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Aline e a polêmica do ácido 1

Alexandra Bujokas de Siqueira

Essa é das antigas, mas merece ser contada, pela lição de controvérsia. Entre 19 e 27 de março de 1997, o
caderno Ilustrada, do jornal Folha de São Paulo, publicou uma série de tirinhas da série “Big Bang Bang”, criação
do gaúcho Adão Iturrusgarai, que narravam as aventuras da personagem Aline com o uso de LSD. No domingo,
dia 30 de março daquele mesmo ano, a coluna do ombudsman2, na época o jornalista Mário Vitor Santos, discorreu
sobre a receptividade negativa que as quatro tirinhas suscitaram.
Tudo começou quando dois pais ligaram para a redação da Folha, reclamando que as tirinhas eram lidas
por seus filhos pequenos e que estavam “praticamente ensinando as crianças a usar LSD”, na opinião de um, e
“retratando o consumo de drogas de um modo banal e divertido”, na opinião de outro.
O ombudsman lembrou que o humor com usuários de drogas não era nenhuma novidade nos quadrinhos
(basta lembrar da Rebordosa de Angeli ou do Geraldão de Glauco), que o tratamento dado por Adão era sim
divertido, mas “levemente crítico”, e que os editores da Folha tinham como prática não interferir na liberdade de
criação artísticas dos seus autores. Embora o jornal não desconsiderasse o fato de que crianças são um público
vulnerável, que deve ser protegido de algumas mensagens midiáticas, aquelas tirinhas deveriam ser vistas como
um “subproduto inevitável da democracia, até defende-las como prova de que o sistema resiste” (SANTOS, 1997,
p.1).
O criador da Aline teve seu ponto de vista registrado no texto e argumentou que, embora compreendesse
a preocupação dos pais, não era por causa dele que as crianças começariam a usar drogas. A influência viria do
meio em que cada um vive e que um anúncio de cigarros potencialmente teria muito mais influência (na época,
eles ainda eram permitidos).
Em síntese, temos aqui um quadro de disputas simbólicas sustentado em três perspectivas: leitores
afirmando que a tirinha de jornal influencia, negativamente, o comportamento das crianças, autor afirmando que
não influencia e o veículo de comunicação afirmando que o mais importante é a liberdade de expressão artística,
um “subproduto da democracia”. Essa tríade simbólica poderia ser discutida eternamente, sem que se chegasse a

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Texto elaborado como material de apoio para as disciplinas “Leitura Crítica da Mídia”, “Mídia-educação” e “Comunicação, Educação e
Tecnologia”, ofertadas aos cursos de Serviço Social, História e Geografia, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, durante o segundo
semestre de 2018.
2 Coluna e tirinhas disponíveis em

http://acervo.folha.uol.com.br/resultados/?q=a+pol%C3%AAmica+do+%C3%A1cido&site=fsp&periodo=acervo&x=16&y=10 . Acesso em 29 de
abril de 2017.
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qualquer consenso, porque é exatamente isso o que as controvérsias midiáticas são: instrumentos de condução
de conflitos comunicativos, que têm como “arma” a informação (SPONHOLZ, 2010).
O objetivo de uma controvérsia midiática não é o de chegar a um consenso. Longe disso, quanto mais
conflito, em tese, mais se atrai a atenção do público para uma questão, alimentando-se uma engrenagem de
disputas de poder simbólico que, no fundo são o motor de qualquer corporação de mídia. Se essa dinâmica da
promoção de conflitos é boa ou ruim para os leitores, essa é uma discussão que não cabe neste texto mas,
certamente, controvérsias como as da Aline e o LSD são um excelente material para atividades de mídia-educação,
porque acirram pontos de vista e obtêm engajamento dos estudantes, que precisam coletar evidências para se
posicionar no debate.
Se a arma do conflito comunicativo é a informação, para se engajar no debate, é preciso se informar. A
ideia de “informação”, entretanto, não é trivial, especialmente se nosso objeto de disputas é um texto multimodal,
como são as histórias em quadrinhos.
Multimodalidade, na perspectiva da teoria semiótica social, refere-se, segundo Kress (2010), a um campo
que estuda a natureza dos signos, e que os concebe como eternamente “recém-feitos” em situações sociais
específicas e sempre motivados. Um signo, seja verbal ou não verbal (ou uma combinação deles, situação mais
comum), está sempre representando algo para alguém, em uma determinada circunstância, conforme a definição
clássica da Semiótica, a ciência que estuda as linguagens. Ocorre que esse não é um processo unívoco e,
consequentemente, não devemos nos surpreender se o mesmo signo significa uma coisa para uma pessoa e outra
coisa para outra pessoa. A disparidade está na nascente da teoria, por causa da natureza social do processo de
produção de significados. Por aí, já deduzimos que a controvérsia das tirinhas “Big Bang Bang” está absolutamente
dentro da normalidade semiótica.
Kress (2010, P.79) usa o termo mode para caracterizar o conjunto de signos que geram significados nos
mais diversos eventos comunicacionais. Trata-se de “um recurso semiótico que é socialmente moldado e
culturalmente dado para criar significado. (...) Fenômenos e objetos que são produto do trabalho social têm
significado em seus ambientes culturais. (...)”. A construção de um mode é sempre um processo motivado pelas
intenções do produtor, localizado em um ambiente social específico, e a motivação, aqui, deve ser entendida como
uma ferramenta para moldar os signos dentro do mode. Em outras palavras, o produtor, inserido em um contexto
particular, usa determinada forma de arranjo para criar um significado específico. Daí podemos inferir que emoção
e cognição andam juntas nos eventos comunicacionais e que a semiose, ou processo de produção de significado,
está mais sujeita a discordâncias do que concordâncias. Fazer-se entender pelos outros é um exercício e tanto, por
causa das disparidades semióticas inerentes aos processos comunicacionais. Façamos então o nosso exercício, a
partir da controvérsia das tirinhas de Iturrusgarai.

