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José de Ribamar Barreiros Soares

Professor Titular de Filosofia do Cen-


tro Universitário Planalto do Distrito
Federal – UNIPLAN e ex-Professor As-
sistente de Direito da Universidade de
Brasília – UnB. Pós-Doutor em Demo-
cracia e Direitos Humanos pela Univer-
sidade de Coimbra. Doutor em Ciência
Política pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro –UERJ. Mestre em
Claudionor
Ciência Política pela Paris Rocha*
I – Panthéon
Sorbonne. Mestre em Direito Público da
Consultor Legislativo
Áreade
pela Universidade deBrasília
Segurança Pública
– UnB.
Bacharel em Direito pelae Defesa Nacional
Universidade
de Brasília-UnB. Licenciado em Letras
Inglês/Português pelo Centro de Ensi-
no Unificado de Brasília – UniCeub.
É consultor legislativo da Câmara dos
Deputados, atuando na Área II: Direito
Civil e Direito Processual Civil.

A questão metafísica
em Parmênides: O ser
é, o não-ser não é

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Resumo

Este trabalho tem como objetivo analisar a


abordagem metafísica feita por Parmênides a respeito
do ser, considerando que o ser não pode ser gerado,
transformado ou destruído. Isto significa que toda
mudança bem como os opostos decorrem de uma
falácia criada pelos sentidos, razão pela qual a busca
pela essência do ser deve seguir o caminho da razão.
Palavras-chave
Palavras-chave: Parmênides, ser, não-ser, sentidos,
razão, metafísica
Abstract
The purpose of this article is to analyze the metaphysical
approach of the being done by Parmenides, who
considers that the being cannot be generated,
transformed or destroyed. This means that the changes
and the opposites are a fallacy created by our senses,
what leads us to follow the way of reason in order to
reach the true essence or the being.
Keywords
words: Parmenides, being, nonbeing, senses, reason,
metaphysics

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1. Introdução
Parmênides costuma ser lembrado pela sua oposição a Heráclito, ao
apresentar a mudança como algo apenas aparente, negando validade aos
sentidos e recorrendo à razão como caminho para alcançar a verdade e, de
certa forma, a compreensão de seu texto Sobre a Natureza e de suas ideias
sobre o ser torna-se mais acessível, quando se confronta o pensamento des-
ses dois filósofos pré-socráticos.
Parmênides, adotando uma postura racionalista, destaca a superiori-
dade da razão como forma de persecução da verdade, descartando o em-
pirismo como instrumento de explicação do mundo, fazendo a realidade
coincidir com a análise linguística do verbo ser.
A aleteia, termo grego correspondente à verdade, se apresenta no pen-
samento por meio de fórmulas linguísticas, daí a importância do verbo ser
nessa construção do mundo, em que se busca o descobrimento da essência
do ser, retirando o véu da aparência e da falsidade para encontrar o conhe-
cimento verdadeiro.
Como destaca Brunschwig (2011:786), “na aurora do pensamento gre-
go, Parmênides legou à Filosofia um objeto que deveria permanecer para
sempre em seu centro: o ser. Ele inaugurou assim a história da chamada
ontologia ou ciência do ser”.
Para além do racionalismo Parmênides pode ser considerado como o
idealizador da Metafísica, ao explicar em que consiste o ser, rejeitando a
possibilidade do não-ser, na sua célebre argumentação, segundo a qual o ser
é e não pode se transformar em não-ser, enquanto o não-ser não é e não
pode tornar-se ser, recusando qualquer meio-termo entre ser e não-ser.
2. Parmênides e o início da metafísica
Embora outros filósofos como Heráclito e Xenófanes já tivessem abor-
dado a questão metafísica em suas obras, suas análises ainda eram opinativas
e superficiais. Além disso, como nos dá ciência Laks (2013), alguns gregos
acreditavam que parte de seu conhecimento e de suas teses tinham origem
em outros povos, que eles consideravam como bárbaros, o que significa
dizer que muitas de suas teses não eram originais, mas fundamentavam-se
em culturas diversas.
Entretanto, Parmênides, pela vez primeira, procurou demonstrar, com
argumentos racionais e solidamente construídos, a distinção entre realidade
e aparência, verdade e opinião, situando o conhecimento verdadeiro para
além das percepções sensoriais, falsas e enganosas, objetivando alcançar a
verdadeira essência do ser.

