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IDENTIDADES INFANTIS CONTEMPORÂNEAS: TECNOLOGIAS


DIGITAIS E OUTRAS FORMAS DE SER CRIANÇA E VIVER A INFÂNCIA

Problematizar os meios midiáticos e tecnológicos, como programas de TV, sites de


relacionamentos, performances em shows, corpos de modelos expostos em outdoors, imagens
jornalísticas, publicitárias, artísticas, etc., passa a ser um poderoso recurso para o ensino das
Artes Visuais como exercícios da formação visual. Estes meios oferecem incessantemente
exemplos a serem seguidos, objetos e objetivos a serem alcançados, seja ao anunciarem a
roupa ideal, o cabelo que gostariamos de ter, quem gostariamos de ser, as mais variadas
mensagens nos chegam visualmente, e dialogam com nosso desejo.
Posto de outro modo, é inegável que muito das referências de crianças, jovens e mesmo
adultos advêm de fontes visuais. Muitas vezes tais fontes estão longe da realidade do museu.
São externas ao contexto escolar, familiar e até mesmo cultural, dito assim no singular.
Ligam-se às culturas globalizadas, resultantes do caráter visual que assume a vida na
atualidade. Já que são as imagens, em suas mais variadas formatações, as responsáveis pela
difusão de modelos que são adotados por coletivos ou indivíduos singulares, constituem
“células de comunicação perfeitas”.
Naturalmente, em uma época de vastas possibilidades técnicas, eclode a exacerbação
imagética, na qual, os diversos medias visuais materializam-se como lugares privilegiados de
pedagogização do olhar, onde os indivíduos se espelham, se reconhecem, sociabilizam, e não
poucas vezes são a principal fonte de orientação. De fato, os medias visuais atualmente
abarcam sistematicamente grande parte das culturas. Sendo assim, ceder lugar na formação
educacional para a formação visual inicia por recepcionar as imagens como forma de
expressão e comunicação importantes ao desenvolvimento dos saberes.
Por esta concepção, o campo visual é dado como um fenômeno de ampla importância
na contemporaneidade, mediante o impacto que gera. Não obstante, entendo que falar sobre a
educação do visual mais do que uma preocupação específica da disciplina das artes, a meu
ver, é voltar-se para uma problemática do presente.
Na pós-modernidade o olhar tornou-se um respeitável mediador de experiências e
conhecimentos, e isto impele considerar as imagens como elementos compositivos dos
sujeitos e das culturas na atualidade. Já que muito das construções subjetivas, identitárias e de
sensibilidades não advem unicamente do contexto familiar ou cultural no qual os sujeitos

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estão inseridos, mas sim, pasteurizam-se também às imagens dominantes da cultura


globalizada1.
Penso que negar-se ao enfrentamento das imagens, considerando-as dados universais
ou, inatas refutar o embate simplesmente atribuindo valor negativo a sua presença, subjugá-
las como meras ilustrações da linguagem tradicional, dependentes desta, consiste num
barateamento de sua relação com os homens e mulheres ao longo da história, bem como é
abrir mão de suas infinitas possibilidades.
De fato, ao iniciar este estudo, intuo que as imagens consolidam uma potente fonte de
expressão e linguagem, intimamente ligadas aos imaginários em constante diálogo com as
aspirações, vontades, desejos que, consequentemente, tornam-se referências. Para isso não é
necessário postar-se em oposição à linguagem tradicional (oral e escrita) ou à lógica
matemática, ou ciência, até porque a formação estética e subjetiva sempre existiu, mesmo
com a tentativa moderna de suprimi-la ou, ao menos, torná-la secundária.
Portanto, como educadora atento para o fato de que já há algumas décadas as
perspectivas que se põem como formadoras de opiniões, condensadoras de olhares, são
ditadas por uma nova forma de poder que se estabelece, capaz de ressignificar olhares e
maneiras de interpretar o mundo2. Partilho do pensamento de Fusari e Ferraz, de que “[...] a
educação escolar deve assumir a responsabilidade de dar ao educando o instrumental
necessário para que ele exerça uma cidadania consciente, crítica e participante” (2001, p.46).
O fato é que estamos, sim, vivendo sob um novo regime de visualidade. A partir da
relativização da máxima de Galileu de que o mundo estaria escrito em linguagem matemática,
viu-se desabrochar um número infinito de possibilidades que compõem e completam os
saberes humanos e, dentre eles, as imagens, que embora não tenha seus caminhos
completamente entendidos, fazem parte de sua evolução e saberes. Tais transformações
ampliam as relações de diálogos entre os indivíduos e o mundo e desequilibram a própria
noção de conhecimento.
O momento é propício para anunciar uma aproximação entre a educação e as
experiências visuais de modo significativo para o processo educativo. E isto não será possível,

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Ainda de acordo com Rolnik, a subjetividade é “[...] um modo de ser – de pensar, de agir, de sonhar, de amar
etc. – que recorta o espaço, formando um interior e um exterior” (1997, p. 1).
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Tomo a palavra “poder” na acepção que me confere Michel Foucault na obra Microfísica do poder (1979).
Contudo, não pretendo dar conta de sua discussão sobre o saber ou o poder, apesar de estes conceitos
apresentarem-se indissociáveis à discussão que desenvolvo sobre as imagens como elemento problematizador na
pós-modernidade.

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simplesmente, ao aferir o uso das imagens como bom ou ruim. Mas, para além disso, trata-se
necessariamente de subsumir as imagens como parte constitutiva dos sujeitos e das culturas,
parte da própria linguagem, parte dos saberes, capaz de mobilizar a realidade subjetiva, social
e histórica vinculadas às práticas do ver, que se inscrevem num tênue limiar que se situa entre
o mundo visível e o invisível.
Infiro que pensar o lugar que as imagens ocupam na atualidade é adentrar por um
território intimamente arraigado aos sentidos individuais e coletivos.
Entretanto, esta observação, embora a considere relevante, não se mostra suficiente para
explicar como se elaboram as estruturas de sentidos fundadas no (e pelo) visual. Urge, pois,
buscar categorias epistemológicas que possibilitem explorar mais densamente o meio visual e
o espaço que as imagens ocupam nele.
A adoção de perspectivas de cunho pós-moderno como eixo teórico e epistemológico é
tomada como os loci de convergência, sobre tudo pela configuração estética que assume. De
modo geral, as especificidades do mundo pós-guerras, tecnológico e midiático direciona
homens e mulheres a romper com a centralidade das práticas genuinamente modernas. Creio
que tais acontecimentos foram determinantes na configuração estético-formal sob qual se
assenta o novo modelo da sociedade ocidental.
Muito imbricada a esta condição, a elevação dos meios de produção e apropriação de
imagens constitui um elemento que abre passagem para as novas formas de comunicação e
expressão da vida globalizada. Não por acaso o fenômeno da visualidade torna-se uma marca
sentida no presente, consolidando-se em uma “[...] tendência cada vez mais abrangente,
generalizada e difundida” (JAMESON, 1995, p.1), mas, apesar disso, jamais foi
sistematicamente considerado como parte relevante do processo de educação.
Diante desta observação, e levando na devida conta o cenário atual que se instaura, a
educação se equilibra em tempos de mudanças, agora já sem tantas respostas prontas como
em tempos de outrora3. Resta, ao menos, questionar sobre a presença das imagens no
cotidiano. E como estas contribuem na composição dos novos saberes que movimentam
nosso tempo.
Mas, antes de qualquer outra coisa, para que esta reflexão possa correr mais plausível, é
indispensável esclarecer a questão sobre a que imagens me refiro.

3
Valho-me da perspectiva de Lyotard (1988), segundo a qual a pós-modernidade é um estado cultural que
questiona os paradigmas da modernidade e busca na relação dos diferentes saberes compreender a humanidade e
suas inquietações. Sobre tudo me anima a premissa que o “[...] saber científico não é todo o saber” (LYOTARD,
p.12)

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As imagens aqui mencionadas são, sem margens para exceções, fruto da criação
humana, produzidas como um meio de expressão e, sobre tudo, perspectivadas como aparatos
culturais de comunicação. É importante destacar quais são os critérios adotados, ou seja, que
fator ou fatores agrupam as imagens que servem de objeto para esta pesquisa.
As imagens consideradas são, portanto: o resultado de uma “produção humana
artificial”, as quais surgem associadas a algum recurso técnico. São composições visuais que
se vinculam a condicionantes históricos e guardam também certo nível de intencionalidade.
Chamo a atenção para este último ponto, dotado de significação, pois coloca em xeque o
caráter muitas vezes dado, ou assumido, de um sujeito passivo perante a imagem.
Parto de uma ideia presente em Elkins (2001), segundo o qual as imagens são “artefatos
visuais” e não surgem de maneiras autônomas. Portanto, são o resultado consciente de uma
ação humana.
Incluo na discussão além das produções visualizáveis, (imagens exógenas), as
produções mentais, (imagens endógenas), já que estas estão em contínuo intercâmbio e umas
inexiste sem as outras. As imagens endógenas (mentais) também utilizam um medium4, uma
técnica, que se configura no próprio corpo do homem. Mais especificamente, sua mente, o
que as configuram como sendo fiéis aos critérios elencados. As imagens endógenas estão
intimamente ligadas ao imaginário, conceito que será utilizado aqui e pode auxiliar para a
melhor condução desta discussão. As imagens que habitam o imaginário, portanto, são as
imagens endógenas ou, conceito que inauguro, “imagens guardadas” por acreditar que as
imagens habitam os sujeitos, retomo esta questão mais profundamente no decorrer do texto.
Além de tudo isto, dispendo o esforço de verificar os lugares que as imagens ocupam
nas sociedades contemporâneas como espaços de formação, bem como o reconhecimento
das potencialidades que guardam como fontes de saberes, aditivas das culturas e ativas à
formação dos sujeitos, cabe analisar as entrelinhas do campo visual, associado às
configurações das culturas contemporâneas, para além do sentido tradicional que é atribuído
comumente para a sua produção e recepção.
Esta pesquisa busca analisar o caráter visual das sociedades, também como fator
estrutural da pós-modernidade (MIRZOEFF, 2003). Volta a atenção para as imagens como
potente forma de linguagem e expressão, mas isto não quer dizer que já não o foram no
passado.

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Médium, é uma palavra latina que significa meio, mediação (no latim, mediação seria palavra que se traduziria
de forma imediata como mediatio, substantivo que indica ação, ou seja, a ação de mediar, de intermediar, (inter:
meio, no meio; mediatio: mediação).
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Na atualidade, ainda que a feitura das imagens se dê de maneira aprimorada por


técnicas diversas, entendo-as, em essência, como formas visualizáveis que acompanham os
seres humanos desde os tempos mais remotos. São, pois, invólucros prontos para serem
abertos5.
No entanto, sei que as imagens como categorias de análise se mantêm resistentes, não
permitindo ser elucidadas completamente. Além do mais, em face da multiplicidade de
imagens que compõe a visualidade de nossa época, tal tarefa torna-se inexequível 6.
Felizmente, a análise que proponho e que motiva a produção deste trabalho encontra seu
sentido para além das imagens, nas simbioses com o sujeito que as vê.
Isto posto, não se minimiza a amplitude da tarefa assumida. Sigo, assim, consciente do
risco de perder-me em relativismos e incongruências que, por vezes, se apresentam ao
adentrar territórios que são difíceis de mapear. Este é o caso das discussões que se voltam
para a pós-modernidade, para a Cultura Visual, também para as imagens.
É importante salientar que não me interessa buscar definições precisas, nem tão pouco
tornar-me refém de alguma teoria que delibere sobre o tema com rigidez. Até porque a própria
amplitude da questão deixa claro que embarcar em uma tentativa taxionômica de determinar
especificamente por um único ângulo como se deve olhar para as imagens na pós-
modernidade é dar-se a uma tarefa de alto risco. Mesmo porque, com a falta de consenso que
defina pós-modernidade, Cultura Visual e mesmo as imagens, interessam-me mais as
ponderações e as particularidades das distintas perspectivas que pensam sobre o assunto.
Morin (2009) ensina que algumas concepções teórico/científicas conservam sua
vitalidade porque recusam os contornos disciplinares ortodoxos. Neste sentido, acompanho-o,
neste meu estudo.
E devo confessar, realmente, não vejo perda alguma para este diálogo ao pensá-lo em
muitas vozes, mesmo que estas sejam, por vezes, dissonantes. Além disso, considero que as
abordagens teóricas que se articulam às margens ou sob a pós-modernidade se mostram
plenamente capazes de subsidiar a construção de um texto que se propõe mais exploratório
que conclusivo. Penso que não poderia fazê-lo de outro modo, já que acredito impróprio falar
do agora como quem sentencia o fim.

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Como consequência do desmoronamento das “grandes narrativas”, sucedem-se as “pequenas narrativas”,
histórias individuais ou de grupos afins, escritas sobre os fragmentos de realidades contingentes que compõem a
história.
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O termo visualidade é empregado ao longo desta construção no mesmo sentido que o descrito por Nicholas
Mirzoeff (2003). Para o autor visualidade refere-se à ligação entre as representações visuais e o poder em
tempos globalizados.

