Você está na página 1de 111

-.

LEYLA PERRONE-MOISES
Roland

BARTHES O SABER COM SABOR


Roland

BARTHES LEYLA PERRONE-MOISÉS


Copyright O Leyla Perrone-Moisés

Capa e diagramação:
Moema Cavalcanti

Caricaturas:
Em ílio Darniani

Rev/sa"o:
Herc ít io de Lourenzi
José E. Gugelmin

editora brasiliense s.a*


01223 - r. general jardim, 160
são paulo - brasil
-
INDICE

Capítulo 1
Biografemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo 2
Mitologias . . . . . . . . . . .
.... . .
.... . . . . . . . . . 20
Capítulo 3
A "nova crítica". . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
Capítulo 4
O "semiólogo" ....... . .... . . . . .. .... . .
a 40
Capítulo 5
Escritura e prazer ..... . ... .. . .. . . . ... .. 49
Capítulo 6
Amor e poder .... . . ... . . . . . .... . . .. .. . . 60
Capítulo 7
O Mestre anarquista .... . ...... .......... . 69
Capítulo 8
Anamneses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
Cronologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .. 102
I ndicacão Bibliografica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
"Meu mestre, meu mestre, perdido tão
cedo! Revejo-o na sombra que sou em
mim, na mem6ria que conservo do que
sou de morto. . .
I r

(Aivaro de Campos)
ABREVIATURAS

Usarei as seguintes abreviações (entre parênteses, as edições


francesas a que remeto) :
SF L (Sade, Fourier, L oyola, Seu il , 1 97 1 )
R B/ R 8 (Roland Barthes par Ro/and Barthes, Seu iI. 1975)
M (Mythalogies, Seuil, 1957)
€C ( Essais critiques, Seu i I, 1964)
CV (Critique et Vérite, Seuil, 1966)
Ll (Leçon Inaugurale, Col lège de France. 1977)
GV (Le grain de /a voix, Seui I, 1981)
DZ ( L e degré z h de I'écriture, Seuil, 1972)
ES (L'Empire des signes, Flammarion, 1980)
F DA ( Fragrnen ts d'un discours amoureux, Par i st Seu i I,
1977)
AS ("Au séminaire", L'Arc nP 56, Aix-en-Provence,
1974)
EIP ("Écrivains, Intellectuels, Professeurs". Te/ Que/
no 47, Paris, Seuil, 1971 )
CAPITULO 1

BIOGRAFEMAS

"Se eu fosse escritor e morto, como eu gostaria


que minha vida se reduzisse, pelos cuidados de
um biógrafo amistoso e desenvolto, a alguns
pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões,
digamos: 'biografemas', cuja distinção e mobilidade
poderiam viajar fora de qualquer destino e vir
tocar, como átomos epicuristas, algum corpo futuro,
prometido a mesma dispersãof' (SF L, p. 14).
De Sade, Barthes gostava de lembrar os punhos
de renda branca; de Fourier, os vasos de flores entre
os quais caiu morto; de Loyola, os belos olhos
espanhóis. B iografemas, pequenas unidades biográ-
r ficas, índices de um corpo perdido e agora recupe-
rável como um simples "plural de encantos". A
vida não como destino ou epopéia, mas como texto
9
BIOGRAFEMAS

r~manesco, "um canto descontinuo de amabili-


dades".
Em Roland Barthes por Roland Barthes, ele
reuniu alguns autobiografemas, que chamou de
anamneses: tem branças de infância fixadas como
breves haicais: o defeito na louça de uma tijela;
um morcego rechaçado pela família, armada de
pinças; o canto do jardim onde se enterravam
ninhadas indesejáveis de gatos; o sabor insosso de
um café com leite claro; etc.
Se o texto que agora escrevo fosse apenas um
texto de prazer, biógrafa amistosa e desenvolta eu
continuaria nessa linha, acrescentando às anamneses
de Barthes minhas anamneses a seu respeito. Tão
"fictícias" umas como as outras, porque os biogra-
femas pertencem ao campo do imaginário afetivo.
Eu falaria então de seus calmos olhos azuis, do
charuto pendurado no canto da boca, dando ao
rosto um ricto "pós-guerra" (vejam-se as fotos
de Camus, Malraux, Prévert). Falaria de seu jeito
de mal-estar na vida, sempre suspenso entre a
iminência de um divertimento e a recorrência do
tédio, entre o impulso B socialidade bondosa e a
consciência de uma irremediável solidão.
Mas devo ser aqui uma biógrafa informativa.
Aliás, o próprio sabor dos biografemas depende
de uma prévia informação. Os punhos de Sade e
os vasos de Fourier são contrapontos de suas
vidas-obras, o "insignificante" que a memória
seleciona, ludicamente, dentro de um conjunto
ROLAND BARTHES

ma ior. Recoloquernos, pois, os biografemas


barthesianos no contexto de uma existência
narrável.
Roland Barthes nasceu no dia 12 de novembro
-de 1915, em Cherburgo, porto do Canal da Mancha.
Seu pai, Louis Barthes, segundo-tenente da Marinha,
morreu numa batalha naval da Guerra de 14, quando
Roland tinha onze meses. Seguiu-se uma infância
tranquila em Baiona, no sul da França, dentro de
urna fam íl ia burguesa privada de pai, empobrecida,
protestante, respeitosa das convenções e extrema-
mente afetuosa. De um segundo casamento da
mãe nasceu outro filho. Em 1924, mudaram-se
para Paris, onde Roland prosseguiu seus estudos
no Liceu Montaigne e no Liceu Louis-le-Grand.
Em 1934, foi acometido de tuberculose e passou
um ano em tratamento, nos Pirineus. De volta
a Paris, licenciou-se em Letras Clássicas e participou,
como ator, de um grupo de teatro antigo. Tornou-se
professor secundário e redigiu um trabalho univer-
sitário sobre a tragédia grega. Em 1941, teve uma
recaída da tuberculose; passou os cinco anos
seguintes em sanatórios. Finalmente restabelecido,
em 1948, partiu para o estrangeiro como professor
universitário (Bucareste e Alexandria).
De 1952 a 1959, foi pesquisador do CNRS
(Centro Nacional de Pesquisas Cient [ficas), em
I lexicologia e sociologia. Nesse per iodo, publicou
três livros e vários artigos, em especial sobre
teatro. A partir de 1962, tornou-se orientador
BIOGRAFEMAS

de pesquisas na Escola Prática de Altos Estudos


da Sorbona. Publicou mais alguns livros de crítica
literária, que provocaram uma inesperada e intensa
imitação em Rayrnond Picard, mestre poderoso
e tradicionalista da velha Sorbona. Seguiu-se uma
polêmica em torno da "nova crítica" - assim
batizada por Picard -, e esse debate tornou Roland
Barthes conhecido por um largo público.
Suas aulas começaram a atrair ouvintes cada vez
mais numerosos. Nos anos seguintes, o movimento
estruturalista nas várias ciências do homem ocupou
as atenções da universidade e até mesmo dos meios
de comunicação de massa. Barthes foi considerado
como um dos papas do estruturalismo, papel
confortável (mas para ele insuportável, como
qualquer papel) que abandonou em 1973, com
a publicação de um livro reivindicando o prazer,
o corpo, o individualismo e o diletantismo
contra a "ciência", os modelos abstratos, a
objetividade e o rigor universitários. Novas
polêmicas que, como a anterior, reforçaram o
prestígio de Barthes. Cada vez mais solicitado,
também no exterior, tinha passado uma temporada
nos Estados Unidos (66), outra no Marrocos
(69-70); fez também uma viagem ao Japão (69),
outra à China (74) (achou o Japão fascinante e
a China sem graça).
Em 1977, Barthes tomou posse da nova cadeira
de Semiologia Literária no Colégio de França, ins-
tituição acima e fora da universidade, local onde
12
ROLAN D BARTH ES

os mais ilustres professores franceses de todas as


especial idades oferecem cursos l ivres e abertos ao
grande público. Era uma façanha para alguém que
nunca escreveu um verdadeiro trabalho científico
e jamais defendeu qualquer tese universitária.
Em 1978, perdeu a mãe, em companhia de quem
sempre vivera. Estava no auge de seu prestígio;
suas aulas atraíam multidões, os veiculos de massa
o requ isitavam constantemente, seus I ivros tinham
sido traduzidos em numerosas I ínguas. Em fevereiro
de 80, ao sair do Colégio de França, foi atropelado
por uma caminhonete, sofrendo graves ferimentos
no peito; desde a tuberculose da juventude, este
era exatamente seu ponto mais frágil. Faleceu
um mês depois na unidade de terapia intensiva
do Hospital Pitié-Salpétrière. Foi enterrado em
Baiona, como sua mãe, numa cerimônia oficiada
por um pastor protestante e assistida por alguns
amigos.
Em Roland Barthes por Roland Barthes, após
ter alinhado os dados principais de sua vida, ele
acrescentou, entre parênteses: "(Uma vida: estudos,
doenças, nomeações. E o resto? Os encontros,
as amizades, os amores, as viagens, as leituras, os
prazeres, os medos, as crenças, os gozos, as felici-
dades, as indignações, as tristezas: em uma só
palavra: as ressonâncias? - No texto - mas não
na obra.)"
E essa distinção entre texto e obra que me vai
permitir retomar, prazei rosamente, os biografemas.
A obra de Barthes é o conjunto de seus livros,
através dos quais se pode segui r a evolução (os deslo-
camentos) de suas idéias teóricas e críticas. O texto
de Barthes está nas entrelinhas desse discurso falsa-
mente acadêmico, nas conotações de seu léxico,
nas vibrações de seus arranjos frásicos, nas tonali-
dades de sua enunciação inconfundível: em sua
escritura. E quando se teve a sorte de conhecer
Roland Barthes em pessoa, esse texto se entrelaça
a u m outro "texto", de anamneses: cenas a que
se assistiu ou que nos contaram, fragmentos de suas
falas, indissoluvelrnente ligadas ao timbre particular
de sua voz grave e pausada. Pedacinhos de um vitral
que projetam luzes móveis e intermitentes sobre
a 'figura acabada e n ítida da obra.
Esse texto de anamneses, cujas unidades são
biografemas, não precederá, aqui, ao sobrevôo da
obra barthesiana. Porque não se trata de proceder
como nos manuais literários tradicionais, colocando
sucessivamente "o homem" e "a obra", segundo
a boa lógica positivista da causa e efeito. Trata-se
de ressaltar na obra o texto, de mostrar como este
ilumina aquela com seus intermitentes fulgores;
e de indicar a circulação permanente de temas e
tons, entre a obra e a pessoa do escritor Barthes
que conheci. Esse "Barthes que conheci" não
pode ser senão uma visão de Barthes, uma leitura
conjunta de sua obra e de seu corpo vivo; uma
ficção, na medida em que sou eu quem seleciona,
ordena e escreve essa leitura. Um tipo de leitura
ROLAND BARTHES

que Barthes, o teórico, encorajava, e cujo caminho


ele indicava.
O biografema, segundo ele, nunca é uma verdade
objetiva: "O biografema nada mais é do que uma
anamnese factícia: a que eu empresto ao autor
que amo" (RB/RB, p. 114). A biografemática -
"ciência" do biografema - teria como objeto
pormenores isolados, que comporiam uma biografia
descontínua; essa "biografia" diferiria da biografia-
destino, onde tudo se liga, fazendo çentido. O
biografema é o detalhe insignificante, fosco; a
narrativa e a personagem no grau zero, meras
virtual idades de significação. Por seu aspecto sensual,
o biografema convida o leitor a fantasmar; a compor,
com esses fragmentos, um outro texto que é, ao
mesmo tempo, do autor amado e dele mesmo -
leitor.
A biografia factual e contínua de Barthes, que I

resumi acima, já impele a procurar outras coisas,


na medida em que seu destino nada tem de heróico,
de conseqüente ou de instrutivo. E isso porque
o modo discreto como Barthes viveu e comunicou
esses fatos coincide, perfeitamente, com sua
repugnância pelo tipo de imaginário que preside
às biografias-destino.
O primeiro fato trágico - a perda prematura
do pai - não trouxe conseqiências espetaculares
(como na vida de Baudelaire por exemplo). A
psicologia não pode dizer que ele ficou "revoltado",
nem a psicanálise pode afirmar, com segurança,
BIOGRAFEMAS

que esse fato explica seu apego a mãe e/ou seu


homossexuaIismo. Embora morto tragicamente, o
pai deixou uma lembrança leve: "O pai, morto
muito cedo (na guerra), não estava preso a nenhum
discurso da lembrança ou do sacrifício. Por intermé-
dio da mãe, sua memória, jamais opressiva, apenas
roçava a infância, com uma gratificacão quase
silenciosa" (RBIRB, p. 19).
A infância comum (passada não na pobreza, mas
apenas no "aperto") e os estudos normais não
permitem qualquer ilação. A juventude poderia
ter sido magnificada pela experiência histórica da
2a Guerra Mundial; mas, nesse momento, Barthes
estava tuberculoso. Em vez da Guerra, da Ocupação,
da Resistência, que seus contemporâneos viveram
intensamente, ele teve então a experiência da vida
reclusa e comunitária: o silêncio, as leituras, as
amizades, o sofrimento obscuro. Barthes não deu
a essa doença nenhum sentido de purgação ou de
fortalecimento de caráter. Apenas observou que
teve uma doença retro, historicamente superada
pelos antibióticos: "Doença indolor, inconsistente,
doença limpa, sem cheiros, sem 'isso'; ela não tinha
outras marcas a não ser seu tempo, interminável,
e o tabu social do contagio; quanto ao mais,
estava-se doente ou curado, abstratamente, por
um puro decreto do médico" ( RBIRB, p. 39).
Depois, ele se tornou escritor. Seria esse seu
destino, para onde tudo se encaminharia e que
tudo justificaria? Mas o escritor, enquanto perso-
ROLAND BARTHES

nagem, também é desmistificado por ele como


um "fantasma": "Com certeza não há mais nenhum
adolescente Que tenha este fantasma : ser escritor!
De que contemporâneo querer copiar, não a obra,
mas as práticas, as posturas, aquele modo de
passear pelo rnuildo, com uma caderneta no bolso
e uma frase na cabeça (assim eu via Gide, circu-
lando da Rússia ao Congo, lendo seus clássicos e
escrevendo seus apontamentos no vagão-restaurante,
enquanto esperava os pratos; assim eu o vi real-
mente, num dia de 1939, no fundo da cervejaria
Lutétia, comendo uma pera e lendo iim livro)?
Pois aquilo que o fantasma impõe e o escritor tal
como podemos vê-lo em seu diário íntimo, e o
escritor menos sua obra: forma suprema do sagrado:
a marca e o vazio" ( R B I R B , p. 81). O "escritor"
foi sistematicamente dessacralizado por Barthes:
é aquele que trabalha em casa e, por isso, e visto
pelos outros como um desocupado e/ou aferninado;
ser escritor não é uma unção, é uma função; ser
escritor é trabalhar para nada, pois a escritura
tem por fim ela mesma.
O engajamento pol itico podia ser a justificativa
maior de sua vida. Profundamente ético, Barthes
não se esquecia de que tudo é pol ítico. Entretanto,
não acreditava que a ação política do escritor
estivesse em seu engajamento pessoal, mas em seu
poder de deslocar as linguagens de seus centros
de poder. O que o aborrecia no comportamento
político, como no das vanguardas artísticas, era
BIOGRAFEMAS

a "jactância", a "arrogância" e a "rnilitância"


dos que defendem certezas. A essa espécie de
triunfo da boa consciência ( p l ítica' ou estética),
ele preferia a posição instável do "sujeito impuro",
fora de qualquer poder, mais subversivo do que
revolucionário.
Vem entretanto a "glória", e esta o entedia.
Os grandes públicos o assustam, a televisão o
mortifica, as viagens o cansam. E os pequenos
acessos de vaidade que o acometem acabam por
mortificá-lo ainda mais: além da certeza de um
engano do outro ( o desconhecimento em que se
funda todo prestígio público), a auto-irrisão: por
quem estou-me tomando? A pergunta "Você tem
o sentimento de escrever para a posteridade?",
respondeu : "Francamente não" (entrevista em
Le Nouvel Observateor, 1011/77).
Por tuda isso, tinha razão quando disse um dia
que, se tivesse de escolher uma divisa, adotaria esta,
de Valéry: "Nem um deus ousaria tomar por divisa:
Eu decepciono". A vida de Barthes decepciona:
ou, pelo menos, ele fez tudo para que seu relato
decepcionasse. Tudo o que ia fazer um sentido
maior, dar uma moral da história. uma explicação
dos fatos posteriores ou uma conclusão dos
anteriores, foi desmontado por ele mesmo: a
doença, a vocação, a missão, a glória. Barthes
atenuou, sutil e tenazmente, sua autobiografia;
e frequentemente deu a seus fragmentos auto-
narrativos um leve tom de farsa. Como quando
18
ROLANQ BARTHES

contou o que fez com a costela que lhe haviam


extra ido, em 1945, num pneumatórax: "lancei
a costeleta e sua gaze do alto do balcão. como
se estivesse dispersando romanticamente minhas
próprias cinzas, na rua Servandoni. onde algum
cachorro deve ter vindo farejá-las" ( R B I R B , p. 65).
E, como que de encomenda, sua morte também
teve algo de irônico: atropelado por uma caminho-
nete de tinturaria, em frente do Colégio de França.
Faz sentido? Não. Mas esse fato final vibra com
uma virtualidade de sentido; convida a uma inter-
pretação simbólica, que fica porém suspensa.
MITOLOGIAS

No começo dos anos 50, Barthes publicou, em


várias revistas, crônicas sobre determ inados aspectos
da atualidade francesa. Em 1957, esses textos
foram reunidbs em livro, sob o título de Mythofogies
(Mitologias).
O mito é a i entendido em seu sentido corrente
de falsa evidência, de mentira aceita por uma
comunidade. Os "mitos" que atraíam a atenção
de Barthes eram certas representações da vida
cotidiana, menores e aparentemente inocentes:
uma notícia de jornal sobre as farníl ias reais
européias, um texto qualquer de publicidade,
espetáculos esportivos ou eróticos (a luta livre
ou o strep-tease), fotografias de atores ou de
políticos, enfim tudo o que ocupa o público
20
ROLAIVD BARTHES

médio em suas horas de lazer.