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Acerca dessa abordagem metafísica sobre o ser, feita por Parmênides de
forma original, Wolfgang Röd (2014:75) afirma que:
“Com a distinção nítida entre aparência e ser verdadeiro, ante-
cipada por Heráclito e pelos pitagóricos, mas levada à sua per-
feição por Parmênides, tem início a história da metafísica como
sendo aquela disciplina filosófica que tem como compromisso o
conhecimento de uma proposta realidade que se situa para além
das experiências. Por isso, Parmênides deve ser considerado como
o fundador dessa metafísica”
Essa abordagem metafísica feita por Parmênides a respeito do ser, den-
tro de um contexto mais científico e com uma abordagem metodológica
mais sólida, despertou em algumas pessoas, como lembra Laks (2013), o
sentimento de que se poderia fazer começar a filosofia com Parmênides, em
vez de Tales, a despeito dos comentários de Aristóteles, o que levou Gada-
mer a considerar que, na filosofia pré-socrática, somente Parmênides conta
verdadeiramente.
No seu poema sobre a natureza, a questão metafísica se apresenta por
meio da análise do que é e do que não é, na qual Parmênides procura deli-
mitar o ser como única realidade possível, já que aquilo que não é nem mes-
mo pode ser pensado ou refletido, de modo que o que é não pode deixar
de ser e o que não é nunca passará a ser, estando afastada a transformação,
a gênese e a extinção.
Assim, no mundo parmenideano, em confronto com a ideia de Herá-
clito de que tudo flui, a mudança é algo apenas aparente, formulada pelos
sentidos enganosos, a qual não se sustenta como verdade à luz de uma
análise racional.
Como afirma Heidegger (2008:13): “Pensar o verdadeiro significa ex-
perimentar o verdadeiro na sua essência e, em tal experiência essencial, sa-
ber a verdade do verdadeiro.” O pensar reflete-se na experiência e não pode
ser uma mera operação intelectual, ilógica, irracional, desprovida de argu-
mentos e fundamentos sólidos. Somente o pensamento sobre o verdadeiro
pode conduzir à verdade do ser.
3. Verdade e opinião: o ser é, o não-ser não é
A obra de Parmênides costuma ser dividida em duas partes: uma discor-
rendo sobre a verdade e outra sobre a opinião. Bergson (2005) argumenta
com a possibilidade de que Parmênides, ao estabelecer uma profunda dis-
tinção entre o ser e o parecer, tenha tratado cada um desses temas como
uma parte de sua obra.

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A revelação da deusa verdade feita a Parmênides, conforme este rela-
ta no seu texto Sobre a Natureza, distingue claramente a verdade da opi-
nião, apresentando fundamentos com vistas à demonstração dessa assertiva,
diante do que o texto de Parmênides não se limita apenas a expressar esse
ponto de vista sobre o ser, mas busca a demonstração dessa verdade, o que
caracteriza um marco no surgimento da metafísica.
Nesse sentido, analisa Heidegger (2008) que o início da metafísica mo-
derna consiste em que a essência da verdade seja transformada em certitu-
de, de modo que a questão acerca do verdadeiro se torna a questão acerca
do uso seguro, assegurado e autoassegurador da razão.
A revelação apresentada a Parmênides encontra-se fora do trilho dos
homens, uma vez que o homem comum não é capaz de atingir essa es-
sência do ser por meio das crenças dos mortais, que não passam de mera
aparência. Os caminhos do pensar se desdobram para Parmênides em duas
vertentes: o que é e que não pode não ser é o caminho da persuasão; o que
não é e que não pode ser é o caminho do impensável.
3.1. O que é e que não pode não ser: o caminho da persuasão.
Assim explica a deusa da verdade a Parmênides, conforme se lê no frag-
mento II do poema Sobre a Natureza:
“Vamos e dir-te-ei – e tu escutas e levas as minhas palavras. Os
únicos caminhos da investigação em que se pode pensar: um, o
caminho que é e não pode não ser, é a via da Persuasão, pois
acompanha a Verdade; o outro, que não é e é forçoso que não
seja, esse digo-te, é um caminho totalmente impensável. Pois não
poderás conhecer o que não é, nem declará-lo.”
Daí se segue que o mesmo é pensar e ser, ou seja, só o ser pode ser
pensado e só se pode pensar sobre o ser, o que nos faz lembrar o panlogis-
mo hegeliano, segundo o qual o real é racional e o racional é real. Como
comenta Heidegger (2014:151):
“O pensar do sujeito determina o que é o Ser. O Ser não é outra
coisa senão o que é pensado pelo pensar. E, uma vez que o pensar
permanece uma atividade subjetiva, devendo ser, segundo Par-
mênides, o pensar e o Ser a mesma coisa, tudo se torna subjetivo.”
Podemos argumentar, então, que, de acordo com o ensinamento de
Parmênides, o ser é o real e o racional é o pensamento a respeito do ser.
Todavia, isso não significa que o ser se confunda com o pensamento a seu
respeito. Não se trata de uma defesa do idealismo, em que Parmênides bus-
caria explicar a existência da realidade como construção das ideias, afastan-