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Não obstante, sigo consciente dos limites que cercam alguns pontos içados nesta
discussão, mas, a priori, não configuram um impasse para que ela transcorra, já que “[...] o
que importa é menos tomar partido para defender isto ou aquilo do que compreender um
pouco melhor a realidade” (LIPOVETSKY, 2004 p.108).
Para isso, proponho a tensão teórico-metodológica de conceitos e autores que olham
para o campo visual, para as imagens, para os fenômenos e para as mudanças que levam a
pensar sobre o ver na atualidade. Busco um repertório teórico, no campo da filosofia, que se
volta para as mudanças sociais e culturais que, de algum modo, desemboca no campo visual,
bem como nos estudos e teorias das imagens, nos estudos e teorias dos media e nos recentes
Estudos da Cultura Visual.
Para traçar um perfil que realmente condiga com as possibilidades reais que tenho para
a execução deste texto, circunscrita pela dimensão temporal de estudo que um curso de
mestrado oferece, devo anunciar que este estudo intui a feitura de um trabalho prospectivo.
Em outras palavras: propício à exploração que logrará êxito se provocar inquietações capazes
de alavancar reflexões e atitudes novas, muito mais do que produzir respostas, ou seja, ensejar
novas perguntas.
Sublinho que o interesse desta discussão não é analisar uma imagem específica ou
mesmo um conjunto delas. O objetivo pretendido ao iniciar esta investigação, brota da dupla
temática: imagens e pós-modernidade, e de suas próprias delimitações. Para ser mais clara,
ressalto que o objetivo principal desta pesquisa é refletir sobre o lugar das imagens na pós-
modernidade, no processo educativo. E, a partir daí, busco analisar as maneiras que as
imagens atravessam a vida cotidiana e os sujeitos, e se podem constituir saberes.
A pergunta que pareceu ser mais premente de ser investigada inquire sobre: quais os
lugares das imagens em contextos pós-modernos, mormente no que tange à formação das
novas gerações?
A origem da pergunta tem suas bases ligadas à mesma aspiração que me leva a querer
desvendar o papel das imagens no cotidiano. Digo isto porque, diante do atual quadro da
sociedade, parece-me emergencial elencar categorias epistemológicas que sejam capazes de
auxiliar na compreensão das imagens como parte inerente dos processos formativos.
A fim de potencializar a elucidação da questão levantada e, também, para ampliar as
possibilidades de análise e leituras, a questão principal desdobra-se em três outras questões
que animam o diálogo proposto e levam para mais perto do problema.
Esta pesquisa justifica sua escolha de abordagem teórica e metodológica que se inscreve
em perspectivas pós-modernas por julgar necessário se debruçar sobre as questões que dão
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contornos à cotidianidade, reconhecendo as mudanças que vêm ocorrendo nas últimas


décadas, nestes nossos tempos assim denominados pós-modernos ou por outras denominações
compatíveis com diferentes olhares sobre este mesmo lapso temporal, social, cultural,
econômico, político etc. Também vê nos Estudos da Cultura Visual, uma disciplina, ou
melhor campo teórico que nasce genuinamente pós-moderno conectado com as minúcias do
nosso tempo. Seu contributo está em oferecer subsídios teóricos e também empíricos para o
entendimento de como crianças e adolescentes, até adultos, estão sendo afetados pelos
diferentes discursos visuais que se lhes passam como imagens, levando, também, na devida
conta como se elaboram sentidos que dialogam com seus imaginários. Por fim, penso que a
pesquisa poderá contribuir tanto para as questões do ensino das Artes Visuais em contextos
escolares quanto para a mediação visual fora deles.
1.1.2 Imagem e poder ou poder das imagens

Na atualidade, com a consolidação do modelo capitalista no Ocidente, as imagens são


cotidianamente arroladas como “dispositivos” de controle e dominação de consumidores, e
este seria seu atual e maior poder.
O conceito de dispositivo, tomado por empréstimo de Foucault, pode ajudar a entender
algumas das leituras de imagens recorrentes em nossa época. Mas antes é necessário entender
o que define um dispositivo, e como as imagens se encaixam em tal acepção. Os dispositivos
de que fala Foucault exercem relevante impacto sobre as individualidades, pois despertam e
regulam comportamentos, excitam valores e ordenam a vida. Penso ser pertinente iniciar por
uma aproximação sobre o que seriam os elementos de um dispositivo, e como as imagens
brilhantemente subsumidas pelo mercado se constituiriam como tal. Para o francês um
dispositivo:
[...] engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. (FOUCAULT,
2000, p. 244).

Já Agamben, ao analisar os dispositivos discutidos por Foucault é enfático ao classificá-


los como aparelhos ativos de dominação. Nas palavras do autor, os dispositivos “[...] devem
sempre implicar num processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito”.
(AGAMBEN, 2009, p.38)

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Evidentemente que perspectivar as imagens como dispositivos acarreta


fundamentalmente atribuir-lhes um grande poder7. Isto me leva a perguntar se as imagens
seriam realmente capazes de produz sujeitos, tal qual os dispositivos?
É verdade que, em parte, as imagens em contextos culturais globalizados e midiáticos
povoam os imaginários, suscitam pensamentos, miscigenam subjetividades, orquestram
arquétipos de visão e emprestam contornos à formação das novas gerações8.
É manifesto que o mercado capitalista utiliza as imagens em seu favor e, diga-se de
passagem, o faz brilhantemente, porque reconhece o ver como mediador cultural e as imagens
como “células de comunicação perfeitas” como mencionou Baudrillard (2005). Por este
percurso de análise as imagens na qualidade de “dispositivos”, quando arraigadas às práticas
culturais de consumo, tornam-se objetivadoras das formas de ver e ativas em produzir olhares.
Inclusive, por este foco de análise, permitem pensar que produzem seus sujeitos.
Não há como negar que as imagens têm um papel estratégico nas culturas
contemporâneas, sobretudo com o advento da terceira globalização e a supremacia do
capitalismo como modelo político e econômico vigente. Verifica-se facilmente que as
imagens assumem cada vez mais um importante papel na formação identitária dos indivíduos,
mormente de crianças e adolescentes, correlata as facilidades de acesso e tempo de
permanência frente a aparelhos eletrônicos e midiáticos.
Nessa perspectiva, muito mais do que construir uma identidade, imersos num consumo
frenético, motivado também pelas imagens que anunciam modelos, inspiram desejos, o
sentido que se verifica é a superficialidade ao se produzir subjetividades e identidades
baseadas pelo consumo. Para aproximar, poderíamos citar a influência midiática no consumo
de gadgets relacionados ao pertencimento a um clube de futebol, ou a itens de marcas
multinacionais, pouco significativas a nossa cultura ou realidade, mas ainda assim nos
chegam e de algum modo fazem morada. Talvez Bauman esclareça essa constituição das
identidades temporárias. Para ele:

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O conceito de poder é entendido a partir de Foucault (2000) que, em seu entendimento, em uma relação de
poder todos os sujeitos são ativos e entende, ainda, que toda relação de poder carrega em si a resistência.
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Considero válido explicar que, devido ao fato do fenômeno da visualidade se consolidar nas últimas duas
décadas, meu foco de interesse concentra-se, mormente na formação visual de crianças e adolescentes, (que
chamarei de novas gerações), por considerar que estes são fortemente acionados pelo poder de sedução das
imagens (LIPOVETSKY, 2004; BAUDRILLARD, 2005). Entretanto, quando afirmo que as imagens atuam
sobre crianças e jovens não quer dizer que desconheça que as imagens pesem também sobre os demais sujeitos
da cultura. Todavia, acreditando hipoteticamente nas incursões que se deram fora do universo das imagens para
o outro grupo, penso que este esteve menos exposto às medias visuais.

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A resposta à questão relativa à sua identidade não é mais um “engenheiro da Fiat (ou da
Pirelli)”, ou um “servidor público”, ou um “mineiro” ou um “gerente de loja da Benetton”,
mas, como num recente comercial descrevendo uma pessoa que usaria o prestigioso logotipo
nele anunciado, alguém que “adora filmes de terror, bebe tequila, usa saiote escocês, é fã do
Dundee United F.C., da música dos anos 1980, da decoração dos anos 1970, viciado nos
Simpsons, cria girassóis, a cor favorita é o cinza-escuro, fala com as plantas”. (BAUMAN,
2007, p. 113).
A citação do sociólogo evidencia uma importante mudança na estrutura e dinâmicas
sociais. Sua fala deixa claro que se antes as construções identitárias estavam pautadas no
mundo do trabalho agora os “atestados de identidade” se inscrevem “no detalhe”.
O consumidor, incitado pelas mídias, tem sua obrigação associada não mais a utilidade
específica do objeto, e sim ao comércio simbólico, associado invariavelmente a capacidade de
significar momentaneamente: “a sociedade de consumidores, representa o tipo de sociedade
que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial
consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas” (BAUMAN, 2008, p.71).
Bauman reconhece os sujeitos também líquidos, efêmeros, para o autor as construções
subjetivas, e identitárias na atualidade se pautam nos detalhes, todavia “[...] todos os detalhes
mencionados e qualquer outra coisa mencionável estão disponíveis nas lojas” (BAUMAN,
2007, p.115).
Desde muito cedo crianças e jovens são estimuladas por mídias diversas, sobretudo
visuais, ao consumismo. Neste sentido, quando é dada equivalência de “dispositivos” às
imagens é, sobre tudo, por sua capacidade discursiva, que deixa notar que na
contemporaneidade ao serem subsumidas pelo mercado capitalista as imagens denotam, sem
dúvida, uma potente forma de poder. A difusão do fenômeno da visualização, exposição
exagerada, a erotização infantil pela imagem, massificação das identidades torna possível
inferir que “parte do que eu vejo é parte do que sou”.
À luz de Foucault (2000) e Bauman (2007, 2008) é possível entender as imagens na
qualidade de dispositivos, devido à sua tendência de “normatizar atitudes”, ditar modelos de
beleza, direcionar os sujeitos ao consumo. Graças à capacidade das imagens de comunicarem-
se intimamente com os sujeitos.
Para Agamben tais acontecimentos podem ser explicados pela própria dinâmica das
sociedades nas últimas décadas:

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Ao ilimitado crescimento dos dispositivos no nosso tempo corresponde uma igualmente


disseminada proliferação de processos de subjetivação. Isso pode produzir a impressão de que
a categoria da subjetividade no nosso tempo vacila e perde consistência; mas se trata, para ser
preciso, não de cancelamento ou de uma superação, mas de uma disseminação que leva ao
extremo o aspecto de mascaramento que sempre acompanhou toda identidade pessoal (2009,
p. 41-42).

Deste modo, e isto ainda é mais importante, não se pode esquecer que toda forma de
poder traz correlato a si também um saber, como ensina Foucault. Assim sendo, as imagens
também têm um papel estratégico na articulação e construção de saberes. Basta lembrar que
elas estiveram presentes, com forma carga de sentido, ao longo de toda a evolução humana.
Com isso quero dizer que as imagens emergem e vinculam-se a contextos históricos e
culturais dos quais derivam experiências e significados coletivos e pessoais. Não existindo
aleatoriamente (ELKINS, 2001). Também não permitem leituras sem alguns tipos de
cooptações, seja social, política, religiosa ou econômica, em graus profundos ou superficiais.
A este respeito, Martins explica que “[...] quando vemos um objeto, uma cena ou forma pela
primeira vez buscamos situá-lo/localizá-lo no nosso repertório visual rastreamos algum tipo
de relação que seja familiar ou corresponda a categorias visuais conhecidas” (2011, p.60).
Não por acaso aproximo-me do conceito de poder ao discutir sobre as imagens por este
conter, a meu ver, uma das chaves para o entendimento das imagens enquanto constituintes de
valores e atitudes, também na pós-modernidade. Além do mais, é importante esclarecer que
admito o “poder” como foi expresso por Foucault (2000), não como uma ação unilateral, ou
vertical, mas como algo que se põe no processo de negociação e produção de sentidos.
Afirmo, consequentemente, que tal regra também vale ao constatar a emergência de
uma “visualidade” dominante em contextos culturais. Os espectadores, ou os que vêem,
exercem o poder quando observam, interpretam, ressignificam ou mesmo quando consomem
as imagens. Isto posto, tomo por empréstimo uma fala de Aumont quando coloca o espectador
como um “[...] parceiro ativo da imagem” (AUMONT, 2002, p. 81).
Destarte, ao dimensionar as imagens como dispositivos capazes de regular, normatizar,
ponderar, prever as ações humanas ou defini-las, o faço entendendo que todos os espectadores
são ativos no “agenciamento” destas imagens, seja em níveis superficiais ou aprofundados
(HERNÁNDEZ, 2007).
Raimundo Martins segue com o mesmo entendimento, para o autor os significados das
imagens serão gerados respeitando a capacidade de “agenciar” dos indivíduos.
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Para o professor “Pessoas de uma mesma comunidade ou grupo social podem conviver no
mesmo território, com as mesmas referências visuais, as mesmas imagens, mas cada uma as
percebe, vive e interpreta a sua maneira [...]” (MARTINS, 2010, p. 27).
A tenção se estabelece ao admitir que não é raro ver grupos intitulados hegemônicos,
que fazendo uso de meios discursivos e/ou tecnológicos “[...] criam referências e definem
parâmetros para impor suas interpretações como sendo autênticas, legítimas e, portanto,
autorizadas” sobre as demais. (MARTINS, 2010, p. 27)
Decorre daí, um fator relevante, com o crescente acesso aos meios visuais, hoje, já
aditados como parte inseparável das culturas contemporâneas (salvo exceções), a supremacia
das imagens como fontes de informação e referência, configuram o objeto de um movimento
cultural generalizado, que pelo uso das imagens medeia os relacionamentos pessoais,
homogeneíza as experiências, amolda os indivíduos, quando não ordena diretamente setores
importantes da vida, configurando um novo formato para a sociedades 9. “As representações
visuais contribuem assim como os espelhos, para a constituição de maneiras e modos de ser”
(HERNÁNDEZ, 2007, p.31).
Levando na devida conta que as representações visuais derivam de experiências
empíricas, sociais e culturais. Nesta conjuntura, desnudar o caráter visual que ornamenta ou
mesmo estrutura as sociedades pós-modernas principia do reconhecimento de que as
“visualidades” são, sim, contingentes, construídas, aprendidas e cultivadas no cerne das
culturas. A visualidade, portanto constitui um olhar culturalmente construído, sobretudo,
instituiu um elo entre o que está sendo visto e quem vê, reconstruindo ambos. Tal apreciação
pode também oferecer sinais importantes à tentativa de compreender o fenômeno visual como
uma marca das sociedades pós-modernas.
1.1.3 Imagens guardadas