Por que um intelectual refinado e já especiali-
zado como Barthes, que naquele momento é
pesquisador do CNRS, critico teatral de vanguarda
e autor de um livro dif icil como Le degré zero de
I'écr: ture (O grau zero da escritura), se interessaria
por assuntos tão corriqueiros, anódinos e pouco
"culturais"? Por impaciência, como ele mesmo
explicou depois. Porque algo o incomoda profun-
damente no modo como esses mitos se veiculavam,
na confusão entre Natureza e História sobre a qual
eles se instalavam. O próprio desses discursos
(fossem eles verbais ou icônicos) era apresentarem-
se com .uma aparência de naturalidade absoluta,
como aquilo que "simplesmente é assim", que
O "senso comum" não discute mas apenas aceita.
Barthes resolveu então observar de perto esses
mitos, dedicar-lhes uma total atenção, justamente
aquela atenção excessiva que eles não podem
suportar, na medida em que se destinam a um
consumo desatento e, por isso, conivente.
Partindo então de observações quase óbvias, ele
vai estabelecendo relações insuspeitas para o
consumidor desprevenido, até que a notícia, o
espetakulo, a imagem se revelem, de repente, como
algo diferente daquilo que pareciam ser.
NO artigo "Os romanos no cinema", ele começa
por observar, como um simples dado, que todos
os atores do "Júlio César" de Mankiewicz usam
franjinha e suam muito. Por quê? (e é a í que ele
MITOLOGIAS

já abandona a atitude do espectador comum,


simplesmente receptivo). A franjin ha, observa ele,
funciona como "reclame de romanidade"; compõe
uma "testa romana" cuja exiguidade indicia "o
direito, a virtude e a conquistarf. Quanto ao suor
(de vaselina) que banha indistintamente os rostos
dos homens do povo, dos soldados, dos patrícios,
é um sinal da moralidade romana. Todos suam,
combinando economicamente num único signo,
a intensidade da emoção e o trabalho árduo do
pensamento; pois, para um povo de homens de
negócios, "pensar é uma operação violenta, cata-
clismica, da qual o suor 6 o menor dos signos"
(M, p. 28).Só um homem não sua, no filme: César,
a vitima, que não sabe de nada e por isso não sofre.
Interpretados os signos, resta saber como eles
funcionam nessa linguagem, que tipo de c6digo
é esse onde eles aparecem. Revela-se então o
interesse geral das observações iniciais sobre as
franjinhas e o suor. Barthes aponta a duplicidade
do signo, própria do espetáculo burguês: a í se
confundem signo e significado, sem optar nem pelo
irrealismo artístico, nem por um realismo documen-
tal; mantém-se um sistema de signos bastardo, um
falso realismo que se apresenta como natural.
Em "Saponáceos e detergentes", ele examina a
retórica da publicidade desses produtos, mostrando
que ela se apóia sobre o mito "vertical" da profun-
didade ("lavar profundamente") e o mito "hori-
zontal" da espuma (luxo de1icado, "espiritual").
ROLAND BARTHES

Não se sai impune da leitura de Mitologias, saí-se, pelo menos,


desconfiado daquilo que se consome como "informação" ou
'lazer " ino fensivos.
MITOLOGIAS

E conclui: "O importante é mascarar a função


abrasiva d o detergente sob a imagem deliciosa
de uma substância ao mesmo tempo profunda e
aérea, que pode reger a ordem molecular do tecido
sem atacá-lo" Toda essa retórica para
que o consumidor colabore com os trustes
muItinacionais.
Em outros artigos, ele explora os mitos alimen-
tares dos franceses. Em "O vinho e o leite", esmiuça
o modo como os franceses vêem esses dois l iquidos:
qualquer francês aceita o caráter benéfico dessas
bebidas, sem saber até que ponto suas "virtudes"
estão arraigadas em associações inconscientes e
sem fundamento real. O vinho é associado ao
sangue, I íquido denso e vital, dotado de poderes
de transmutação: transforma o fraco em forte, o
silencioso em tagarela, o intelectual em popular,
etc. Aspectos míticos que ocultam simplesmente
o alcoolismo do francês médio, estimulado pelo
capitalismo metropolitano e colonial. O contrário
do vinho, segundo Barthes, não é a água, mas o
leite, "cosmético" e "reparador", infantil e
inocente. Mas, para o francês, o leite é uma
"substância exótica", consumida nos filmes
americanos; o "autenticamente nacional" continua
sendo o vinho.
Já "O bife com batatas fritas". este também
h

esconde, sob a aparente obviedade, um conjunto


de mitos inconscientes, com inquietantes impli-
cações xenófobas. O bife e as batatas fritas torna-
ROLAND BARTHES

ram-se sinais alimentares da "f rancidade". Assim,


os jornais noticiaram que, depois do armistício
na Indochina, o General de Castries pediu "batatas
fritas". Nada inocente esse pedido, pois as batatas
fritas funcionam a í como comida "nostálgica e
patriótica".
Assim, implacável em sua atenção e hilariante
em suas observações, Barthes vai percorrendo os
aspectos aparentemente mais óbvios e insignificantes
do dia-a-dia francês, para mostrar em que imaginá-
rios eles se ancoram. O "Tour de France" - campeo-
nato de ciclismo - é a epopéia nacional narrada por
hom6ricos comentadores esportivos. O famoso
"Guide Bleu" de turismo age sobre as imaginações
insistindo sobre o pitoresco das "elevações" (s6
as montanhas são pitorescas, sobre as planícies
não há grande coisa a dizer, são apenas "férteis"),
e as particularidades dos habitantes transformados
em "tipos".
As fotos dos candidatos politicos em campanha
("fotogenia eleitoral") revelam obedecer a códigos
su blirninares muito precisos: de frente - realismo,
franqueza; de três-quartos - olhar perdido no
futuro, perseguição tirânica do ideal. Nos "inocentes"
conselhos astrológicos dos jornais ("Astrologia"),
Barthes lê o moralismo e o conformismo dos
astros, que sempre aconselham coragem, paciência,
prudência, bom humor. Os astros jornal ísticos nunca
postulam uma derrubada da ordem vigente; separam
convencionalmente "trabalho", "fam ília", "coração";
MITOLOGIAS

acompanham o ritmo da semana laboriosa, "respei-


tosos para com o status social e os horários
patronais" (M., p. 187).
A leitura de Mitologias diverte e subverte. Não
se sai impune desse livro: sai-se, pelo menos,
desconfiado daquilo que se consome como "'infor-
mação" ou "lazer" inofensivos; ou, como me disse
alguém a quem recomendei essa leitura, com a
sensa~ão de ter ficado mais inteligente. Note-se
bem: não mais culto, mas mentalmente mais ágil.
As Mitologias são, realmente, uma ginástica ou um
estimulante da inteligência.
O que é particular, no trabalho de desmistificação
efetuado por Barthes, decorre de seu ponto de
partida: o mito é para ele fala, linguagem, forma.
Não se trata, para ele, de atacar idéias com idéias;
por exemplo: mostrar que tal atitude diante dos
negros é racista e que não se deve ser racista; ou
que aquilo que se diz de determinado produto é
falso, e portanto não devemos comprá-lo. Trata-se
de mostrar o embuste na própria forma da mensagem
que, desmontada, revela sua artificialidade. Ora,
a eficácia da mensagem ideológica reside justa-
mente no fato de ela se apresentar como transpa-
rente, sem nenhuma intenção. Apontar o arranjo
oculto de suas formas "naturais" é fazer desmoro-
nar no ato as idéias que ela veicula.
A linguagem da mitologia burguesa é insidiosa
porque ela se apresenta como geral, anônima e
eterna; mostrar que ela é particular, que tem uma
ROLAND BARTHES

fonte precisa, que é historicamente datada (ligada


aos interesses de uma classe em determinado
momento) é um modo eficiente de destru i-Ia. Ao
desmontar essas mensagens "inocentes", Barthes
pôs a nu certas constantes do imaginário pequeno-
burguês, indicando o exato lugar dessas constantes
na ideologia dominante. Mais tarde, ele observaria
que a expressão "ideologia dominante" é redundante,
pois a ideologia, no sentido de representação falsa
do real, emana da classe dominante; e os dominados
s6 o são por uma carência de linguagem própria,
que os obriga a engolir e a adotar, sem saber, a
ideologia dominante.
Desmistificar esses mitos era pois uma tarefa
política. Entretanto, Barthes comentou mais
tarde: "O propósito das Mitologias não B político,
mas ideológico'' (Te/ Que/, nQ 47, p. 96). De fato,
seria político se visasse a derrubada de certas
posições para su bstitu í-Ias por outras; é apenas
ideológico porque consiste em apontar o logro
sem propor, em troca, uma verdade.
Como sempre, Barthes assumiu essa tarefa sem
nenhu ma grandiloquência demagógica. Desmistif icar
essas representações, disse ele, não é "uma operação
olímpica" (M, p. 8). O desmistificador não está
acima e a salvo dessa geléia geral da cultura de
massa; está dentro dela, procurando apenas ter
uma visão mais crítica do que a do simples consu-
midor. A arma do desmistificador não é o anátema
ou a censura, mas o humor; foice (e não martelo)
A " NOVA CR~TICA"

O século XVII (Luis XIV, Versalhes, o Classi-


cismo) é a cultura francesa em seu momento de
glória; nesse século de florescimento artístico, o
teatro foi o gênero maior; nesse teatro, as tragédias
de Racine ocupam o lugar de honra.
Desde o século XVII, Racine tem sido venerado
como um monumento nacional, como o exemplo
mais acabado do "gênio f rancês", capaz de apresentar
as paixões mais violentas com clareza, equil ibrio
e nobreza. Gerações sucessivas assistiram às represen-
tações de Fedra ou Ifigênia como às cerimônias
religiosas da tribo, e decoraram os alexandrinos
racinianos como fbrmulas rituais.
Em 1963, Barthes publicou um livrinho intitulado
discretamente Sur Racine (Sobre Racine). Ninguém
ROLAND BARTHES

podia imaginar o que esse livrinho iria desencadear!


Nada mais nada menos do que um amplo debate
sobre a crítica literária, implicando perguntas
fundamentais como: o que é a literatura? como
deve ser lida e ensinada? qual a função do crítico?
quais os seus deveres e direitos?
Tudo começou com a irritação da parte de certos
criticos, que logo transformou-se em indignação
e explodiu em ofensas, num crescendo que durou
dois anos. Em 1965, alguém se tornou o porta-voz
dos ofendidos. Raymond Picard, professor titular
da Sorbona, autor de extensa tese sobre Racine,
publicou então urn panfleto : Nouvelle critique,
noovelfe imposture (Nova crítica, nova impostura),
onde Barthes era chamado de "esc roque intelectual ".
O que será que Barthes tinha ousado fazer com
Racine? Dizer que este não era tão bom quanto
se pensava? Não. Como qualquer outro, Barthes
achava Racine admirável. Barthes tinha apenas
lido Racine de um modo pouco canônico, e falado
dele com uma linguagem inusitada.
Para se compreender a diferença, vou dar apenas
alguns exemplos. Na tragédia Fedra, a jovem Arícia
ama o casto Hipólito. Nada mais normal, como
explica Picard: "A atitude de Arícia é clara. Ela
ama Hipólito e, para justificar-se, ela observa que
tem todas as razões para preferir, por exemplo,
a um vulgar conquistador, um herói altivo que
nunca caiu nas fraquezas do amor". O que diz
Barthes? "Arícia quer fazer explodir em Hipó lito
o segredo de sua virgindade, como se faz saltar
uma carapaça".
Em Britannicus, Nero é o tirano que se sabe,
arrastado por seus maus instintos e por uma sede
sanguinária de poder. Pelo menos é o que dizem
todos os manuais de literatura, confirmando os
manuais de História Geral e as versões de Hollywood.
Barthes não vai dizer o contrário. Para ele, Nero
está diante de duas alternativas: o Bem ou o Mal,
a luz ou a .sombra. Tudo bem. Mas a í surgem
formulações um tanto raras: "A jornada trágica
tem a solenidade de uma experiência química
( . . .) Como um colorante que de repente purpura
ou escurece a substância testada, em Nero, o Mal
vai fixar-se". Em vez de falar da "louca ambição"
de Nero, Barthes diz que ele quer ocupar o trono
para cortar o cortão umbilical que o une à mãe
e conquistar um "espaço autônomo"; e que seu
desespero final é o de "um homem condenado
a envelhecer sem ter nascido".
E assim por diante. Onde Picard e todos os autores
de manuais falam de "príncipe orgulhoso e genero-
so", de "caracteres viris", Barthes vai falar de "figuras
do Pai e da Lei"; onde eles dizem que o herói
"perscruta seu aliado", Barthes diz que ele "emprega
esforcos imensos para ler o parceiro", cuja carne
é "a esperança de uma significação objetiva", e
cujos olhos são "a última instância da verdade".
Onde qualquer um pode reconhecer um "harém"
(cenário de Bajazet), Barthes vê um "habitat
ROLAND BARTHES

eunucóide, elástico e pleno como a água".


