores, da sociologia do conhecimento e, também,
da sociologia do poder […]. Longe de ser esta espécie de ciência aplicada, portanto inferior e adequada
apenas para os pedagogos […], ela se situa no fundamento de uma antropologia geral do poder e da
legitimidade” (tradução nossa).
2. Vale lembrar que, nesse período e em grande parte dos países desenvolvidos, as análises sociológicas da
educação legitimam-se com base em impulso heterônomo ao próprio campo disciplinar, motivadas pela
aceitação ou rechaço das teses de mobilidade social e dos processos de democratização que colocavam
a escolarização no centro do debate social e político.
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no campo da sociologia. A peculiaridade desse novo espaço de produção acadêmica


reside no fato de ser ocupado por recém-chegados a esse domínio – casos de Bour-
dieu, Passeron, Boudon –, dotados de forte capital científico gerado em disciplinas
dominantes (como a filosofia) e egressos da prestigiosa École Normale Supérieure
(Poupeau, 2003), colaborando para dinamizar a sociologia do período, mas também
tornando a educação um de seus objetos centrais. Assim, estas páginas buscam retratar
a contribuição do autor à sociologia da educação, o qual já enfatizava, nos anos de
1960 e 1970, a reflexão na constituição do capital cultural e na cultura, sobretudo
escolar, e em sua consequente apropriação e distribuição desigual entre as classes.
O próprio Bourdieu afirma:

[…] a sociologia da educação e da cultura desempenhou um papel importante em meu


trabalho, na medida em que o sistema escolar era uma ocasião privilegiada de estudar os
fenômenos de transmissão cultural ou, em outras palavras, de colocar a respeito de nossa
sociedade problemas que os antropólogos tradicionalmente colocam acerca das sociedades
estudadas por eles, como por exemplo, o problema da transmissão das estruturas mentais e
do sistema de classificação (2000, pp. 18-19).

Em seu artigo de 1971, “Reprodução cultural e reprodução social”, estabelece as


bases do que seria a sua sociologia da educação, cuja análise repousa na confluência
entre a estrutura de reprodução das relações de força e das relações simbólicas entre
as classes e a reprodução da estrutura de distribuição diferenciada do capital cultural
entre as classes, apontando os mecanismos pelos quais o sistema de ensino contribui
para a manutenção desse “círculo” (Bourdieu, 1974). Nas páginas da arss reforçam-se
essas primeiras formulações sistemáticas acerca das desigualdades sociais por meio
da cultura, além do entendimento de que o sistema escolar engendra um modo de
dominação específico, contribuindo assim nos processos de reprodução social.
A arss foi concebida no então criado Centre de Sociologie de l’Éducation et
de la Culture, dirigido por Bourdieu, pertencente à École des Hautes Études en
Sciences Sociales (ehess)3 e associado ao Centre National de la Recherche Scien-
tifique (cnrs). O laboratório surgiu em 1970 com a cisão do Centre de Sociologie
Européenne, fundado por Raymond Aron em 1959, do qual Bourdieu tinha sido o
secretário geral desde 1962. O lançamento da publicação continha como principal
objetivo, conforme revelado na apresentação não assinada, mas escrita por Bourdieu,
romper com o padrão seguido pelas demais revistas acadêmicas, possibilitando uma
abertura para o atelier do pesquisador. Tratava-se de dar ferramentas para o rompi-

3. A ehess foi criada em 1975 com base na sexta seção da École Pratique des Hautes Études, de 1947.

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mento da crença no senso comum, rescindindo igualmente com os formalismos da


publicação científica, expressando uma tomada de posição drástica:

O real acesso ao conhecimento dos objetos que são os mais frequentemente investidos de
todos os valores do sagrado como condição de liberar as armas do sacrilégio só ocorre se se
acreditar na força intrínseca da ideia verdadeira; o charme da crença só pode ser rompido
opondo-se a violência simbólica à violência simbólica e fornecendo, quando necessário, as
armas da polêmica a serviço das verdades conquistadas pela polêmica da razão científica
(Bourdieu, 1975, p. 3).

O periódico, transdisciplinar, esforçou-se para “desnacionalizar a ciência social”


e inovar na representação gráfica e nos resultados da pesquisa. Para Miceli (2002), a
revista procurou dar conta de um tríplice desafio: “afirmar um rosto teórico original
para o ofício de sociólogo, lançar as bases de alianças com cientistas sociais estran-
geiros considerados pares […] e testar os graus de universalização dos achados e dos
conceitos derivados dos seus experimentos de investigação”.
A intenção de Bourdieu ao criar a arss era romper com o ‘marasmo’ acadêmico
reinante na produção científica de então. Ele entendia que pouco havia mudado
nesse domínio com relação ao início dos anos de 1960 na França, em que as revistas
existentes (Revue Française de Sociologie, Les Cahiers Internationaux de Sociologie,
Archives Européennes de Sociologie, Sociologie du Travail e Études Rurales) não mo-
tivavam o debate em torno da sociologia que se praticava (Bourdieu, 2005, p. 62).
É oportuno lembrar, aqui, a empreitada de Durkheim ao fundar a revista L’Année
Sociologique, em 1896/1897, que se constituiu na primeira e mais antiga das revistas
científicas próprias das ciências sociais4, uma verdadeira demarcação da disciplina nas-
cente em relação às então dominantes. No prefácio a seu número inicial, Durkheim
redigiu uma espécie de manifesto programático da disciplina, além das 50 páginas
dedicadas à sociologia geral, “c´est-à-dire à tout la sociologie d´hier”5 (Simiand, 1987,
p. 4) e de outras 400 de análise sociológica com base em materiais empíricos diversos,
versando sobre a história das religiões, a história dos fatos morais da civilização, o
direito, a criminologia, a economia. Vale ressaltar ainda a importância assumida, nos
dias que correm, das publicações via revistas científicas no âmbito dos jogos referentes
à produção e à circulação científica, em que grande parte das guerras palacianas do
mundo científico podem ser observadas (arss, 2004/2005, 2006, 2009).

4. O primeiro número de L’Année Sociologique (1898), dirigida por Durkheim, então professor em Bor-
deaux, contou com a colaboração de Simmel, Richard, Lévy, Bouglé, Fauconnet, Hubert, Lapie, Mauss,
Milhaud, Muffang, Parodi, Simiand. Ver Simiand ([1898] 1987) e Karady (1988).
5. Tradução nossa: “isto é, à toda sociologia do passado”.

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Para Wacquant6, a arss, de maneira distinta de Esprit e Les Temps Modernes,

É mais uma revista científica que intelectual, de maneira que a validade metodológica e a ade-
quação empírica têm prioridade sobre a elegância literária e a retidão política. Em contraste
com L’Homme ou Annales: économies, societés, civilisations, entretanto, é obstinadamente
transdisciplinar, e atenta aos temas sociopolíticos da atualidade: é o órgão de uma ciência da
sociedade militante cujo público é basicamente, embora não exclusivamente, composto por
intelectuais (2002, p. 105, grifos no original).

Ao contrário das publicações de seu tempo, a arss, um verdadeiro ‘laboratório-


-em-ação sociológico’, procurou “desmascarar as formas sociais e os formalismos”
pelos quais a realidade dissimula a si mesma (Wacquant, 2002, p. 105), acabando
por multiplicar as experiências formais e as inovações estilísticas em duas dimensões.
Em primeiro lugar, não se publicam apenas artigos acadêmicos padrão, mas também

[…] resenhas curtas, peças polêmicas, notas de leitura, documentos inéditos e relatórios de
campo ou experimentos rigorosamente editados, auto-reflexivos […]. Em segundo lugar, o
artigo arquetípico dos Actes tece o texto com fotografias, fac-símiles de exposições e excertos de
entrevistas ou dados crus de observações em caixas e barras laterais dispostas ao longo do texto.
A revista utiliza também diferentes tipos e fontes e mistura estilos diretos e indiretos, tudo
em um esforço para uma precisão analítica com acuidade experimental (Idem, 2002, p. 105).

