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Introdução
Em 1988, a Constituição brasileira definiu a saúde como ‘dever do Estado’ e ‘direito do cidadão’.
Pela letra da lei, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), todo cidadão possui esse direito
de acordo com suas necessidades, independentemente da sua capacidade de pagamento, da
sua inserção no mercado de trabalho ou da sua condição de saúde.
Parece evidente que o Estado deveria ter concentrado seus esforços para fortalecer o SUS nesses
29 anos. Entretanto, ele não contou com financiamento estável (PIOLA ET AL., 2013; MARQUES; MENDES, 2005),
enquanto os planos de saúde contaram com pesados incentivos governamentais (OCKÉ-REIS, 2013), favo-
recendo, a um só tempo, o crescimento do mercado e a estratificação da clientela.
Para os sanitaristas, não é fácil lidar com essa contradição: apesar da afirmação da saúde
enquanto direito social na Constituição, nessa conjuntura histórica, o SUS não foi capaz de
superar o ‘processo de americanização perversa’ ao qual o sistema de saúde brasileiro foi sub-
metido (VIANNA, 1998). Pior: o mercado tende a agravar as distorções desse tipo de mix público/
privado, uma vez que o aumento do poder econômico acaba corroendo a sustentabilidade
do financiamento estatal, estabelecendo um círculo vicioso, marcado pela queda relativa do
custeio e do investimento na saúde pública (COHN; VIANA; OCKÉ-REIS, 2010; TUOHY; FLOOD; STABILE, 2004).
Nesse sentido, diferentemente do esquema beveredgiano e similar ao modelo liberal esta-
dunidense, o sistema brasileiro passou a funcionar de forma duplicada e paralela – na esteira
da privatização do antigo modelo de seguro social (ANDRADE; DIAS FILHO, 2009): uma vez que a saúde
foi considerada livre à iniciativa privada na Constituição, além dos problemas relacionados
1 Institutode Pesquisa com o subfinanciamento, com a gestão e com o controle popular, uma contradição gritante
Econômica Aplicada (Ipea) apareceu na sua trajetória. O SUS não cobre – regularmente – o polo dinâmico da econo-
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
carlos.ocke@ipea.gov.br mia, cujos trabalhadores (setor privado e setor público) teriam, em tese, maior capacidade
DOI: 10.1590/0103-1104201711302 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 113, P. 365-371, ABR-JUN 2017
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de vocalização para lutar pela implantação custos e preços crescentes, ou o Estado amplia
da seguridade – a exemplo da formação os mecanismos de ‘intervenção’, ou subsidia
do Estado de bem-estar social europeu no atividades privadas importantes (BAYER; LEYS, 1986).
século XX. Por razões políticas de legitimidade e
Este ensaio, tendo como pressuposto o por problemas econômicos de rentabilidade
imperativo de reconstruir uma expressi- (VOGT, 1980), se o mercado de planos de saúde
va base de apoio social e parlamentar de cobre, regularmente, o polo dinâmico da
‘caráter classista’ em defesa do SUS, sugere População Economicamente Ativa (PEA), o
que o eixo de ação política do bloco sanita- Estado, por meio do fundo público (incenti-
rista aponte no sentido da superação de pro- vos governamentais), pode agir no sentido da
blemas estruturais e setoriais, que acabam reconstituição das condições de rentabilida-
restringindo o alargamento das diretrizes de do mercado. Esse padrão de intervenção
constitucionais da universalidade, da inte- acaba criando, assim, um processo de trans-
gralidade e da equidade do SUS. formação capitalista das próprias políticas
Na atual conjuntura histórica, para que de saúde e do próprio ato médico (ANDREAZZI,
esse tipo de reflexão teórica tenha alguma 1995), que passam a se engendrar favorecendo
dose de realismo, parece necessário romper a produção e a reprodução de novas frontei-
com a política de austeridade fiscal, que ras de acumulação capitalista.