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Podemos começar com uma descrição tão objetiva quanto possível do mode. A primeira tirinha, publicada
em 17 de março, é composta por três quadrinhos. No primeiro deles, temos um plano aberto que mostra Otto e
Pedro, os dois namorados de Aline, sentados em um sofá azul de design clássico. Ela está em pé, apoiada no braço
do sofá, com cara pensativa. No balão de diálogo dela está escrito “Acabei de tomar LSD”. Em outro balão de
diálogo, Pedro pergunta “E o que rola?”. No segundo quadrinho, temos um plano médio dela, de perfil, como
quem olha para Pedro, sob um fundo amarelo forte com um círculo branco no meio. No balão ela diz “Nada...”.
No último quadrinho, voltamos ao plano aberto e vemos que Aline tem o rosto hiperbolicamente desfigurado,
está flutuando na sala, enquanto seus namorados permanecem sentados no sofá. No balão ela diz “Deve ser de
má qualidade”.
Vamos lembrar o que disseram os dois pais preocupados com a tirinha: ela estaria ensinando as crianças a
usar LSD e retratando o consumo de drogas de um modo banal e divertido. Haveria elementos no mode (o conjunto
de signos moldados pela motivação do autor) para sustentar tais significados?
Para responder essa pergunta, é preciso recobrar algumas características do signo, o conceito central da
semiótica. Conforme Kress (2010, p. 62, tradução nossa):
No signo, sentido e forma são fundidos em uma única entidade. Na teoria semiótica social, signos são feitos – não
usados – por um produtor de signos que traz sentido para uma conjunção adequada, com uma forma ou uma seleção
moldada pelos interesses do produtor. No processo de representação, o produtor de signos refaz conceitos e
conhecimento em uma constante remodelação de recursos culturais para lidar com o mundo social.

Para representar as aventuras de Aline com o LSD, Iturrusgarai criou uma conjunção de signos que, o
tempo todo, joga com convenções de normalidade e anormalidade. Os leitores de “Big Bang Bang” devem se
lembrar que Aline trabalha, tem residência fixa, mas tem dois namorados. Ela é batalhadora, mas cultiva um estilo
alternativo: tem cabelo cor-de-rosa, piercing no umbigo e roupas rock’n’roll. O cenário onde se desenvolvem as
histórias é sempre doméstico: a sala da casa, com o sofá clássico, vasos com flores, o quarto com uma cama com
cabeceira comum, lençóis e travesseiros brancos, a escrivaninha com o computador em cima. Os signos de
cotidiano corriqueiro escolhidos pelo autor nos dizem muito sobre arbitrariedade, convencionalidade e
representação. Vejamos.
Na Semiótica clássica, signos de tipo símbolo são entendidos como arbitrários e convencionais. Em um
evento comunicativo, o emissor da mensagem precisa conhecer as regras sociais de uso desses recursos semióticos,
do mesmo modo que os seus interlocutores as conhecem, ou então encontrará problemas. Adão Iturrusgarai fez
exatamente isso quando quis comunicar a ideia de humor: Aline, Pedro e Otto são caricatos e simpáticos, o cenário
é simples e colorido, o estilo do desenho lembra personagens infantis. Os recursos típicos da linguagem dos
quadrinhos, como enquadramentos diversos, uso de balões e metáforas icônicas3, são empregados para tornar a
mensagem amigável e compreensível.