Entendo que as imagens se prendem a uma rede de códigos cujos propósitos nem
sempre são bem definidos, ou por não se permitirem revelar ou mesmo pela não compreensão
de seus caminhos. Pois bem, da interconexão do mundo visível, simbólico e cultural emergem
os mais diversos efeitos das imagens sobre os espectadores, quer sejam políticos, econômicos,
sexuais, estéticos, religiosos, amorosos etc., compondo, assim, o campo visual de um dado
contexto.
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Atualmente, as médias visuais são um meio crescente de interação humana. Como exemplo: relacionamentos
afetivos iniciam-se por meio de imagens, Educação a Distância (EaD) etc., são algumas das instâncias sociais e
culturais que estão sedo fortemente penetradas por imagens.

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Refletir sobre os efeitos das imagens e como estes se articula com a realidade leva-me a
perguntar como as imagens dialogam com os sujeitos? Por quais meios e recursos?
Tais indagações parecem-me de inestimável valia para a estruturação do escopo do
trabalho que se segue, pois, se pretendo entender as representações visuais como partícipes do
processo de formação dos sujeitos, consequentemente, das culturas, não posso prosseguir sem
dar ênfase ao que dizem as imagens aos sujeitos e como dizem; quais seus recursos e
habilidades como formas de comunicação.
O conceito que formulo e que intitula esta subseção: “Imagens guardadas” surge na
tentativa de suprir uma lacuna que se abre neste campo, que problematiza o lugar das imagens
nas culturas pós-modernas. No entanto, acredito que entender os lugares das imagens nas
culturas só seja possível mediante a aproximação do lugar das imagens nos sujeitos, já que as
imagens “passam sempre por alguém”. E “[...] embora não remetendo sempre para o visível,
toma de empréstimo alguns traços ao visual e, em todo o caso, depende da produção de um
sujeito: imaginária ou concreta, a imagem passa por alguém, que a produz ou a reconhece”.
(JOLY, 1994, p.13)
A afirmação de Joly é importante para analise que desenvolvo. Enriquece esta
discussão, pois, oferece elementos que oportunizam desmistificar leituras redutivas das
imagens. Quero sublinhar que à luz da sentença: “A imagem passa por alguém” é que sigo
esta construção. Se a imagem passa por alguém, esta ação a vincula definitivamente ao
sujeito.
Na afirmação de Joly, obrigatoriamente as imagens só existem porque passam por um
sujeito.
Pois bem, quando a autora afirma que as imagens “passam” por um sujeito que a
“produz ou a reconhece” levanta a questão da subjetividade como um fator importante para as
formulações no campo visual. Este atravessamento das imagens nos sujeitos se dá imbricado
por sutilezas e minúcias emprestadas dos imaginários e subjetividades.
Do ponto de vista da formação também educacional, interessa perguntar: Durante essa
“passagem”, quais os arranjos que as imagens estabelecem e o que oferecem à constituição
dos sujeitos?
A análise formulada por Mitchell, no artigo What do Pictures “Really” Want?10 oferece
pistas que ajudam a pensar sobre o assunto. Na obra, o autor tenta responder sobre “o que
querem as imagens realmente”. A relação imagem/espectador é ajustada de modo bastante

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Texto original publicado por MITCHELL, W. J. T.; Outubro de 1996, pp. 71-82. Traduzido para o espanhol e
impresso no México em 2014 com o título ¿Qué quieren realmente las imágenes?
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interessante e até certo ponto revelador. Ao relacionar imagens e a projeção de desejos


perspectiva um possível caminho ao entendimento de como as imagens “passam” pelos
indivíduos, por quais portas elas adentram.
O artigo supracitado, a meu ver, também revela contornos importantes para o
entendimento da ascensão das imagens como um fator determinante da pós-modernidade.
Quando identifica no desejo ou, melhor, na busca pela satisfação dos desejos uma explicação
para a elevação e difusão do campo visual, consequentemente das imagens na
contemporaneidade, eleva-as a componente qualitativo da formação dos sujeitos e da cultura.
Mitchell, ao tentar entender como as imagens comunicam, também busca na mitologia
exemplos que desnudam a relação entre a imagem sujeitos. Os mitos de Ovídio servem de
base às analise de Mitchell (2005), pois revelam aspectos que, em certa medida, deixam ver a
relação entre imagens e desejos.
Os três mitos escolhidos são Narciso, Pigmalião e Galatheia, e Medusa. Cada mito versa
sobre as imagens e o ponto de enlace que se acha entre a capacidade das imagens darem-se ao
ver e o espectador em sua capacidade de projetar seus desejos sobre a imagem.
As imagens guardadas a que me reporto convergem para a imagem que formamos a
partir de nosso repertório. Nas Metamorfoses de Ovídio, o mito de Narciso, pelo qual inicio,
pode ajudar à nossa compreensão. A lenda conta a história de um jovem cuja beleza era
tamanha que ao dobrar-se sobre si para beber água deparou-se com sua figura espelhada nas
águas...
Enquanto anseia a sede aplacar, outra nasce. 415
Enquanto bebe, preso à bela imagem vista,
ama objeto incorpóreo, sombra em vez de corpo.
Se embevece de si, e no êxtase pasma-se,
como um signo marmóreo, uma estátua de Paros.
Contempla, à beira, os seus olhos, estrelas gêmeas, 420
a cabeleira digna de Apolo e de Baco,
a face impúbere, o pescoço ebúrneo, a grácil
boca e o rubor à nívea candura mesclado;
e admira tudo aquilo que o torna admirável.
Sem o saber, deseja a si mesmo e se louva, 425
cortejando, corteja-se; incendeia e arde.
Anseia separar-se de seu próprio corpo para juntar-se a sua imagem.

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14

Oh! Se eu pudesse separar-me de meu corpo! 467


Desejo insólito: querer longe o que amamos! 468
Assim, debruçado sobre o próprio reflexo, acaba por morrer.
Na passagem descrita, a imagem ao “atravessar” o espectador Narciso manifesta-se
como o “desejo insólito”, a imagem que passa por Narciso é o resultado de seu desejo.
Narciso ao mirar a própria imagem “admira tudo aquilo que o torna admirável”.
Uma segunda versão do mito que se conhece, narrado por Pausânias, o personagem
Narciso tem uma irmã gêmea que morre. Narciso fica desconsolado e, ao ver seu reflexo nas
águas, acredita ser sua irmã por quem era apaixonado. Passa, então, a contemplar seu reflexo
nas águas a fim de aplacar sua dor.
Não se pode precisar a origem da personagem Narciso, nem a gênese do mito.
Entretanto a lenda de Narciso, nos dois casos, personifica a dualidade que compõe a relação
entre o sujeito que vê e a imagem visível. Tal dualidade, para Narciso, se situa na separação
de seu ethos feminino e masculino, também, sobre tudo, sua realidade de sua idealidade.
O mito, em ambas as versões, permite elaborar algumas considerações sobre as
imagens, como elas passam pelos sujeitos. Por exemplo, a consciência do caráter ilusório na
relação de Narciso com seu reflexo é evidente, mas não descreve em momento algum um
sujeito cativo da imagem, ou enganado por ela.
O sujeito que vê, no mito Narciso, que personifica qualquer outro espectador, tem a
liberdade e a consciência de se desvencilhar-se da imagem. Contudo, mesmo tendo a clareza
de que o objeto de seu amor contava apenas como imagem, permite-se seduzir. Seu desejo ao
ser projetado sobre a imagem cria a “ilusão” de vida.
O segundo mito estudado conta que Pigmalião era um exímio escultor e também rei,
que desencantado com a natureza feminina, e acreditando que nenhuma mulher seria digna de
seu amor esculpe em marfim a estátua de Galathea dotada de beleza superior à de qualquer
outra mortal.

A face era a de uma jovem autêntica, a qual tu julgarias


estar viva e que queria, não obstasse a timidez, mover-se.
A tal ponto a arte não se vê na arte!

Pigmalião extasia-se
a olhá-la e sorve no peito chamas pelo corpo de imitação.
(OVÍDIO, 2007, p. 252)
14
15

Pigmalião apaixonado pela imagem que inventara, clama a deusa Vênus mulher tão perfeita.
Enfim:

“Era corpo humano! As veias tateadas pelo polegar latejam!”


(OVÍDIO, 2007, p. 253)
O desejo de Pigmalião cria a imagem da mulher ideal e seu desejo dá vida à sua criação.
Mais uma vez, a imagem encontra passagem no desejo. Mitchell (2005), a este respeito, fala
de uma espécie de “[...] fantasia que combina com os desejos do espectador” (p. 58).
A identificação entre o sujeito que vê e a imagem que é vista também pode ser notada
no mito de Medusa. A imagem obriga o sujeito à identificação, pois tem o poder de
transformar os espectadores em imagens. Agrega, ela própria, a dupla capacidade de ser
imagem e espectadora. No mito da Medusa temos a imagem estática, também capaz de
transformar o que é vivo em pedra, atributo das imagens estáticas.
Os mitos elencados, mesmo que com brevidade, contam, segundo Mitchell (2005), um
ponto crucial que deve ser notado. Em Narciso, o espectador identifica-se plenamente com a
imagem que observa. O reflexo completa seus desejos e preenche suas expectativas. Sobre o
mito de Pigmalião pode-se dizer que o vazio que existia no personagem só poderia ser
preenchido por uma mulher ideal que já habitava seu imaginário e o escultor deposita na
estátua.
A identificação entre quem vê e quem é visto, para Mitchell, também está demarcada no
terceiro mito. Mesmo diante do poder de Medusa de transformar o espectador também em
imagem, o que expressa mais uma identificação forçada que uma “parceria” (AUMONT,
2002), que é como concebo a imagem, até aqui. Ainda assim, há a participação do sujeito que
vê, pois todos os que se depararam com Medusa, e foram transformados em pedras, deveriam
se manter “distantes e vigilantes”.
Nesta direção Perseu pode ser comparado a um vigilante de uma estrutura panóptica,
por analogia, já que seu poder se centra em ver e não ser visto (MITCHELL, 2005).
Mitchell quando defende esta ideia enfatiza que tal interpretação é reforçada pelo fato
de que a personagem de Medusa estava adormecida quando seu decapitor a surpreendeu11.