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do do mundo real tudo aquilo que não estivesse no pensamento. Não foi
essa a sua intenção, quando afirmou que o pensar e o ser são a mesma coisa.
Nesse sentido, vale lembrar a explicação apresentada por Brunschwig
(2011), de que o ser de Parmênides não deve ser reduzido ao pensamento,
nos moldes do idealismo, estranho à filosofia grega antiga, cuja aplicação
seria totalmente anacrônica.
A respeito dessa correspondência entre o pensamento e o ser, Laks
(2013:131) explica que:

“É esse momento de correspondência, implícita na démarche de


seus predecessores como de seus sucessores, que Parmênides enun-
cia explicitamente afirmando a solidariedade essencial (senão a
identidade) entre o pensamento e o ser.”
Todavia, deve-se compreender essa doutrina de Parmênides no sentido
de que pensar é o mesmo que pensar o ser e o ser é a mesma coisa que o ser
pensado. O ser, portanto, não é criado a partir do pensamento a seu respei-
to, mas o ser revelado, trazido à luz, coincide com o ser pensado.
O que se depreende da afirmação de Parmênides é que o ser, embora
existente no mundo real, independente do conhecimento a seu respeito,
precisa ser pensado para que se exponha como tal, para que seja conhecido
como ser. O ser poderá existir independentemente do conhecimento que
as pessoas tenham a seu respeito, mas não poderá ser reconhecido como tal,
se não passar pelo campo do pensamento, se não for revelado no âmbito da
consciência, tornando-se racionalmente existente.
O pensamento, por sua vez, só pode ser formulado a respeito de um ser
real e nunca sobre algo que não existe, sobre o nada. Pensar o nada equivale
a não pensar, não é pensamento. A mente humana pode até imaginar algo
que não exista, conceber a imagem de algo irreal, de uma figura fantasiosa,
mas, na visão de Parmênides, isso não pode ser considerado pensamento.
Trata-se simplesmente do nada, do não ser, desprovido de qualquer impor-
tância para o conhecimento sobre a verdade.
O pensamento sobre o não-ser não traz qualquer revelação, nada faz vir
à luz, não coincide com nenhuma realidade e, por isso, é completamente
desprovido de valor no plano da consciência. O não-ser simplesmente não
é e jamais poderá vir a ser. Deve, portanto, ser ignorado, pois tal caminho é
o caminho da ignorância e a nada conduz.
Esse raciocínio se adequa à formulação de Parmênides de que o ser é e
o não-ser não é. Como bem lembra Bergson (2005), entre o ser e o não-ser,
não há meio-termo, ou é ou não é. O ser não pode se transformar em outra

