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FLP0473 – Política Comparada Global: Por que Algumas Sociedades são mais

Pacíficas, Democráticas, Ricas e Igualitárias do que Outras


Autora: Carla dos Santos Gomes Nº. USP: 9317890

Prova Final

Ensaio 1: A causa da violência política, por exemplo na Etiópia em 2020, é a falta


de monopólio da violência do estado central.

A Etiópia é o segundo país em população do continente africano, sendo


também um dos países mais antigos desse continente. É também uma das únicas
nações não colonizadas por países europeus ao longo de sua história, salvo por
uma breve ocupação italiana entre 1936 e 1941. O país, assim como os outros do
continente, se caracteriza também pela grande variação étnica, não havendo um
consenso entre os estudiosos sobre a quantidade exata de etnias existentes no
território. Em termos linguísticos, estima-se que há mais de 80 línguas maternas no
país​1​, o que já revela a grande diversidade cultural ali presente.

Atualmente o país vive um cenário de grave conflito etnico, mais


especificamente da região do Tigray contra o governo central. Esse embate tem
razões políticas, visto que as elites tigrinas se sentiram ameaçadas após a
nomeação de Abyi Ahmed como primeiro-ministro em 2018. Sendo assim, as
hostilidades que ocorrem no país podem ser classificadas como violência política,
que são os conflitos com uso de força por razões políticas, sejam elas por recursos
financeiros públicos, poder, influência, proteção ou por oposição ideológica.

A questão das etnias é muito relevante para a história etíope, já que, de


acordo com Medhane Tadesse no livro ​Understanding Contemporary Ethiopia​,
muitos governantes, ao longo do tempo, tentaram centralizar o poder do Estado,
tendo todos eles fracassado nessas tentativas. Por fim, em 1991, após dezesseis
anos de guerra civil, as divergências étnicas foram reconhecidas e o Federalismo
Étnico foi estabelecido no país sob a direção da Frente de Libertação dos Povos
1
SCHNEIDER, Luíza. “O papel da guerra na construção dos Estados modernos: o caso da Etiópia”.
Tese de mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010. pg. 47.
Tigrinos (FLPT), que formou a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope
(FDRPE), coalizão que governou o país até 2019.

O Federalismo Etnico adotado na Etiópia se baseia no reconhecimento das


etnias como povos autônomos sobre suas regiões, sendo concedido
constitucionalmente até mesmo o direito de secessão para as etnias reconhecidas
oficialmente. Atualmente, existem 9 estados administrativos baseados em etnias no
País, que se definem com base no seguinte conceito:

“um grupo de pessoas que têm ou dividem em grande


medida uma cultura comum ou costumes similares,
mútua inteligibilidade linguística, crença em identidades
comuns ou correlatas, um mapa cognitivo comum, e um
território predominantemente contíguo identificavel”
(Etiopia apud Aalen, 2006:247, tradução de Luíza
Schneider).

A partir desse conceito, reconhece-se uma nacionalidade e sua soberania é


garantida. É importante ressaltar que a determinação dos grupos étnicos excluiu a
opção de uma identidade nacional, ou seja, todo cidadão é obrigado a pertencer a
um grupo, não sendo possível para ele ser apenas etíope. Essa condição dificulta o
estabelecimento da Etiópia como uma unidade nacional (Aalen, 2006), e aliada à
antiga diversidade cultural, é mais fator contribuinte para o enfraquecimento da
centralização de poder do Estado.

Após a nomeação de Abiy Ahmed como primeiro ministro em 2018 e o


subsequente acordo de paz que colocou fim ao impasse entre a Etiópia e a Eritreia,
o que o rendeu o Prêmio Nobel da Paz em 2019, a expectativa era de que o país
adentrasse em um período de paz. No entanto, Ahmed foi eleito sob uma cartilha
reformista, e iniciou uma série de mudanças políticas no governo, entre elas a
expulsão de membros do FLPT por alegação de corrupção e a dissolução da
FDRPE, criando em seu lugar o Partido da Prosperidade (PP), coligação da qual a
FLPT se recusou a fazer parte. Além disso, o governo central não reconheceu as
eleições ocorridas na região do Tigray em setembro de 2020 e congelou
orçamentos federais do local. Desde então, os atritos entre Abiy Ahmed e a Frente
do Tigray aumentaram ao ponto da deflagração de conflitos armados na região
tigrense.
Esse cenário de violência política evidencia a ausência do monopólio da
violência concentrada nas mãos do Estado. O histórico de guerras e divisão étnica
da Etiópia promoveu a militarização dos diversos grupos, que são tão capazes de
exercer violência política quanto o próprio Estado. O termo “monopólio da violência”,
conceituado por Max Weber em ​Política como Vocação​, aborda justamente esse
aspecto adquirido pela maioria dos Estados modernos, o de manter a ordem a partir
do monopólio legítimo da força:

“O Estado é aquela ‘organização política compulsória'


que controla um território no qual a burocracia com
sucesso tem o monopólio legítimo do uso da força física
para assegurar sua ordem. (Weber, 1978, i.54 apud
Spruyt (2007, 211), tradução de Luíza Schneider)