Era demais para Picard e companhia. Picard acusa
Barthes de pedantismo e de imoralidade - "sexuali-
dade obsessiva, desenfreada, c inica". Acusa-o de
su bjetivisrno. de interpretações abusivas. Para Picard,
se Racine cria personagens apaixonadas, é simples-
mente porque Racine estava apaixonado quando
escreveu as tragédias; se ele trata da luta pelo poder,
é porque ele tinha problemas desse tipo na corte
de Luis XI V. Barthes teria saído dessa "objetividade"
ao falar de ambigüidades sexuais, de rivalidades da
horda primitiva, de incestos e assassinatos do pai,
etc. Segundo Picard, Barthes só queria escandalizar
e fazer sucesso com suas formulações estranhas.
Picard arranjou logo numerosos aliados. No mesmo
tom exaltado do mestre sorbonista, outros publi-
caram artigos falando em levar Barthes "ao reforma-
tório", "ao pelourinho", "ao cadafalso", em "torcer-
lhe o pescoço" ou "cortar-lhe a cabeça e brandi-la".
Alguns, como Jean Cau, manifestaram o desejo de
beijar Picard por ter escrito aquela denúncia. E
o jornal La Croix detlarava, satisfeito: "E uma
execução". Parecia realmente a volta aos bons
velhos tempos inquisitoriais, quando o tribunal
da Sorbona interrogava e condenava os jesuítas
(século X V I ) , os jansenistas (século XVII) e os
"filósofos" (século XVI II).
Por que tanto furor, e tanto interesse do público?
Seria um perigo terrivel para a língua, para a cultura
e os bons costumes franceses, aceitar que Barthes
A "NOVA C R ~ T I C A "

falasse de "habitat eunucóide" ou de "imaginação


descensional"?
O próprio Barthes encarregou-se de responder,
num tom espantosamente tranquilo, em Critique
e t Vérite. (Crítica e Verdade). O que tinha sido
violado por ele era um tabu de linguagem: tratar
Racine como uma linguagem sobrepondo a seu
texto, explicitamente, outra linguagem; o que,
naqueles anos, começava a ser designado pelo
termo "bárbaro" proposto por um russo
(Jákobson): a metalinguagem. Através dessa
infração maior, Barthes tinha posto em discussão
e em crise alguns mitos indiscutíveis (já se viu um
mito "discutível"?) como: o Bom Gosto. a Razão,
a Clareza (de que todos os seres humanos seriam
dotados, mas os franceses mais); a objetividade,
a verdade histórica, a hierarquia dos discursos.
Em um artigo de 63, Barthes já havia detectado
a existência de duas criticas na França ("Les deux
critiques", in Essais critiques): uma "universitária",
baseada na história e na psicologia do século XI X;
outra "interpretativa" ou "ideológica", baseada
nas filosofias e nas ciências humanas do século XX.
A primeira, herdeira do historiador Lanson e do
crítico biográfico Sa inte-Beuve, examinava os
"fatos" com "objetividade", estabelecendo entre
eles relações de causa e efeito. Assim, um de seus
grandes objetivos era detectar as "fontes" das obras,
nas circunstâncias históricas ou individuais, ou
nas obras anteriores. Cr i'tica de erudição, consistia
ROLAND BARTHES

em cercar a obra com um aparato de leitura, sem


entretanto interpretá-la, a não ser com o simples
bom senso ou com tranqüilas noções de psicologia.
Esse tipo de crítica, segundo Barthes, considera
a obra literária como um dado, como o óbvio;
nunca se pergunta o que é a literatura, por que
se escreve, por que se lê, por que escrita e leitura
variam conforme as épocas. O valor de determinadas
obras também é, para essa crítica, indiscutivel:
são grandes autores aqueles que já estão reconhecidos
como tal ( e só estão reconhecidos os mortos).
A segunda crítica, que surgia como um conjunto
forte naquele momento, pretendia interpretar as
obras à luz de algum dos movimentos de idéias
contemporâneos: existencial ismo, marxismo, psica-
nálise, fenomenologia; utilizava métodos novos
das ciências humanas; aceitava o relativisrno his-
tórico de qualquer interpretação. Que a critica
"universitária" resistisse a essa crítica nova era
muito compreensivel : tratava-se de uma questão
de ensino. A Universidade sempre resiste ao novo,
defende a repetição, a reprodução de uma ideologia.
Por outro lado, ela prefere a erudição segura à
experimentação duvidosa, como um meio de
garantir o poder da corporação professional pela
o

dificuldade e pela lentidão que a erudição exige.


Barthes não era o primeiro nem o único crítico
l iterário francês a enveredar por cam inhos novos.
Antes dele Bachelard, Blanchot, Sartre (e até
mesmo Mauron, um sorbonista respeitado) já
A "NOVA C R ~ T I C A "

haviam recorrido a psicanálise para examinar a


literatura. E, no mesmo momento em que Barthes
escrevia seu insólito Racine, outros críticos
estavam renovando sua disciplina à luz de outros
saberes: Lucien Goldman, sociólogo marxista;
Georges Poulet, Jean-Pierre Richard e Jean
Starobinski, que analisavam os temas das obras,
detectando estruturas profundas e lendo-as como
f igu ras.
Na verdade, era impróprio chamar apenas a "velha
critica" de "universitária"; porque a "nova crítica"
também era obra de universitários, e as escaramuças
entre as duas indicavam apenas duas grandes
correntes no ensino da I iteratura. A repercussão
do debate Picard-Barthes se devia a um sentimento
de mal-estar no ensino em geral, mal-estar que
logo faria explodir a universidade francesa, na
revolução de maio de 1968. Nem é preciso dizer
que o conservadorismo dos velhos sorbonistas,
com relação à literatura, era também um conser-
vadorismo pol ítico; e que os "novos críticos" eram,
em geral, "de esquerda" (um dos ataques de Picard
a Barthes consistia em chamá-lo de "o progressista
Barthes"). A explosão violenta de maio de 68
evidenciaria o fato de as crises na educação serem
sempre sintomas de uma doença social muito mais
ampla.
Se, nesse mal-estar relativo ao ensino da literatura,
Barthes foi o precipitador involuntário da crise,
isso se devia ao radicalismo tanto de suas posições
ROLAND BARTHES

críticas quanto de seu estilo, que mesmo os simpa-


tizantes caracterizavam como "precioso"; um estilo
cheio de imagens inesperadas, de termos técnicos
e científicos. de neologismos criados por ele.
O radicalismo de suas posições e de seu estilo se
devia a uma única e mesma causa: Barthes, mais
do que qualquer outro "novo crítico". misturava
dois gêneros que sempre tinham sido distintos:
a crítica literária (linguagem segunda, submissa
i linguagem primeira da obra) e a criação literária
(linguagem autônoma, que tem por referência e
por fim ela mesma). Picard tinha razão quando
acusava Barthes de não ser "objetivo"; de fato,
para ele, a obra literária sempre foi um pretexto
para, a partir dela, criar uma nova obra. Tal prática
realmente escapa aos objetivos didáticos da critica
literária que, como qualquer ensino, visa a trans-
missão de um saber e não a criação de um novo
objeto.
No artigo "Ecrivains et écrivants" ("Escritores
e escreventes"), de 1960, Barthes já distinguia os
que escrevem s 6 bre alguma coisa (os "escreventes")
daqueles que escrevem, ponto final (os "escritoresf').
Para os primeiros, a linguagem é instrumento, para
os segundos ela é meio e fim; para os primeiros,
escrever é falar de alguma coisa, para os segundos
"escrever é um verbo intransitivoff (EC, p. 149);
para os primeiros, interessa um porquê (do mundo,
da literatura), para os segundos só interessa o
como; os primeiros buscam respostas através da
A "NOVA C R ~ T I C A ' *

linguagem, os segundos formulam perguntas na


e à 1 inguagem. Essa distinção barthesiana deslocava
consideravelmente a questão do "engajamento"
do escritor que, desde Sartre, era um ponto pacífico
para os críticos progressistas. Barthes afirmava
que o engajamento do escritor não é com o mundo
ou com as idéias, mas com a linguagem; no trabalho
de linguagem d o escritor, o mundo e as idéias são
indiretamente questionados, deslocados, e final-
mente transf orrnados.
No fim de Crítica e Verdade, Barthes sai para
fora do debate "velha crítica" versus "nova crítica".
Não discute mais a propriedade de novos métodos
ou novos vocábulos, mas coloca algo muito mais
polêmico: o direito de o discurso critico ser um
discurso artístico autônomo, que nada tem a ver
com qualquer verdade, mas apenas com a validade,
que é uma coerência interna do sistema. Trata-se
de afirmar que o desejo do crítico não tem por
objeto a obra analisada, mas "a sua própria
linguagem" (CV, p. 79).E a última palavra do livro
é a palavrachave de toda a obra barthesiana:
escritura. (Veremos isso mais de perto no capítulo 5.)
Quanto à polêmica da "nova crítica", hoje, vinte
anos depois, ela perdeu qualquer sentido. Ninguém
precisa mais defender os direitos e as vantagens de
urna crítica psicanalítica, sociológica, temática ou
Iingu ística; os termos técnicos dessas discip I inas
já são moeda corrente até na imprensa de massa.
Esse envel hecimento da polêm ica demonstra
ROLAND BARTHES

simplesmente que a Histbria assimilou a "nova


crítica" e esta, como o próprio Barthes previra,
seria apenas um momento na história das linguagens.
E como ele detestava acima de tudo a repetição,
a institucionalização, as l inguagens que se coagu Iam
e se estereotipam, seu desejo de escritor foi
mudando de objeto. Se a paixão pela linguagem
continuou viva até o fim, a "crítica literária"
foi, 'entretanto, deixando de ser um objeto
desejável para o escritor Barthes.
Nos Últimos tempos, ele não escrevia mais "crí-
tica literária". Dizia ler pouco, desordenadamente,
só por prazer, e de preferência os clássicos. Os
temas de seus cursos passaram a ser "o amor",
"a vida em comum", "a voz", "a fotografia", "o
tempo que faz". Os textos literários só habitavam
seu discurso aos pedaços, sem obedecer a nenhuma
hierarquia: tanto podia ser um verso de Heine, como
um haicai de Bashô ou uma frase de algum romance
fora de moda. E essas referências literárias eram
fragmentos de um "texto" mais amplo, que inclu ia
o cinema, a música. as publicações de massa, uma
cena de rua ou uma conversa de café.
Sonhava com escrever um texto romanesco.
Se alguém viesse então falar-lhe de "metalinguagem"
ou de "sistema de signos", ele apenas sorriria, poli-
damente. Esse já era o jargão dos novos Raymond
Picard, sacramentado em todas as universidades
do mundo.
Os anos 60 e 70 foram um período de grande
produção teórica no campo das ciências do homem.
Na França, enquanto a produção propriamente
literária começa a estagnar, a ensa ística conhecia
um enorme impulso. A última tentativa de reno-
vação literária - o "novo romance" - tivera vida
breve e desembocara numa cansativa repetição
de receitas. O interesse do público leitor voltou-se
então para estudos sobre o homem, a sociedade,
a l inguagem.
As mais instigantes sugestões teóricas e metodo-
lógicas, vindas dos pontos mais diversos, foram
arrebanhadas pelos parisienses e postas em
movimento, num clima animado de publicações,
seminários e debates públicos. Experimentaram-se,
ROLAND BARTHES

com resu Itados brilhantes, casamentos inesperados


de idéias e métodos: marxismo e psicanálise,
lingu ística e antropologia, etnologia e sociologia
de massa.
Depois de uma geração de pensadores humani-
tários, éticos e políticos, como fora a dos existen-
cialistas (Sartre, Carnus, Malraux), surgia uma nova
"geração" (não uniforme quanto à faixa etária)
caracterizada por um saber especializado, técnico;
uma geração de mestres que não pretendiam ensinar
a "pensar" ou a "se engajar", mas a decifrar signos,
estudar o funcionamento de sistemas, desmontar
discursos, destacando arranjos formais e estruturas
subjacentes. Era o estruturalismo.
Foram promovidos a grandes mestres do estrutu-
ralismo: Lévi-Strauss na antropologia : Lacan na
psicanálise; Foucault na filosofia; Barthes na
I ingu istica-poética. Por um fenômeno tipicamente
francês, esses nomes-obras foram captados pela
imprensa de massa e pela televisão, de modo que
um vasto público familiarizou-se, então, com o
jargão desses especialistas. E claro que havia nisso
uma boa dose de esnobismo. Pais centralizado na
Capital, e contando com um grande nlimero de
d iplomados desempregados ou mal empregados,
só a França poderia apresentar tal fenômeno de
demanda cultural.
Os rostos dos mestres tornaram-se familiares
para os espectadores de televisão e para os leitores
dos grandes hebdomadarios franceses. Seus sem inários
se transformaram em acontecimentos mundanos,
em shows quase tão concorridos como nossos
festivais de música popular. O sucesso era tamanho
que outras estrelas ascendentes também começaram
a oferecer shows particulares: Derrida, Deleuze,
Kristeva, Todorov, Greimas, Lyotad, Morin. Um
amigo meu chamava essa lista de "escapulário":
quando se encontrava, num texto, um desses nomes,
os outros se seguiam obrigatoriamente, como as
contas de um terço.
(Boa parte do público desses seminários era latino-
americano. Os maus momentos por que passavam,
sucessiva ou concom itantemente, nossos pa íses,
forçavam ou convidavam os latino-americanos a
arribar para outras plagas; e ir para Paris era uma
espécie de reflexo cultural. Também no mesmo
momento floresciam em nossos países os cursos
de pósgraduação e, por necessidade profissional
ou por fatal idade histórica, os latino-americanos
das áreas human ísticas iam especial izar-se em Paris.
Houve um momento em que esses mestres pari-
sienses, maiores ou menores, contavam e comparavam
o número de seus respectivos "BrésiJiens"; era uma
espécie de teste de popularidade.).
E preciso dizer que o que se discutia nesses semi-
nários parisienses era realmente interessante.
Descobriam-se e exploravam-se, ao mesmo tempo,
teorias do começo do século e outras contempo-
râneas: a lingüística estrutural de Saussure e a
I ingu istica transf ormacional de Chosmky; o forrna-
42
Como quase todos, em Paris, estavam trabalhando
por uma ciência geral das linguagens, desenvolviam-se
pesquisas minuciosas, em que o contraste entre o
aparato conceitual e metodológico e a pequenez
do objeto (do "corpus") seria cômico, não fosse a
seriedade dos estudos. (Lembro-me que tive minha
primeira dúvida sobre esse tipo de trabalho quando
vi um grupo respeitável de pesquisadores dedicando
um ano de trabalhos intensos a decodificar, sem
chegar a grandes conclusões, uma frase de publici-
dade, relativa a uma graxa de sapatos: "E porque
Barane é um creme que ela penetra tão profun-
damente o couro". Senti então um certo desânimo
ao pensar o que aconteceria se o "corpus" fosse
um verso de Fernando Pessoa, ou mesmo de
Casimiro de Abreu.)
E Barthes em tudo isso? Barthes era o estrutura-
lista literário mais respeitado. O rigor estruturalista
coincidia com um aspecto de sua inteligência e
seu temperamento: a habilidade em desmontar
as linguagens (que ele já demonstrara, empirica-
mente, nas Mitologias), o gosto pelas fórmulas e
classificações, .a atração pelas palavras novas (as
novas "ciências" exigiam a criação e o uso de
termos espec íf icos). Não é indiferente saber que
Barthes, naquele momento, ocupava um cargo de
direção na Escola Prática de Altos Estudos, e que
ele levava muito a sério suas funções administrativas
e didáticas. Dizem que nunca aquele setor da
universidade francesa esteve tão bem organizado.
44
ROLAND BARTHES

Era o lado sistemático e ético de sua personalidade,


que alguns viam como sendo seu lado "protestante".
Em 1964, ele se sentou, como um professor
consciencioso e apl icado, e redigiu uma apostila
(Elementos de Semiologia), onde resumia, para
d ivulgação, as teorias de Saussure. A semiologia
era a "cigncia geral dos signos", que o grande
lingüista genebrino deixara esboçada, e que os
franceses tentavam agora sistematizar e levar adiante.
Esse trabalhinho de Barthes, ditado pelo zelo
didático, talvez tenha sido o que mais prejudicou
o julgamento de sua obra, provocando um engano
que prossegue até hoje, em certos meios. Porque
esse trabalho - necessário, Útil naquele momento
em que poucos conheciam Saussure, modesto porque
era mera compilação didática - permitiu aquilo
que os apressados mais desejam: colocar uma
etiqueta nas pessoas. O inclassif icável Barthes ficou
sendo então, para alguns, "o serniólogo"; o que
permitiu que lhe imputassem, depois, todas as limi-
tações, os usos e abusos da "semiologia francesa".
Com o mesmo zelo didático, ele aceitou fazer
um balanço da "análise estrutural da narrativa", no
h istór ico n? 8 da revista Communications. Tarefa
difícil, pois consistia em dar um3 certa unificação
a pesquisas diversas e por vezes contraditórias,
algumas promissoras, outras já mortas de nascença;
e de fazê-lo sem pretender orientar essas pesquisas,
e sobretudo sem ferir suscetibilidades. Também na
mesma época ele resolveu levar a cabo aquilo que
seria sua tese de doutoramento: um estudo
semiológico do discurso sobre a moda, nas revistas
femininas. Acabou desistindo da tese, e publicou
o estudo como livro : Systeme de la mode (Sistema
da moda).
Essa defesa e ilustração do estruturalismo e da
semialogia, a que Barthes dedicou cinco ou seis
anos de sua vida, geraram o mal-entendido de que
falei acima. Todos viram que ele podia ser
sistemático, minucioso, formal izante. Poucos viram
que essa era apenas uma faceta de Barthes, e não
a predominante. A predominante, que obras anterio-
res e posteriores demonstram, era a do indixiplinado-
indisciplinador, do lúdico para quem as palavras
(mesmo as da ciência) eram objetos de prazer
sensual, do cético diante de sistemas total izantes
e totalitários.
Se examinarmos hoje seus textos "estruturalistas",
veremos que a subversão já está a í inscrita. No artigo
"A atividade estruturalista" (1963), depois de exaltar
o aspecto lúdico do estruturalismo (seu caráter
de bricolage), ele termina anunciando o fim do
movimento, que a História superaria, como supera
qualquer linguagem. Na "Introdução à análise
estrutural das narrativas" (1966), ele insiste no
"provisório" das conclusões. assinala o caráter
"exclusivamente didático" de sua exposição, e
sugere, numa nota, tudo o que não diz a í de suas
dúvidas: "Tive a preocupação, nesta Introdução, de
atrapalhar o menos possível as pesquisas em curso".
ROLAND BARTHES