A publicação, hoje trimestral, divulgou, além de temáticas que perpassavam o


tecido social, artigos dedicados à economia dos bens culturais (pintura, livros, litera-
tura, moda, música, museus, academia, mito, ciência e as respectivas inter-relações),
à lógica da classificação social e à fabricação de coletivos sociais; textos referentes à
etnicidade, à região, à nação, à vida social, envolvendo a família, a empresa, o partido,
o Estado. A esse inventário de assuntos podem-se acrescentar estudos das estratégias
sociais de dominação, distinção e reprodução, bem como aqueles relativos às práticas
e aos poderes intelectuais, além de números sobre as novas formas de desigualdade
social e marginalidade originadas nos anos de 1990 (Wacquant, 2002, pp. 105-106).
Através da arss, Bourdieu manteve profícuo diálogo com renomados intelectuais
estrangeiros – Howard Becker, Aaron Cicourel, Robert Darnton, Norbert Elias,

6. Essa afirmação de Wacquant acerca da arss integra o trabalho de consagração por ele realizado e por
muitos daqueles que trabalharam com o autor. Para nós, a importância da revista no âmbito das Ciên-
cias Sociais reside em como Bourdieu a utilizou como mecanismo de divulgação de sua expedição so-
ciológica vinculado a um programa de investigação de caráter universal. Após sua morte, o jogo da
preparação dos dossiês rompe com essa dinâmica.

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Erving Goffman, Eric Hobsbawm, Carlo Ginzburg, Gershon Scholen, Joan Scott,
Carl Schorske, Paul Willis, Raymond Williams etc. Grande quantidade de colabo-
radores franceses também frequentaram as páginas da revista: Robert Castel, Luc
Boltanski, Abdelmalek Sayad, Patrick Champagne, Jean-Claude Chamboredon,
Yvette Delsaut, Monique de Saint Martin, Remi Lenoir, Louis Pinto, Gisèle Sapiro,
Michael Pollack, Roger Chartier, Nathalie Heinich, Christophe Charle, Jean Bollack,
Louis Marin, Jacques Bouveresse, Robert Linhart, Bruno Latour.
As atividades editoriais do sociólogo haviam se iniciado nos anos de 1960, com a
coleção Le Sens Commun, nas Éditions de Minuit, que dirigiu por quase trinta anos.
Após a arss, tal empreendimento estendeu-se com a criação, em 1989, da Liber:
Revista Européia de Livros (depois, com o subtítulo Revista Internacional de Livros),
veículo trimestral, encartado na própria Actes e também publicado sob a forma de
suplemento em jornais de grande circulação7. A Liber abriu-se para autores de vários
países, englobando aqueles que pertenciam a centros de produção intelectual situados
mais à margem. Tendo durado até 1998, era publicada em francês, alemão e italiano,
contando com versões em búlgaro, húngaro, sueco, romeno, grego, norueguês e turco.
Em 1995, além de integrar o Parlamento Internacional dos Escritores e o Comitê
Internacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos, Bourdieu criou a editora Liber-Rai-
sons d’Agir, depois apenas Raisons d’Agir (após sua morte seu filho, Jérôme Bourdieu,
passou a dirigir a editora), publicando pequenos livros densos, bem documentados
e baratos sobre problemas políticos e sociais da atualidade, escritos por sociólogos,
historiadores, economistas, escritores e artistas, que possuíam “a vontade militante
de difundir o saber indispensável à reflexão e à ação política em uma democracia”
(Wacquant, 2002, p. 100). Sua intenção era a de constituir uma espécie de “enci-
clopédia popular internacional”. A maioria desses livros foi publicada em reação ao
cerceamento da mídia e do mercado editorial, que se recusavam a discutir, aprofundar
e editar temas que, se escamoteados, continuariam a contribuir para a manutenção
do que o autor definiu como sendo “os fundamentos ocultos da dominação”.
Em seu número inaugural, a arss continha um “manifesto reivindicando,
explicitamente, o direito de publicar textos não definitivos”. Nessa sistemática
adotada, explica Bourdieu em entrevista, “as retomadas dos artigos em livros não
são simplesmente patchworks”. Na maioria das vezes, foram trabalhos planejados
que desenvolveu por etapas, produzindo “peças pensadas como elementos de um
conjunto […]. Por esse procedimento chega-se a fazer construções de uma coerência

7. Em três jornais diários (Le Monde, França; El País, Espanha; Frankfurter Allgemeine Zeitung, Alema-
nha) e em outras duas publicações especializadas (Indice, Itália e Times Literary Supplement, Inglaterra),
ver Ferenczi (2004). No Brasil, Sergio Miceli foi o responsável pela seleção e organização de uma cole-
tânea de artigos publicados na Liber (Edusp, 1997).

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e de uma complexidade impossíveis de alcançar pela simples redação de um plano


linear” (Bourdieu e Delsaut, 2005, pp. 186-188).
Parte significativa da produção do autor encontrada na revista arss, em forma de
rascunho, serviu como ensaio à maioria dos trabalhos que resultaram em seus livros
(Idem, 2005, p. 187). O mapeamento8 dos 11 artigos ali publicados – arrolados no
final deste texto – insere o pensamento de Bourdieu acerca da temática educacional9
em um movimento contínuo, inscrevendo-a em sua trajetória intelectual.

A educação como objeto sociológico de Bourdieu na arss

A educação aparece como objeto na arss desde seu primeiro número, na sessão in-
titulada ‘Estudo comparado dos modos de dominação’, cujos autores Francine Muel
e Claude Grignon apresentaram, respectivamente, os artigos “L´école obligatoire
et l’invention de l’enfance anormale” (A escola obrigatória e a invenção da infância
anormal, 1975, pp. 60-74) e “L’enseignement agricole et la domination symbolique
de la paysannerie” (O ensino agrícola e a dominação simbólica dos agricultores,
1975, pp. 75-92).
No número 2 da arss aparece pela primeira vez um artigo de Bourdieu e Luc
Boltanski, “Le titre et le poste: rapports entre le système de production et le systéme
de reproduction” (O diploma e o cargo: relações entre o sistema de produção e o
sistema de reprodução10). Nele se enfatiza a análise da relação entre o aparelho eco-
nômico e o sistema de ensino, ressaltando-se a necessidade de distinguir a dinâmica
própria da economia – responsável pelas mudanças da estrutura de cargos – e o
sistema de ensino, produtor das capacidades técnicas dos produtores e dos diplomas
de que são portadores (1975, p. 98). Evidencia-se a questão da mobilidade social,
demonstrando-se ser ela reduzida à mobilidade individual, uma vez que é produto
da transformação das relações entre o aparelho de produção dos agentes (sistema
escolar) e da mudança do aparelho econômico, entre a defasagem do habitus e as
estruturas. O artigo terá prolongamento em “Classement, déclassement, reclasse-
ment” (1978), publicado na arss, comentado nas páginas seguintes, e integrando
o segundo capítulo de La distinction (1979).

8. Tal levantamento foi trabalhado preliminarmente em Medeiros (2007 e 2013).


9. Fazem parte dessa preocupação os livros Les héritiers (1964), La reproduction (1970), Homo acade-
micus (1984) e La noblesse d’État (1989). Ademais, os artigos de “A economia das trocas simbólicas”
(1974) demonstram a gênese da interpretação sistemática do autor nesse domínio: “Sistemas de En-
sino e Sistemas de Pensamento” (1967); “A Excelência e os Valores do Sistema de Ensino Francês”
(1970); “Reprodução Cultural e Reprodução Social” (1971).
10. Traduzido em Nogueira e Catani (orgs.) (1998, pp. 127-144).