11
O pintor Michel Angelo Merisi da Caravaggio, ou apenas Caravaggio, produziu duas versões da Medusa. A
primeira, em 1596 e outra, presumidamente, em 1597. A técnica empregada foi a pintura a óleo sobre tela
montada sobre madeira.
15
16

Ele, porém, apenas vira a imagem da arrepiante Medusa


reflectida no escudo de bronze que trazia no braço esquerdo,
e quando um pesado sono dominou as víboras e ela própria,
cortou-lhe a cabeça do pescoço12;

Por fim, sobre os três mitos, à luz de Mitchell, é possível concluir que mais importante
que o “efeito” da imagem sobre o espectador é o “efeito” dos desejos do espectador sobre a
imagem visível. É possível verificar nos contornos que delimitam cada um dos três mitos a
consciência racional do espectador, que não está subjugado pela imagem que, por sua vez,
detém “poderes muito menores” do que os que lhe são atribuídos (2009).
No entanto, quando a imagem atravessa um sujeito “que a produz e/ou reconhece”, ela
soma-se a questões e experiências que carregamos. Surge, assim, o conceito “imagens
guardadas”. Porque, a meu ver, há uma abscissa entre as imagens objeto visível (formas cores
etc.), e as imagens que formulamos a partir de nós mesmos.
Ouso ainda dizer que ao inferir o conceito de “imagens guardadas”, falo exatamente do
resultado da imagem como soma do visível e do invisível, o encontro do mundo subjetivo e
natural. Por exemplo, é o que explica um filho abrir uma exceção e considerar a imagem
retrato de sua mãe muito mais do que linhas e cores, desejando, inclusive, preservá-la.
Há uma distância entre o que cremos ver e o objeto visível que está relacionado de
algum modo ao desejo. Explico, por exemplo, Galatheia talvez não representasse para outros
olhos a imagem da perfeição, pois apenas correspondia ao desejo de Pigmalião.
Outro exemplo a ser dado, que diz respeito à relação das imagens e os desejos, ajuda
inclusive, a entender o consumismo que aparece muitas vezes relacionado às imagens, bem
como se constitui em um problema da pós-modernidade. A este mote comumente se arrolam
acusações um tanto precipitadas e, por este motivo, necessita ser analisado com maior
atenção. Constitui falácia dizer que a imagem do sapato vermelho, ou o brinquedo que a
criança vê na televisão induze a comprar. Mais uma vez é atribuir superpoderes às imagens.
Vejo que adentrar nesta discussão passa a ser imprescindível, já que na atualidade as
imagens são comumente vinculadas ao consumismo crescente e desenfreado. Não que as
imagens não tenham um papel de destaque na cultura de mercado, como aludi. Apesar disso,
preocupa-me quando estas leituras outorgam um poder transcendental às imagens, poder

12
Ovídio - Metamorfoses, p. 127.

16
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capaz de prever ou até mesmo determinar as ações dos espectadores/consumidores. É


importante ponderar e ter claro que quando uma imagem apresenta um produto qualquer, seja
um sapato, um vestido ou qualquer outro, não é a imagem em si que leva o sujeito a consumir,
e sim seu desejo, sua capacidade de agenciamento.
O enfoque centrado na questão do desejo interessa, aqui, no ponto que oferece
argumentos que ajudam a desmistificar a supremacia da imagem sobre os sujeitos.
Trazer a questão do desejo, a meu ver, é importante, pois comporta em si a recusa de
aceitar a passividade do espectador perante a imagem. Como se nos conta nos mitos: Narciso,
ou o amante de si, deixa-se seduzir pela própria imagem espelhada. Pigmalião busca o amor
utópico, idealizado, seu desejo cria Galathea a única mulher que poderia satisfazê-lo. No
“paradigma Medusa”, o espectador passa a ser ele próprio imagem. Há a extrema
identificação entre espectador e imagem: ele busca esta imagem podendo estar distante.
Outro exemplo de poder transcendental habitualmente atribuído às imagens situa-se em
culpabilizar os jogos de vídeo game como responsáveis pela violência juvenil. Claro que
existem jogos que são muito violentos. Também é necessário considerar os argumentos que
versam sobre o tema com cuidado. No entanto, existe sempre uma via de mão dupla que
escreve a relação do ver, e vale relembrar que, se por um lado, existe o “efeito da imagem
sobre o espectador”, de outro, existem “[...] os efeitos dos desejos do espectador sobre as
imagens” Mitchell (2005).
Quando incluo a categoria do desejo como imprescindível às formatações e
composições visuais, quero dizer que além de “Instrumento de comunicação entre as pessoas,
a imagem pode também servir de instrumento de intercessão entre o homem e o próprio
mundo” (JOLY, 1994, p.31).
É preciso sublinhar que a afirmação acima não descarta as implicações sociais que se
envolvem no processo, pois o homem está no mundo e nele interage, reage e age
incessantemente.
Ao trazer o conceito de “imagens guardadas”, refiro-me aos repertórios pessoais e à
capacidade de agenciamento que farão resultar ou influenciarão na interpretação e produção
das imagens. Vale frisar que este repertório pessoal é edificado a partir das experiências
particulares também do contexto.
Gombrich, neste sentido, diz que ao olhar uma imagem, a interpretação desta será
sempre individual. Até, por vezes, subjetiva, mas sempre a referência terá raízes no coletivo.
E é isto que torna possível produzir leituras simbólicas similares, estabelecer padrões estéticos

17
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reconhecidos e aceitos por grupos etc. Dito de modo mais sucinto, o imaginário mesmo sendo
muito particular encontra suas referências no coletivo.
Não obstante Gombrich (1995) questiona:

Por que diferentes idades e diferentes países representaram o mundo visível de maneiras tão
diferentes? As pinturas que hoje consideramos fiéis à realidade parecerão tão pouco
convincentes para futuras gerações como a pintura egípcia para nós? Será inteiramente
subjetivo tudo o que diz respeito à arte, ou haverá padrões objetivos na matéria? E se houver,
se os métodos ensinados hoje nas classes de modelo vivo resultam em imitações mais fiéis da
Natureza que as convenções adotadas pelos egípcios, por que os egípcios não os adotaram?
Será possível, como sugere o nosso cartunista, que eles percebessem a' Natureza de um modo
diverso? E essa variabilidade da visão artística não nos ajudaria a explicar também as
desnorteadoras imagens criadas pelos artistas contemporâneos? (p.3).

Para Gombrich “[...] o cartum de Alain resume admiravelmente um problema que tem
preocupado os historiadores da arte por muitas gerações” (1995, p.3).

Para teórico da arte Ernest Gombrich, a imagem pode ser um instrumento de


conhecimento porque serve para ver o próprio mundo e interpretá-lo. Para ele uma imagem
não é uma reprodução da realidade, mas o resultado de um longo e vasto processo de
percepções e sensibilizações.
Ao significar o ato de criação, traçar percursos para novas investidas voltadas à
abstração ou a expressão, não significa, porém, improviso, significa, antes, uma consciência
lúcida, crítica, e ansiosa tentativa de interpretação dessa mesma realidade citada por
Gombrich. Isto posto, em épocas diferentes as formas de visualização também são distintas.
Mitchell se coloca, a este respeito, a problemática de que Gombrich sugere que os
egípcios percebiam a natureza de forma diferente. A imagem produzida por Allain e analisada
pelos autores apresenta estudantes de arte egípcios se comportando como os estudantes de arte
contemporaneos em aulas de desenho tradicional. Observam o desenho e usam o dedo
polegar "para colocar o modelo em perspectiva" e, assim, medir as proporções.
No cartum, os desenhos descrevem que os estudantes egípcios representavam fielmente
os contornos do modelo, “[...]o desenho mostra exatamente o que eles vêem, e não um "
estereótipo " ou esquema conceitual” (MITCHELL, 2009, pp.46-47).

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As considerações apresentadas por Gombrich (1995) e Mitchell (2009) reforçam o coro


que tenta desmistificar as produções e interpretações de imagens como um dado natural na
espécie humana. Quero dizer: se ao julgar que interações visuais ocorrem de modo natural e
automático, e que as interpretações das imagens são inatas, de modo que os sujeitos seriam
capazes de chegar universalmente às mesmas conclusões, efetivamente não haveria a
necessidade de se preocupar com as imagens, mas isto é um grande equívoco.
Mesmo sabendo da “existência de arquétipos universais generalizados”, cada vez mais
disseminados pela proposta de globalização, considerar “[...] que a leitura de imagens dá-se
universalmente é resultado de um erro ou desconhecimento” (JOLY, 1994, p.46).
Joly explica que a “universidade efetiva da imagem” seria a responsável, em parte, por
este tipo de conclusão, dado “[...] o fato de o homem ter produzido imagens no mundo inteiro
desde a Pré-História até aos nossos dias e o fato de todos nós pensarmos ser capazes de
reconhecer uma imagem figurativa, qualquer que seja o seu contexto histórico e cultural”
(p.46).

A confusão é a que muitas vezes foi feita entre percepção e interpretação. Com efeito,
reconhecer este ou aquele motivo não significa que se compreenda a mensagem da imagem
no seio da qual o motivo pode ter uma significação muito particular, ligada tanto ao seu
contexto interno como ao do seu aparecimento, às expectativas e aos conhecimentos do
receptor. O fato de reconhecermos certos animais nas paredes das grutas de Lascaux não nos
diz mais sobre a sua significação precisa e circunstanciada do que durante muito tempo o
fizeram sóis, corujas e peixes nos hieróglifos egípcios. Daí que, ainda agora, reconhecer
motivos nas mensagens visuais e interpretá-los são duas operações mentais complementares,
mesmo se temos a impressão de que são simultâneas. (JOLY, 1994)

Segue afirmando que “[...] esse tipo de verificação e de crença que levou outrora a
acreditar que o cinema mudo era uma linguagem universal e que o aparecimento do som se
arriscava a particularizá-lo e isolá-lo” (Idem).13
A capacidade imaginativa de homens e mulheres ao fazer e decifrar as imagens impõe-
se decisivamente nas maneiras de agir e interagir com o mundo. O repertório imagético do
espectador afiança a produção e interpretação das imagens que impactam no meio cultural
coletivo. Com a mesma intensidade, o imaginário encontra subsídios no meio cultural.

13
Pequenas traduções de textos em língua estrangeira, quando for o caso, são de responsabilidade da autora da
dissertação.
19
20

Dizer que uma imagem se constrói ou é construída em cada sujeito por caminhos
particularmente próprios, também, que está intrincada ao contexto, não é movimentar esta
discussão por eufemismo. Simplesmente, desejo reforçar as minúcias que compõem o ver. O
esforço aqui despendido tem por intuito contribuir para a compreensão das imagens nas
culturas como construto de um sujeito e de uma época.
Penso que é um erro olhar para uma imagem como se seus conteúdos e mensagens
estivessem enjaulados nela, presos em sua profundidade, quando tridimensional, ou em seus
limites planos. Entendo que por natureza a imagem não é estática nem fixa, não são universais
em seus discursos, caminhos e métodos, e que “[...] qualquer imagem que é usada para refletir
sobre a natureza das imagens é um metaimagem” (MITCHELL, 2009, p.57).
Agamben levanta uma questão de suma importância que importa ser pensada. O autor
diz que o ser da imagem é um ser de geração contínua, semper nova generatur. Talvez esta
seja sua natureza. “Ser de geração e não de substância, ela é criada a cada instante de novo
[...]” (AGAMBEN, 2007, p. 45).
A natureza de um “ser de geração” denota algo cujo caráter é ser continuamente gerado,
como Agamben nos ajuda a entender. A afirmativa do autor soma-se às reflexões aqui
anunciadas. Ao perspectivar as imagens como algo que é sucessivamente gerado, compreende
as imagens como produções contingentes, resultantes dos acontecimentos que as cercam e
sujeitos que as agenciam. Haja vista que ao referir-se às imagens como “ser de geração e não
de substância”, assim é que as caracteriza, afinal.
Do mesmo modo, Agamben esclarece que todo ser que não tem substância, como é para
o autor o caso das imagens, é dado como insubstancial. Sobre o que é insubstancial Agamben
diz: “[...] não tem lugar próprio, mas acontece a um sujeito, e está nele como um habitus ou
modo de ser, assim como a imagem está no espelho” (2007, p.46).
Agamben encontra nos filósofos do medievo a explicação do modo de ser do que é
insubstancial, algo “[...] que não existe por si, mas em outro”. (AGAMBEN 2007, p. 45), o
que, de certo modo, se coaduna com a afirmação de Joly (1994), de que as imagens existem
porque passam por um sujeito. Nas colocações dos autores, as imagens impreterivelmente
necessitam habitar um sujeito. Existem não em si, mas no outro. Ocupam o lugar do outro.
Diante disto tudo, é possível elucubrar, por acreditar em sua natureza “insubstancial e
de geração” anunciada por Agamben, que as imagens visam habitar espaços distintos:
organizando-se à sua maneira, não permitindo prever de antemão qual o percurso ou a
trajetória que tomarão depois de sua publicação.

20
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Seria isto equivalente a dizer que a personificação da imagem só chega a sua


configuração quando é visualizada e ocupa um outro corpo, pois só ali, ao ser vista, pensada,
a partir de qualquer nível de compreensão que seja, é que ela adquire seu sentido.
Recordo-me, neste ponto, da discussão do texto intitulado Outros espaços, de Michel
Foucault, que acena para este tema14. Para Foucault, o espelho, ao refletir uma imagem, “é um
lugar sem lugar algum”.