Tambem, contrariamente aos estrutural istas I ite-


rários ortodoxos, Barthes nunca se deteve na
descrição das formas por elas mesmas, mas sempre
insistiu no valor critico que podia ter a atividade
estruturalista: desvendar o "inteligível", buscar
o modo de produção dos sentidos. Convencido
de que a ideologia se cristaliza em formas, conti-
nuava acreditando que anal isar o agenciamento
dessas formas era um meio de desnudar idéias,
aval ia r suas funções, criticá-las, derrubá-las.
Barthes também nunca esqueceu a História, como
alguns estruturalistas: o que lhe interessava não
era a permanência, captável em grandes modelos,
mas as sucessivas transformações das l inguagens.
Mas o estruturalismo e a semiologia, como modis-
mos irnperantes naqueles anos, aplastavam as
particularidades de Barthes. E o mal-entendido
permitiu que numerosos pesquisadores universi-
tários de várias partes do mundo acorressem a
seus seminários em busca de uma "ciência dos
signos" ou de uma "ciência da literatura" de que
ele seria o patrono. Como u m Macunaíma francês,
Barthes considerou então toda a parafernália
estruturalista e semiológica que ajudara a montar,
e declarou: "Ai, que preguiça. . .
If

Dez anos mais tarde, ele explicitaria suas razões


de abandonar o projeto "cient ifico" da semiologia.
A ciência, segundo ele, é adiafórica (termo de
Nietzsche), isto é, indiferente com relação a seu
objeto. Ele havia pleiteado uma ciência semiológica;
ela veio e era triste: "A ciência semiológica não
evoluiu bem: muitas vezes ela não era mais do que
um murmúrio de trabalhos indiferentes, que indife-
renciavam o objeto, o texto, o corpo" (RBIRB,
p. 163). O "corpus", nas análises semiológicas, era
apenas um "imaginário científico" e não, como ele
desejaria, um objeto com o qual o pesquisador
mantivesse uma "relação amorosa". Do projeto
científico restou-lhe então apenas uma utopia: a
de uma "ciência das diferenças", que só poderia
ser um saber, e não uma ciência no sentido corrente
do termo.
Ao assumir, em 77, a Cadeira de Semiologia
Literária no Colégio de França, sua definição dessa
disciplina 6 tão pessoal, que nada mais tem a ver
com "aquela que se busca e já se impõe como
ciência positiva dos signos e que se desenvolve em
revistas, associações, universidades e centros de
estudos" (LI, p. 21). E uma semiologia negativa
(porque ela nega a estabilidade científica de seu
objeto, o signo) e ativa (porque ela brinca com os
signos, saboreia-os como ficções) . Esvanecera-se o
pretexto semiológico em proveito do texto do
escritor.
CAPITULO 5

ESCRITURA E PRAZER

Em 1970 Barthes subverte, na prática, o estrutu-


ralismo. Sua análise de Sarrasine, novela de Balzac,
desenvolvida num curso e publicada depois em
livro (S/Z), retoma aparentemente a velha "expli-
cação de texto", prática tradicional no ensino da
literatura: ele percorre o texto passo a passo, frase
a frase, palavra por palavra. Mas o recorte que ele
vai dando ao texto, e as formas que sua leitura vai
de1ineando constituem uma pratica nova da critica
literária. Essas formas não são estruturas achadas
no texto, mas inventadas em cima dele. Esse duplo
aspecto de S/Z - uma pretensa volta ao passado
da critica, e um avanço em direção a algo tão novo
que destrói o próprio conceito de crítica - opõe
sua análise ao estruturalismo reinante.
ESCRITURA E PRAZER

O que é antiestruturalista em S/Z, 6 precisamente


a estruturação. Como ele explicou numa entrevista,
sua intenção era ultrapassar o estatismo da semio-
Iogia, que pretendia encontrar estruturas-produtos
e buscar outra coisa: a produtividade do texto.
A produtividade do texto literário é sua capacidade
de produzir sentidos múltiplos e renováveis, que
mudam de leitura a leitura. Ler não seria, então,
aplicar modelos prévios, mas criar formas Únicas,
que são formas virtuais do texto ativadas pela
imaginação do leitor (GV, p. 80).
Reagindo contra a indiferença da semiologia com
relação a seus objetos, ele reivindica a diferença:
"Cada texto é Único em sua diferença". Cada leitura
também é unica em sua diferença: "Não creio -
não desejo - que meu trabalho tenha o valor de um
modelo científico suscetível de ser aplicado a outros
textos".
Ligada a essa reivindicação de liberdade crftica,
su rge a reivindicação do prazer, plenamente assum ida
no livro que ele escreve então sobre o Japão:
L'Empire des signes (O Império dos Signos). Sob
um titulo que parecia prometer uma leitura semioló-
gica do Japão (do espaço urbano, das práticas sociais
e art isticas dos japoneses), desvendado como sistema
de signos, o que ele faz é um texto de puro prazer
pessoal. Renunciando voluntariamente a qualquer
pretensão a uma leitura sistemática, baseada em
verdades I ingu ísticas, históricas ou sociológicas,
Barthes inventa seu próprio Japão; um Japão dese-
ROLAND BARTHES

jado, sonhado, saboreado, transformado em texto


único, texto barthesiano - o mais prazeiroso e
deslumbrante de sua obra.
Essas subversões não foram imediatamente perce-
bidas pelos disc (pulos semiológicos. Foi preciso que,
em 1973, Barthes publicasse Le plaisir du texte
(Oprazer do texto), para que a explicitação teórica
de seu abandono à semiologia pusesse em pânico
aqueles que pretendiam abrigar-se à sombra da
"ciência" barthesiana.
No Prazer do texto, Barthes assume o individual
contra o "univesal" do modelo estruturalista, o
corpo contra o conceito, o prazer contra a seriedade
acadêmica, o ditetantismo contra o cientif icismo.
Distingue o prazer do gozo, ligando o primeiro aos
textos literários clássicos, e o segundo aos textos
radicais da modernidade; os primeiros seriam legíveis
( recept Íveis e interpretáveis segundo códigos estáveis
e conhecidos), os segundos escrip tíveis, isto é,
suscitadores de uma outra escritura. Dependendo
da leitura, certos textos antigos podem encaixar-
se na segunda categoria.
O Prazer do texto desagradou a muitos, atraindo
protestos de campos diversos e mesmo politicamente
opostos. Os marxistas acusaram Barthes de ser um
aristocrata, um individualista, um alienado; os estru-
turalistas e serni6Iogos cobraram dele a ausência
de rigor científico, o abandono do método.
Firmou-se então em opinião o que antes era
suspeita: não se podia confiar em Barthes, não se
51
ESCRITURA E PRAZER

podia ser barthesiano, porque ele não parava nunca


no mesmo lugar. Para escândalo dos que exigem
do intelectual senão uma estabilidade ideológica
pelo menos uma evolução coerente e lógica (justifi-
cada), verificou-se que Barthes se deslocava com
um +vontade despudorado. Ora, o deslocamento
barthesiano era uma tática extremamente coerente
com suas convicções fundamentais - essas perma-
nentes. Barthes não acreditava em nenhuma posição
de "verdade"; pelo contrário, achava que qualquer
posição que se instala, que toma consistência e
se repete, torna-se uma posição ideológica no
mau sentido: urna posição que pode ser facilmente
recuperada e utilizada pelo sistema dominante,
para manter-se ele mesmo imutável.
Considerando sempre como sua inimiga n? 1
a Doxa, ou Opinião dominante (conceito colhido
em Brecht), seu campo só podia ser o do paradoxo.
E como a Doxa está sempre recuperando qualquer
posição paradoxal, era preciso sempre deslocar-se
para continuar exercendo a função que, segundo
ele, era a do escritor: uma função crítica e utópica.
Assim, a semiologia tinha sido para ele, num
determinado momento, u rn instrumento de critica
da Doxa; mas no momento em que a semiologia já
tinha virado moda, repetição de receitas, boa
consciência "cient {fica", garantia de saber univer-
sitário, e ele mesmo corria o risco de ser fixado
como modelo de mestre a imitar, seu impulso e sua
consciência o levaram a cair fora.
ROLAND BARTHES

Barthes não era pois imitavel, fihvel. Todo o debate


sobre seu direito ou não de ser tão individual, tão
pouco cient (fico ou tão pouco militante, cessaria
imediatamente se se reconhecesse o óbvio: Barthes
não era um pensador, era um escritor. Seu único
valor estável era a escritura. E o que é, afinal, a
escritura? A escritura é a escrita do escritor. Isso
pode parecer uin truísrno, mas se nos reportarmos
à d istinção escrevência/escritura, veremos que não
o é. A escritura é aquela linguagem única, indireta,
auto-referencial e au tosuf iciente que caracteriza
o texto poético moderno.
i De seu primeiro a seu último texto, era a escritura
iI que Barthes perseguia, na prática e na teoria: uma
1 teoria que, parecendo pretender conceituar a escri-
tura, era ela mesma u m discurso escritural. "A escri-
tura é isto: a ciência dos gozos da linguagem, seu
Kamasutra (dessa ciência, só há um tratado: a própria
escritura)" (PT, p. 14).
Apesar W M r t o s deslocamentos que se efetuaram,
na obra de Barthes, com referênca à conceituação
da escritura, os traços fundamentais dessa prática
se mantiveram estáveis. A escritura não se confunde
com o estilo. O estilo é um conceito clássico, baseado
na distinção entre forma e fundo, e na idéia tradi-
cional de que o pensamento precede à linguagem:
o estilo e uma forma elegante, estética, de revestir
u m conteiido. Um bom estilista é aquele que
"escreve bem", que comunica com habil idade e
com graça suas idéias.
ESCRITURA E PRAZER

Ora, a escritura não é expressão. E uma linguagem


enviezada que, pretextando falar do mundo, remete
para si mesma como referente e como forma
particular de refratar o mundo. A escritura questiona
o mundo, nunca oferece respostas; libera a signifi-
cação, mas não fixa sentidos. Nela, o sujeito que
fala não é preexistente e pré-pensante, não está
centrado num lugar seguro de enunciação, mas
produz-se, no próprio texto, em instâncias sempre
provisórias.
A escritura é um modo de dizer as coisas. uma
enu nciação, uma "voz". Esse modo de dizer
provém do mais íntimo e único de cada escritor:
de seu corpo, de seu inconsciente, de sua história
pessoal; é "o termo de uma metamorfose cega
e obstinada, partida de uma infralinguagem que
se elabora no limite da carne e do mundo" (DZ,
p. 12).
Na escritura não temos idéias ou, pensamentos;
temos idéias-palavras, pensamento4 ras, onde
a forma não exprime mas faz o conteúdo. A
escritura, diferentemente do estilo, não se presta
à análise tópica. Podemos mostrar as técnicas que
fazem um bom estilo, mas não podemos isolar
aquilo que transforma um bom estilo em escritura.
Porque a escritura é "uma rajada forte de enuncia-
ção". Um texto é escritura1 quando nele ouvimos
a voz única de um corpo, e a recebemos como um
gozo: e o gozo é inanalisável, irrecuperável por
qualquer metalinguagem. Ele é sentido como
ROLAND BARTHES

A escritura questiona o mundo, nunca oferece respostas; libera


a significação, mas não fixa sentidos. Nela o sujeito que fala
não é, preexistente, mas produz-se, no próprio texto, em
instâncias sempre pro visdrias.
55
ESCRITURA E PRAZER

intensidade, como perda do sujeito pensante e


ganho de uma nova percepção das coisas.
A escritura é poesia, no sentido moderno do termo:
aquele discurso que acha sua justificação na própria
formu [ação, e não na representação de algo prévio
e exterior; aquela forma na qual, de repente, o que
se diz passa a ser verdade; aquela visão do mundo
que não vem do mundo, como reflexo, mas que
se projeta sobre o mundo, transformando sua
percepção; aquele discurso que não exprime um
sujeito, mas o coloca em processo.
Por tudo isso, não é possível darem-se exemplos
de escritura; ela é fundamentalmente uma
questão de leitura (é escritura o que pode ser lido
por alguém como tal). Entretanto, darei aqui um
exemplo de escritura bart hesiana, ficando a cargo
do leitor decidir se ela corresponde ou não a sua
teoria. Partamos do mundo, ou do referente, segundo
a concepção clássica de que o pensamento precede
à linguagem. Sabemos, por exemplo, que os
japoneses comem com pal itinhos, enquanto nós,
ocidentais, comemos com talheres. Há infinitas
maneiras de exprimir a observação dessa diferença
comportamental. A de Barthes é a seguinte:

"O palito divide, separa, afasta, mordixa, ao invés de


cortar e agarrar, como nossos talheres; ele nunca violenta
o alimento: desembaraça-o pouco a pouco (no caso das
ervas), ou então o desfaz (no caso dos peixes, das enguias),
reencontrando assim as fissuras naturais da matéria (nisso
ROLAND BARTHES

mais próximo do dedo primitivo db que da faca). Enfim,


e esta é talvez sua mais bela função, o palito duplo translata
o alimento, quer quando, cruzado como duas mãos, suporte
e não mais pinça, ele se insinua sob o floco de arroz e o
estende, o eleva até a boca do comensal, quer quando
(por um gesto milenar de todo o Oriente) ele faz deslizar
a neve alimentar da tijela aos lábios, como uma pazinha.
Em todos esses usos, em todos esses gestos que implica.
o palito se opõe à nossa faca (e a seu substituto predatório,
o garfo): ele 6 o instrumento alimentar que se recusa
a cortar, a aferrar, a mutilar, a furar (gestos muito limi-
tados, recuados na preparação da cozinha: o peixeiro que
esfola, sob nossos olhos, a enguia viva, exorciza de uma
vez por todas, num sacrifício preliminar, o assassinato
do alimento); pelo palito, o alimento não é mais uma presa
que se violenta (carnes sobre as quais nos afincarnos),
mas uma substância harmoniosamente transferida; ele
trans-rma a matéria previamente dividida em alimento
de pássaro, e o arroz em jorro de leite; maternal, ele conduz
incansavelmente o gesto da bicada, deixando a nossos
hábitos alimentares, armados de lanças e facas, o da
predação" (ES, p. 26 a 28).