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coisa nem pode dela se originar. Assim, resume Bergson (2005:208) a razão
pela qual Parmênides não admite um meio-termo entre ser e não ser:
“Por repetidas vezes, Parmênides nos diz que o não-ser não pode-
ria ser pensado nem enunciado. Ora, o que não pode ser pensado
não pode existir. O motivo da doutrina, portanto, é indicado com
precisão. Parmênides supõe uma identidade entre o pensamento e
as coisas. E, como não se poderia pensar o não-ser, nem um meio-
-termo entre o ser e o não-ser, resulta que, na realidade, é preciso
que uma coisa seja ou não seja.”
O ser idealizado por Parmênides é contínuo e permanente, de modo
que o que é não pode deixar de ser. Não se pode dizer que o ser era ou que
será, pois ele se encontra completo no agora, subsistindo no presente atem-
poral. Desse modo, no Diálogo de Platão intitulado Parmênides (2009),
fica claro que o uno não participa das expressões “foi”, “tornou-se”, “estava
se tornando”, uma vez que isto levaria à participação do ser no passado,
o que é impossível, diante da atemporalidade do uno, que se situa numa
espécie de presente eterno.
Por sua vez, as expressões “tornará”, “estará se tornando”, “virá a ser” in-
dicam futuro, no qual também não se encontra o ser. Assim, o uno não tem
qualquer participação no tempo, por isso não era, não se tornou, não veio a
ser, não será, não se tornará, não está se tornando ou hipótese semelhante,
dada sua manifesta atemporalidade.
Ainda, no Diálogo de Platão, intitulado Parmênides (2009), fica evi-
dente a ideia de que, se o uno pudesse mudar para algo distinto dele mes-
mo, já não mais permaneceria sendo uno. O uno, porém, não se move
no espaço; se o fizesse, o deslocamento seria no mesmo lugar, um giro em
torno de si mesmo, ou um deslocamento para outro lugar.
Ocorre que, ao se mover, uma parte se apoiaria no centro e as outras
se moveriam em torno dele. O movimento para outro lugar implicaria que
uma parte teria atingido um ponto, enquanto outra ainda estaria no lu-
gar de origem. Assim, sucessivamente, as partes se moveriam, ao longo do
tempo, ocupando pontos diferentes no espaço. O uno, entretanto, não é
constituído de partes. Logo, o seu movimento no tempo e no espaço seria
impossível, diante do que, na visão de Parmênides, não pode haver o devir
como pretendia Heráclito.
O caminho da verdade, no ensinamento parmenideano, é o caminho do
que é e muitos sinais existem a indicar que o ser é ingênito e indestrutível,
pois é compacto, inabalável e sem fim, não foi nem será, pois é agora um
todo homogêneo, uno e contínuo. O ser não pode admitir qualquer varia-
ção, qualquer transformação, ainda que seja em relação a si mesmo, e muito

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menos fusão. Nesse sentido, a afirmativa feita no Diálogo de Platão intitulado
Parmênides (2009:51), onde se encontra a seguinte argumentação:
“Tampouco pode ser o mesmo com um outro ou consigo próprio,
ou ainda distinto de si próprio ou outro. Por que não? Se fosse
distinto de si próprio, seria distinto do uno e não seria uno (...)
E, decerto, se fosse o mesmo com um outro, ele seria este último
e não seria ele próprio; conclui-se, portanto, também nesse caso,
que ele não seria aquilo que é, a saber, o uno, porém algo distinto
do uno.”
O ser, de acordo com Parmênides, não pode ser gerado nem destru-
ído, não poderia começar do nada, pois nada pode surgir do que não é.
Igualmente, o ser não pode perecer ou tornar-se nada e nem pode gerar a
si mesmo, o que elimina a ideia de gênese e destruição. Assim se pronuncia
Wolfgang Röd (2014:78) acerca dessa impossibilidade de surgimento e de-
saparecimento do ser no ensinamento parmenideano:
“Parmênides concluiu que o surgir e o desaparecer são impossí-
veis pelo fato de que o ser não admite nenhuma determinação
temporal. Este era o seu raciocínio: o ser simplesmente é, e assim
não foi e nem será, por isso não tem nem passado nem futuro.
Consequentemente, o ser não está sujeito ao tempo.”
O ser é, pois, indivisível, é uno, nada existindo fora dele e não sendo
possível a sua divisão em partes. Bergson (2005:208) explica essa indivisibi-
lidade do ser na concepção de Parmênides, afirmando que “o ser é homogê-
neo, equilibrado por todos os lados, compatível a uma esfera perfeita, pois,
se houvesse diferenças no ser, ele seria divisível.”
O ser consiste em algo homogêneo, cheio, completo, não tendo um
lado mais nem outro menos, que o impeça de ser contínuo. Esse ser não
tem princípio nem fim, é como o alfa e o ômega relatado na Bíblia, e essa
é uma confiança verdadeira que se pode ter no ser. O ser por si mesmo
permanece, o ser se mantém como aquilo que sempre é, não admitindo
transformação, já que algo não pode se transformar em si mesmo, naquilo
que já é, e o ser por si mesmo repousa, o que indica a imobilidade do ser.
Essa questão é bem explicada no Diálogo de Platão intitulado Parmêni-
des (2009), no qual este expõe a tese segundo a qual, se o uno existe, ele não
pode ser múltiplos nem é possível que haja partes dele ou que ele seja um
todo. O todo seria aquilo do que não falta nenhuma parte, donde se teria
de concluir que o uno possuiria partes. O uno, para ser uno, não poderá
ser um todo nem ter partes. Na sequência desse diálogo, Parmênides passa
a explicar que, uma vez que o uno não possui partes, também não pode ter