produz impactos negativos sobre o financia- Assim sendo, o welfare state e as políticas
mento das políticas de saúde e as próprias universais de saúde não deixam de ser fruto
condições de saúde da população brasileira. de um Estado classista, mas, longe de plagiar
o ‘comitê executivo da burguesia’ da con-
cepção de Marx e de Lênin, tratar-se-ia his-
Superar a política de toricamente de um Estado que Poulantzas
austeridade fiscal denominou de ‘condensação da luta de
classes’ (CARNOY, 1994). Depois da crise econô-
Uma característica central da evolução da mica internacional de 2008, na era do capital
relação capital/trabalho é sua intermediação financeiro, entretanto, aprofundar o apoio
pelo Estado. Desse modo, torna-se necessá- do Estado ao mercado de planos de saúde em
rio caracterizar o espaço teórico da saúde tempos de austeridade fiscal pode torná-lo
não somente no contexto da relação capital/
trabalho, mas também mediado no contexto [...] um Estado completamente subordina-
das políticas públicas. do ao capital, o que seria uma homenagem
Na lógica da ordem burguesa, se de um lado a Marx, vinda de seus mais ferrenhos ad-
o Estado capitalista patrocina a acumulação versários e detratores. Por esse caminho, as
capitalista, de outro, procura promover a legi- relações se inverteriam: em lugar do Estado
timidade da ordem e estabilizar o exercício do como organizador da incerteza da base, da in-
poder governamental, seja apoiando a reprodu- fraestrutura em linguagem marxista, haveria
ção e a certificação da força de trabalho (BERGER; uma base organizando o Estado, que se trans-
OFFE, 2011), seja integrando as classes dominadas formaria na mais brutal imagem-espelho do
objetiva e ideologicamente à sua hegemonia banquete dos ricos e do despojo de todos os
(GRAMSCI, 2007; O’CONNOR, 1997). Dessa forma, consi- não-proprietários. (OLIVEIRA, 1988, P. 27).
derando que as condições de saúde e a cobertu-
ra da atenção médica da força de trabalho são Em outras palavras, a política de auste-
fundamentais para o funcionamento do modo ridade fiscal penaliza as classes médias e as
de produção capitalista, dado que o mercado de classes populares ao invés dos ricos, para su-
serviços de saúde apresenta uma trajetória de peração da crise econômica, para superação
pública (para não falar, embora cercada pelo deslegitimar as diferenças e estratégias dos
bloco reacionário e conservador, da política partidos da esquerda no cenário nacional.
equivocada de austeridade fiscal do segundo Suprimi-las seria reproduzir uma prática
governo Dilma). Em resumo, a crítica e au- autoritária mais ou menos comum nas expe-
tocrítica devem ser exercitadas dentro do riências de partido único de corte estalinista
bloco histórico progressista, mas a adoção – e somos críticos a esse tipo de hegemonis-
de uma postura antidialética, ou pior, sectá- mo. Antes procuramos criticar o sectarismo
ria em relação ao lulismo nos parece um erro no campo da saúde coletiva no momento
estratégico do campo democrático, popular de enfrentamento com a direita neoliberal,
e socialista na construção da luta antifascis- afinal de contas, devemos priorizar a cons-
ta: o esquerdismo, desde os tempos de Lênin trução de consensos dentro do movimento,
(2014), continua sendo a doença infantil nas em que a defesa dos direitos sociais seja uma
fileiras socialistas e comunistas. pedra fundamental na arquitetura da luta
A superação do lulismo (caracterizado contra os setores antidemocráticos da socie-
pelo culto à personalidade, pelo reformis- dade brasileira (por exemplo, os erros, antes
mo fraco e pela estratégia de conciliação de da subida de Hitler, dos sociais-democratas
classes) no sentido da transição ao socia- e dos socialistas na Alemanha merecem ser
lismo está mediada nessa formulação, mas refletidos por todos nós). s
não se trata de sectarizar o Lula, tampouco
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