Pergunto agora: depois de ler isso, interessa saber


se é verdade, se os palitos japoneses são realmente
isso, significam realmente isso? E também: pode-
remos comer num restaurante japonês sem nos
lembrarmos desse texto de Barthes? E depois: comer
com palitinhos poderá alguma vez ser o gozo que
está a í nessas palavras?
O mundo - no caso, a prática alimentar japonesa -
ESCRITURA E PRAZER

não é expresso pelo texto de Barthes; é acrescido


do texto de Barthes, substituído por ele num gozo
verbal que só a escritura barthesiana - essa dosagem
Única de sensualidade, intel igência, humar, critica,
fantasia - pôde criar e pode recriar em outros, não
pelo que diz, mas por seu jeito de dizer.
O mesmo faz ele com os textos literários. Se
vamos ler suas críticas para conhecer melhor o
texto de que ele fala, deparamo-nos com um outro
texto tão insinuante, que já não é possível voltar
ao primeiro sem carregar junto o segundo. Essa
duplicidade de todo texto barthesiano, que simula
uma representação mas já beira a produção de um
novo objeto, que se situa numa enunciação aparen-
temente estável (a do ensaista, do intelectual) mas
experimenta riscos de deslocamento e de perda
de posição, caracteriza-o como um escritor de
transição: entre o classicismo e a modernidade,
entre o legivel e o escriptivel, entre o prazer e o gozo.
O texto barthesiano não é o texto radical da
modernidade, que ele anuncia em sua teoria. Não
é um texto que transtorne completamente nossos
hábitos de leitura, que nos dê vertigens de
abolição de sentidos; é um texto que desloca, que
provoca - nisso ele é "vanguarda"; e é um texto
que esclarece, que seduz - nisso ele é clássico.
Barthes ele mesmo não se considerava um escritor
de vanguarda, e nem mesmo ousava assumir-se como
um escritor no sentido pleno do termo (agradecia,
encantado, quando alguém assim o qualificava) ;
ROLAND BARTHES

definia-se, ironicamente, como um clAssico. Sujeito


de transição, crepuscular, Barthes buscava no fu turu
o seu gozo, e no passado seu prazer. A ninguém,
melhor do que a ele, conviria o qualificativo ambíguo
de "encanto radical".
Durante longos anos, duas tendências coexistiram
em Barthes: uma tendência apolínea (seu lado
clássico, metódico, "científico") e uma tendência
dionislaca (seu lado sensual, anárquico). A partir
do Prazer do texto, foi a segunda tendência que
predominou: o Barthes do corpo, do gozo sensual
dos signos, o Barthes escritor.
Em seu Último livro, sobre a fotografia - La
chambre claire (A câmara clara) - é ainda o Barthes
do corpo que está presente; mas já é então um
corpo em trabalho de luto (o luto de sua mãe),
um corpo quase privado de erotismo, encarnado
numa escrita tão brilhante como sempre, mas de
um brilho velado. A- câmara clara é uma espécie
de negativo fotográfico, do qual o positivo seria
O Império dos signos, livro em que a inteligência
barthesiana encontrou a maior harmonia com o
corpo do escritor. Como a anunciar sua morte
próxima, em A câmara clara o corpo de Barthes
já se desprende de seu texto, deixando neste, a
si I hueta evanescente.
CAPITULO 6

AMOR E PODER

No dia 7 de janeiro de 1977, Barthes tomou


posse da Cadeira de Semiologia Literária, criada
especialmente para ele, no Colégio de França. Para
ouvir sua Aula Inaugural, acorreram centenas de
pessoas (cf. Le Monde, 9/1/77) e praticamente
todos os representantes da intelligenzia francesa :
Foucault (que o apresentou), Lévi-Strauss, Deleuze,
Châtelet, Greimas, Kristeva, Robbe-GriIlet, Sollers
e muitos outros. O texto lido por Barthes nessa
ocasião - publicado depois sob o título de Leçon
(Aula) - pode ser visto agora como o testamento
do crltico-escritor, a mais perfeita sintese de sua
obra e de suas idéias assim como o exemplo mais
acabado de sua arte de escrever.
A maior parte da aula inaugural gira em torno
ROLAND BARTHES

dos "discursos de poder" (no plural). "Chamo


discurso de poder todo discurso que gera a noção
de erro e, portanto, o sentimento de culpa", diz
ele. Essa definição amplia consideravelmente o
campo do discurso de poder. Para uma certa boa
consciência intelectual e pol itica, o discurso de
poder - é óbvio! - emanaria apenas do poder
burguês constitu ido, governante, da moral oficial
dos códigos penais e dos mandamentos religiosos.
Mas não seria esse "óbvio" precisamente a marca
daquele "monstro" que Barthes perseguiu a
vida inteira: o estereótipo? "O poder - diz Barthes -
está presente nos mecanismos mais finos das
relações sociais: não s6 no Estado, nas classes, nos
grupos; mas também nas modas, nas opiniões
correntes, nos espetácu Ios, nos jogos, nos
esportes, nas informações, nas relações familiares
e privadas, e at6 mesmo nas investidas liberadoras
que tentam contestá-lo" (LI, p. 8).
Já há algum tempo Barthes se afligia, ousando
perguntar: "Que fazer se a Doxa passar para a
esquerda?" (RBIRB). A experiência de Maio de
68 deixara-o pensativo: "Viu-se assim a maior parte
da liberações postuladas, as da sociedade, da cultura,
da arte, da sexualidade, enunciarem-se sob as
espécies de um discurso de poder: glorificava-se
fazendo aparecer o que tinha sido esmagado, sem
ver o que, assim fazendo, se esmagava alhures"
(LI, p. 23). Todo discurso revolucionário visa o
poder; para chegar a seu objetivo, tem de ser siste-
AMOR E PODER

mático e pesadamente assertivo, tem de ser uma


palavra de ordem - que ordena uma nova ordem,
esmagando não só a antiga mas as virtuais. Como
um declarado an-arquista (contra a autoridade),
Barthes reivindica um*a "pluralidade de desejos",
que se manifestaria numa "pluralidade de discursos",
dando preferência aos discursos "fora do poder".
Um discurso fora do poder é, entretanto, algo
muito difícil, pois a linguagem é exatamente
aquele organismo transsocial, ubíquo e resistente,
onde se encarna o poder. A linguagem é urna
legislação, a língua é um código. Mais do que auto-
ritária (por obrigar a dizer segundo certo repertório
e certas regras, a língua é fascista (por impedir de
dizer de outras formas). A língua é fatalmente
assertiva (ela tende a afirmar, sem dúvidas ou
nuanças), e repetitiva (sua cornunicabil idade depende
da recorrência). A lei da asserção é um poder, a lei
da repetição é um servidão. A tendência B asserção
se exacerba como fala da arrogância e do triunfo;
a tendência à repetição leva à estabilidade a-critica.
Nos dois casos, a língua é o campo onde a ideologia
tende a arraigar-se e a imobilizar-se como discurso
autoritário da verdade ou como discurso al ienante
do estereótipo.
Há entretanto, para Barthes, uma possibilidade
de discurso fora do poder, uma saída para fora dessa
fatal idade da linguagem : trapacear com a linguagem,
introduzir nesta a anarquia, desviá-la de suas funções
habituais. A afirmação e a assunção dessa linguagem
ROLAND BARTHES

libertária por excelência, é a razão de ser da aula


inaugural, e seu ponto culminante: "Essa trapaça
salutar, essa esquiva, esse logro magn íf ico, que
permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor
de uma revolução permanente da linguagem, eu
a chamo, quanto a mim: literatura" (LI, p. 1 1).
A aula inaugural é contemporânea, em sua escrita,
de outro texto de Barthes, publicado em livro pouco
te rnp o dep o is : Fragmen t s d'un discours am oureux
(Fragmentos de um discurso amoroso). Como
explicar que o grande -inimigo dos estereótipos
se entregasse então ao discurso amoroso, não para
o analisar e desmitibicar, mas para cultivá-lo? O
discurso amoroso não é o mais estereotipado
dos discursos, o reino do clichê literário, o tauto-
lógico por excelência? "O que é mais tolo do que
um apaixonado?" (FDA, p. 209).
Acontece que o estereótipo amoroso 6 inatual,
superado, escapando assim à Doxa de nosso
momento histórico. Caindo fora da moda, o apai-
xonado tornou-se anacrônico, inoportuno e até
mesmo "obsceno". Hoje em dia, é natural contar
experiências sexuais; quem o faz é até mesmo bem
visto, como pessoa "liberada". Mas aquele que se
puser a falar de um sentimento amoroso, confessar
uma paixão e descrever todas as suas torturas (incer-
tezas, esperanças, ciúmes, desesperos), encontrará
logo um ouvinte espantado, irônico ou encabulado.
O apaixonado é visto imediatamente como um
louco mais ou menos manso, a quem o confidente
AMOR E PODER

popular aconselhará um bom macumbeiro e o


confidente intelectual dará o endereço de um bom
analista. E principalmente a esse confidente burguês
esclarecido que Barthes se refere: aquele que sabe
que o amor está fora de moda, que é apenas uma
forma de neurose (precisa de tratamento) ou uma
falta de ocupações mais sérias (como jogar na Bolsa
ou militar num partido político). Por ser tão
deslocado e tresloucado, o discurso amoroso se
torna, para Barthes, uma forma de linguagem
subversiva.
Que a preocupação de Barthes com os discursos
de poder e seu interesse pelo discurso amoroso
sejam simultâneos e complementares e algo que
se pode facilmente entender. O discurso amoroso,
como o discurso poético (literatura, escritura),
parece-lhe um antídoto contra o discurso de poder.
Enquanto neste fala urna "voz autorizada", no
discurso amoroso fala um enunciador tão desautori-
zado, que é visto pela opinião corrente como louco,
ou simplesmente ridículo; enquanto a voz do pode-
roso é segura e auto-suficiente, a voz do apaixonado
é desarticulada, desfalecente e balbuciante; enquanto
a voz do poder é dirigida e dirigente a voz amorosa
é desgarrada e errante.
Assim, o discurso amoroso, em nossos dias, é
um daqueles que se encontram esmagados por
outros: pelo discurso político de esquerda (onde
o individual é impertinente), pelo discurso capi-
talista (que usa sua caricatura no marketing), pelo
64
ROLAND BARTHES

discurso psicanal itico cl ínico (que tende a


reduzi-lo à questão sexual). Sendo oprimido, o
discurso amoroso não oprime, entretanto, nenhum
outro: é inocente e desprotegido porque é pedido,
entrega. queixa; é frágil porque é desordenado,
fragmentário, instável. O apaixonado confessa sua
covardia, denega a moral vigente (FDA, p. 17); o
amor faz do sujeito um "dejeto social" (FDA, p. 23);
o sentido do sentimento amoroso "é uma finalidade
inagarrável: ele é apenas o sentido de minha força"
(FDA, p. 31).
Nos Fragmen tos de um discurso amoroso af irma-se,
logo de início, que "é um apaixonado quem fala".
Ora, o discurso do apaixonado, como çe depreende
ao longo do livro, é um discurso em que o enunciador
est8 tão implicado que não consegue descolar do
enunciado, cultivando as tautologias do "eu-te-amo"
e do "é adorável o que e adorável". No entanto,
o enunciador deste livro está levemente distanciado
de seu enunciado, quer por sua informação
psicanal ítica (que Ihe permite reconhecer seu
"imaginário"), quer por uma ligeira ironia que lhe
permite colocar a si mesmo, numerosas vezes, como
teatra t e até mesmo como humorístico.
O recurso a psicanálise lacaniana, embora nuançado
por mil sutilezas estil isticas, não deixa de ser o
acesso a um saber especializado, que salva o enun-
ciador de um discurso totalmente imaginário, de
um puro delírio amoroso. Além disso, só um enun-
ciador já distanciado do sentimento amoroso pode
AMOR E PODER

analisar seu próprio comportamento e encontrar


comparações tão cômicas como a que ele acha
para definir "o arrebatamento": "Nesse momento
em que a imagem do outro vem, pela primeira vez,
me arrebatar, não sou mais do que a galinha mara-
vil hosa do jesu íta Athanase Kircher ( 1646) : com
as patas amarradas, ela dormia fixando os olhos
na linha de giz que, como um atilho, passava perto
do seu bico; podia-se desamarrá-la e ela ficava
imóvel, fascinada, 'submissa a seu vence.dorF, diz
o jesuíta; entretanto, para despertá-la de seu
encantamento, para romper a violència de seu
I maginá rio (vehemens animali$ imaginatio ), bastava
dar-lhe um tapinha na asa; ela se sacudia e recome-
çava a ciscar" ( F DA, p. 224).
Esse "tapinha na asa" é o gesto habitual de
Barthes, como desmistificador de imaginários, por
mais belos que eles sejam. Barthes estava realmente
apaixonado quando escreveu esses Fragmentos;
mas, como um mestre da linguagem, sabia também
desencantar-se a si mesmo. O discurso amoroso
transforma-se, assim, em linguagem autocr itica,
reintegrando aquela constante de toda a obra
barthesiana :a desm istif icação.
Se o poder do analista é inegável, e se a ironia
confirma esse poder, ele não é, entretanto, usado
de forma autoritária: o analista se confessa sempre
implicado nos logros que denuncia, e sua denúncia
nunca é pesada de saber ou esmagadora de sarcasmo.
No caso do discurso amoroso, ele é simpatizante
ROLAND BARTHES

O suicídio de Werther é a mi n ha morte, enquanto


sujeito amoroso.
AMOR E PODER

dos logros!inocentes com que se debate o apaixonado.


E se, quanto aos poderes discursivos apontados
na aula inaugural, ele prefere combatê-los com um
tapinha na asa e não com um murro no queixo
dos discursos autoritários, aqui, esse tapinha é
quase uma carícia.
O discurso amoroso do apaixonado é simpático
e enternecedor, mas como "imaginário" é também
desmontado por Barthes. "A demanda do amor
é sem resposta", disse ele num programa de rádio,
no fim de sua vida. Um único tipo de demanda de
amor nunca o fez sofrer; uma demanda que também
não tinha respostar mas encontrava, no formular-se,
sua plenitude. Essa demanda de amor era a escritura:
"Escreve-se para ser amado, é-se lido sem poder
sê-to. é sem dúvida essa distância que constitui o
escritor" (EC, p. 276).
Na Última fase de sua vida, Barthes utilizava
com freqüência o qualificativo "amoroso" para
designar várias práticas pessoais: a viagem, a
escuta, o ensino, mas sobretudo a escritura. No
prefácio a um t ivro de Jean Daniel, ale caracteriza
a escritura como "uma crise de bondade". Optando
por um discurso de tipo amoroso (como escritor,
como teórico, como professor), Barthes combatia
as ferozes "máquinas de pensamento" : os diçcu rsos
da Certeza, da Arrogância e do Triunfo.
O MESTRE ANARQUISTA

Raymond Picard tinha razão; Barthes era um


intelectual progressista. Em seus tempos de
sanatório. nutriu-se longamente de leituras e
discussões marxistas, que deixaram nele uma marca
definitiva. Quando voltou a vida ativa, era o grande
momento do existencialismo, e Sartre ocupava
o lugar do intelectual modelo, mestre de pensa-
mento de toda uma geração. Embora recebendo,
como todos, o influxo do marxismo sartreano, foi
em Brecht que Barthes encontrou um marxismo
mais próximo de seus desejos, mais capaz de
responder a algumas de suas dúvidas. Essas dúvidas
diziam respeito ao papel do intelectual como
"vanguarda do proletariado" e ao engajamento
puro e simples da linguagem artística, proposto
69
O MESTRE ANARQUISTA

por Sartre em seus momentos mais militantes.


Em Brecht, ele encontrou um marxismo que
não se fechava para outras inspirações teóricas
(a sabedoria oriental, por exemplo), e sobretudo
um marxismo que buscava formas novas para
comunicar sua mensagem. O conceito brechtiano
de "Grande Uso" - a moralidade geral, as idéias
feitas, o estereótipo ideológico - foi fundamental
para a definição da grande inimiga de Barthes: a
Doxa. E, através de sua vida, Brecht foi sempre
para ele o "grilo falante" de sua consciência política.
Aderindo a ele, ou discutindo com ele, Barthes
se situava e se re-situava politicamente (Em Roland
Barthes por Roland Barthes, há uma "Censura de
Brecht a R. B.") Quando sua aversão pessoal ao
discurso e à militância políticas o conduzia a uma
aparente apatia, Brecht (que ele nunca parou de
ler) vinha lembrar-lhe que tudo é político, e que
ele tinha de assumir suas escolhas.
Uma das "brigas" de Barthes com Brecht se referia
ao papel didático do intelectual. Havia em Barthes
um ceticismo quanto à possibilidade de o escritor
sair de sua classe para ser o profeta e o porta-voz
dos "sentidos proletários". A ilusão, segundo ele,
consistia em se pensar que a linguagem de uma
classe pudesse auxiliar o advento da linguagem de
outra classe. Ele não acreditava na emergência natural
de "sentidos proletários", impulsionados pelas
"interpretações dos fatos" oferecidas pelos inte-
telectuais; só acreditava numa contribuição mais
ROLAND BARTHES

modesta do intelectual como crítico e sabotador


das linguagens velhas. Nos Estados capital istas
avançados, a seu ver, a cultura proletária primitiva
( O folclore) está liquidada, ou pior, degradada; o
banho cultural em que o proletariado está imerso
é o da comunicação de massa. O proletariado não
dispõe de uma linguagem própria, mas das
linguagens que lhe são oferecidas pelo poder; suas
reivindicações próprias tendem a tomar emprestadas
essas linguagens para exprimir-se e, como ocorre
em todo empréstimo de linguagem, o que recebe
corre o risco de consumir e repassar, inadvertida
e involuntariamente. os vícios ideológicos do
emprestador.
Os intelectuais, segundo Barthes, não detêm
um poder de ação política tão grande como eles
tendem a crer. Mas detêm, exatamente os instru-
mentos para fazer a crítica das linguagens opressoras,
o que representa um poder e implica um dever.
E seu dever fazer a crítica permanente da cultura
de massa, mas é também sua obrigação fazer
a critica de sua própria linguagem. Porque o
discurso do intelectual é ele mesmo um discurso
burguês, e sobre isso Barthes não tinha nenhuma
ilusão: "H istoricisrno, sociologia, formal ismo,
psicanálise? Todos em burguesados" (E IP, p. 15).
Dai, segundo ele, a necessidade de jogar todos
esses discursos, permanente e sucessivamente, uns
contra os outros, ao invés de encastelar-se cornoda-
mente num só deles. As contradições assim eviden-
O MESTRE ANARQUISTA

ciadas, os deslocamentos que cada sistema imprime


ao outro nesse embate, permitiriam, não encontrar
o discurso da verdade (que é sempre o indesejável
discurso de poder), mas detectar e rejeitar o que
nesses sistemas está imobilizado, repetido, instalado
como discurso ideológico, e abrir assim brechas
para novos sentidos. Portanto, para Barthes, o
intelectual não deve pretender ser aquele que indica
as interpretações corretas e os sentidos verdadeiros,
mas aquele que contribui para a derrubada dos
discursos que escravizam a todos, intelectuais e
proletários. Essa "responsabil idade da forma"
(Aula). que era nele uma obsessão, tendia a fazer
de Barthes "um mau sujeito politico": "Sendo a
estética a arte de ver as formas destacarem-se de
suas causas e de seus objetivos, e constituírem um
sistema suficiente de valores, o que é Mais contrário
a política?" (RBIRB, p. 172).
Entretanto, os problemas da relação do intelectual
com o poder, das táticas e estratégias suscetíveis
de tornar eficaz a linguagem verbal, em sua tarefa
de transformar as relações sociais, ocuparam Barthes
durante toda a sua vida. E, nesse sentido, ele foi
também um mestre de pensamento e um político,
no sentido maior da palavra. Apesar da evolução
de sua teoria e de sua pratica o terem levado cada
vez mais longe da ortodoxia e da militância marxistas,
algo se manteve estável do princípio ao fim: o
desejo de uma sociedade transformada e a reflexão
sobre os meios específicos e eficientes de que
ROLAND BARTHES

disporia o intelectual, na luta conjunta para esse fim.