A partir deste olhar que de qualquer forma dirigido para mim, do fundo desse espaço virtual
que esta do outro lado do espelho, eu retorno a mim e começo a dirigir meus olhos para mim
mesmo e a me constituir ali onde estou; o espelho funciona como uma heterotopia no sentido
em que ele torna esse lugar que ocupo, no momento em que me olho no espelho, ao mesmo
tempo absolutamente real, em relação com todo o espaço que envolve, e absolutamente irreal,
já que ela é obrigada, para ser percebida, a passar por aquele ponto virtual que está lá longe
(FOUCAULT, 1984, p. 415).

A passagem supracitada na qual o autor identifica: “O espelho é, afinal de contas, uma


utopia, uma vez que é um lugar sem lugar algum”. Mas também é uma “[...] heterotopia no
sentido em que ele torna esse lugar que ocupo” (p. 415). Embora Foucault se ocupa no sentido
de analisar os espaços e lugares, usa o termo heterotopia para descrever espaços que têm
múltiplas camadas de significação ou de relações com outros lugares e cuja complexidade não
pode ser vista imediatamente. Alude propriamente aos espelhos como sendo o verdadeiro
lugar da heterotopia, consequentemente, entendo que a imagem refletida pelo espelho possa
ser tomada como uma imagem heterotópica.
Vejamos: a palavra heterotopia é composta do prefixo héteros que tem como origem o
grego e significa o diferente, o outro (de dois: não este, mas aquele), e corresponde, no latim,
à palavra alter (o outro). Já a palavra topos, em grego, significa lugar, espaço.
Etimologicamente pode-se concluir que o termo heterotopia significa o outro lugar. O
dicionário Houaiss indica como sendo: “posicionamento ou localização diversa da normal ou
habitual”.
Penso, assim, que as imagens em parceria com os espectadores, constituem também
uma heterotopia, uma vez que se organizam também como um lugar no qual o individuo se
projeta, se reconhece e se pensa a partir de uma tomada de consciência.

14
Conferência proferida por Michel Foucault no Cercle d'Études Architecturales, em 14 de março de 1967 e
publicado em outubro de1984.
21
22

Foucault diz: “[...] sou uma sombra que me da visibilidade de mim mesmo, que me
permite ver-me ali onde sou ausente” (p. 415). Esta seria a definição especificamente da
imagem no espelho como lugar utópico, mas também heterotópico, uma vez que o espelho
existe na realidade e exerce um tipo de retorno, uma devolução para a posição que o sujeito
ocupa.
Pondero ser válido desdobrar a análise para as diversas formas de imagens projetadas,
seja em lâminas d’agua para Narciso, em espelhos para Foucault ou aparelhos eletrônicos para
o pós-moderno, ou seja, pensar os lugares que as imagens ocupam enquanto formadoras de
sentidos, que por sua complexidade não se deixam saber imediatamente. Foucault propõe uma
descrição sistemática de alguns princípios das heterotopias e diz:

[...] uma sociedade, à medida que a sua história se desenvolve, pode atribuir a uma
heterotopia existente uma função diversa da original; cada heterotopia tem uma função
determinada e precisa na sua sociedade, e essa mesma heterotopia pode, de acordo sincrónico
com a cultura em que se insere, assumir uma outra função qualquer. (p. 417)

Outro princípio é sua capacidade de “[...] justapor em um lugar real vários espaços,
vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis”. (1984, p. 418)
Lembremos do reflexo de Narciso sobre as águas, ou mesmo a imagem do rei morto em
seu reinado de quarenta dias. São imagens que se mostram utópicas e ao mesmo tempo
heterotópico, que permitem ver “[...] lá onde não estou [...]” (1984, p.415).
Entre as utopias e as heterotopias existe um espaço intermediário, localizado entre a
realidade e a irrealidade. As utopias aliviam, sossegam, pois não têm lugar no real,
descortinam um espaço de tranqüilidade linear. Assim, a imagem de Narciso é: preenche o
vazio ao corresponder as expectativas do espectador. As heterotopias, ao contrário, inquietam,
desassossegam, porque devolvem-nos a realidade. Assim a imagem de Narciso também é
heterotópica, pois não atende os pedidos e não se deixa tocar.
Ao analisar as imagens como algo “insubstancial”, “heterotópicas” e de “geração
contínua” penso que tais conceitos revelam característica das imagens e descrevem, pelo
menos em parte este atravessamento dos sujeitos pelas imagens como uma exigência a
construção de uma imagem de que fala Joly (1994). É fato que as composições visuais se
vinculam ao mundo simbólico sensível e o mundo visualizável elaboradas no sujeito.
Quero deixar claro que Foucault fala que este lugar situado entre a utopia e a
heterotopia pode ser mais bem representado pelo espelho. Sua análise me permite
22
23

compreender também o reflexo produzido nas águas por Narciso, pois tal imagem, como em
um espelho, agrega em um só tempo o real e o irreal.
Baudrillard, por sua vez, pondera que “O espelho é um objeto opulento que proporciona
ao indivíduo auto-indulgente burguês a oportunidade de exercer o privilégio de reproduzir a
sua própria imagem e deleitar-se [...] (BAUDRILLARD, 2005 p. 21). O corpo que se mira no
espelho volta-se para o mundo da ociosidade da contemplação, a imagem ganha mais
importância que o corpo físico. Assim como em Narciso, e por tal atitude, pagará com a
própria vida. O valor do corpo tomado como imagem passa a ser de exposição. Baudrillard
relaciona a reprodução da própria imagem à ascensão burguesa, para quem era permitido
tamanho privilégio. O corpo não seria apenas corpo de trabalho, mas sim imagem de
contemplação.
O fato de poder mirar-se contemplativamente, inicialmente, dava-se em pequenos
espelhos que refletiam apenas a imagem da face. Com o passar do tempo, a autoimagem
ganha novo sentido e os espelhos novas dimensões. Na atualidade, a imagem referencia as
formas do corpo desejável, portanto o corpo que pode ser contemplado e exposto.
Bauman, também explora a questões da contemplação das imagens pessoais como
paradigma, e o que isto significa. Por meio da metáfora das líquidas que desenvolve analisa,
ou reflete sobre a fluidez e mudanças que acontecem na atualidade. Devo sublinhar que o
autor se inscreve na modernidade, todavia a perspectiva diferentemente da fase anterior que
considera “modernidade sólida” (2001). Em sua obra “Vida Líquida” (2007) problematiza
que a principal preocupação em relação ao cuidado com o corpo não é mais com a saúde
(corpo produtor/soldado), ou com a aptidão profissional, mas sim se coliga a imagem pessoal,
“a boa forma”.
O voyeurismo, a pornografia, a ampla exposição de corpos, na contemporaneidade, bem
como a transformação de corpos por intervenções cirúrgicas são dados relevantes a serem
discutidos por constituírem produtos do fenômeno visual que escreve a pós-modernidade.
Quando afirmo que os mais distintos setores da vida estão sendo penetrados por imagens,
reporto-me à participação das imagens em todos os momentos do cotidiano.
Encontro em Mitchell uma inquietante afirmação, quando o autor diz “[...] os
espectadores se deixam seduzir pelas imagens”, pois elas guardam em si o “[...] poder de fazer
retornar aos que vêem parte daquilo que ele é”. (p. 48). Nos termos da análise de Mitchell, a
imagem mostra o que o espectador deseja ver. Nas palavras do autor seria como “[...] uma
espécie de espelho para o espectador”. (MITCHELL, 2005, p.48).

23
24

Os apontamentos têm ressonância nas leituras das imagens na pós-modernidade, pois


ajudam a pensar as imagens que povoam o cotidiano como uma prática corriqueira. Pois as
imagens medeiam as experiências afetivas, sexuais, de trabalhos, a ociosidade, o lazer etc.
São milhões de álbuns de fotografias virtuais, incontáveis imagens exibidas e
contempladas todos os dias. Na atualidade há a febre dos auto-retratos, as chamadas selfies,
cuja finalidade é a exposição em redes sociais. A este respeito é tornou-se banal pessoas em
restaurantes, em hospitais, em acidentes de transito etc., se preocuparem com a imagem que
“devem” produzir, mais do que o momento que vivem.
Tal prática se consolida como um novo formato do panóptico 15, que Mathiesen
reconhece e denomina de sinóptico, como sendo o modelo de vigilância onde muitos vigiam
uns poucos. Em seu artigo The viewer society: Michel Foucault's 'panopticon' revisited, (já
traduzido para o português) Mathiesen alcunha, então, o termo "sinóptico", cujo princípio
fundamental, ao contrário do panóptico onde "poucos vigiam muitos", define-se como um
estado de cultura onde "muitos vigiam poucos".

Temos a difusão do controle vinculada à parafernália tecnológica, seja pela continuação do


princípio de poucos vigiando muitos (substituindo-se até mesmo a figura do vigia pelos
computadores), através de câmeras onipresentes que nunca sabemos exatamente onde estão,
seja pelo novo processo “sinóptico” de muitos vigiando poucos (MATHIESEN, 1998, 81).

Para o autor vive-se a sociedade espectadora16.

No entanto, apesar de reconhecer as mudanças que acontecem nos modos de ver


Mathiesen conclui que a presença do sinóptico não exclui totalmente o panóptico, pois, ao
serem combinados possibilitam desempenhar um controle mais acirrado na sociedade (1998).

É hoje totalmente possível, do ponto de vista tecnológico, ter um grande número de


consumidores assistindo televisão sinopticamente, pedindo e pagando pelos artigos
anunciados, como também empreendendo várias outras transações [...] enquanto os
15
Descrição de Foucault sobre o panóptico de Bentham [...] na periferia uma construção em anel; no centro, uma
torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida
em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior,
correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a
lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado,
um operário ou um escolar (FOUCAULT, 2006, pp. 165-166).
16
Para MATHIESEN, a sociedade espectadora define-se pelos modos combinados de vigilância: panóptico e
sinóptico. (p.81, dez. 1998).
24
25

produtores de mercadorias pesquisam em todo o mundo panopticamente, controlando a


capacidade dos consumidores de pagar e assegurando a efetivação do pagamento, ou mesmo
interrompendo a transação, em caso de possibilidade de insolvência. (MATHIESEN, 1998, p.
87).

Bauman, a este respeito, complementa que há outras questões importantes a serem


notadas. Para o sociólogo “[...] o panóptico forçava as pessoas à posição em que poderiam ser
vigiadas. O sinóptico não precisa de coerção – agora este induz as pessoas à vigilância”,
(1999, p. 60)
Sobre o novo formato de vigilância é possível compreender que não existe mais a
coerção descrita por Foucault (2000), os sujeitos inscrevem-se voluntariamente para vigiar e
também ser vigiados.
A este quadro soma-se outro movimento: as imagens são tomadas como fontes
imprescindíveis de vigilância e controle (seja no modelo panóptico ou sinóptico), sem dúvida,
têm suas funções ampliadas e sua emergência não se restringe simplesmente a representar a
vida ou parte dela. A elas também cabe a função de mediar e controlar a realidade.
Contudo, os impasses no entendimento do papel das imagens nas culturas permanecem
e alcançam mesmo os que já situam a imagem como ponto estratégico das composições
discursivas das sociedades pós-modernas, amplamente ligadas às mídias, ao consumo, à
estetização da vida.

1.2 O VER E SEU SIGNIFICADO NA PÓS-MODERNIDADE: DO


TRANSBORDAMENTO

O fenômeno da visualidade que se expande globalmente sinaliza para uma mudança


considerável dos paradigmas modernos que decorrem e, ao mesmo tempo, são decorrentes das
transformações das formas de olhar, ver e ser visto.
Contemporaneamente, encontramos autores para os quais as imagens são perspectivadas
como agentes ativos da formatação social. São citadas como balizadoras das sociedades na era
do espetáculo, por Guy Debord (2003); da vigilância, por Michel Foucault (2000); do
panóptico de Bentham que na sequência leva ao sinóptico de Mathiesen (1998) e Bauman
(1999, 2013); aos simulacros de Baudrillard (1991).
O que quero dizer é que as imagens, em todas estas diferentes e singulares leituras, por
mais distintas que possam ser em suas análises e considerações, são identificadas como um
25
26

importante instrumento da caracterização humana. Também aparecem como componente


relevante as novas formatações culturais, definindo modos de comunicação e expressão.
Podendo, inclusive, ser considerada como um dos principais motes da pós-modernidade.
Constituem também, as imagens, o objeto de estudo da Cultura Visual (MITCHELL, 2003,
2009, 2014; MIRZOEFF, 2003) e outros.
De antemão, devo mencionar que nunca antes as imagens foram produzidas em tão
grande número. Também nunca serviram tanto a fins mercadológicos e para a manipulação do
público, como na época atual. Contemporaneamente, é visível que as representações
imagéticas medeiam as relações entre os sujeitos, aproximam o mundo particular do coletivo,
o simbólico do cultural e delas decorrem muitos dos sentidos e significados que são dados ao
cotidiano, especialmente pelos mais jovens.
De acordo com o panorama que se concretiza com a terceira globalização, em que o
mercado incorpora triunfantemente as imagens, tomando-as como “dispositivos” de poder e,
por meio delas, encontra um importante veículo para capitalismo subsistir. É um convite a
pensar mais profundamente sobre o papel das imagens, agora para além de suas linhas, cores e
formas: seu contributo cultural.