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começo, meio ou fim, uma vez que estes seriam partes do ser. Começo e fim
representam limites e o ser é ilimitado.
O ser, conforme explica Parmênides, é uma esfera, a forma mais perfei-
ta, contendo-se nos limites dos laços que de todo lado o cercam, em perfei-
to equilíbrio do centro a toda parte, daí sua completude e perfeição como
tal, não tendo carência de nada.
Outro aspecto a ser considerado é que o ser concebido por Parmênides
não pode ser igual ou desigual de si mesmo ou de outro, explicação esta
dada no Diálogo de Platão intitulado Parmênides (2009:52/53), cujo teor
é o seguinte:
“Ora, na hipótese de ser igual, teria as mesmas medidas daquilo
de que é igual (...) E, se for maior ou menor do que coisas com as
quais é comensurável, terá mais medidas do que as coisas que são
menores e menos medidas do que as coisas que são maiores (...) E
quanto a coisas com as quais não é comensurável, terá medidas
inferiores do que algumas e medidas maiores do que outras (...)
Não é impossível para aquilo que não participa da identidade
ter quer as mesmas medidas, quer qualquer outra coisa idêntica?
(...) Portanto, não tendo as mesmas medidas, não pode ser igual
quer a si mesmo, quer a qualquer coisa mais (...) Mas se tem
mais medidas ou menos, terá a mesma quantidade de partes
e medidas, com o que o uno não será mais uno, mais será tão
múltiplo quanto suas medidas.”
O ser, portanto, é a verdade, o não-ser é mera opinião, falsa e enganosa,
caminho que não deve ser trilhado. Neste ponto, a deusa verdade cessa a
análise sobre o pensamento em torno da verdade e inicia suas considerações
sobre as humanas opiniões, representadas pela noite sem luz, espessa e pe-
sada.
3.2. O que não é e que não pode ser é o caminho do impensável
De acordo com o ensinamento da deusa verdade, existem dois cami-
nhos, um é a senda do dia o outro a senda da noite, o que vale dizer que o
primeiro é o caminho da verdade, enquanto o segundo, o da aparência falsa
e enganosa.
O caminho do dia, portanto da iluminação, é o caminho do pensa-
mento, da razão, enquanto o caminho da noite é o do não-pensar, que não
conduz a nada, pois não permite nenhum conhecimento, nenhum apren-
dizado, uma vez que pensar o nada significa nada pensar. O caminho da
noite, das trevas, deve ser abandonado e o caminho do dia, da luz, deve