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Em “Le titre et le poste” pode-se observar a existência de uma defasagem entre a


estrutura das profissões e a produção de produtores pelo sistema escolar, ocasionan-
do “desajuste” com relação às demandas do mercado de trabalho, possibilitando o
que Bourdieu chamaria de “inflação de diplomas”. Nogueira e Catani (1998, p. 12)
escrevem que anos depois, no livro Homo academicus (1984), Bourdieu se mostrará
hesitante quanto ao emprego da analogia da inflação, “à qual recorri em fase anterior
de meu trabalho”, uma vez que certas estratégias individuais ou coletivas dos agen-
tes, como, por exemplo, a criação de novos mercados e profissões, podem proteger
portadores de certificados escolares desvalorizados (Bourdieu, 1984, p. 214).
Ainda em 1975, no terceiro número da arss, registra-se o artigo “Les catégories
de l’entendement professoral” (As categorias do juízo professoral11), escrito com
Monique de Saint Martin. Com base em material empírico composto por 154 fichas
de avaliação de alunas de um curso preparatório à École Normale Supérieure de Paris,
nos anos de 1960, que fornecem informações sobre cada estudante, a profissão e o
endereço dos pais, bem como notas de tarefas escolares e apreciações de intervenções
orais, suas reflexões se dedicam às formas de classificação e às funções sociais deste
sistema classificatório, produzidas cotidianamente pelos professores de maneira
dissimulada e distante da intenção pedagógica.
Ambos constatam que os julgamentos mais favoráveis e as notas vão se elevan-
do na medida em que a posição social da aluna se eleva – embora percebam que o
primeiro elemento esteja mais fortemente correlacionado à origem social do que a
nota. Entendem, ainda, ser bem mais relevante a demonstração que

Nada escapa ao julgamento operado pelo docente na hora de avaliar o produto do trabalho
discente […]. Para além dos “critérios internos” de avaliação de um determinado tipo de conhe-
cimento (domínio do campo, vocabulário técnico, entre outros), levam-se em conta, sobretudo,
“critérios externos” tais como postura corporal, maneiras, aparência física, dicção, sotaque,
estilo da linguagem oral e escrita, cultura geral etc. (Nogueira e Catani, 1998, pp. 12-13).

Serão analisadas, assim, as formas escolares de classificação que, a exemplo das “for-
mas primitivas de classificação” das quais falavam Durkheim e Mauss, transmitem-se
essencialmente na e pela prática, externa a qualquer intenção pedagógica (Bourdieu
e Saint Martin, 1975, p. 69). Destacam os efeitos lógicos inseparáveis dos efeitos
políticos, considerando a taxionomia escolar pela qual o sistema de classificação
expressa ideologia em estado prático, uma vez que guarda relação com a definição
explícita de excelência, valendo-se de predicados daqueles que são socialmente do-

11. Traduzido em Nogueira e Catani (orgs.) (1998, pp. 185-216).

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minantes. Tal taxionomia explicita qualidades positivas (elegância, brilho, fineza,


graça, dom, desenvoltura, originalidade, distinção, espontaneidade) e predicados
que quase atingem as raias da negatividade ou, em muitos casos, atingem mesmo:
esforço, modéstia, lisura, precisão, correção, pueril, vulgar, mal feito, pesado, estreito,
desajeitado, medíocre.
Sob uma aparente neutralidade, o sistema de ensino se converte em uma máquina
classificatória, consagrando a ordem social, enquanto os professores, autoridades
delegadas desse sistema, exercem o julgamento dos alunos. A taxionomia escolar
interpõe-se entre o indivíduo e sua trajetória, pronunciando o veredicto escolar.
Realizando um paralelo, por meio de um trecho da aula de Bourdieu no Collège
de France, podemos caracterizar a força desse veredicto no destino de um aluno:

Sem chegar a dizer, como Durkheim, que “a sociedade é Deus”, eu diria: Deus não é nada
mais do que a sociedade. O que se espera de Deus somente se consegue obter da sociedade, da
contingência […]. O juízo dos outros é o juízo final; e a exclusão social é a forma concreta do
inferno e da danação. É também porque o homem é um Deus para o homem que o homem
é um lobo para o homem (Bourdieu, 1982, p. 33).

“Classement, déclassement, reclassement” (Classificação, desclassificação e reclas-


sificação12), de Bourdieu (1978), saiu no volume Le déclassement (A desclassificação)
e aborda as transformações das relações entre as distintas classes sociais e o sistema
de ensino. Como exposto antes, o artigo transformou-se em parte do capítulo 2,
“L’espace social et ses transformations”, de La distinction.
Bourdieu retoma parte da argumentação desenvolvida em “Le titre et le poste”,
apontando as alterações na estrutura social advindas da modificação de relações que
se estabelecem entre os diplomas e os cargos como sequela de uma intensificação
da concorrência pelos títulos escolares, desencadeada por classes e frações de classe
dominantes, com o intuito de assegurar sua reprodução. O ingresso de frações de
classe que até então não tinham acesso à escola, na disputa pelos títulos escolares,
obrigou as frações cuja reprodução se garantia primordialmente pela escola a in-
tensificar seus investimentos para manter a distinção de seus diplomas. De acordo
com a posição que ocupam no espaço social, os diferentes grupos vão travar em
torno do diploma verdadeira luta por sua classificação para não se desclassificarem
ou para se reclassificarem, pois com o mesmo nível de diploma assumem-se postos
gradativamente menos elevados na hierarquia ocupacional.

12. Traduzido em Nogueira e Catani (orgs.) (1998, pp. 145-183).

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Os detentores de capital social herdado, graças a uma origem social elevada,


resistem à desvalorização dos diplomas, sendo o grau de resistência proporcional
à posição que cada jovem ocupa na hierarquia dos diplomas. Valem-se de várias
estratégias para assegurar a posição que lhes era garantida em época anterior, com o
mesmo título. As grandes vítimas dessa desvalorização são os ingressantes no mercado
de trabalho sem diplomas e, também, privados de capital social.
Na revista número 30 (1979), L’Institution Scolaire (A Instituição Escolar),
encontra-se o artigo, “Les trois états du capital culturel” (Os três estados do capital
cultural13). Centrando-se na exposição de capital cultural, escreve que essa noção:

[…] impôs-se, primeiramente, como uma hipótese indispensável para dar conta da desigualda-
de de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais, relacionando
o ‘sucesso escolar’, ou seja, os benefícios específicos que as crianças das diferentes classes e
frações de classe podem obter no mercado escolar, à distribuição do capital cultural entre as
classes e frações de classe (1979, p. 3).

Acrescenta que tal ponto de partida significa “uma ruptura com os pressupostos
inerentes tanto à visão comum, que considera o sucesso ou o fracasso escolar como
efeito das ‘aptidões’ naturais, quanto às teorias de ‘capital humano’” (1979, p. 3).
Entende que o capital cultural possui relação de homologia com o capital econômico,
permitindo a seu possuidor a obtenção de vantagens ou lucros sociais. Ele se materia-
liza em três formas: no estado objetivado, sob a forma da detenção de bens culturais
(quadros, livros, dicionários, máquinas, instrumentos, monumentos), transmissíveis,
como dinheiro, de maneira quase instantânea no que se refere à propriedade jurídica.
A segunda no estado institucionalizado, consolidado em títulos, diplomas, certifi-
cados escolares, que agem como atestados de formação cultural. Da mesma maneira
que o dinheiro possui relativa independência em relação ao portador do título:

Produto da conversão de capital econômico em capital cultural, estabelece o valor, no plano


do capital cultural, do detentor de determinado diploma em relação aos outros detentores de
diplomas e, inseparavelmente, o valor em dinheiro pelo qual pode ser trocado no mercado de
trabalho – o investimento escolar só tem sentido se um mínimo de reversibilidade da conversão
que ele implica for objetivamente garantido (1979, p. 6).