1.2.1 As imagens como paradigmas da pós-modernidade

Regis Debray discute, em Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente
(1993), a função das imagens nas sociedades. E, assim como faria mais tarde Aumont (2002),
divide-as em três segmentos, nominando-os: logosfera, grafosfera e videosfera.
Correspondem aos ciclos que compõem “[...] um meio de vida e de pensamento, com estreitas
conexões internas” [...] no qual as imagens em dialogo com as crenças, ambições, desejos e
fraquezas humanas completariam uma espécie de simbiose que se dá a partir do ver,
compondo, deste modo, o que o autor chamou de mediasfera.
Metaforicamente falando, seria uma espécie de máquina de transmissão que determina o
“horizonte de perspectiva de olhar” pela qual se olha a vida à mercê da visão de mundo que
lhe é ofertada. Estruturando, assim, “[...] um ecossistema da visão, e, portanto, um certo
horizonte de perspectiva do olhar” (DEBRAY, 1993, p. 206).
As três imagens que Debray identificou (obviamente que se trata de grupos de imagens
que foram catalogadas por Debray) concebem um locus de convergência de todas as imagens
existentes até então. Representa, respectivamente, as características do meio visual próprias
de cada grupo.
26
27

Na logosfera estão as formas mágicas, que visam interceder pelo indivíduo frente ao
eterno, cunhadas como objeto de culto. Neste caso, a imagem fantasma (eidolon) preenche o
olhar místico com a função de representar o irrepresentável, de explicar o inexplicável e fazer
presente o morto pela sua duplicação. Pode ser encontrada nas primeiras manifestações
ritualísticas. Os caminhos percorridos por estas imagens não permitem ser desvendados,
medidos ou repetidos, já que estas imagens falam aos sentidos mais íntimos de forma singular
e na intensidade de cada sujeito que crê em algo.
A segunda seria a imagem visível, denominada grafosfera de cunho estritamente
artístico almeja ser objeto de contemplação e permanecer assim eternizadas. Esta imagem não
se deixa ser plenamente entendida, pois almeja transcender.
No terceiro “horizonte” descrito por Debray está a imagem visualizada, que compõe
campo da videosfera. Esta se alimenta de acontecimentos quaisquer do tempo presente.
Ocupa-se em suscitar espanto ou distração, aspira preencher os espaços do cotidiano deixando
pontualmente suas mensagens.
Para Debray (1993) é da videosfera que emerge a “compreensão de mundo” que é
emprestada às sociedades atualmente. Na descrição do autor, ao caracterizar a videosfera,
adverte sobre os medias visuais como sendo os atuais reguladores das funções da visão e os
balizadores de seus usos epistêmicos, estéticos, éticos, morais e simbólicos. Pois, para o autor,
estes determinam os “horizontes” nos quais nos movemos contemporaneamente.
Ao sinalizar a autoridade que as medias visuais exercem sobre os sujeitos na cultura,
angulando o campo visual e delimitando o “horizonte de visão” da nossa época, o autor
identifica-a como uma potente fonte de poder e domínio na contemporaneidade. Menciona a
existência de uma “nova ordem” (DEBRAY, 1993, p. 208).
Se, por um lado, Debray dimensiona os “horizontes de visão” como significativos nos
processos de produção de sentido em contextos culturais que configuraria as imagens como
dispositivos de dominação, por outro, descreve as imagens como sendo a “[...] potência de
algo diferente de uma simples percepção” e avisa: “[...] sua capacidade - aura, prestígio ou
irradiação -, muda com o tempo” (DEBRAY, 1993, p.15).
Contudo, os apontamentos de Debray (1993), a meu ver, também remetem para o
potencial de comunicar intrínseco nas imagens, que se deixam ver sob o foco das luzes de
suas épocas. A análise elaborada pelo autor identifica três formas de organização do mundo
ocidental regido pelo olhar. O olhar mágico, o olhar estético e o olhar econômico, dados como
pressupostos balizadores de suas épocas. Na perspectiva anunciada acima, são os modos de

27
28

olhar que conduziram o homem até o que conhecemos na atualidade. (DEBRAY, 1993, p. 37-
43).
A leitura de Debray oferece uma importante chave para pensar sobre o papel das
imagens nas culturas. Seguindo a linha descrita pelo autor, evidenciam-se modos de vida, de
pensamento, de olhar e ver muito própria de cada época, na qual “[...] cada idade da imagem
corresponde a uma estruturação qualitativa do mundo vivido” (p. 213).
Se o que define o padrão de visualização das imagens está atrelado a uma época e muda
com o passar do tempo, e também muda sua “irradiação e prestígio”, como afirmou o autor,
supõe-se que esta se reescreva indefinidamente, não encontrando um padrão sob o qual possa
ser fixada rigidamente.
Vejamos: a partir da classificação elaborada pelo autor, pode-se dizer que as imagens
mágicas se voltavam para passado, as artísticas lançavam-se para o futuro, já as imagens
visualizáveis passeiam no tempo presente. Penso, sim, que tal reflexão ajuda a entender o
imaginário e a sensibilidade que caracteriza os sujeitos e suas épocas, intimamente intrincadas
a feitura, disseminação e usos das imagens. Porém, é preciso cautela. Mesmo que tais
“idades” tenham sido contadas em uma espécie de ordem cronológica, seria simplista
acreditar que um modo de olhar suprime o outro. Com o devido respeito à bela obra de
Debray, penso que eles coexistem.
Uma acepção que me leva a crer que as idades, ou modos de visão coexistem, embora
possam ocorrer com intensidades diferentes, está em Walter Benjamim (1986), para quem o
passado ainda tem algo a dizer, à luz de que o presente se compõe do passado que não foi
redimido.
No entanto, as afirmações presentes na obra Vida e morte das imagens, que versam
sobre a influência do meio visual como fator determinante para as composições e andamento
das culturas assumem, a meu ver, dupla função. Por um lado, reforçam a hipótese de que as
imagens têm protagonizado o andamento da evolução dos seres humanos e das culturas.
Também a obra apresenta elementos que podem contribuir para a elucidação das recorrentes
tensões que se instauram acerca da modernidade e pós-modernidade, oferecendo subsídios
que permitem considerar que ao menos do ponto de vista da visualidade estamos vivendo um
novo período.
Na tentativa de alcançar o que chamarei, aqui, de fenômeno visual, e entender o
preponderante apelo que as imagens midiáticas exercem na vida das pessoas, faço um breve
regresso, no anseio de reconhecer como tal fenômeno se principiou. Busco, no caso da menina
de 13 anos, Omayra Sanchez, em 1985, que muitos vêem como o começo do que hoje
28
29

chamamos globalização midiática ou, então, um acontecimento que demarca a assunção


hegemônica da imagem. A menina Omayra teve sua agonia “apreciada” em tempo real pelas
câmaras de televisão de todo o mundo, por três dias, até sua morte por gangrena, tendo as
pernas e parte do tronco soterradas pelo vulcão Nevado del Ruiz, na Colômbia.
Enquanto o mundo acompanhava ao vivo, do sofá, este lamentável infortúnio, a
visualização da vida de que fala Mirzoeff (2003) ou a espetacularização para Debord, (2003)
se consolidava. A vida privada tornou-se cada vez mais pública, revigorada pela ânsia de ver
ou de ser visto.
As projeções que procuram compreender o fenômeno visual na pós-modernidade
apontam para a cultura midiática, em que a sensação de estar sendo visto, “vigiado”, amoldam
os indivíduos em sua constituição identitária, suas formas de relacionamentos, sendo capazes
de orientar os jovens na apreensão dos novos saberes, refletindo-se sobre suas expressões e
subjetividade, enfim, estruturando os processos que formatam a sociedade contemporânea.
Este novo periodo, respeitadas suas variações semânticas, é chamado de pós-
modernidade.
Há que se notar que falar da pós-modernidade é estar sujeito a distintos modos de
interpretar a atualidade. Porém, se há dissonâncias entre as teorias que pensam as
configurações das últimas decadas, também há um ponto em comum: elas compartilham a
ideia de que o projeto modernista não conseguiu dar conta satisfatoriamete da renovação das
formas de arte, das variedades de culturas, da estética, da subjetividade, do pensamento e
diversidade humanas etc.
A discussão pós-moderna é, pois, um movimento filosófico, histórico, artístico e
cultural que surgiu na segunda metade do século XX, voltado às transformações ocorridas17.
Embora tal temática seja bastante discutida e por vezes até recusada, já foi pensada e
anunciada por distintas frentes teóricas que, sendo, por vezes, divergentes, não impedem o
curso da discussão. Ainda que não seja uma questão simples e se constitua de nuances que
devem ser consideradas é, a partir daqui, a partir de autores que pensam se estamos vivendo a
modernidade ou já a transpusemos (capitalismo tardio, pós-modernidade, modernidade
líquida, hipermodernidade, sociedade de risco etc.), nesta quadra do tempo, ao ensejo desta
minha produção, posso dizer sem medo que a pós-modernidade sustenta-se, sobre tudo, no

17
O filósofo Jean François Lyotard, em A Condição pós-moderna (2000), foi quem divulgou mais amplamente o
conceito de pós-modernidade, mesmo não sendo seu criador, utilizou o termo para referenciar o abandono das
grandes narrativas, em reconhecimento de que não havia uma metanarrativas capaz de tornar um discurso aceito
por todas as culturas.
29
30

caráter de mudança dos paradigmas modernos. Inegavelmente, é perspectivada como


continuação ou oposição à modernidade.
Outros aspectos a serem destacados sobre a presença da pós-modernidade que se
vinculam ao campo visual podem ser identificados na miscigenação e hibridização das
culturas pela globalização, bem como na descentralização das autoridades e dos poderes.
Consequentemente, na multiplicação dos lugares do conhecimento18.
O ponto que me parece nevrálgico para a discussão que desenvolvo está na pluralização
dos lugares do aprender. Concordo com Berticelli quando diz “[...] ainda que se possa
conceder algum privilégio a algum lugar do aprender, não se pode absolutizar nenhum, sob
pena de cerceamento do processo complexificante do aprender” (2010, p. 22).
Devo lembrar que na modernidade a linguagem oral e escrita constituía, de certo modo,
o eixo basilar que distinguia o saber científico de outros saberes, e também o homem de
outros homens.
Bauman (1999) explica com a metáfora “do jardineiro” como se dava tal processo. Em
suma, a ordem moderna consistia em separar o joio do trigo. Nesse processo, muitos foram
rejeitados, esquecidos, ou jogados no lixo. Mas existe um detalhe a mais e aqui, importa ser
dito:
O cerco promovido pela modernidade, na tentativa de manutenção da ordem,
contraditoriamente, também produziu sintomas que vazaram dela, firmando-se como
possíveis significadores da sociedade pós-moderna19. O fato é que a complexidade da
experiência humana que o poder gestor da ordem na modernidade almejou abolir escorreu-
lhe por entre os dedos. A sociedade pós-moderna surge, então, caracterizada por este
contexto. O cenário é de transitoriedade. Os princípios que outrora regiam a vida cotidiana do
indivíduo e da sociedade vão sendo gradativamente alterados.