Com esse objetivo, apl icou-se primeiro a desmontar
empiricamente as mitologias da cultura burguesa,
pelo desnudamento de seus truques; acreditou em
seguida que a semiologia permitiria levar a cabo
essa empresa, com maior rigor; e acabou por
convencer-se de que a prática mais revolucionária,
no domínio da linguagem que era o seu, a prática
que mais escapa ao visgo ideológico aderente tanto
ao discurso ernpirico . (onde a subjetividade se
desprotege) quanto ao discurso cientificista (onde
ocorre uma ilusão de total objetividade), é a prática
do discurso poético - que, em sua teoria, recebe
o nome de escritura.
Em suas fases de mitólogo, de estruturalista e de
semiólogo, Barthes acreditava ainda que o inimigo
era identificado e único: o Estado burguês
capitalista, fonte da Doxa que nos oprime. No fim
de sua vida, porém, convencera-se de que a luta era
muito mais complexa: o poder é múltiplo e ubíquo
porque se encarna na própria linguagem. O inimigo
e as armas para combatê-lo se alojam na mesma
instituição, a mais eterna das instituições humanas.
Fugir à linguagem é impossível, a menos que se
seja rn istico. Mas se quisermos, mais modestamente,
contribuir para a derrubada dos poderes, devemos
avaliar os alvos e as táticas. Primeiramente, o
intelectual deve reconhecer essa plural idade do
poder tocaiado na l inguagern :
O MESTRE ANARQUISTA

"Alguns esperam de nós, intelectuais, que nos agitemos


o tempo todo contra o poder; mas nossa verdadeira guerra
esta alhures; ela é contra os poderes, e esse não é um
combate fácil" (LI. p. 8 ) .

Como proceder? O ataque frontal às regras da I íngua,


a busca de contra-sentidos opostos às asserções, e
da absoluta originalidade contra a repetição produz
a linguagem do absurdo: enigmática, solitária,
incomunicável. E facilmente recuperável : porque
a l ingua prevê, em seu sistema, um lugar inbquo
para a falta de sentido. O discurso impertinente
do absurdo em nada perturba o triunfo da lei, a
soberania da l ingua.
Uma única saída resta àquele que deseja contri-
buir, com sua linguagem para mudar o mundo: ..
aceitar, aparentemente, os constrangimentos da
lingua e os usos discursivos correntes, entrar no
jogo e sabotar suas regras do interior. Deslocar,
sutil e constantemente, seus pontos fixos; descobrir
os pontos frágeis onde é possível mudar as regras
sem destruir a compreensi bil idade. Pouco a pouco
e teimosamente, ir corroendo, como um cupim,
essa construção monumental.
A tática barthesiana, apesar de lenta e paciente,
nada tem de reformista. Não se t r a t a de eliminar
algumas coisas conservando outras, para melhorar
paulatinamente o conjunto; trata-se de subverter
perversamente todo o sistema, ate levá-lo a funcio-
nar de modo totalmente diverso. A metáfora
ROLAND BARTHES

utilizada, uma vez, por Barthes, é a do contrabando:


assim como um ladrão de carro o pinta de outra
cor, modifica seus acessórios e o reintroduz no
mercado, o intelectual pode por em circulação
objetos d iscu rsivos aparentemente legais, mas
verdadeiramente escandalosos, pertu rbadores da
ordem e da economia geral dos sentidos.
Embora tenha sido repetidamente atacado por
sua "leviandade" ideológica e por sua "irrespon-
sabil idade" pol ítica, Barthes mostrou, a todo
momento, o estofo de um pol itico responsável e
eficiente - aquele que vê lucidamente seu objetivo
e avalia realisticamente sua prática, em função
do momento histórico :

"Criticar (fazer crítica) 6 por em crise, e não é possivel


pOr em crise sem avaliar as condições da crise (seus
limites), sem levar em conta seu momento. Assim (. .) .
a crítica que se prende à divisão dos sentidos e à
trucagem da interpretação parece (pelo menos a meu
ver) mais justa historicamente: numa sociedade submetida
à guerra dos sentidos, e por isso mesmo adstrita às regras
de comunicação que determinam sua ef icdcia, a l iquidgão
da velha crítica só pode progredir dentro do sentido
(no volume dos sentidos) e não fora dele. Por outras
palavras, é preciso praticar uma certa intromissão
semântica. A critica ideológica esta. com efeito, hoje,
condenada às operações de roubo: o significado, cuja
isenção é a tarefa materialista por excelihcia, furta-se
melhor na i/u& do sentido do que em sua destruição"
(EIP, p. 14).
O MESTRE ANARQUISTA

No terreno da ensaística, do discurso de idéias,


que era aparentemente o seu, a desestabilização
da ideologia era buscada, em nível conceitual, pelo
entrechoque de sistemas teóricos diversos e, em
n ível estil ístico, pelas surpresas do signif icante e
da enunciação. Provocar, estimular, despertar, talvez
irritar o leitor com significantes habituais, desau-
tomatizá-lo, indicar4he o caminho da crítica
permanente e, ao mesmo tempo, tomar o infinito
cuidado de não impor seu próprio discurso como
fala da verdade; dai a freqüência, em seu estilo,
de parênteses ou incisas do tipo: "a meu ver",
"pelo menos no que me concerne", "salvo erro",
etc., além dos "parece" e dos "talvez". Essas
ressalvas em nada enfraqueciam sua enunciação;
pelo contrário, eram demonstrações práticas de
sua subversão. insinuante mas não impositiva.
Quanto às surpresas do significante, essas não
tinham em sua escritura um mero valor estético,
mas também um valor de estimulantes da crítica
ideológica. Nos pequenos seminários, ele revelava
algumas dessas táticas. Por exemplo: introduzir,
no discurso conceitual, signif icantes sensuais. A
intromissão do corpo num discurso do puro
intelecto perturba, salutarmente, a "seriedade",
a "objetividade" e a "boa consciência" desse
discurso. Pelo contrário, introduzir signif icantes
científicos num discurso subjetivo, desmascara
o imaginário desse tipo de fala (foi isso que ele fez
nos Fragmentos de um discurso amoroso).
ROLAND BARTHES

Para Barthes, a tarefa do intelectual é a de des-


locar, de criticar, de subverter; mas é também a
de se impacientar com o status guo, e de desejar,
sem esmorecer, outra economia de linguagens,
outros sentidos, outro mundo. E esta é a
dimensão utópica do trabalho intelectual de
Barthes, um trabalho que teve sempre uma
inspiração marxista:

"São pois todos os discursos do marxismo que estão presen-


tes em sua escrita [a escrita da crítica cultural]: o discurso
apologético (exaltar a ciência revolucionária), o discu rço
apocal íptico (destruir a cultura burguesa) e o discurso
escatológico (desejar, chamar a indivisão dos sentidos
concomitante à indivisão das classes)" (E IP, p. 16).

Ora. alem de intelectual (aquele que publica seus


escritos e comunica suas idéias), Barthes era professor
(aquele que forma outros intelectuais). Como todas
as suas práticas, a de ensinar também foi por ele
pensada e, coerentemente, subvertida.
Suas idéias sobre o ensino têm, como ponto
de partida, a lucidez, e como força motriz, o
desejo. Recusando os mitos institucionais - a
Universidade como produtora e conservadora do
saber, o Mestre como transmissor e guia, os alunos
como cabeças a serem feitas - ele começa por
situar, claramente, os imaginários da relação didática.
O que o mestre espera dos discípulos: o reconhe-
cimento de uma imagem (de autoridade, de benevo-
O MESTRE ANARQUISTA

Iência, de saber ou de contestação); o aplauso, a


admiração; a possibilidade de executar a tarefa
pela qual é pago. O que o discípulo espera do mestre:
integração profissional ; transmissão de um capital
de saber; um método; uma causa; a orientação para
materializar um fantasma de tese; assinaturas em
atestados e cartas de recomendação.
Esses irnaginá rios respectivos podem levar a rnuitos
mal-entendidos ou a alguns pactos que, de forma
nenhuma, representam um encontro. Sob o fogo
cruzado dessas expectativas pessoais e das exigências
institucionais, Barthes encontrou jeito de prosseguir,
incólume, seu caminho sinuoso e obstinado.
A primeira tática empregada é a da demolição
sutil. Desmistif icadas as formas institucionais em
seu aspecto ideológico e as relações mestre-aluno
em seu aspecto oportunista e/ou neurótico, torna-se
possível propor, em seu lugar, o desejo e a utopia.
Um a um, Barthes examina os aspectos da atividade
didática, operando, a cada vez, um deslocamento :

"Que é urna 'pesquisa'? Para sabê-lo, seria necessário


ter alguma idéia do que é um 'resultado'. Que é que se
acha? Que é que se quer achar? Que é que falta?"' (E I P,
p* 9).

Como "ninguém pode dizer o que é, em ciências


humanas, um resultado" e, como na área literária
as conclusões são sempre duvidosas ou im-perti-
nentes, verifica-se a fetichização do método, que
ROLAND BARTHES

passa a ser o objetivo da pesquisa, esterilizando-a.


Contra essa indiferenciação, esse solilóquio especia-
lizado da pesquisa universitária, Barthes sugere um
tipo de ensino e um tipo de pesquisa bem particu-
lares.
O mestre, quer queira quer não, está num lugar
de autoridade e de exemplo. Ora, o que Barthes
vai propor a seus alunos não é um modelo ideoló-
gico ou metodológico, mas a participação em sua
própria prática de escritor. Ser escritor. para ele,
não é um título honorifico, mas o preenchimento
de uma função: o professor Barthes escreveu,
escreve. O que ele pode oferecer aos alunos é uma
abertura a essa prática. Ele se mostra então em
"estado de enunciação", falando do livro que está
escrevendo, não para dizer; "escrevam como eu",
mas para convidar: "assim como eu escrevo um
texto meu, você pode escrever um texto seu".
O texto, como obra de arte, é irrepet ível. O para-
doxo do escritor que ensina é assim saboreado por
Barthes: "Ensinar o que só ocorre uma vez, que
contradição nos termos! Ensinar não é sempre
repetir?" (AS, p. 55). Além disso, a escritura não
é um saber prévio, mas um fazer onde se encontram
saberes vários, imprevisíveis. O escritor ensina,
pois, o que não sabe. Como qualquer professor,
aliás; a diferença é que o escritor sabe disso.
Como fazer para, ao mesmo tempo, contrariar
e honrar os compromissos com a instituição,
conciliar a ética das convicções pessoais (antiinsti-
O MESTRE ANARQUISTA

tucionais) com a ética de um contrato profissional


remunerado? Ter objetos pré-textos e métodos
álibis, responde Barthes. Para caminhar é preciso
fixar metas e etapas; no final, o que interessa é o
próprio caminho, e os desvios que nele se encontram.
Pesquisar como se se soubesse o que se busca;
levantar, universitariamente, hipóteses; adotar, cienti-
f icamente, métodos; efetuar, diligentemente, o
trabalho. Mas saber que a hipótese é uma miragem,
o método uma bengala que a certo ponto se pode
jogar fora, e que todo trabalho que vale a pena
se nutre do desejo e por ele se justifica.
Como exemplo dessa teoria e dessa prática, o
mestre Barthes jamais postulava, equacionava,
dissertava, explicava ou conclu ia (palavras tão a
gosto dos universitários convictos). E admitia a
decepção do aluno como inevitável e necessária;
porque as expectativas institucionais devem ser
desviadas, a demanda subjetiva e fatalmente sem
resposta e a segurança da verdade está em falta.
Citando Baudelaire, Barthes dizia que se devia
incluir, na Declaração dos Direitos do Homem,
o direito de ir embora e o direito de se contradizer
- direitos que o discípulo concede dificilmente
ao mestre. O que ele se propunha era apenas
"sonhar sua pesquisa em voz alta", renunciando
ao projeto paranóide de "querer agarrar tudo",
querer saber tudo.
Sobre a relação de ensino, ele coloca outras per-
guntas: que é uma aula, um seminário? Um diálogo
ROLAND BARTHES

no qual se trocam saberes ou se comunicam almas?


Um psicodrama onde o jogo da palavra é um jogo
de poder? Uma sessão de psicanálise?
O diálogo e encarado por ele com um logro idea-
lista. Num diálogo nunca há verdadeira troca: só se
"recebem" os saberes e os afetos que já se tinha
antes, e cujo reconhecimento o jogo do diálogo
possibilita. Nesse jogo, é necessário preservar o
valor da "palavra calma'', não por liberalismo ou
tolerância caridosa, mas como reação programática
à tendência natural das falas ao conflito, como
recusa ao desreca lque neurótico disfarçado em
debate de idéias. Fugir à histeria, ao psicodrama.
A palavra calma pertence a uma arte de viver, não
só a velha arte de viver que se chamava cortesia,
mas a urna nova arte de viver que consiste em acolher
e estimular as diferenças, sem que elas entrem em
conflito mas possam viver em pluralídade:

"A diferença não é o conflito. Nos pequenos espaços


intelectuais, o conflito e apenas o cenário realista, a paródia
grosseira da diferença, uma fantasmagoria.
A diferença, o que é? Que cada relação, pouco a pouco
(é preciso tempo), se originalize: reencontre a origina-
lidade dos corpos tomados um a um, quebre a reprodução
dos papéis, a repetição dos discursos. desmonte t o d a
encenação de prestígio. de rivalidade" (AS, p. 50).

A aula tem semelhanças com uma seção de psica-


nálise, na medida em que a í alguém fala e outro
ouve. Mas urna inversão interessante a í se verifica:
81
O MESTRE ANARQUISTA

o "sujeito dono do saber", o professor, não é o


analista mas o analisado; é ele quem oferece seu
discurso à escuta dos alunos, é ele quem se expõe,
falando, à lei do outro (da linguagem, do incons-
ciente) que cava furos na sua fala. E finalmente,
quer fale o professor, quer fale o aluno, o que ocorre
é uma transferência, fenômeno pelo qual, em
psicanálise o analisando projeta seus afetos na figura
do anal ista :

"a relação de ensino não 6 nada mais do que a transferência


que ela institui; a 'ciência'. o 'método', o 'saber', a 'idéia'
vêm pela banda; são dados a mais, são restos" (EIP, p. 6 ) .

Oimportante é saber que a transferência é a i


bilateral, e que o professor não deve ter a pretensão
de manipular e dirigir as "sessões".
Para evitar as ilusões e as compulsões da relação
didática, Barthes propõe que se reconheçam, nessa
relação. a existência de corpos e de desejos. O grupo
do seminário torna-se assim, para ele, um texto,
composto de traços físicos e de frases soltas. Ver
assim o grupo é introduzir uma mudança radical nas
regras da instituição :

"Recoloquem o corpo no lugar de onde ele é expulso,


e é todo um deslizamento de civilização que se adivinha"
(AS, p. 50.51).