O capital cultural se apresenta, também, em estado incorporado, como cultu-


ra internalizada, sob a forma de disposições duráveis do organismo, um habitus,

13. Traduzido em Nogueira e Catani (orgs.) (1998, pp. 71-79).

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pressupondo longo trabalho de inculcação e assimilação, que deve ser investido


pessoalmente pelo interessado – “tal como o bronzeamento, essa incorporação não
pode efetuar-se por procuração” (1979, p. 4, grifos do original).
Em 1981, o tema das Grandes e Pequenas Escolas (Grandes et Petites Écoles14),
desenvolvido em três longos artigos na arss, aparece no texto de Bourdieu, “Épreuve
scolaire et consécration sociale: les classes préparatoires aux Grandes Écoles” (Prova
escolar e consagração social: as classes preparatórias às Grandes Escolas), escrito com
base em pesquisas que realizou com Yvette Delsaut e Monique de Saint Martin, focan-
do no estudo das escolas de elite francesas, universo das formas possíveis de formação
e consagração daqueles destinados a ingressar/permanecer nas posições dominantes,
das quais a maioria já é proveniente. A análise centra-se nas classes preparatórias, en-
carregadas da preparação dos alunos ao concurso a uma Grande École (ge), tratadas
como instituições dominadas pela lógica do concurso para alunos integráveis, expressa
na imposição da organização do trabalho escolar, controle do tempo, prescrição das
disciplinas escolares e incitação à competição.
As características objetivas dessas instituições escolares e das disposições social-
mente constitutivas dos seus agentes permitem avaliar a mágica social da consagração,
que ocorre mais fortemente quando o candidato estiver predisposto a reconhecê-la
e a se submeter a seus princípios tácitos. A análise das escolas preparatórias às ge
desenvolve-se com base em várias fontes, demonstrando o longo processo de obje-
tivação pretendido com a pesquisa. Em 1968 aplicaram-se questionários aos alunos
dessas classes, sendo 330 de turmas de premiére supérieure (Khâgne15) de liceus de
algumas cidades da França (Paris, Brest, Clermont-Ferrand, Lille, Lyon, Toulouse) e
880 questionários aplicados aos alunos das classes de Matemática Especial (Taupe16),
também distribuídos pelo país (Paris, Neully-sur-Seine, Clermont-Ferrand, Lille,
Lyon, Toulouse e Versailles). Foram utilizadas duas pesquisas anteriores com 6 mil
alunos em ciências e 2.300 em ciências humanas (lettres), além de se entrevistarem
quarenta alunos e outros 160 professores de Paris e do interior; houve, ainda, o recurso
a informantes (diretores, antigos professores e alunos), ao mapeamento de documen-

14. No sistema de ensino superior francês há uma nítida separação entre as Grandes Écoles, criadas na tra-
dição universitária do Ancien Régime, mas compondo as instituições da Revolução, e as Universidades,
mais novas, receptoras das massas e hierarquicamente menos prestigiosas.
15. Khâgnes (primeiro ano superior): “nos liceus, classes superiores de letras que operam também como
cursos preparatórios para as Escolas Normais (Ulm, Sèvres) nas áreas humanísticas de letras e filosofia,
nos quais são recrutados os professores do ensino superior, os pesquisadores e demais intelectuais de
maior prestígio no campo intelectual francês; por extensão, os alunos dessas classes”. Seus alunos são
chamados de khâgneux. Nota de Sergio Miceli para a tradução brasileira de Bourdieu (2005, p. 41).
16. Taupes: classes de matemáticas especiais que preparam para o ingresso nas grandes escolas e na Escola
Politécnica; seus alunos são chamados de taupins.

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tos relativos ao aspecto mais ritualizado da vida nas classes preparatórias (boletins,
comunicados), além do recenseamento das expressões da experiência mais íntima dos
efeitos produzidos pelo processo de consagração e de produção da crença (1981, p. 6).
O texto é ricamente ilustrado com resultados das análises e o relato das percep-
ções das experiências de alunos e professores dessas instituições. Procurando romper
com as evidências e se afastar da familiaridade, reflete sobre os efeitos da seleção e
da transformação durável e profunda da consagração escolar como garantia de dis-
posições cultivadas, identificando, assim, os fundamentos dessas classes dominadas
pela lógica dos concursos de admissão.

O que distingue as classes preparatórias das outras instituições de ensino superior […] é o
sistema dos meios institucionais de iniciação, constrangimentos e controles que são acionados
para reduzir toda a existência daqueles que se chamam ainda, aqui, de alunos (em oposição
aos estudantes) a uma sucessão ininterrupta de atividades escolares intensivas, rigorosamente
regradas e controladas tanto em seu momento quanto em seu ritmo (1981, p. 7).

Do ponto de vista do efeito pedagógico, o valor recai na maneira como se ensi-


na e não no que é ensinado em si; o essencial do que é transmitido se situa não no
conteúdo aparente, programas e cursos, mas na organização da ação pedagógica. Tal
ação é mais sentida pelos alunos pelo fato de muitos deles se encontrarem em regime
de internato, devendo sua força se desenvolver sob um silêncio essencial, visto como
necessário, e fadado a escapar das discussões e da consciência críticas.
O domínio do tempo para garantir a produtividade, bem elevada nessas classes
preparatórias, pressupõe um conjunto de condições institucionais, tais como a
imposição de disciplinas e controles escolares, e o acionamento de um sistema de
incitação destinado a encorajar a competição no interior de um grupo de colegas
(1981, p. 10). O efeito do enquadramento total das classes preparatórias expressa-
-se no rendimento máximo, garantido pela presença obrigatória, pelo papel dos
professores no controle e pela determinação da quantidade elevada de trabalhos e
exercícios, nos concursos relâmpagos, na proclamação pública de notas e de classifi-
cações, entre outros. Através desses mecanismos impõe-se uma relação instrumental
e pragmática com o trabalho intelectual (1981, p. 11).
Invocando a análise de Durkheim acerca do ensino jesuíta como infligindo uma
cultura intensiva e forçada, afirma que esses adolescentes, isolados durante três ou
quatro anos em um universo protegido e dispensado de toda preocupação material,
sabem sobre o mundo apenas o que aprendem em trechos escolhidos de livros, nas
questões de curso e de concurso, sendo o trabalho de inculcação da classe preparatória
concebido para produzir “inteligências forçadas” (1981, p. 12).

May-Aug. 2018 181


A sociologia da educação de Bourdieu na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, pp. 171-195

Em relação aos professores das classes preparatórias, “o corpo de treinadores”, por


serem recrutados entre a elite dos professores de liceu (ensino médio), assumem papel
totalmente dedicado à função professoral. O desempenho da sua ação pedagógica
centra-se na repetição para instruir a respeito da organização do exercício e do enqua-
dramento do trabalho de aprendizagem, secundarizando-se a transmissão do saber.
Os professores encontram-se no centro dos mecanismos de reprodução do sistema
do qual são os produtos; são emanados pela lógica de um sistema completo voltado
para o concurso e, dispondo das condições favoráveis para um treinamento intensivo,
inculcam certo tipo de cultura e de relação com a cultura com base em técnicas de
retórica e de exposição dos conteúdos, em detrimento da reflexão, da pesquisa e do
espírito inventivo de apropriação do conhecimento (1981, p. 14).
Quanto às características mais significativas das escolas de elite (Classes Pre-
paratórias das ge e as ge, elas mesmas), Bourdieu assevera que elas só podem ser
plenamente compreendidas com a condição de perceber sua função de consagração
(ou de sociodicéia) e seu ritual de consagração, pois as operações técnicas do processo
educativo não são técnicas, mas sociais, determinadas simbolicamente. Afirma que

O processo de transformação que se realiza nas escolas de elite é um rito de passagem que,
por meio de operações mágicas de separação e de agregação […], tende a produzir uma
elite consagrada, quer dizer, não somente distinta, separada, mas também reconhecida e
reconhecendo-se como digna de ser, em uma palavra, distinguida (Bourdieu, 1981, p. 30).

Os alunos já consagrados acabam sendo consagrados através dos efeitos da ação


pedagógica anterior, responsável por inculcar-lhes as disposições necessárias para o
ingresso e permanência na instituição. A nobreza escolar constitui-se em disposição
imposta pelo grupo aos considerados nobres pelo grupo, e o pertencimento a essa
esfera exclusiva autoriza tais pessoas a realizarem as obrigações que se espera que
realizem, quase assumindo as características de um ato mágico.
A renhida competição no interior das Classes Preparatórias ou “a lógica do
concurso permanente e do investimento permanente no concurso” (1981, p. 50),
é considerada um dos deveres de tal nobreza. Os aspirantes às ge realizam investi-
mento total nessa competição, sendo um exemplo da ideia de illusio. Para eles, esse
jogo social vale a pena ser jogado, há sentido nos pesados investimentos de tempo e
de energia dedicados aos estudos, no aceite absoluto dos conteúdos ensinados e nos
métodos de ensino. Não há o reconhecimento do ato arbitrário presente em todo
esse processo (nas provas, na ação pedagógica dos professores e nos concorrentes),
isto é, nos valores que ancoram a concorrência e naquilo que se pretende obter: o
título escolar.