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Para a semiótica clássica, há três tipos de signos: os ícones, os índices e os símbolos. A distinção se deve ao tipo de associação que mentalmente
fazemos a entrar em contato com esses signos. Se o signo se parece com a coisa que o representa, nós o chamamos de ícone, se tem uma relação
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É fácil reconhecer o esforço para provocar o riso naquelas tirinhas. Tudo ali é moldado para soar leve e
divertido, sejam os problemas de Aline com o seu corpo, as dificuldades para arrumar um emprego, as crises
conjugais ou as experiências com LSD.
Ocorre que, para a Semiótica Social, arbitrariedade e convenção são socialmente motivadas, logo, os
interlocutores ou grupos que têm mais poder tendem a estabelecer as convenções. A disputa por significação dos
significantes é constante e eterna e, nessa perspectiva, se o emissor quer ser entendido usando signos
convencionais, é preciso saber organizá-los de modo que forma seja fortalecida para estabelecer o significado a
ser comunicado.
Podemos reler “Big Bang Bang” desta outra perspectiva semiótica também. Com a intenção de provocar
o riso, jogando com os limites entre normalidade e anormalidade, Iturrusgarai se esforçou para criar uma forma
na qual a simplicidade do desenho, o cenário doméstico, a espontaneidade dos personagens fortalecessem as
convenções de normalidade que, subitamente, são quebradas por uma hipérbole, no último quadrinho, quando os
limites entre o que é normal (ou socialmente aceito, sem maiores controvérsias) e o que é anormal (ou que desafia
as convenções estabelecidas) se diluem. Daí surgiria a crítica cultural da mensagem: valores sociais vigentes, como
a representação majoritariamente negativa do uso de drogas, podem ser desafiados com o humor.
Nas outras três tirinhas da série, publicadas entre 18 e 20 de março de 1997, o autor reforça a mesma
representação divertida das drogas. Na primeira tirinha, Aline está em um bar, depois de tomar LSD, e estranha
o fato de não ter sentido nada. Nós é que a vemos nua, sentada em cima da mesa, no último quadrinho. Ela ficou
tão doida que tirou a roupa em público e nem percebeu. Na segunda, ela chega em casa com a expressão
hiperbolicamente desfigurada, seus dois namorados vêem que ela está com cara de quem “andou aprontando” e
ela termina a narrativa se questionando, “Estou?”, dando a entender que não percebia nada do que estava
acontecendo. Na última tirinha, Pedro e Otto alertam Aline que é perigoso ficar usando LSD. Pedro diz que
conheceu um cara que usou e ficou com idade mental de dois anos. No último quadrinho, Aline, deitada na cama,
usando calcinha e meia, segura um urso de pelúcia, chupa o dedo e responde “Mentila”. Novamente, ela não foi
capaz de perceber o que estava acontecendo.
Podemos tecer hipóteses sobre as motivações do autor ao forjar aquela forma para aquele conteúdo. Nesse
exercício, um padrão semiótico importante vêm à tona, através da sequência dos quadros que geram a narrativa.
Nas quatro tirinhas, vemos Aline tomar LSD para se divertir, não perceber que ficou “doidona” e cometer alguma
gafe. O objetivo dela não foi alcançado, o que equivale dizer que ela se deu mal com a experiência. É uma crítica

histórica ou de causa e efeito com o objeto que ele representa, chama-se índice, se a associação é arbitrária e convencional, chamamos de símbolo.
Segundo Umberto Eco (1993) “metáforas icônicas”, seriam ícone e símbolo, ao mesmo tempo. Exemplos desses signos são os balões: balão de fala se
parece com fala e balão de pensamento se parece com pensamento mas, no fundo são convenções. A sucessão de “zzz” indicando sono, as gotas de
saliva indicando apetite e os traços na altura dos pés indicando velocidade são outros exemplos de metáforas icônicas.

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ao uso da droga, portanto. A diferença está no modo como a ideia de “crítica ao uso de drogas” foi representado.
Se compararmos o discurso de “Big Bang Bang” com outros discursos que comumente circulam sobre o problema
do abuso de drogas, veremos que as narrativas tendem a usar a forma para enfatizar a tragédia. Quem abusa das
drogas se fere, perde tudo o que tem, causa transtornos e sofrimento aos outros, contrai doenças e morre. Essa
parece ser a convenção cultural estabelecida no campo específico da semiose sobre o uso de drogas. Iturrusgarai