A ideia do monopólio legítimo da violência ser do Estado foi conceituada por


Weber através da observação dos processos de formação dos Estados europeus.
Charles Tilly também aborda essa questão no livro Coerção, Capital e Estados
Europeus, quando descreve a maneira pela qual o Estado passou a deter o poder
da força:

“O desarmamento da população civil aconteceu em


muitas e pequenas etapas: apreensão geral das armas
ao término das rebeliões, proibições dos duelos,
controles da produção de armas, introdução da licença
para o porte de armas por particulares, restrições a
demonstrações públicas de força armada.
[...] Ao mesmo tempo, a expansão dada pelo estado às
suas próprias forças armadas superou os armamentos
de que dispunha qualquer de seus antagonistas
domésticos. A distinção entre política “interna” e
“externa”, que antes não era muito clara, tornou-se
relevante e decisiva. Acentuou-se a conexão entre a
guerra e a estrutura de estado.” (TILLY, 1990. pg. 126)

As análises de Weber e Tilly, aliadas aos dados de violência dos países


atualmente, leva a crer que, embora existam diversas variáveis ainda a serem
consideradas na questão de violência política, de modo geral, as sociedades de
Estado com poder centralizado e que detém o uso da força, apresentam menores
índices de violência do que sociedades que não possuem Estado organizado, ou
que o apresenta com menor capacidade centralizadora​2​, como o caso da Etiópia.

Em um Estado que corresponda às ideias de Weber, não é permitido que


grupos dentro da nação sejam armados, ou que detenham exército próprio. No
início do conflito em novembro de 2020, a FLPT declarou que possui exército,
milícias e forças especiais preparadas para o confronto​3​, o que indica que o poder
de uso da força não pertence somente ao governo central etiope, o qual corre o
risco de não vencer essa guerra.

O federalismo étnico é uma tentativa ousada de governo, e é muito válida


para uma sociedade tão diversificada com a Etiope. No entanto, há que se
considerar as dificuldades de se conceder grande autonomia a muitos grupos
dentro de um mesmo país, já que os embates entre interesses divergentes é quase
que inevitável. Nesses momentos, em sociedades de poder centralizado, se for
necessário, o Estado faz uso do seu monopólio da violência política para resolver
conflitos ou deter ameaças à paz nacional. Quando outros grupos têm poder de
força comparável ao do Estado, a resolução do conflito se torna mais complexa e os
embates gerados entre os poderes se tornam ainda mais perigosos para a
população.

2
“Has Global Violence Declined? A Look at the Data”. Towards Data Science. Disponível em:
https://towardsdatascience.com/has-global-violence-declined-a-look-at-the-data-5af708f47fba.
3
“5 pontos para entender por que a Etiópia está 'à beira de uma guerra civil' um ano depois que seu
primeiro-ministro ganhou o Prêmio Nobel da Paz​”.​ G1. Disponivel em:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/11/15/5-pontos-para-entender-por-que-a-etiopia-esta-a-beir
a-de-uma-guerra-civil-um-ano-depois-que-seu-primeiro-ministro-ganhou-o-premio-nobel-da-paz.ghtml
. Acesso em 16/12/2020.
Referências Bibliográficas

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Semi-Authoritarian State: The Case of Ethiopia​. ​I​n International Journal on Minority
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ADEJUMOBI, Saheed A. ​The history of Ethiopia.​ Greenwood. Westport. 2007

FICQUET, Éloi; PRUNIER, Gérard. ​Understanding Contemporary Ethiopia​. C. Hurst


& Co. United Kingdom. 2015.

G1. ​5 pontos para entender por que a Etiópia está 'à beira de uma guerra civil' um
ano depois que seu primeiro-ministro ganhou o Prêmio Nobel da Paz.​ Disponível
em:​https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/11/15/5-pontos-para-entender-por-que-
a-etiopia-esta-a-beira-de-uma-guerra-civil-um-ano-depois-que-seu-primeiro-ministro
-ganhou-o-premio-nobel-da-paz.ghtml​. Acesso em 16/12/2020.

SCHNEIDER, Luíza. ​O papel da guerra na construção dos Estados modernos: o


caso da Etiópia​. Tese de mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre, 2010.

SPRUYT, Hendrik. ​War, Trade and State Formation​. In.: BOIX, Carles & STOKES,
Susan. [eds]. The Oxford Handbook of Comparative Politics. Oxford: Oxford
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TILLY, Charles. ​Coerção, Capital e Estados Europeus, pp. 123 – 133 e


143-147.1990.

WEBER, Max. ​Economy and Society: an outline of interpretative sociology​.


Berkeley: University of California Press, 1968.

Wikipédia. ​Conflito em Tigré em 2020.​ Disponível em:


https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Conflito_em_Tigr%C3%A9_em_2020&oldi
d=59872620​. Acesso em 16/12/2020.
Wikipédia. ​Etiópia​. Disponível em: ​https://pt.wikipedia.org/wiki/Eti%C3%B3pia​.
Acesso em 16/12/2020.

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