182 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 30, n. 2


Ana Paula Hey, Afrânio Mendes Catani e Cristina Carta Cardoso de Medeiros

Em 1987 há dois números com o título Pouvoirs d’école 1 et 2 (Poderes da escola


1 e 2). No primeiro, Bourdieu e Monique de Saint Martin publicam “Agrégation
et ségrégation: le champ des Grandes Écoles et le champ du pouvoir” (Agregação e
segregação: o campo das Grandes Escolas e o campo do poder). No número seguinte
ele escreve “Variants et invariants: éléments pour une histoire structurale du champ
des Grandes Écoles” (Variantes e invariantes: elementos para uma história estrutural
do campo das Grandes Escolas).
Em “Agrégation et ségrégation” constatam que artigos ou livros consagrados às
ge geralmente derivam da relação socialmente instituída desta instituição: quanto
mais a escola é legítima, maior será o número de monografias a ela dedicadas. Veri-
ficam que a maioria dos trabalhos aborda uma só escola, apreendendo-a em termos
isolados, independentemente das relações objetivas que a une às outras ge e, de forma
mais geral, às outras instituições de ensino superior. A posição atual ou potencial
da escola estudada, avaliada a partir da hierarquia dos estabelecimentos, também
parece ser o foco e o princípio da maioria dos discursos sobre tais estabelecimentos.
O escopo dos autores com o estudo que arrima o artigo é apreender a estrutura
do campo das ge tomando como parâmetro instituições que pudessem ser repre-
sentativas do universo observado. Descrevem a maneira como realizaram a pesquisa,
explicando que através da aplicação de um questionário obtiveram indicadores
objetivos das posições ocupadas nesse espaço, identificando, portanto, o campo e
o subcampo das ge e demonstrando, ainda, a estrutura do campo das instituições
escolares que contribuíam para assegurar tais posições.
Consideram um campo o universo dos estabelecimentos de ensino superior
(Grandes ou Pequenas Escolas, Faculdades e Classes Preparatórias), sendo elemento
estruturante o conjunto das relações objetivas entre os estabelecimentos ou entre
os agentes que lhe são correspondentes. Esse campo se organiza segundo uma es-
trutura homóloga à do espaço social em seu conjunto, em que as ge ocupam o polo
dominante e constituem, elas mesmas, um subcampo bem delimitado, cuja estrutura
guarda relações de homologia com o campo do poder.
Para Bourdieu e Saint Martin, levando-se em consideração o conjunto das ins-
tituições pelo indicador origem social dos alunos ou o status das escolas (Pequenas
ou Grandes), o campo dos estabelecimentos de ensino superior se diferencia por
meio do acúmulo de prestígio social. O maior prestígio se percebe nas ge mais
reconhecidas – a École Normale Supérieure (rua d’Ulm), a École Polytechnique
e a École Nationale d’Administration –, que permitirão acesso às posições mais
elevadas do espaço social. As pequenas instituições, gozando de menor prestígio,
abonarão acesso às posições médias. O principal efeito social que emana do campo
das instituições de ensino superior e do subcampo das ge tem seu princípio em uma

May-Aug. 2018 183


A sociologia da educação de Bourdieu na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, pp. 171-195

dupla homologia estrutural: a homologia entre a oposição fundamental do campo,


separando as Grandes das Pequenas Escolas ou das faculdades, constituindo assim
um dos pontos mais estratégicos de todo o espaço social, uma fronteira contrastada
e definitiva entre a grande burguesia e a pequena burguesia. O subcampo das ge
se caracteriza também por outra homologia: pela oposição fundamental entre as
escolas ‘intelectuais’ e as escolas do poder e a oposição que, no campo do poder,
separa o polo intelectual ou artístico do polo do poder econômico ou político. Esse
segundo efeito social ocorre com base naquilo que os autores denominam uma
“verdadeira solidariedade orgânica”, que consagra as identidades sociais, ao mesmo
tempo concorrentes e complementares, porque solidárias, reunindo os alunos eleitos
socialmente que asseguram a excelência do subcampo e produz um esprit de corps,
denominado “grandes corpos” (1987, p. 18).
Com base nessa pesquisa percebem os mecanismos escolares como perpetua-
dores das diferenças constitutivas desse espaço social: nas ge existe a tendência da
manutenção de tais diferenças baseada na estrutura do capital herdado entre alunos
originários de distintas regiões do espaço social e do campo do poder. A origem
social e o capital escolar entre as diferentes escolas como resultado de escolhas que
se instauram na relação entre o habitus estruturado dos selecionadores dessas escolas
e os selecionados, bem como a estrutura do campo das instituições escolares, são
entendidos como responsáveis pela distribuição dos alunos em tal espaço (Bourdieu
e Saint Martin, 1987, p. 18).
Após essas operações de seleção envolvendo as Classes Preparatórias e os concursos
como ritos de instituição, são estabelecidas descontinuidades definitivas, fazendo
com que, pelo arbitrário de uma fronteira social, o último selecionado seja separado,
para sempre, do primeiro recusado. A consagração que assegura a obtenção da agre-
gação em uma escola de prestígio tende a escotomizar nos agregados as inseguranças
de sua história biográfica; o “ponto zero” ou inicial de sua trajetória irá determinar
uma trajetória provável, compreendendo-se aí o desenho de uma carreira que não
se situe tão distante desse “ponto zero” reconstruído – isso porque o título escolar
garante um destino (social). No artigo citado identifica-se a aplicabilidade de ou-
tra noção central na sociologia de Bourdieu, a de campo, que se constitui em uma
maneira de descrever as lutas concorrenciais travadas no espaço social selecionado e
delimitado17. Em termos analíticos, campo é uma configuração de relações objetivas

17. Além de alguns textos que sistematizam a noção, como “Quelques propriétés des champs” (Bourdieu,
1980), ela é melhor compreendida nos seus livros – destaquem-se Les règles de l´art (1992), sobre a
constituição do campo literário na segunda metade do século xix e La noblesse d´État, que está sendo
aqui debatido. Para uma discussão do campo acadêmico brasileiro, ver Hey (2008); sobre outras pos-
sibilidades analíticas dessa noção, ver Catani (2013).

184 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 30, n. 2


Ana Paula Hey, Afrânio Mendes Catani e Cristina Carta Cardoso de Medeiros

entre posições – posições essas estabelecidas em sua existência e nas determinações


que impõem a seus ocupantes (agentes ou instituições) por sua situação atual e po-
tencial na estrutura da distribuição de diferentes espécies de poder e de capital. Seu
funcionamento é o mesmo de um campo magnético, capaz de impor aos objetos e
aos agentes que nele penetram uma gravidade específica (1987, p. 16).
O outro artigo de Bourdieu, “Variants et invariants” (1987), inicia-se com ques-
tionamentos: qual é a validade, após vinte anos, de um estudo sobre o campo das ge
realizado em 1967? Tal investigação valeria apenas como descrição histórica de um
determinado momento ou não se revestiria de maior importância pelo fato de se apoiar
em dados antigos? Para ele, os que consideram apenas o aspecto superficial do trabalho
científico, reduzindo o sociólogo ou o historiador ao status de jornalistas levados a
realizar discursos tão efêmeros quanto seus objetos de estudo, não demonstrariam
interesse em tais abordagens (1987, p. 3). Com base em uma concepção oposta, o autor
reforça esse gênero de pesquisa por servir de referência a outras mais recentes, pois

[…] é na condição de se ter em mente todas as transformações pelas quais passou a estrutura
do campo das instituições de ensino superior – e do subcampo das Grandes Escolas de forma
particular – que se podem interpretar de forma adequada fatos aparentemente tão simples
como a representação, em distintas épocas, dos alunos oriundos de diferentes classes sociais
em uma instituição determinada (1987, p. 3).