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ser seguido, pois, por meio dele, se chegará ao conhecimento da verdade a
respeito do ser.
Os mortais, que trilham o caminho da ignorância e acreditam nas apa-
rências, são homens de duas cabeças, pois convivem com as aparências da-
quilo que é e não é ao mesmo tempo, de um ser que se torna não-ser e de
um não-ser que se transmuda em ser. Daí a explicação da deusa verdade feita
a Parmênides, conforme descrito no texto Sobre a Natureza, fragmento VI:
“É necessário que o dizer e pensar que é sejam; pois podem ser,
enquanto nada não é: nisto te indico que reflitas. Desta primeira
via de investigação te afasta, e logo também daquela em que os
mortais, que nada sabem, vagueiam, com duas cabeças: pois a
incapacidade lhes guia no peito a mente errante; e são levados,
surdos ao mesmo tempo que cegos, aturdidos, multidão indecisa,
que acredita que o ser e o não-ser são o mesmo e o não-mesmo,
para quem é regressivo o caminho de todas as coisas.”
Essa ilusão conduz os mortais ao caminho da ignorância, afastando-
-os do verdadeiro conhecimento a respeito do ser. Como explica Bergson
(2005), a questão se resume a ser ou não ser, diante do que Parmênides
considera uma ilusão essa tentativa de misturar o ser e o não-ser. Prossegue
Bergson (2005:207/208) analisando essa questão permenideana de rejeição
de um meio-termo entre o ser e o não-ser, argumentando que:
“Esse princípio está repleto de consequências, pois cabe notar que
o senso comum admite um meio-termo, o devir, o estado de uma
coisa que já não é aquilo que era e que ainda não é o que irá ser,
é a ideia dessa mudança, desse movimento.”
As sensações são enganosas e levam a equívocos e contradições, daí mui-
tos fazerem menção ao não-ser, que, na visão de Parmênides não pode ser
sequer pensado e muito menos se tornar uma realidade. Como bem explica
Parmênides em seu escrito Sobre a Natureza, fragmento I:
“Terás, pois, de tudo aprender: o coração inabalável da rea-
lidade [ou “da verdade”] fidedigna e as crenças dos mortais,
em que não há confiança genuína. Mas também isso apren-
derás: como as aparências têm de aparentemente ser, passan-
do todas através de tudo.”
Essas opiniões enganosas dos mortais fundamentam-se naquilo que se
apreende pelos sentidos, na busca de explicação dos fenômenos com base
na experiência. De acordo com essa opinião, explica Parmênides, no frag-

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mento XIX, que os homens são levados a crer que as coisas nasceram e
agora são e depois crescerão e hão de ter fim.
Como explica Heidegger (1987), a respeito da tese de Parmênides, no
caminho da aparência, trilhado pelos homens, o ente aparece ora com um
aspecto ora com outro, sendo dominado pelos pontos de vista, de forma
a estabelecer uma confusão entre o ser e a aparência. Assim, os homens se
perdem nesse caminho por completo. Conclui Heidegger (1987:124): “As-
sim, tanto mais se torna necessário conhecer este caminho como tal, para
que o Ser se possa revelar na aparência e contra a aparência.”
A aparência surge como um caminho que até pode ser trilhado; porém,
seu resultado é o engano, a falsidade, o distanciamento do verdadeiro co-
nhecimento. Entretanto, como o caminho da aparência pode conter uma
verossimilhança com o caminho da verdade, é importante saber a seu res-
peito, a fim de que o sábio esteja apto a distinguir entre essas duas vertentes
do conhecimento, evitando ser enganado pelas aparências, como costuma
acontecer com os homens comuns.
Por essa razão, a deusa verdade, após sua explanação sobre o caminho
da verdade, passa a discorrer sobre o caminho da aparência. Não porque
esse caminho mereça qualquer credibilidade ou possa ter importância na
aquisição do conhecimento verdadeiro, mas, sim, porque a aparência pode
conter verossimilhança com o real. A explanação sobre esse caminho tem
o objetivo de tornar o sábio apto a distinguir entre aparência e realidade,
entre opinião e verdade. Uma vez identificado o caminho da aparência, este
deve ser abandonado e evitado por completo.
Os homens mortais concebem as coisas como criadas, mutáveis, divisí-
veis, em processo de transformação e extinguíveis, tudo isso a partir de sua
experiência manifestada pelos sentidos, daí a conclusão de Parmênides de
que essas opiniões são aparências enganosas, que não refletem a verdade.
Devir, pluralidade, movimento não existem verdadeiramente, são apenas
ilusões causadas pelos sentidos enganosos, são verdades hipotéticas e não
hipóteses verdadeiras.
Sobre o engodo das opiniões relatado por Parmênides, Bergson
(2005:210) faz o seguinte registro:
“Pois os fenômenos que percebemos só nos parecem tais que se
distingam uns dos outros porque acreditamos em uma diferença,
porque acreditamos na mistura de ser e de não-ser. Uma teoria
dos fenômenos físicos, portanto, não é mais que uma teoria da
aparência, da opinião. Em geral, o vulgo crê na existência dos
contrários, como o dia e a noite, o masculino e o feminino, etc. A