Aceitar a presença de corpos desejantes é reconhecer,


82
R O L A N D BARTHES

e mesmo estimular, uma leve erotização do ensino:

"Decidamos falar de erotismo sempre que o desejo tenha


um objeto. Aqui, os objetos são múltiplos, móveis, ou
melhor ainda: passantes, presos a um movimento de
aparição/desapar ição : são pedaços de saber, sonhos de
métodos, pontas de frases, é a inflexão de uma voz, o ar
de uma vestimenta, em suma, tudo o que forma o ornato
de uma comunidade. Algo se difunde, circula. Tão pró-
ximo, talvez. do simples perfume da droga, esse leve
erotismo derrete, descola o saber, aligeira-o de seu peso
de enunciados; faz dele, precisamente. uma enunciaçao,
e funciona como a garantia textual do trabalho" (AS.
p. 50).

O reconhecimento do erotismo como presença


de desejos suspensoç é uma garantia da vitalidade
desse ensino; por outro lado, o fato de serem desejos
múltiplos, flutuantes, nunca fixados, mantém o
grupo no nível do texto, sem que ele desande em
psicodrama. O seminário é então concebido, ludi-
camente, como um flirt coletivo ou um jogo de passar
anel; utopicamente, como um falanstério ou um
jardim suspenso. Nesse espaço, o projeto barthesiano
pode cumprir-se :

"Utilizamos os aparelhos formidáveis da ciência, do méto-


do, da crítica. para enunciar suavemente, as vezes e em
algum lugar (essas intermitências são a propria justificativa
do seminário) o que se poderia chamar, em estilo ultrapas-
sado: as moções do desejo" (AS, p. 55).
O MESTRE ANARQUISTA

A grande subversão e o grande êxito dos seminá-


rios barthesianos era, efetivamente, a afetização
do saber. No texto "Au séminaire" "No/ao semi-
nário") e na Aula, aparece a metáfora da mãe,
aplicada ao ensino. No texto barthesiano a metáfora
tradicional do mestre como pai - dono do saber
e porta-voz da lei, é substituída pela metáfora da
mãe - aquela que deseja o desejo do filho.
No primeiro artigo, Barthes distingue três práticas
de educação: o ensino, onde se transmite um saber:
a aprendizagem, onde se transmite uma competência;
a maternagem, onde nada se transmite realmente a
não ser o afeto. E essa terceira prática que lhe
interessa:

"Quando a criança aprende a andar, a mãe não discorre


nem demonstra: ela não ensina o andar, ela não o repre-
senta (não anda diante da criança): ela sustenta, encoraja,
chama (recua e chama): ela incita e cerxa: a criança pede a
mãe e a mãe deseja o andar da criançaf* (AS, p. 52).

Na Aula, ele diz como desejaria ensinar:

"Gostaria pois que a palavra e a escuta que se trançarão


aqui sejam semelhantes às idas e vindas de uma criança
que, brinca em volta da mãe, que se afasta, depois volta
para lhe trazer uma pedrinha ou um fio de lã, desenhando
assim, em torno de um centro tranqüilo, toda uma área
de jogo, no interior da qual a pedrinha, a lã importam
finalmente menos do que o dom cheio de zelo que delas
se faz" (LI, p. 28).
ROLAND BARTHES

Nessa segunda aparição da metáfora da mãe não


é necessariamente o mestre quem está em seu lugar.
O "centro tranqüilo" seria ocupado, alternadamente,
por ele (ao receber os ecos da escuta) ou pelos
ouvintes (ao receberem os despretensiosos dons
de sua fala).
Apoiando-se na psicandlise para definir as relações
subjetivas que se tecem no ensino, Barthes acabou
por encontrar - levado por seu modo de ser e guiado
por seus desejos e recusas - a figura ideal do mestre
Zen: aquele que não ensina literalmente nada mas
que desperta o sujeito para seu saber.
As reflexões barthesianas sobre o intelectual
e o professor são constantes (e, na prática, bem
sucedidas) tentativas de fazer coexistir o social
com o individual, a política com o prazer, a insti-
tuição com a subversão - a escrevência com a
escritura.
E somente a escritura - a literatura - lhe oferece
a realização plena de seu projeto crítico e utópico.
Porque a instituição com que ele esta em permanente
luta, a linguagem, é também a que lhe oferece as
armas e os objetos de seu desejo. A I íngua é proibição
do gozo e condição de sua existência.
Foi a presença constante do escritor no intelectual
e no professor Roland Barthes que garantiu, nesses,
o saber com sabor, as idéias com corpo, profunda-
mente subversivas no ambiente universitário onde
ele conseguiu se infiltrar ("sujeito impuro", diz
ele na Aula). permanecer e ser ouvido.
85
O MESTRE ANARQUISTA

Resta observar que a própria aparência física


de Barthes - seu texto corporal e vestimentário -
era o emblema de sua teoria subversiva. Aquele
senhor vestido sempre de cinza ou de bege, de
uma cortesia impecável, cumpridor de horários
e tarefas, carregava invisíveis bombas em insuspeitos
bolsos, que só a ironia de seu olhar denunciava.
Sua voz bem modulada (estudou canto em sua
juventude) anunciava tranqüilamente o fim desse
mundo burguês de que ele era, ao mesmo tempo,
o filho perfeito e o filho pródigo, o trigo e a praga.
Um paradoxo vivo, como o "Banqueiro anar-
quista" de Fernando Pessoa. Proprietário de um
grande capital de saber, Barthes o esbanjava em
seu ensino, disseminado, sem esperar um retorno
em espécie mas um retorno em afeto, que transfor-
mava toda a economia do ensino.
Quatro dias antes do acidente que causou sua
morte, deu u ma entrevista (Nouvel Observateur,
14/5/80).A última pergunta que lhe fizeram foi
esta: "O que o faz continuar escrevendo?" E a
resposta foi :

"S6 posso responder por grandes razões, quase grandilo-


quentes. É preciso usar as palavras mais simples. A escritura
é uma criação; e, nessa medida, é também uma prática de
procriação. É simplesmente uma maneira de lutar, de
dominar o sentimento da morte e da abolição integral. Não
é de modo algum a crença de que se será eterno como
escritor depois da morte. Não se trata disso. Mas, apesar de
ROLAND BARTHES

tudo, quando escrevemos dispensamos germes. podemos


considerar que dispensamos uma espécie de semente e que,
por conseguinte, somos devolvidos à circulação geral das
sementes."

Que mais belo projeto se pode imaginar para


um mestre? Que definição seria mais fiel do que
esta à palavra "seminário"?
Pouco antes de morrer, Barthes publicou o seguinte
fragmento de diário: "A velhice e a morte de Gide
(que leio nos Cahíers de /a Petite Dame) foram
cercadas de testemunhas. Mas não sei o que aconteceu
a essas testemunhas: sem dúvida, na maior parte,
morreram por sua vez? Há um momento em que
as próprias testemunhas morrem sem testemunhas.
A História é feita assim de pequenos estalos de vidas,

Retorno aqui, com algumas modificaç8es, o artigo que publiquei I

logo após a morte de Barthes: "Relembrando Barthes, sem aut6psias


acadêmicas", São Paulo, Jornal da Tarde, 3 1/5/80.
ROLAND BARTHES

de mortes sem revezamento(. . .) A morte, a verda-


deira morte, é quando morre a própria testemunha"
(Te/ Que/ no 82,dezembro de 1979).
Como uma Petite Dame, eu sou agora um dos
depositários de sua memória. Meu testemunho se
constituirá daquelas tem branças que quero partilhar
com os que o conheciam e admiravam, quer pelo
contato com sua pessoa, quer pela convivência,
afinal mais importante, do leitor com o escritor.
O meu foi um contato de crítica, de tradutora, de
ouvinte.
Como crítica, tudo o que posso acrescentar ao
que já escrevi sobre Barthes é o seguinte: sem Barthes,
o mundo ficou um pouco menos inteligente e um
pouco menos amável. Nada de muito espetacular.
Sua morte não foi uma catástrofe para as letras
francesas, e ainda menos para as letras universais.
Porque Barthes, cujo traço fundamental era a dis-
crição, nunca se inseriu no panorama literário como
um escritor de impacto ou de polêmica, mas, segundo
uma maneira que era a sua. sutil, insinuante, mais
subversiva do que revolucionária. Começou a publicar
relativamente tarde e publicou relativamente pouco.
O impacto, as polêmicas e a fama ocorreram, por
assim dizer, à sua revelia e até para seu próprio
espanto. Numa conversa sobre a eventualidade de
um Prêmio Nobel, sugerida por alguém, Barthes +

reagiu coma ao mais risível absurdo: "Meus escritos


não pertencem nem mesmo a um gênero preciso!"
Seria também com descrença que ele veria a
ANAMNESES

previsão de um grande funeral público (como o


de Victor Hugo ou o de Sartre, ao qual acorreram
milhares de pessoas), ou a afirmação de que o mundo
mudaria com sua morte. Mas eu sei que ele mudou.
Levemente ( o mundo é grande), imperceptivelmente
(quantas pessoas o conheciam, o liam?), mas certa-
mente o mundo se enrijeceu. Serão poucos a notá-lo,
mas a grande bobagem universal ficou um pouco
mais densa sem o seu olhar claro e lúcido, um pouco
mais triunfante sem sua crltica ironia. Um pouco
mais abandonada ( a bobagem não sabe, mas ela
também ficou órfã), um pouco mais entregue à
sua coagulada repetição, sem a secreta ternura com
que ele a desmontava, detectando suas ocorrências
em toda parte e, antes de tudo, nele mesmo.
Porque, vendo a linguagem não só como a sede
de todo poder, mas também como o campo da
repetição desgastada (e isso é a bobagem), Barthes
tinha consciência de que sua própria linguagem
fluía à sombra da asserção e do lugarcomum.
Como Ftaubert, ele se sentia fascinado pela bobagem
até o mimetismo. Entretanto, como o Monsieur
Teste de Valéry, ele poderia dizer: "A bobagem não
é o meu fortert.
O trabalho de Barthes era trançar e destrançar
a trama da linguagem, livrando-a dos fios mortos
do estereótipo, para que o texto pudesse aflorar com
seu brilho renovado; e, nele, um novo sujeito pudesse
finalmente surgir, desembaraçado de suas ilusões
representativas. Com graça e teimosia, deslocando
ROLAND BARTHES

as acepções oficiais, modulando a enu nciação,


Barthes subvertia os discursos dominantes, enga-
jando-se na "revolução permanente da linguagem"
que para ele era a literatura.
Como tradutora, tive a experiência de escrever
com Barthes. Não, como alguns tradutores de autores
vivos, de traduzir sob seus conselhos. Barthes
não era um poliglota (limitação que ele reconhecia
publicamente), e estava convicto de que a tradução
(pelo menos a de seus textos) não é uma questão
de letra mas de "tom justo". E como ele tinha a
generosidade de imaginar o meu ouvido afinado
à sua voz, declarava sua confiança em minhas versões.
Encorajada por essa confiança, pude assumir total-
mente aquele desejo ingênuo de todo tradutor que
não traduz por necessidade profissional mas por
escolha e amor: o desejo de reescrever a obra. Como
o Pierre Ménard de Borges, tentei reescrever Barthes:
não palavra por palavra, mas tom sobre tom.
Fui também sua aluna bissexta, por força das
circunstânciós. As circunstâncias eram as da irreguIa-
ridade de minhas estadas em Paris, e o fato de eu
ter ingressado no círculo de Barthes (em 1968)
como uma discipula já liberada das injunções da
formação acadêmica. Assim, nunca fui aluna inscrita,
mas alguém que vinha ouvi-lo por prazer, e a quem
ele perguntava, com certa cogoetterie: "Não é
desinteressante ouvir essas coisas que você já sabe?"
Não só era interessante ouvi-lo falar de qualquer
coisa como, para um professor, os seminários de
ANAMNESES

Barthes valiam por mil aulas de didática; em especial


seu seminário para pequenos grupos, na Escola
Prática de Altos Estudos. Barthes realizava o ideal
de um seminário erudito sem ser pedante, descon-
trardo sem ser relaxado; sua direção era flexível
mas efetiva. Suas palavras nunca emanavam ex-
cátedra, mas pelo próprio tom de sua locução eram
leves, convidativas, amavelmente provocantes.
Barthes tinha um jeito especial de ouvir os discí-
pulos, e estes se educavam menos pelas respostas do
mestre do que pelo modo que ele ouvia. Um discípulo
experimentado sabia ler em seu assentimento (ele
nunca contradizia), avaliar, por um certo jeito de
ele baixar as pálpebras ou de lançar a fumaça do
charuto, o exato grau de interesse de sua intervenção.
As tolices irrecuperáveis ficavam como não tendo
acontecido; as observações intel igentes mas preten-
siosas eram desmontadas por um sorriso; as obser-
vações medianas, se essas eram ditadas por um real
desejo do aluno de entrar no jogo do diálogo, eram
habilmente retomadas por ele e devolvidas sob
nova forma, de outro ângulo, tornadas luminosas
em sua dicção. E como ele nunca assumia a
propriedade do novo discurso, o aluno descobria,
com prazer, que tinha dito algo muito mais interes-
sante do que pensava. Em seus livros, Barthes tinha
o dom de fazer com que o leitor se sentisse mais
inteligente. Pessoalmente, o mesmo acontecia. Por
um malabarismo generoso de que ele tinha o segredo,
toda a sua inteligência se projetava sobre o
ROLAND BARJHES

interlocutor.
Barthes se incomodava com os alunos que ano-
tavam tudo, palavra por palavra. "Para quê?"
perguntava ele. Encorajava, pelo contrário, a "anota-
ção louca", segundo a "escuta flutuante" da psica-
nálise. Achava que se o aluno colhesse, em seu
d iscurso, apenas aquelas palavras ou expressões que
acenassem a seu desejo, teria a chance de produzir
um texto novo, pessoal, e era isso que ele queria
receber de volta, e não a imagem especular de seu
próprio discurso, para ele conhecido, portanto
tedioso.
Esse mestre nunca assumia a mestria. Queria e
conseguia que seu seminário fosse um círculo
deseentrado, que a palavra circulasse como no
jogo de passar anel, que o ambiente de suas aulas
não fosse um cen6culo mas uma área de jogo, onde
o saber se criava à margem do poder acadêmico,
como um suplemento do prazer e do afeto. O
seminário era experimental, não no sentido chato
das experiências pedagógicas programadas, mas no
sentido em que todas as reais comunicações
intersubjetivas são experimentos (fatalmente malo-
gradas, como "comunicações de almas", mas bem
sucedidas, como eventos Iinguageiros do desejo).
Só uma vez vi Barthes perder a calma. Ele havia
proposto ao grupo de seminário participar na
elaboração do glossário de Roland Barthes por
Roland Barthes. Um estudante respondeu lhe que
preferia um tema mais geral, pois aquele trabalho
ANAMNESES

só seria útil para o próprio Barthes; por outras pala-


vras, que os alunos estariam trabalhando de graça para
ele. Diante dessa grosseria, a estupefação de Barthes
foi tão grande que ele só dizia: "Oh non!" O aluno
não tinha entendido que o pedido de Barthes era, na
verdade, uma oferta; que ele não precisava de
ninguém para fazer aquele glossário, o qual não era de
erudição mas de prazer; que ele queria incluir os discí-
pulos como co-autores de seu texto. E, se aquele não
tinha entendido, era inútil explicar. Nos rostos dos
componentes do grupo estamparam-se expressões que
variavam da consternação a secreta crueldade. Todos
sabíamos que, naquele instante, aquele aluno estava
se expulsando dali para sempre, enquanto Barthes
repetia, magoado: "Oh non!" Nunca mais vi aquele
aluno, que tinha cometido o Único erro inaceitável
nas aulas de Barthes: a burrice afetiva.
O que se aprendia com Barthes não era um saber,
mas um certo jeito de viver o saber: "Nenhum poder,
um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o
maior sabor possível" (Aula). Como uma sucessão
de flashes, voltam-me à memória vários momentos
de meu convívio com Barthes. Essas imagens do
Mestre, fragmentarias e abertas, constituem agora
para mim algo como os koans na prática do Zen:
pequenas histórias, curtos diálogos com o Mestre,
que servem apenas como instigação; histórias
enigmáticas ou incompletas, que não têm uma
moral mas apenas uma forte virtualidade de signi-
f icação. Nos últimos tempos, Barthes estava
ROLAND BARTHES