Para Bourdieu seria preciso abstrair, dos fatos mais gerais das experiências dos
agentes, os fatos mais anedóticos, que poderiam acabar ocupando todo o campo de
visão (os livros, os intelectuais da época, os filmes, as fotos antigas que mostram as
roupas e os cortes de cabelo usados) impedindo, talvez, de se verificar a constância
das estruturas profundas e as transformações que por acaso possam ter sofrido
(1987, p. 4). É esse o problema proposto pelo sociólogo no texto. A pesquisa inicial
realizada nos anos de 1960 passa a ser o parâmetro para identificar em que medida
a estrutura do campo dos estabelecimentos de ensino superior se conservou ou se
modificou – e, nesse caso, qual o sentido da transformação.
Examinando estatísticas do recrutamento social dos estudantes para 1984-1985 e
realizando comparações destes dados com os de bases análogas referentes ao período
1966-1970, é possível apreender a estrutura das instituições de educação superior na
França. Com base nisso, Bourdieu afirma que a distribuição dos estabelecimentos
de ensino superior apresenta uma estrutura global semelhante à do período anterior
a 1968. O movimento soixante-huitard, ao invés de atingir um dos seus objetivos,
qual seja, revolucionar as estruturas do campo das instituições de ensino superior,
parece ter favorecido reações coletivas e individuais que as reforçaram.

May-Aug. 2018 185


A sociologia da educação de Bourdieu na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, pp. 171-195

Na análise da distribuição das instituições de ensino superior, o primeiro fator


distingue os estabelecimentos de acordo com o volume global de capital herdado
(1987, p. 4). Alunos oriundos das classes dominantes estão presentes, majorita-
riamente, em algumas instituições (European Business School, École Supérieure
de Sciences Économiques et Commerciales e École Nationale d’Administration),
sendo minoritários nos Institutos Universitários de Tecnologia e nas Faculdades de
Letras, reservados aos filhos de trabalhadores. Encontram-se no cume da hierarquia
Grandes Escolas – a Polytechnique (engenharia e arquitetura) e a École Normale
Supérieure, de Paris –, mas também outras menos exigentes academicamente, como
as de comércio e de gestão.
Bourdieu demonstra o crescimento da École Nationale d’Administration nas
disputas pelo recrutamento dos alunos que antes se dirigiam às ge, provocando fortes
transformações no conjunto do campo. Ao mesmo tempo, apresenta o florescimento
de novas instituições (escolas de gestão, marketing, publicidade, jornalismo) que
atenderiam às estratégias dos filhos da burguesia de negócios que visam burlar o rigor
da ‘lei escolar’ (1987, p. 8), pois não conseguiram ingressar nas ge e se recusaram
a cursar pequenas escolas ou faculdades. São as chamadas “escolas refúgio” (1987,
p. 19), exigindo dos que dependem da consagração escolar para a reprodução de
suas posições sociais menor investimento escolar. O sucesso de tais escolas estaria
associado ao desenvolvimento dessa nova demanda educacional, satisfazendo aos
anseios dos jovens burgueses e de suas estratégias de reprodução social.
Destaca-se no artigo a exposição das “guerras palacianas” (ver Dezalay e Garth,
2002, para o uso da definição em outros contextos) na qual Bourdieu discorre
acerca da necessidade de se conhecer as alterações no subcampo das ge, a fim de
entender a reprodução do campo do poder. Assim, aponta as lutas de concorrência
entre estas instituições, sendo que as mudanças na posição assumidas em relação
à composição do campo do poder decorrem da estrutura das relações de força
que se estabelecem entre si. As estratégias por elas engendradas para melhorar tal
posição dependem do volume do capital específico – ao mesmo tempo social e
escolar – de cada uma e da estrutura desse capital. Esse aspecto permite medir o
peso do capital escolar, por meio da raridade das competências garantidas, e do
capital social, relativo ao valor social atual ou potencial de seu público, tanto o
de agora quanto o do passado (1987, p. 8). As guerras palacianas se travam em
torno do acúmulo do capital simbólico das ge e de suas disposições para garantir
privilégios e distinções àqueles por elas cooptados (socialmente), e apenas algumas
escolas conseguem impor sua hegemonia em termos de suas posições relativas na
hierarquia social e escolar – casos da École des Hautes Études Commerciales e da
École Nationale d’Administration.

186 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 30, n. 2


Ana Paula Hey, Afrânio Mendes Catani e Cristina Carta Cardoso de Medeiros

Em 1992, nos números 91-92 do dossiê Politiques (Políticas), Bourdieu escreve


dois artigos na sessão intitulada “La souffrance” (O sofrimento18): “Les exclus de
l’intérieur” (Os excluídos do interior19), com Patrick Champagne, e “L’École et la
cité” (A escola e a cité 20). Ambos os trabalhos integrariam, em seguida, o livro que
Bourdieu organiza La misère du monde (A miséria do mundo).
Em “Les exclus de l’intérieur”, os autores detectam uma sensação contínua de mal-
-estar quanto ao universo escolar. A partir dos anos de 1950 várias transformações
afetaram o sistema de ensino:

[…] uma das que tiveram maiores consequências foi […] a entrada no jogo escolar de cate-
gorias sociais que, até então, se consideravam ou estavam praticamente excluídas da escola,
como os pequenos comerciantes, os artesãos, os agricultores e mesmo […] os operários da
indústria; processo que implicou uma intensificação da concorrência e um crescimento dos
investimentos educativos por parte das categorias que já utilizavam, em grande escala, o
sistema escolar (1992, p. 72).

Um dos efeitos mais paradoxais desse processo – definido de modo precipitado


e estigmatizador como “democratização” – desvela-se, paulatinamente, para a “nova
clientela” do sistema de ensino (“os mais despossuídos”), pela constatação de que
apenas o ingresso no ensino secundário não era o bastante para se obter sucesso nele
e, em especial, para alterar sua posição social com o término dos estudos21.
Por meio das pesquisas nos domínios das ciências sociais sobre a educação é
possível perceber progressiva transformação no discurso dominante acerca da insti-
tuição escolar: o êxito ou o fracasso na escola deixam de ser atribuídos às deficiências
pessoais dos excluídos ou à capacidade de superdotados dos “exitosos”. Assim, as
reformas globais do sistema, reconhecidamente deficiente, envolvendo professores,
currículos, sistemas de avaliação e políticas públicas em geral, preponderam em re-

18. Entre os números 90 e 93 publicaram-se vários artigos sob essa rubrica, com base em pesquisa sobre
o sofrimento social daquelas pessoas que estão “mal dans leur peau”, geradas pelo incômodo de sua
posição social. Centrada na realização de mais de 150 entrevistas, origina a obra La misère du monde
(1993). Essa enquete foi financiada pelo Programa de Desenvolvimento Solidariedade, da Caisse des
Depôts et Consignations, da França.
19. Publicado em Nogueira e Catani (orgs.) (1998, pp. 217-228), e em La misère du monde; neste, porém,
sem a entrevista que compunha o texto original.
20. Esse termo não tem tradução exata para o português; refere-se, no contexto, aos conjuntos habitacio-
nais das periferias das grandes cidades.
21. O livro 80% au bac et après? Les enfants de la démocratisation scolaire, de Stéphane Beaud (2002),
ilustra esse desencantamento com a democratização escolar como categoria de promoção social aos
jovens de classes populares. O estudo longitudinal (1991-2001) merece atenção pelo relato daqueles
diretamente tocados pelas ilusões da mobilidade social via prolongamento da escolaridade.