Não existe nenhuma razão de se pensar que se possa determinar metaprescrições comuns a
todos esses jogos de linguagem e que um consenso revisável, como aquele que reina por um
momento na comunidade científica, possa abaixar o conjunto das metaprescrições que

18
Principalmente o descrédito das grandes narrativas, não sendo nenhuma delas tão poderosa a ponto de responder
a todas as culturas. De qualquer forma a pós-modernidade pode ser definida como sendo a crise da modernidade.
19
O neologismo pós-moderno tem um mérito: salientar uma mudança de direção, uma reorganização em
profundidade do modo de funcionamento social e cultural das sociedades democráticas avançadas. Rápida
expansão do consumo e da comunicação de massa; enfraquecimento das normas autoritárias e disciplinares;
surto de individualização; consagração do hedonismo e do psicologismo; perda da fé no futuro revolucionário.
(LIPOVETSKY, 2004, p.52)
30
31

regulem o conjunto dos enunciados que circulam na coletividade. É ao abandono desta crença
que hoje se relaciona o declínio dos relatos de legitimação [...] (LYOTARD, 2000, p. 117)

A nova condição das sociedades a partir do diagnostico de Lyotard aponta, entre outros
aspectos, para a pluralidade dos contextos proporcionados pelas novas tecnologias e
linguagens.
Frente a este quadro, pensar as questões que circunscrevem a contemporaneidade não é
percorrer um caminho fácil, como já mencionei, pois não se trata de um percurso já
consolidado. Dentre outras questões complexas a serem consideradas, seus temas e questões
não têm um corpo teórico definitivo. Todavia, é possível pensar ao menos um único ponto
comum capaz de sustentar as distintas reflexões que dizem respeito ao que chamaremos de
pós-modernidade, considerando que o termo “pós” refere-se à sua temporalidade. Ou seja, se
é possível pensar o que se configura como o eixo principal no mundo pós-guerra, pós-
industrial, pós-revoluções tecnológicas e midiáticas como marca do nosso tempo, resta como
resposta a esta inquirição, o “[...] caráter de mudança” (LYON, 1998).
Sendo assim, ao fazer aproximações à pós-modernidade, vamos encontrar a
modernidade líquida em Bauman (2001), por exemplo, em Beck (2011), a sociedade de risco
e assim por diante. Tenho como intuito buscar significações sobre este momento de mudança.
Busco, inicialmente, entender a fase que sobreveio à condição moderna da existência humana.
Meu intento não está em buscar uma linearidade progressiva ou qualquer coisa que
rigidamente descreva ou represente a “superação” da modernidade, mas algo que potencialize
ou permita, de algum modo, significar nosso tempo.
Responder às idiossincrasias da nossa época é realmente percorrer um terreno instável.
Mas, inicio por uma colocação de Lyotard, quando disse, certa vez, que considerar a pós-
modernidade talvez se trate da busca por outras respostas (1988, p. 17). E buscar outras
respostas exige também questionar sobre o saber, sobre o que sabemos realmente.
Berticelli (2006) vai além, faz pensar que talvez se trate de questionar sobre os saberes
assim no plural. O professor Berticelli permite considerar a cultura, o sujeito e o saber agora
ditos no plural. Para o autor que lê o mundo “sob a ótica da complexidade, [...] os saberes, no
plural, encontram na pós-modernidade lugar para regressar, pois “[...] o mundo está liberto
das amarras” [...] “que o prendiam sob a égide de um único saber”. (2006, p. 143).
A afirmação de Berticelli permite concluir que a pós-modernidade instaura-se como
território fértil e complexo. E nela se tem espaço para quem a modernidade outrora excluiu e
para os que estavam de fora. Contudo, assim mesmo, este espaço precisa ser conquistado a
31
32

duras penas (observe-se a emergência das mulheres no mundo do trabalho, os negros


mostrando seus rostos, os indígenas também etc.: mas nada de forma gratuita e muito menos
natural).
Entretanto, devo ressaltar que as imagens apenas recentemente vêm sendo pensadas e
perspectivadas “como lugares de aprender”. E para elas não é dada a legitimidade que se
outorga à linguagem oral/escrita (compreendendo suas variações). Talvez isto ocorra pelo
mesmo motivo que leva a negar a pós-modernidade. É coisa de se pensar.
O que se evidencia em pleno século XXI é uma recorrente intenção ou a necessidade de
reafirmar que “[...] a linguagem é o atributo essencial do ser humano: “O homem” é o “animal
que fala”. A imagem é o meio do subumano do selvagem, do animal “estúpido”, da criança,
da mulher, das massas (MITCHELL, 2009. p. 30).
Chamo a atenção para a passagem acima, que me parece de suma importância, e por
isso não pode passar despercebida pelo peso que tem e por tudo que suscita ao andamento
desta discussão.
É sabido que a linguagem oral constitui uma das grandes preocupações da modernidade,
evidenciada pela inquietante fala de Mitchell (2009), que aponta a existência de leituras e
análises interpretativas que visam considerar as imagens como categorias menores. Leituras
que, inclusive, em pleno século XXI, ensejam manter a hegemonia da linguagem tradicional
(oral e escrita), em detrimento das demais linguagens e demais saberes.
Posso presumir, partindo de Mitchell (2009), que se a linguagem tradicional é, na
modernidade, atributo exclusivo do gênero masculino, feito à imagem e semelhança de Deus,
e que conta com explicação no próprio Hegel. Aos “outros”, os sub homens, os bárbaros, que
habitam para além das margens da língua dominante, por sua ineficiente racionalidade,
restariam as imagens20.
Talvez esteja aqui o ponto que defina a imagem como paradigma da pós-modernidade,
já que a pós-modernidade admite a complexidade humana e, de modo inédito, pensa as
mulheres, as crianças, os índios, os negros e todos os assim denominados bárbaros (desde a
Grécia antiga) desprovidos da linguagem oral com o rigor do modelo hegemônico moderno.

A nova aliança tem por característica principal unir o que o homem moderno separou: o
mundo do homem/da mulher. Os saberes retomam seu lugar. A exclusividade do saber more

20
A palavra "bárbaro" provém do grego antigo, βaρβαρóς, designava os estrangeiros, e aqueles povos cuja
língua materna não era a língua grega e, por isso, os gregos não entendiam e interpretavam como bar bar bar
(semelhante a 'blá blá blá' em português). Fonte: http://www.dicionarioetimologico.com.br
32
33

geometrico, more mathematico perde sua hegemonia mantida por séculos. Fica claro que os
saberes nunca deixaram de existir de modo plural, [...] (BERTICELLI, 2006, p. 159).

Para Berticelli a pós-modernidade pode ser entendida assim, sem medo, como sendo o
estado das culturas e dos saberes ditos assim no plural. (2006). E as imagens constituem parte
desta aliança.
A profusão imagética na pós-modernidade responde por uma importante forma de
comunicação e expressão que caracteriza o novo formato de mundo.
A partir da perspectiva anunciada, negar a existência da pós-modernidade, respeitada
toda sua variação semântica, consiste negar-se a ver estes outros sujeitos, as outras culturas, e
os novos saberes que desabrocham. Negar-se a ver as imagens, também como parte
imprescindível das composições culturais subjetivas e simbólicas que dão contornos a pós-
modernidade, consiste em um erro.
Explico porque me posiciono assim: por que considero um erro ignorar a presença das
imagens e seu caráter discursivo e constitutivo das culturas pós-modernas.
Antes disso, que fique claro, no entanto, que não defendo esta como a única forma de
linguagem, (até porque seria uma grande tolice) e talvez nem como a mais importante. Mas,
com certeza, trata-se de um modo de comunicação muito utilizado e pouco estudado ou
compreendido na atualidade. Não se trata, em absoluto, de negar a contribuição dos saberes
modernos. Tão pouco se trata de negar a validade do rigor científico, ou fechar os olhos para
os avanços alcançados com eles.
A meu ver, admitir a pós-modernidade é ampliar o leque de questões que indagam sobre
a vida, sobre o cotidiano, sobre os sujeitos. Muito mais do que fixar respostas e certezas, trata-
se de perguntar sobre nosso tempo.
A problemática que se instaura sobre os modos nos quais nossas culturas e, sobre tudo,
os sujeitos estabelecem sua atuação e expressão cultural e subjetiva para a qual nos lançamos
ao enfrentamento, se dá no emaranhado contingente em que se estrutura a vida humana, em
intenso, constante e complexo fluxo. No mundo contemporâneo, tal movimento se dá à luz de
importantes mudanças de paradigmas que, por sua vez, desencadeiam outras mudanças
sociais, culturais, tecnológicas, de linguagem densamente subsidiadas por imagens.
Como referi anteriormente, tais mudanças divulgam o surgimento de um novo sujeito de
conhecimento forjado sob outros moldes que os da modernidade. Este novo sujeito de
conhecimento que reconheço se compõe tanto culturalmente, corporalmente, verbalmente,
olfativamente, visualmente, etc. Tal complexidade exige ao menos o esforço ou o
33
34

reconhecimento da multiplicidade que compõe os saberes, dentre eles as imagens. Claro que
se trata de um grande salto para quem tem pequenas pernas, alcançar os caminhos dos saberes
em sua plenitude, consiste em uma enorme tarefa.
O enfrentamento que proponho se coloca muito mais singelo. Volta o olhar para as
tramas visuais que compõe também os saberes.
Quero dizer que reconheço que muitas das mudanças sociais e culturais que
aconteceram e ainda acontecem nas últimas décadas se dão excitadas pelo caráter visual que
assume a cotidianidade. E talvez, digo isto termos de hipótese, constituam as imagens o mote
do pós-moderno.
Seja na percepção de Debord ao analisar as mudanças que encaminham à “sociedade do
espetáculo” (2003), seja na “sociedade de vigilância” de Foucault, (2000, 1979), na íntima
ligação entre consumo e mídias visuais ou nas simulações percebidas por Baudrillard (1995,
1991), na metáfora das líquidas de Bauman (1999, 2001, 2013), o certo é que os
acontecimentos ocorridos nas sociedades das últimas décadas apontam “[...] para algumas
mudanças sociais e culturais importantes que estão acontecendo” “[...] e estas mudanças
compõem o mote central das discussões que escrevem a pós-modernidade” (LYON, 1998, p.
09).
Após a revolução industrial e o acelerado avanço tecnológico e midiático a visualidade
ganha um papel de destaque neste cenário. O campo visual já há algumas décadas demarca
importantes mudanças culturais que vêm acontecendo. O que implica em perceber que o
advento da pós-modernidade, que se afirma nas mudanças que comporta, também assiste a
uma profunda “mudança visual”, como observou Martin Jay (2003, 2012).
A “mudança visual” de que o autor fala se consagra cotidianamente por meio da
profusão de imagens que são lançadas em contextos culturais e fundem-se ao cenário pós-
moderno (JAY, 2012). Na esteira desta afirmação, também Mirzoeff (2003, p. 3) defende que
o mundo é “tão mais pós-moderno quando é visual”.
As citações de Jay (2012) e Mirzoeff (2003) revelam o cenário onde “o ver” ascende em
importância. Pode-se dizer que as mudanças de paradigmas que levam da modernidade à pós-
modernidade filiam-se ao caráter visual da vida contemporânea. Quer seja na qualidade de
agentes promotores ou mesmo produtos destas mudanças.
O fato é que a concretização do mundo globalizado se dá cada vez mais centralizada no
olhar. O presente se escreve num movimento de rupturas, e este novo formato, embora não
fixo, admite mudanças nas formas de ver o mundo e se mostrar ao mundo. As imagens, na
atualidade aparecem como um dos principais veículos da comunicação humana, já não se
34
35

“[...] limitam a servir de marcadores para objetos que lhes sejam anteriores [...]” mas, muito
mais que isto, “[...] criam sentidos21” (SILVA, 1999, p.44).
A afirmação de Tomas Tadeu da Silva convida a retomar com maior atenção a linha de
pensamento formulada por Debray (1993) e já apresentada aqui. Se assim o é, e “[...] os
signos (visuais) criam sentido”, a leitura do mundo ocidental impetrada por Debray estaria
correta. Pois a síntese fixada pelo autor delibera sobre os signos visuais alocados como
importantes vias de comunicação, definindo suas épocas. Na trama assim elaborada, as
imagens expressam e compõem as culturas que as produzem, sendo significativas as
composições históricas, culturais e subjetivas, em qualquer tempo e ainda hoje.
Nestes termos, analisar as imagens perspectivadas como “sistemas simbólicos”, ou seja:
enquanto corroboram qualitativamente a composição das culturas e dos sujeitos exige, além
do nosso esforço inicial de pensar as imagens, compreender como as imagens se comunicam
com os sujeitos em contextos sociais.
Devo reconhecer que embora julgue este um tema bastante atual, analisar as imagens
como dispositivos imbricados nas formações culturais emanadas dos ventres das culturas não
constitui apenas ater-se à atualidade. Também não aparecem como uma discussão sem
precedentes, pois importantes precedentes se fizeram sentir ao longo de uma história pretérita,
até os nossos dias, sendo importante conhecê-los.
Assim sendo, cabe dizer que a partir de meados do século XX, a obra de Guy Debord
concebe o conceito de comunicação como sendo visus. O autor acena para o valor fortemente
visual presente nas formas de comunicação de seu tempo que, pelo uso de imagens, qualifica
o visível, tornando-o uma visibilidade arregimentada por regimes de poder.
A obra produzida em 1967, “A sociedade do espetáculo” à qual me refiro, anuncia as
imagens como aparatos de dominação e alienação em uma lógica capitalista. Na leitura
apresentada por Debord, a visualidade assume um formato estático, fechado, no qual o
espectador, cuja visão já foi previamente fabricada pelos meios de comunicação de massa,
olha, mas nada vê além do que lhe foi instruído. Neste perspectiva o próprio espectador
“torna-se uma imagem" (DEBORD, 2003 p. 32).
Para Debord o convencimento se dá muito mais pelo espetáculo das imagens que pelos
objetos (p. 53). Como exemplos, os logotipos das marcas famosas, como da Nike, que

21
Segundo Matin Jay por “sentidos” se compreende “não apenas aos dotes corpóreos naturais que nos permitem
acessar o mundo, mas também aos significados que atribuímos aos resultados deste contato” (2012, p.3)