Pura constatacão, sem nenhuma vibração de arrogância,


de sentido, de ideologia.
ANAMIVESES

particularmente interessado no Zen. não como


uma religião mas como um antídoto à subjetivi-
dade narcisista do sujeito ocidental. E, em sua
sabedoria tranqüila e despersonalizada. ele tinha I
tomado uns ares de mestre Zen. Por tudo isso,
talvez, minhas lembranças adquiriram uns ares de t

koans. II

Um dia, perguntei-lhe em que medida o afetavam


as acusações dos críticos, que censuravam suas
mudanças de posição, a desenvoltura com que ele
se transformava, passando de sociólogo a sem iólogo,
de semiólogo a psicanalista, de "cientista" a
"diletante", etc. Disse-lhe que havia escrito um
texto sobre ele intitulado "Roland Barthes, o
infiel". Ele sorriu e respondeu, com a calma auto-
ironia habitual: "Mas eu sou muito fiel às minhas
obsessões!" Depois retificou : "Digamos que minhas
obsessões me são extremamente fiéis".
Giles Lapouge contou-me a seguinte história,
ocorrida com ele. Foi à casa de Barthes para entre-
vistá-lo e encontrou-o despedindo-se de uma vei hinha,
amiga de sua mãe. A distinta senhora comentava,
horrorizada, a degenerescência dos costumes nos
dias atuais. Atônito, Lapouge ouviu Barthes concor-
dando: "É realmente lamentável. Nenhuma moral,
a juventude está perdida. Já não existem pessoas
responsáveis como antigamente. Não sei onde
vamos parar. Etc". A velhinha se retirou, balançando
a cabeça, e Lapouge ficou mudo, aguardando. E
Barthes lhe disse: "Pois é, tenho um tremendo
96
defeito: não sei dizer não".
Também com Lapouge, vi Barthes, uma noite,
dirigir-se para uma entrevista na televisão como
quem vai para o cadafalso. Já sentado no cenário
do programa, Barthes parecia extremamente
inquieto, olhando para os lados como quem
procura uma saída. Quanto mais os cameramen
ajeitavam as luzes e procuravam os melhores
ângulos, mais infeliz ele parecia. Quando chegou
sua vez, ele falou com absoluta calma e segurança;
a entrevista saiu perfeita. Mas, assim que as luzes
se apagaram, ele se virou para Lapouge, com um
ar de náufrago que vê um barco, e perguntou:
"Acabou?" Ele só voltou realmente a relaxar quando
nos instalamos no cenário, para ele familiar, do
restaurante Falstaff, em Montparnasse. Ali os
garçons o conheciam, e o vinho que ele pediu
era "o de sempre".
Uma outra noite, ele veio jantar em minha casa
com outras pessoas. Tomou batida de maracujá
e disse que era deliciosa (soube, depois, que ele
odiava frutas tropicais). Lembro-me de muitas
coisas que os outros fizeram e disseram. Não me
lembro de nada do que Barthes tenha feito ou dito
(afora o delicado comentário à batida). Lembro-me
só que ele chegou cedo e saiu tarde, sozinho; e
que tinha um boné e um cachecol para proteger
seu pulmão frágil contra o frio da noite parisiense.
No I? Congresso Internacional de Semiótica
em Milão (1973),ele era a estrela mais discreta
ANAMNESES

e descrente. No agitado salão do anfiteatro, ele


me fez um gesto mostrando "tudo aquilot', acom-
panhado de um sorriso que dizia tudo sobre seu
ceticismo.
Depois da revolução dos cravos, dei com ele
num jantar da Embaixada de Portugal. Ele, que
detestava esse tipo de reunião, estava ali gentil e
entediado, porque "queria marcar seu apoio aos
recentes acontecimentos portugueses". Com a
mesma preocupação, nunca deixava de firmar um
protesto contra qualquer opressão que ocorresse
em qualquer lugar do mundo. E, mais do que isto,
oferecia sua ajuda efetiva aos exilados latino-ameri-
canos que o procuravam. E ainda agradecia
(aconteceu com meu irmão) a oportunidade que lhe
era assim "concedida" de fazer um gesto polltico.
Enquanto isso, era acusado de burguês e reacionário
porque escrevia sobre o prazer e não acreditava
na literatura de mensagem.
A última vez que o vi foi em fevereiro de 1979.
Desde seu ingresso no Colégio de França, ele se
tornara realmente uma estrela. Seu número de
telefone teve de ser mudado e retirado da lista,
para evitar o assédio. Barthes recebeu-me em sua
casa. Estava morando no apartamento de sua mãe,
falecida um ano antes. Ele mesmo me abriu a
porta, estava só. Tinha um pulover bege-claro e
calças da mesma cor; os cabelos brancos e os olhos
azuis compunham, com a roupa, uma figura toda
suave, quase sem destaque na moldura também
ROLAND BARTHES

neutra do apartamento. Deste, sb registrei um


vago fundo de livros empil hados e quadros abstratos;
nenhum detalhe se impunha, nem pela ordem, nem
pela desordem, nem por qualquer intensidade de
cor ou relevo. As coisas estavam ali como ele
próprio, presentes mas não imponentes, disponíveis
e como que um pouco abandonadas.
Depois de um "como vai você?" que não era
uma simples formalidade mas uma real pergunta,
repetida com interesse e solicitando a devolução,
ele me disse: "Eu estou doente e muito infeliz".
Isso não foi dito em tom dramático ou queixoso;
era uma simples constatação, confirmada pela
tristeza de seu olhar. Explicou-me, desde a "partida"
de sua mãe, ele se havia mudado de seu pequeno
apartamento, no mesmo prédio, para aquele que
fora o dela, "a fim de pôr um pouco de ordem
nas coisas". E que dali não conseguia mais sair.
Levou-me para um escrítório-quarto, onde nos
sentamos. Perguntou-me sobre a situação brasileira,
cuja relativa melhora o alegrava. Pediu-me
no?ícias de vários ex-alunos brasileiros, um por
um. Referi-me ao incrivel sucesso de suas aulas
no Colégio de França, e ele me disse que aquela
multidão o angustiava: "Não sei quem são, não
sei o que esperam de mim. Claro que esse público
me envaidece, seria mentiroso negá-lo. Mas cada
aula é um tremendo cansaço para mim. Não é como
os pequenos seminários da Eco~e Pratique, você
se lembra? Aquilo sim, me dava prazer. Este é um
ANAMNESES

público, e é isso que me aborrece. Vou terminar


este semestre e parar por algum tempo. Vou parar
com tudo: de dar aulas, de escrever. Estamoç vivendo,
na França, um momento de infelicidade semântica.
O discurso está cansado, exausto de tanto produzir
sentidos. Vou para o campo, vou viajar, vou viver
um pouco para mim. Deixar que as coisas assentem".
Falamos de várias outras coisas, de Paris, das
pessoas conhecidas. Amigas ou inimigas, ele tinha
para cada uma delas uma palavra de afeição ou
de tolerância. Sobre as pessoas polêmicas ou
desinteressantes, só tinha comentários como: "Ele
é muito imprudente", ou "ele deve estar doente".
Falamos, finalmente; da tradução da "Aula Inau-
gural", que eu ia fazer, e da introdução que o editor
me pedira, e que eu não achava oportuna. Para
minha surpresa, ele me pediu que o fizesse ("vejo
bem um posfácio"), insistindo em que eu
acharia o melhor jeito de o fazer e, argumento
irrefutável, que isso lhe daria prazer. "Nós vamos
fazê-lo juntos". Foi determinando cal mamente
que, quando eu voltasse "para casa", lhe escrevesse
sobre isso, e que desse diálogo nasceria o posfácio.
(Foi o que realmente aconteceu nos meses seguintes,
não como "diálogo" - "um escritor não dialoga",
escreveu-me ele, como eu previa - mas segundo seu
modo habitual de escuta, nesse caso de leitura,
atenta, sugestiva, estimulante.)
Temendo tomar muito de seu tempo, dispus-me
a partir. Sempre vagaroso, ele me acompanhou
ROLAND 8ARTHES

até a porta e , ali, continuou conversando. Queria


saber de meu irmão, que estava de volta ao Brasil,
mandar-lhe amizades e conselhos: "Diga a ele que
tenha cuidado; a política, nos países de vocês, é
coisa perigosa". (Um ano e meio depois, contei
isso a Philippe Sollers, que comentou: "AS vezes,
atravessar a rua é mais".)
De repente, tive a impressão de estar-me despe-
dindo de um velho tio um pouco ingênuo, limitado
a seu mundo caseiro, e não do grande intelectual
parisiense.
Assim era Barthes, nos escritos mais requintados
como na conversa ao pé da porta: infinitamente
compreensivo e cuidadoso, sempre a beira do tédio
mas dele emergindo por um traço de humor, sufi-
cientemente egocêntrico para sofrer as feridas do
narcisismo e suficientemente irônico para se
deseentrar e sorrir. Um ser amoroso, para quem
a escritura, as aulas e as relações pessoais pertenciam
todas à mesma área vital da atividade afetiva.
CRONOLOGIA

12 de novembro de 1915
Nascimento de Roland Barthes, em Cherburgo.
1916
Seu pai, Louis Barthes, morre numa batalha
naval, no Mar do Norte.
1916-1924
Infâncía em Baiona.
1924
A família muda-se para Paris.
1924-1934
Estudos secundários no Liceu Montaigne e no
Liceu Louis-le-Grand.
10 de maio de 1934
Hemoptise. Lesão do pulmão esquerdo.
ROLAND BARTHES

1 934 - 1935
Descanso para tratamento em Bedous, nos Pirineus.
1935-1939
Sorbona : Iicenciatura em Letras Clássicas. Parti-
cipa de um grupo de teatro antigo. ir
1937
Ensina como leitor, durante o verão, em Debreczen
(Hungria).
1938
Viagem à Grécia com o grupo de teatro antigo.
1939-1940
Professor no liceu de Biarritz.
1940-1941
Professor nos liceus Voltaire e Carnot, em Paris.
Outubro de 1941
Reca ida da tuberculose.
1942
Primeira temporada no Sanatório dos Estudantes,
em Saint-Hilairedu-Trouvet.
1943
Convalescência em Paris.
Julho de 1943
Recaída: lesão do pulmão direito.
1943-1 945
Segunda temporada no Sanatório dos Estudantes.
1945-1946
Continuação da cura no Sanatório de Leysin,
Su iça.
Outubro de 1945
Pneumatórax extrapleural direito.
CRONOLOGIA

1946-1947
Convalescência em Paris.
1948-1949
Professor ~o Instituto Francês e na Universidade
de Bucarest ( Romênia).
1949-1950
Professor na Universidade de Alexandria (Egito).
1 950-1952
Trabalha na Direção Geral das Relações Culturais,
no setor de Ensino.
1952-1954
Pesquisador estagiário do C. N. R.S. (lexicologia).
1954-1955
Conselheiro literário das Éditions de I' Arche.
1955-1959
Pesquisador do C.N. R.S. (Sociologia).
1 960-1976
Professor e orientador de pesquisas na Escola
Prática de Altos Estudos da Universidade de
Paris ("Sociologia dos signos, símbolos e repre-
sentações")
1966
Dá curso nos Estados Unidos, na Universidade
John Hopkins.
1969
Viagem ao Japão, como conferencista.
1969-1970
Professor em Rabat (Marrocos).
1974
Viagem à China com um grupo de intelectuais
ROLAND BARTHES

franceses.
1977
Professor no Colégio de França ("Sem iologia
literária").
1978
Morte de Henriette Barthes, sua mãe.
25 de fevereiro de 1980
E atropelado por uma caminhonete, em frente
do Colégio de França.
26 de março de 1980
Morre no Hospital Pitié-Salpétrière,
Livros de Roland Barthes

Le Degré zéro de I'écriture, Paris, Seuil, 1953. Reedi-


ção com ÉIéments de sémiologie, Paris, Gonthier,
1965. R eedição com Nouveaux Essais critiques,
Paris, Seuil, 1972.
Michelet par lui-même, Paris, Seu iI, 1 954.
Mythofogies, Paris, Seuil, 1957. Reedição em livro de
bolso, Seuil, 1970.
Sur Racine, Paris, Seuíl, 1963. Reedição em livro de
bolso, Seuil, 1979.
Essais critiques, Paris, Seuil, 1964.
Crytique et Vérité, Paris, Seuil, 1966.
Systeme de ta mode, Paris, Seuil, 1967.
ROLAND BARTHES

L 'Empire des signes, Genebra, Skira, 1970. Reedição


em livro de bolso, Paris, Flamrnarion, 1980.
S/Z, Paris, Seuil, 1970. Reedição em livro de bolso,
Seuil, 1976.
Sade, Fourier, Loyola, Paris, Seuil, 1971.
Le Plaisir du texte, Paris, Seuil, 1973.
Roland Barthes par Roland Barthes, Paris, Seu iI, 1975.
Fragmenrs d'un discours amoureux, Paris, Seui1,1977.
Lwon, Paris, Seuil, 1978.
Sollers écrivain, Paris, Seuil, 1979.
La chambre claire, Paris, Gallirnard-Seuil, 1980.
Le grain de /a voix (~ntret'iens1962-1980), Paris,
Seuil, 1981.
L'obvie et I'obtus (Essais critiques / / I ) , Paris, Seuil,
1982.

Traduções brasileiras

Crítica e Verdade (tradução e introdução de Leyla


Perrone- Moisés), São Paulo, Perspectiva, 1970.
( Inclu i também uma coletânea de Ensaios críticos.)
Análise estrutural da narrativa (com outros autores),
Petrópol is, Vozes, 197 1 .
O grau zero da escritura (tradução de Helo ísa de Lima
Dantas/Anne ~rnichand/Alvaro Cini) São Paulo,
Cultrix, 1974.
O prazer do texto (tradução de Jacó Guinsburg), São
Pau 10, Perspectiva, 1977.
Roland Barthes por Roland Barthes (tradução de
Leyla Perrone-Moids), São Paulo, Cultrix, 1977.
Aula (tradução e posfácio de LeyIa Perrone-Moysés),
São Paulo, Cultrix, 1980.
Sistema da moda (tradução de Lineide do Lago Salva-
dor Mosca), São Paulo, Companhia Editora Nacio-
nalIEDUSP, 1980.
Fragmentas de um discurso amoroso (tradução de
Hortensia dos Santos), São Paulo, Francisco Alves,
1981.
Mitologias (tradução Rita Buongermino/Pedro de
Souza), São Paulo, Difel, 1982.
BIOGRAFIA

Nasci em São Paulo. passei minha infância em Minas. Os


azues da Serra da Mantiqueira e seus riachos pedregosos
ficaram guardados em mim. Mas nunca escrevi nenhum conto.
Licenciei-me em Letras Neolatinas, na velha Maria Antônia.
O Grêmio, onde eu pintava cartazes, deixou-me mais lem-
branças do que as aulas.
Sempre quis ser pintora, e por um breve período até fui.
Adolescente, fiz parte do "Ateliê Abstração". de Samson
Flexor; expus em duas Bienais e ganhei uma medalha no
Salão Paulista de Arte Moderna. Foi o único prêmio que
ganhei na vida. Talvez. por isso, tenha desistido da pintura.
Na década de 60. publiquei numerosos artigos sobre l itera-
tura francesa, no "Suplemento Literário" de O Estado de
São Paulo. Ter começado a escrever como jornalista
literária marcou para sempre meu estilo. Nunca escrevo
textos longos e penso muito no leitor.
BIOGRAFIA

A partir de 70, entrei pra valer na carreira universitária.


Dei aulas de teoria literária no pós-graduação da P.U.C. e
continuo dando aulas de literatura francesa na U.S.P, Que
se possa assegurar a sobrevivência material com palavras
ditas e escritas (e palavras sobre a palavra "inútil" da
literatura) é algo que me encanta como um milagre.
Viajei muitas vezes, mas variei pouco o percurso. Passei
várias temporadas na França e duas nos Estados Unidos,
pesquisando livros e pessoas.
Sou muito fiel às minhas paix0es literárias; tenho escrito
bastante, mas sempre volto aos mesmos: Michel Butor,
Lautréamont, Fernando Pessoa e Barthes. Na literatura
brasileira, Raul Pornpéia e Guimarães Rosa. Talvez algum
dia ouse encarar Clarice Lispector.
Publiquei os seguintes livros:
O Novo Romance franoês, São Paulo, Editora Dominus,
1967,
Falência da critica (Um caso-limite: Lautréamont), São
Paulo, Editora Perspectiva, 1973.
Les Chants de Ma/doror/Poésies de Lautréamont, Paris,
Hachette, 1975.
Texto, Crítica, Escritura, São Paulo, Editora Át ica, 1 978.
Fernando Pessoa - Aquém do eu, além da outro, São
Paulo. Editora Martins Fontes, 1982.
1
O SABER COM SABOR

Você também pode gostar