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A sociologia da educação de Bourdieu na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, pp. 171-195

lação a talentos ou deficiências dos alunos. Em suma, “a lógica da responsabilidade


coletiva tende […] a suplantar, nas mentes, a lógica da responsabilidade individual,
que leva a ‘repreender a vítima’” (1992, p. 72).
O processo de eliminação dos alunos das classes desfavorecidas foi adiado e
diluído, encontrando-se, na escola, “excluídos potenciais, vivendo as contradições
e os conflitos associados a uma escolaridade sem outra finalidade que ela mesma”
(1992, p. 72). A instituição escolar é vista “tanto pelas famílias como pelos próprios
alunos, como um engodo e fonte de uma imensa decepção coletiva: uma espécie
de terra prometida, sempre igual no horizonte, que recua à medida que nos apro-
ximamos dela” (1992, p. 72). Assim, tal exclusão é ainda mais estigmatizante se
comparada às exclusões do passado, pois, a rigor, tais alunos tiveram suas chances
e não as aproveitaram.
O segundo texto, “L’école et la cité”, traduzido como “Ah! Os belos dias”, é
ilustrativo da análise anterior, em que Bourdieu comenta a entrevista feita por ele e
Rosine Christin com um filho de imigrante argelino de 19 anos. Detecta, no depoi-
mento desse estudante, espécie de “teoria da economia das trocas escolares” (1992,
p. 87), procurando ilustrar a forma de sobreviver na escola sem muito esforço. O
objetivo dessa permanência seria tentar retardar a entrada na vida adulta, fugindo
do temor do ingresso no mercado de trabalho – para esse estudante, possivelmente,
o temor “da fábrica”.
No número 105 da arss (1994), denominada Stratégies de reproduction et trans-
mission des pouvoirs (Estratégias de reprodução e transmissão dos poderes), há o texto
de Bourdieu, “Stratégies de reproduction et modes de domination” (Estratégias de
reprodução e modos de dominação)22. Nesse estudo, escreve que uma das questões
fundamentais a propósito do mundo social é saber por que e como tal mundo
perdura e como a ordem é perpetuada, isto é, o conjunto de relações de ordem que
constituem o mundo social (1994, p. 3). Insere, assim, a dominação nos processos
complexos de reprodução social, afirmando que a sociedade se respalda na relação
existente entre as disposições incorporadas nos indivíduos, a estrutura de distribui-
ção do capital e os mecanismos que asseguram a reprodução. Esse arcabouço forja
o sistema das estratégias de reprodução (educativas, econômicas, biológicas etc.)
associado aos mecanismos de reprodução (sistema de ensino, mercado de trabalho,

22. Esse artigo dialoga com a quarta parte da obra La noblesse d’État e, ao lado de Les modes de domination
(1976), retoma a sistematização da ideia de “modos de dominação”, formulada pelo autor com base
em seus estudos sobre a sociedade Cabila e de sua própria região, o Béarn, cuja interrogação centra-se
nas maneiras de reprodução da vida social e nos mecanismos de dominação engendrados em estado
prático na dinâmica das diferentes classes. Tal inquietação perpassa suas obras, desde os trabalhos
iniciais, passando por La distinction e Sur l’État.

188 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 30, n. 2


Ana Paula Hey, Afrânio Mendes Catani e Cristina Carta Cardoso de Medeiros

direito de sucessão etc.), que variam nas distintas sociedades em função do tipo de
capital que se quer transmitir e dos meios disponíveis para tal.
O modo de reprodução com componente escolar se funda na objetividade das
estruturas sociais mediado pela organização do Estado, garantidor de um poder ad-
quirido e vitalício, expresso no título escolar. Este abona uma competência objetivada
e incorporada à qualidade individual, uma vez que ancorada no dom e no mérito,
além de refletir disposições adquiridas no manejo da cultura legítima alinhadas pela
submissão à lógica do sistema escolar. Assim, as estratégias educativas se caracterizam
por serem de longo prazo, por produzirem agentes sociais capazes de receber a he-
rança do grupo a que pertencem e por torná-los legítimos socialmente (1994, p. 5).
A questão que se coloca é do uso diferencial da escola e da transmissão doméstica do
capital cultural, desigualmente observado entre as classes.
No volume Inconscients d’école (Inconscientes de escola), de 2000, a apresentação
do dossiê é um pequeno artigo de Bourdieu, de três páginas, com título similar. Ali
argumenta que o inconsciente cultural ou transcendental histórico que funda o
senso comum ou doxa constitui-se pelo sistema de esquemas cognitivos que estão
no princípio da construção da realidade, e que são comuns ao conjunto de uma
sociedade em dado momento (2000, p. 3). Assim, o inconsciente escolar é com-
posto pelo conjunto das estruturas cognitivas incorporadas paulatinamente nas
experiências propriamente escolares. Tais estruturas são partilhadas por todos os
“produtos” de um mesmo sistema escolar, a todos que ensinam e cursam a mesma
disciplina. O inconsciente escolar estabelece um arbitrário histórico que, incor-
porado – portanto naturalizado –, não permite que os agentes sociais dele tomem
consciência. Destarte, a análise desse inconsciente necessita priorizar a relação
pouco explorada “entre as estruturas institucionais (a história das disciplinas, por
exemplo) e as estruturas cognitivas ou, de modo contundente, sua objetivação nos
saberes e conhecimentos” (2000, p. 4).

Considerações finais

No período em que Bourdieu foi o editor de arss foram publicados 140 números e
31 deles contêm artigos relacionados à educação. Registre-se ainda que, entre 1975
e 1987, em 20 volumes foram detectados artigos na área, destacando-se os dossiês
Le déclassement (n. 24, 1978), L’institution scolaire (n. 30, 1979), Grandes et Petites
écoles (n. 39, 1981), Classements scolaires et classement social (n. 42, 1982), Éduca-
tion et philosophie (n. 47/48, 1983), Qu´est-ce que classer? (n. 50, 1983), Stratégies
de reproduction 1 (n. 57/58, 1985) e Pouvoirs d´école 1 et 2 (n. 69 e 70, 1987). Após
esse momento de maior concentração de dossiês e de produções sobre a educação,

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A sociologia da educação de Bourdieu na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, pp. 171-195

artigos isolados tornam-se mais recorrentes e apenas outros 2 dossiês aparecerão:


Stratégies de reproduction et transmission des pouvoirs (n. 105, 1994) e Insconscients
d’école (n. 135, 2000).
Nos onze textos escritos por Bourdieu verificam-se três períodos bem distintos.
O primeiro refere-se aos artigos dos anos de 1970, em maior número, que reforçam a
análise da constituição do capital cultural como recurso que contribui aos processos
de reprodução social, uma vez que ele é desigualmente constituído e distribuído pelas
diferentes classes e frações de classe. O sistema de ensino recebe o devido tratamento
sociológico ao ser tomado como objeto, emergindo análises sobre as taxionomias
escolares produzidas no seu interior e que atendem a princípios classificatórios da-
dos socialmente, bem como a intensificação dos investimentos escolares visando à
valorização dos diplomas. Nesses artigos constata-se, ainda, o interesse em explicitar
como há um processo de interiorização dos sistemas classificatórios instituídos por
meio do jogo social na aparência da naturalidade.
Dois artigos desse período, o primeiro e o terceiro, tratam especificamente dos
diplomas, referindo-se explicitamente à lógica que permeia as mudanças na produção
e no sistema de ensino. O segundo e o quarto relacionam-se pela exposição de como
as estruturas sociais convertem-se em estruturas mentais, já anunciando problemática
que seria desenvolvida em La noblesse d’État.
O segundo agrupamento aparece bem demarcado pelos três textos que vão
compor La noblesse d’État. Publicados nos anos de 1980, retratam de forma densa
a discussão em torno do processo de reprodução social pela exposição do campo das
instituições de educação superior na França e do respectivo recrutamento social que
impera nas escolas de elite, desde as classes preparatórias até as Grandes Escolas.
O último conjunto de artigos é composto pelos dois que integrarão a obra La
misère du monde. Neles demarca-se o mal-estar do próprio autor em constatar que,
apesar das alterações propaladas pela democratização escolar, o sistema de ensino
nos anos de 1990 continua a atuar de diferentes maneiras nos processos denegados
de reprodução social.
É nesse diálogo que “Stratégies de reproduction”, o outro artigo que compõe o
conjunto vai tratar, de modo fulcral, da perpetuação da ordem social, costurando
as indagações e as conclusões sobre a educação como um modo de dominação. Ao
dialogar com exames anteriores das formas elementares de dominação em uma
sociedade pré-capitalista (a sociedade Cabila), marcadas pela apropriação pessoal,
direta, demonstra o que vai caracterizar um modo de dominação mais complexo.
Tal processo se dá de forma a esconder a lógica social que institui a dominação,
dissimulando-se por meio de relações encantadas para “ser reconhecida por meio do
desconhecimento”. Daí depreende que a análise dos mecanismos e das estratégias de