ousou desafiar a convenção e, embora também tenha feito uma crítica às drogas em si, sua mensagem desafia as
concepções estabelecidas.
Neste ponto, podemos recobrar a perspectiva dos pais que reclamaram ao ombudsman da Folha de São
Paulo. Assim como o autor das tirinhas, os leitores são produtores de signos e, no processo de semiose infinita, o
sentido construído por Adão Iturrusgarai, por sua vez, transformou-se em um novo signo para a construção de
sentido realizada pelos leitores que reclamaram. As reclamações podem ser tidas como um mode, criado a partir do
discurso verbal. Nesse processo, o autor e os pais disputaram poder simbólico (disputa essa fomentada pelo
ombudsman), invocando o papel das convenções do signo. É como se, para os pais, fizesse parte das convenções
semióticas estabelecer um limite para o humor. Pode-se fazer piada de gênero, de classe social, de relações de
trabalho, de padrões de beleza, de crise conjugal, mas não se deve tratar com humor o uso de drogas, quando
crianças e adolescentes estão expostos à mensagem. Assim, enquanto Iturrusgarai usou a forma simples e leve
para zombar do uso de LSD como um evento qualquer, para os pais, a forma foi usada para banalizar um assunto
que não tem permissão para ser representado como banal. Em última instância, sequer tem autorização para ser
representado em uma tirinha, se tomarmos a interpretação do pai de que ela estava “praticamente ensinando as
crianças a usar LSD”. Representar o assunto drogas com humor, para este leitor, é promover o uso, como se a
tirinha fosse um anúncio publicitário convincente.
Nosso exercício semiótico parece ter mostrado que, no fundo, a controvérsia, envolveu uma ideologia de
classe. Os pais, provavelmente dois leitores de classe média, acostumados com meios de comunicação que ajustam
as representações aos seus ideais de classe, assumem que a mensagem deve ser feita sob medida para atender suas
demandas – e as dos seus filhos – por entretenimento. O autor, ao contrário, assume que tem um espaço para
livre expressão. O fiel da balança parecem ser os editores do jornal que, neste caso, penderam para o lado da
liberdade de expressão artística. Mas é pouco provável que essa decisão tenha sido baseada apenas em um valor
democrático, como argumentou o ombudsman.
O que está em jogo na controvérsia das tirinhas da Aline e o LSD é o poder do meio de comunicação, que
precisa conquistar audiências para vender publicidade e, assim, atender aos interesses dos seus acionistas e
financiadores. A audiência interessa enquanto mercadoria que pode ser vendida para a publicidade. Controvérsias,
em tese, fazem a audiência crescer e a liberdade de expressão, neste caso, foi uma ferramenta a favor da hegemonia
do jornal, o lado forte nesse tripé da disputa simbólica.

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Conforme a Semiótica Social (KRESS, 2010, p. 72), todo processo de produção de signos precisa ser
fundado em uma cuidadosa avaliação do ambiente social e das relações de poder daquele ambiente. Assim, saber
se são os pais, o autor da tirinha ou o ombusdam da Folha que estão com a razão é uma questão menor neste
imbróglio. Mais importante, pelo menos na perspectiva da educação para a mídia, é ser capaz de compreender
como a parcialidade do interesse molda o significado, no momento da produção dos signos. Os pais viram as
tirinhas como propagandas estimulando o uso do LSD, motivados pelas convenções culturais hegemônicas em
torno do assunto. Adão Iturrusgarai, motivado pelo valor da criação artística, viu as mesmas tirinhas como um

meio para fazer sua crítica cultural livre e divertida e o ombudsman da Folha de São Paulo, motivado pelas normas
editorias do jornal, tratou de potencializar o debate, argumentando que essa é a dinâmica da democracia. A
controvérsia que era opaca, aos poucos foi ficando transparente e essa é a lição que as controvérsias nos trazem.
Quando aprendemos a enxergar a disputa de posições que está por trás de uma discussão qualquer, aumentamos
nossa chance de compreender o jogo de forças que moldam a dinâmica das trocas simbólicas e essa compreensão
nos ajuda a enxergar a ideologia, ou valores hegemônicos de um agrupamento social qualquer.
Quem anda surpreso com a onda de manifestações conservadoras nos meios de comunicação em tempos
de golpe parlamentar e reformas injustas na previdência e nas leis trabalhistas deve atentar para o fato de que o
conservadorismo, na verdade, é antigo e generalizado. Já estava presente nos reclamões das tirinhas da Aline, em
1997.

Referências
KRESS, Günter. Multimodality – A social semiotic approach to contemporary communication. Londres: Routledge, 2010.
SPONHOLZ, Liriam. O papel do jornalismo nas controvérsias. Estudos em Jornalismo e Mídia, Florianópolis, v. 1, n. 1, p.165-172,
jun. 2010.

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