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verdade é que de dois contrários só um pode existir. O dia apenas
existe, o masculino apenas existe, etc.”
É por isso que a deusa verdade procede à explanação acerca desse ca-
minho enganoso, aparente, tortuoso, a fim de que o sábio seja capaz de
identificá-lo, evitando assim trilhá-lo. Como explica Brunschwig (2011),
esse caminho não é impossível de ser seguido, apenas ele é privado de verda-
de e, por isso, aqueles que o trilham são ignorantes e privados do verdadeiro
conhecimento.
4. Considerações finais
A confrontação entre aparência e realidade, verdade e opinião constitui
o eixo da discussão parmenideana, dentro de uma perspectiva metafísica
em que o ser aparece como único e imóvel, eterno e imutável e os sentidos
se revelam completamente enganosos, não se podendo confiar naquilo que
se vê. Como bem resume Danilo Marcondes (2006:36):
“Em seu poema, o mais extenso dos textos dos pré-socráticos que
chegaram até nós, Parmênides afirma precisamente que “o ser é, o
não-ser não é”, formulando assim uma versão inicial da lei da iden-
tidade, um princípio lógico-metafísico que consiste em caracterizar
a realidade em seu sentido mais profundo como algo de imutável,
exclui assim o movimento e a mudança como aquilo que não é,
porque deixou de ser o que era, e não veio a ser ainda o que será, e
portanto não é nada; por isso apenas o permanente e imutável pode
ser caracterizado como o Ser.”
Os fenômenos da consciência são de grande importância em Parmêni-
des na busca da verdade, afastando-se a percepção sensorial como forma de
captar a essência dos fatos. Karl Popper (2014:141) lembra que o primeiro
passo de Parmênides consiste na “distinção entre o conhecimento autêntico
e a mera suposição ou opinião, bem como leva à tese de que o conhecimen-
to autêntico difere radicalmente da mera opinião”.
Parmênides rejeita a experiência como fonte de conhecimento verda-
deiro, pois ela conduz à mera opinião e a um conhecimento inverídico,
falseado, jamais produzindo verdade demonstrável, incontestável, inclusive
porque a opinião é baseada na aparência e não na essência do ser.
Como nos ensina Brunschwig (2011), na filosofia moderna e contem-
porânea, Parmênides pode ser considerado o descobridor do princípio de
identidade, ao propor que o ser é idêntico a si mesmo, e, ao dizer que o ser
não pode não ser, teria descoberto o princípio da não contradição, de que
também falaram Platão e Aristóteles.

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Ao distinguir a aparência da realidade e a opinião da verdade, Parmê-
nides inaugura a metafísica, buscando uma demonstração de que o co-
nhecimento da realidade extrapola as percepções sensoriais e só pode ser
alcançado racionalmente.

BIBLIOGRAFIA

Bergson, Henry. Curso sobre a filosofia grega. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2005.
Brunschwig, Jacques. Le savoir grec. Paris: Flammarion, 2011.
Heidegger, Martin. Parmênides. Bragança Paulista/Petrópolis: Editora
Vozes, 2008.
Heidegger, Martin. Introdução à Metafísica. Lisboa: Instituto Piaget,
1987.
Laks, André. Introdução à Filosofia Pré-Socrática. São Paulo: Editora
Paulus, 2013.
Marcondes, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a
Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
Platão. Diálogos IV: Parmênides (ou das formas); Político (ou da reale-
za); Filebo ( ou do prazer); Lísias ( ou da amizade). São Paulo: Edipro,
2009.
Popper, Karl. O Mundo de Parmênides. São Paulo: Editora Unesp,
2014.
Röd, Wolfgang. Caminho da Filosofia. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2014.

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