190 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 30, n. 2


Ana Paula Hey, Afrânio Mendes Catani e Cristina Carta Cardoso de Medeiros

reprodução, ou seja, de um lado as instituições escolares e de outro os investimentos


educativos, engendrados segundo a posição da família no corpo social, permitem
compreender a constituição do capital cultural e sua distribuição desigual. Assim as
diferenças entre os modos de dominação repousam na existência de campos relati-
vamente autônomos (o econômico, o cultural e o político), dotados de mecanismos
próprios capazes de impor sua necessidade aos agentes. O princípio de perpetuação
da relação de dominação conta com instâncias como o Estado e a escola, por se
constituírem em lugares de elaboração e de imposição de modos de dominação que
se exercem até mesmo no universo das relações pessoais (Bourdieu, 1998).
Já o artigo de 2000 dialoga com “Sistemas de ensino, sistemas de pensamento”
(1967) ao retomar a ideia de como os dispositivos acadêmicos estruturam formas
cognitivas e em que medida há uma inculcação de sistemas classificatórios típicos do
inconsciente escolar, logo arbitrários. A ênfase do artigo alerta para a necessidade do
pesquisador objetivar o inconsciente cultural, esse conjunto de estruturas cognitivas
que produzem categorias comuns de pensamento, de caráter nacional, comungadas
por um conjunto de membros de uma mesma disciplina (científica).
Como se pode constatar ao longo da incursão pelos textos de Bourdieu referentes
à educação, grande parte deles tratou dos aportes expostos em La noblesse d’État.
Tal modelo analítico do campo das instituições de educação superior e a relação
com a estrutura do campo do poder adquire o status de um programa de pesquisas
a ser desenvolvido ultramar, testando os conceitos e as relações ali estabelecidas em
contextos histórico-sociais peculiares. Além disso, reforça-se uma das frentes de
investigação do autor em torno dos modos de dominação, constituídas pelo sistema
escolar, pelo espaço social e o campo do poder e pela construção social da realidade
(Pinto, 2000, p. 169).
Esse corpo de escritos permite situar a educação na produção sociológica de Bour-
dieu, mas, sobretudo, demarcar que a temática não constitui capítulo isolado de seu
intento teórico, o de analisar a estrutura das relações que instituem objetivamente di-
ferentes poderes, modos de dominação e estratégias de reprodução do mundo social.
Buscamos dar uma noção de conjunto da obra do autor agregando textos específicos
da arss às demais publicações, demonstrando como há um encadeamento das teses
principais que motivaram a investigação daquilo que fundamenta sua Sociologia da
Educação: a incorporação das estruturas sociais, isto é, dos sistemas classificatórios e
a estruturação de sistemas de pensamento, de formas de agir e de pensar como motor
da inserção dos seres em universos sociais constituídos e por eles constituintes. Isso
corrobora nossa crítica à apropriação e vulgarização das teses centrais da educação
do autor descolada da teoria sociológica que lhe dá corpo, comumente feita quando
se tenta aplicar o autor no “campo educacional”.

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A sociologia da educação de Bourdieu na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, pp. 171-195

Talvez como Simiand afirmou da produção pioneira de Durkheim em L´Année


Sociologique, “l´espoir en serait justifié que la sociologie prît un jour son rang parmi
les sciences” ([1898] 1987, p. 5)23, Bourdieu também realiza com a arss um mani-
festo pela sociologia acadêmica nos anos de 1970, elegendo objetos e desenvolvendo
metodologias próprias para sua investigação. Inserindo-o no movimento da ciência
contemporânea, pode-se afirmar que seu legado aí está: fornecer um olhar específico
sobre o ordinário, desvelando o mais banal do instituído.

Artigos de Bourdieu sobre educação na revista arss (1975-2002)

• “Le titre et le poste: rapports entre le système de production et le système de


reproduction”, n. 2, pp. 95-107, mar. 1975 (com Luc Boltanski).
• “Les catégories de l’entendement professoral”, n. 3, pp. 68-93, maio 1975 (com
Monique de Saint Martin).
• “Classement, déclassement, reclassement”, n. 24, pp. 2-22, nov. 1978.
• “Les trois états du capital culturel”, n. 30, pp. 3-6, nov. 1979.
• “Épreuve scolaire et consécration sociale: les classes préparatoires aux Grandes
Écoles”, n. 39, pp. 3-70, set. 1981.
• “Agrégation et segregation: le champ des Grandes Écoles et le champ du pouvoir”,
n. 69, pp. 2-50, set. 1987 (com Monique de Saint Martin).
• “Variants et invariants: éléments pour une histoire structurale du champ des
Grandes Écoles”, n. 70, pp. 3-30, nov. 1987.
• “Les exclus de l’intérieur”, n. 91/92, pp. 71-75, mar. 1992 (com Patrick Cham-
pagne).
• “L’école et la cité”, n. 91/92, pp. 86-96, mar. 1992.
• “Stratégies de reproduction et modes de domination”, n. 105, pp. 3-12, dez. 1994.
• “L’inconscient de l´école”, n. 135, pp. 3-5, dez. 2000.

23. “A esperança seria assim justificada se a sociologia um dia ocupasse seu lugar entre as ciências” (tradu-
ção nossa). A data entre colchetes refere-se à edição original da obra.

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Ana Paula Hey, Afrânio Mendes Catani e Cristina Carta Cardoso de Medeiros

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Resumo

A Sociologia da Educação de Bourdieu na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales

O texto apresenta uma incursão pelos artigos sobre educação do sociólogo francês Pierre Bour-
dieu (1930-2002) publicados na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales (arss). Fundada
por Bourdieu em 1975 e dirigida por ele até a sua morte, a arss acolheu onze de seus artigos na

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temática educacional (sendo quatro em co-autoria) entre 1975 e 2000. Ressalta-se que nas pági-
nas do periódico o autor “rascunhou” vários trabalhos que viriam a se constituir em seus livros.
Nos textos ali apresentados Bourdieu reafirma a relevância da sociologia da educação como um
capítulo importante da sociologia do conhecimento e da sociologia do poder, fornecendo um
verdadeiro programa de investigação para enxergar os mecanismos instituídos de produção da
dominação e das estratégias de reprodução nas sociedades de classes contemporâneas.
Palavras-chave: Pierre Bourdieu; Actes de la Recherche en Sciences Sociales; Sociologia da educação;
Educação, cultura e dominação; Educação e reprodução social.

Abstract

The sociology of education by Bourdieu in the Actes de la Recherche en Sciences Sociales

The sociology of education by Bourdieu in the journal Actes de la Recherche en Sciences Sociales
The text presents an incursion in the articles by the french sociologist Pierre Bourdieu (1930-
2002), published in the scientific journal Actes de la Recherche en Science Sociales (arss) having
education as its subject. Created by Bourdieu in 1975 and directed by him until his death, arss
received eleven of his articles (being four as co-writer) between the years of 1975 and 2000.
Emphasising that in the pages of the periodical the author “drafted” several papers that would
become his books. In these presented texts Bourdieu reafirms the relevance of the sociology of
education as an important chapter of the sociology of knowledge and the sociology of power,
granting a real programme of investigation to unfold the instituted mechanisms in the produc-
tion of the domination and the strategies of reproduction in the contemporary society class.
Keywords: Pierre Bourdieu; Actes de la Recherche en Sciences Sociales; Sociology of education;
Education, culture and domination; Education and social reproduction.

Texto recebido em 28/10/2016 e aprovado em 17/10/2017.


doi: 10.11606/0103-2070.ts.2018.122400

ana paula hey é professora no Departamento de Sociologia da usp e uma das organizadoras
do Vocabulário Bourdieu (Autêntica, 2017). E-mail: anahey@usp.br.
afrânio mendes catani é professor na Faculdade de Educação da usp. Pesquisador do cnpq,
é um dos organizadores do Vocabulário Bourdieu (Autêntica, 2017). E-mail: amcatani@usp.br.
cristina carta cardoso de medeiros é professora no Departamento de Educação Física
da ufpr e uma das organizadoras do Vocabulário Bourdieu (Autêntica, 2017). E-mail: crisccm@
ufpr.br.

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