35
36

representa a deusa grega alada Nice, ou os arcos dourados do McDonald que para o autor
seriam inevitavelmente legíveis em qualquer contexto22.
O conceito central desenvolvido por Guy Debord ao dimensionar o espetáculo pode ser
identificado no seu movimento de separação, a eliminação da individualidade em beneficio de
uma multiplicidade. O espetáculo debordiano suprimi a linguagem enquanto meio de
comunicação humana e a colocada como mercadoria. E o sujeito por sua vez aparece como
produto do relações espetaculares. Para o filosofo franacês o sujeito é produzido por atritos
com os dispositivos.
Esta perspectiva, percorrendo caminhos para as formações do campo visual, também
alcança Baudrillard (2005), nos estudos que desenvolveu sobre o acordo das mídias e das
tecnologias no modo de vida capitalista assinala a tênue linha que permeia a relação consumo
e mídia e, consequentemente, imagens e consumo. Contudo, deixa entender que a
“espetacularização da vida” que Debord (2003) expõe pode ser revisitada. Para o autor, com a
difusão de desejos efêmeros, a competitividade e o imediatismo como características
balizadoras da cultura midiática dissolve-se a imagem do real e inaugura-se a era da
“simulação” (1991).
As imagens sob esta ótica ditam as referências e guardam o lugar onde cada indivíduo
deve propor-se cegamente a chegar, pois elas guardam o “modelo ideal” a ser seguido.
É importante frisar que os autores, embora falem da sociedade de consumo, da
influência das mídias sobre os indivíduos, das mudanças promovidas no meio visual etc.,
divergem em suas leituras do papel das imagens nas culturas. O espetáculo debordiano
anuncia a visão (em detrimento dos demais sentidos) como o caminho facilitador, por isso é
lugar privilegiado, para se chegar (ou mesmo produzir) as sociedades de consumo. Nas
palavras do autor: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre
pessoas mediada por imagens” (DEBORD, 2003, p.14).
Por esta concepção defendida por Debord, ainda persiste a ideia de uma imagem
metafísica, diferente da que entendo. Em alguns sentidos, até próxima ao entendimento de
Berkeley, intimamente relacionada a definições que conotam as imagens como sucedâneos
das ideias puras. Debord, a meu ver, realiza uma interpretação platônica ao analisar o papel
das imagens na contemporaneidade. Pois, em Platão, especificamente no Mito Caverna, a

22
A marca Nike teve seu nome inspirado na deusa Nice; em grego: Νίκη; Níkē ou Niké , significa "Vitória"
assim, o símbolo da marca é semelhante a uma asa em homenagem à deusa alada da vitória. Na verdade o
símbolo da marca Nike não é de uma asa e sim de uma foice, que a Deusa Nike usou para matar o touro
mitológico.
36
37

imagem éidola ou phantásmata se impõe sobre os sujeitos, configurando uma forma de


comunicação vertical23.
O espetáculo debordiano, embora assuma algumas das problemáticas do presente, da
comunicação em massa, as mídias e tecnologias das quais não tratavam Platão e Berkeley,
mantém-se ainda como uma investigação nos moldes destas, quando concebe as imagens
como fontes de comunicação unilateral e vertical.
Ainda que não possa negar a clareza e peso dos argumentos de Debord, a questão que
me preocupa é a insistente crença de passividade do sujeito perante as imagens, sua
passividade e obediência inerte.
A teoria de Baudrillard se pretende mais atual, porém pode ser aproximada à de Debord
já que ambas procuram entender a comunicação a partir das imagens na sociedade
contemporânea. Para o francês, também a publicidade constitui um lugar estratégico, já que
“[...] transforma os objetos em acontecimento” (2005, p.134).
Também na passagem supracitada a análise se aproxima à de Debray (1993), quando
explica a videosfera como sendo a balizadora dos saberes de nosso tempo. Entretanto, é
necessário enfatizar que para Baudrillard “[...] a verdade é que a publicidade e o restante das
mass media não nos ilude” (2005, pp.134-135).
A partir deste ponto as concepções de Baudrillard e Guy Debord se tornam diferentes. A
noção do espetáculo passa a ser a “fantasmagoria do simulacro”. Baudrillard não concebe a
comunicação visual de modo unilateral e passivo como na leitura de Debord, que propõe uma
visualidade pré-determinada e entende um sujeito alienado (2003). Ao contrário, acentua com
sua fala argumentativa, o caráter de uma visualidade construída. Mas não apenas isso. Para
ele, as imagens atingem tamanho grau de evolução que passaram a se auto-referenciar (1991).
A tensão estabelecida no diálogo entre os autores pode ser explicada da seguinte forma:
Baudrillard (2005) ao asseverar que não somos passivamente iludidos por imagens midiáticas,
publicitárias sejam quais forem, afirma que o uso de imagens pela publicidade, ou por outro
meio específico que submeta sua presença à obtenção de vantagem ou lucro, (e comumente o
fazem) o que as qualificaria como “dispositivos de poder” não incide de maneira linear, mas
incorpora também todas as tensões que se amarram a tal processo. Conforme explicou

23
A poderosa metáfora imaginada por Platão no livro VII da República (escrito entre 380-370 a.C.) há quase
2500 anos atrás, traz na narração do “Mito da Caverna” toda miséria da condição humana, fadada à ignorância.
Platão relata a cotidianidade de homens cativos em uma caverna desde a infância e cuja existência era dominada
pela ilusão criada por imagens.

37
38

Foucault (2000), numa tensão de forças, na ação sobre ações, lugar onde todos são agentes
participativos.
O diálogo proposto aqui entre Baudrillard (1991, 2005) e Guy Debord (2003) é bastante
pertinente ao se discutir as imagens na contemporaneidade, mais precisamente, dá-nos
perspectivas para refletir sobre a profusão de imagens em contextos pós-modernos. Debord
(2003), ao anunciar que o sujeito que vê é previamente construído “alienado e dominado”,
fala do lugar das imagens na sociedade do espetáculo, seu papel doutrinador e impositivo.
Baudrillard inaugura ou, no mínimo, reconhece a era da simulação (1991). Para o autor,
não são as imagens que ajuízam a sociedade, mas sim o contrário, a sociedade é que se
espelha nas imagens. Segundo a leitura que realiza, as culturas contemporâneas buscam
aproximar-se das imagens vendidas pela mídia, para tornarem-se elas próprias o objeto que
desejam, caracterizando, então, o que chamou de “simulação do real”.
Para Baudrillard, no ocidente capitalista “Vivemos desta maneira ao abrigo do signo e
na recusa do real”. (2005, p. 25)
A sujeição pela imagem também é uma discussão desenvolvida por Mitchell, (2009). O
autor chama de ilusão a capacidade induzir o espectador a uma falsa crença 24. A associação
entre imagem e ilusão que realiza aponta para duas possibilidades que julga prudente
considerar: se, por um aspecto, podem, sim, submeter o espectador, pensada de outro modo,
pode libertá-lo.
O professor Thomas Mitchell (2003), estudioso das imagens, vê nelas parte
imprescindível da dinâmica em que se estruturam as culturas contemporâneas. Reitera não
haver dúvida quanto à possibilidade de uso das imagens como instrumento de dominação,
todavia diz que não considera “[...] produtivo destacar a visualidade, as imagens, o espetáculo
ou vigilância como um veículo exclusivo da tirania política” (2003, p.243), Já que para o
autor:

[...] há uma tendência infeliz em deslizar-se para tratamentos redutores de


imagens visuais como se fossem forças de um todo-poderoso, empenhando-se em uma
espécie de crítica iconoclasta que acredita ser a destruição ou a exposição de falsos valores da
imagem alguma vitória política (MITCHELL, 2003, p. 243).

24
Mitchell chama atenção para as aproximações equivocadas dos termos ilusão e ilusionismo. Para o autor, o
ilusionismo seria a exploração consciente da ilusão (2009, p.48. 2009).

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39

As imagens, na qualidade de peças integrantes das culturas, percebidas como suportes


que guardam os mais variados discursos visuais, não instauram um canal sem interrupções e
atritos. Temos as imagens materializadas como signos potencialmente comunicativos, porém,
e mais importante, abertas às interpretações das mais distintas, não se constituindo por si só
como boas ou ruins.
A insistência em leituras que culpabilizam as imagens como enganosas e opressoras,
como fizera o dialético em seu retorno à caverna, consiste ainda numa atitude convencional
que tende a tratar “[...] a imagem como a coisa em si”. (MITCHELL, 2009, p.66.)
A influência deste tipo de leitura poderia servir como resposta à questão impetrada por
Debray (1993), quando pergunta por que as imagens ficaram tão aquém da linguagem
tradicional enquanto estudo.
Vale recordar que “as imagens passam por um sujeito”, constituindo-se como o
resultado deste sujeito, o que ele guarda em si em dialogo com seu contexto (JOLY, 1994).
Assim sendo, somente ao serem acessadas pelos sujeitos, à luz de determinado contexto, e
usadas como fontes de mediação, intermediando as relações do homem com o mundo, é que
se tornam propriamente uma fonte de linguagem. Somente ao ser acessada, somada ao sujeito
a partir de um contexto, é que sua mensagem se estabelece.
Mitchell observa que apesar dos indivíduos terem a clareza de que as imagens não são
seres vivos, ou naturais, agem incontáveis vezes como se as imagens fossem coisas animadas,
dotadas de vontades, desejos, pulsões. Lembremo-nos do exemplo dado lá no inicio de nossa
discussão: que embora qualquer pessoa racional e consciente tenha a clareza de que a foto de
sua mãe não está viva, sente, ainda assim, em maior ou menor intensidade, desconforto em
destruir a imagem. Pois esta lhe suscita emoções íntimas.
Assim como as imagens pornográficas suscitam desejos, o vuduzismo suscita o domínio
sobre o corpo do outro, a vigilância suscita controle etc. Mitchell (2009) em ironia diz que
pelo menos desde o Bezerro de Ouro as pessoas sabem que as imagens são perigosas e podem
cativar-lhes o olhar e roubar-lhes a alma. Com tal afirmação o autor pretende enfatizar que
que o bezerro de ouro é uma forma de vida, (pois para ele abriu-se exceção). As imagens
vindas da fé tornam-se vivas.
Míticas, ritualísticas e, com o passar dos tempos, as imagens adquiriram status. Um
exemplo disso são as catedrais representativas da totalidade de mundo, buscando alcançar a
eternidade. De maneira antônima às catedrais medievais, hoje a publicidade, a mídia, o meio
virtual. Posto que não representa a ideia de perenidade – mas seu avesso, apresenta

39
40

embebecido na fluidez e excessos – talvez seja a manifestação da totalidade e autossuficiência


imagética da pós-modernidade.
Hoje as imagens assumem finalidades infinitas, onde todos em potencial são artistas,
criadores de imagens e, ao mesmo tempo, fruidores que as contemplam, consomem ou
vigiam.
Em recente obra intitulada Vigilância líquida (2013), Bauman esclarece aspectos
corriqueiros da vida dos jovens em suas relações midiáticas, outra função que assume a
imagem.
Diz ele: “La esencia de las redes sociales está en el intercambio de información
personal. Los usuarios se alegran de “revelar detalles íntimos de su vida personal”, “colgar
información detallada” y “compartir fotografías”. (BAUMAN, 2013, p. 37).
O reconhecimento de que importantes mudanças ocorrem nas sociedades aponta para
um outro domínio imprescindível de análise. As narrativas que contam sobre o cotidiano,
sobre os modos de subjetivação, e de visualização requerem que nos aproximemos dos
meandros onde se estruturam e se educam os sujeitos.
CAPÍTULO III
O OLHAR (DES)NATURALIZADO NO ENSINO DAS ARTES VISUAIS

Com a terceira globalização, o avanço tecnológico e midiático, amplia-se efetivamente


as ações cotidianas ligadas aos meios visuais. O ver generaliza-se enquanto fenômeno
cultural, amplamente difundido. Emerge do cerne das culturas exitado pela crescente
propagação e maior acesso as tecnologias deixando claro seu alcance.
Diante do quadro que caracteriza o pós-moderno é apropriado dizer que muito das
mudanças de hábitos são balizadas pelo meio visual, que, por sua vez, também dita os novos
paradigmas que orientam e modelam o ritmo da vida na contemporaneidade. O novo formato
de mundo globalizado é determinante ao desdobramento da nova realidade que se instaura.
Onde, se afirma as imagens, seus usos e produção como uma prática relevante de socialização
e construção simbólica. Consolidada no aumento das funções exercidas pelas imagens nas
últimas décadas.
A visualização da vida compõe uma das principais facetas das culturas e, consagra um
novo formato de mundo, cujo caráter visual é tomado com fator de grande relevância nos
últimos anos. Frente a esta perspectiva é válido dizer que uma das marcas fundamentais da
pós-modernidade passa pelo visual. (MIRZOEFF, 2003).

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41

Na interpretação de Mirzoeff, fica claro que para compreender o século dezenove era
necessário discutir as manifestações verbais, a cultura pós-moderna pode ser melhor
compreendida se analisada a partir das visualidades. Em outras palavras, assim como seria
impossível entender o século dezenove ignorando o papel dos jornais, dos romances dos
códigos escritos imprescindíveis aos modos de vida e formatação da sociedade, na atualidade,
é impossível compreender a sociedade sem dar atenção às novas formas de visualização e
visibilidade.
Tal afirmação, embora se sustente em aspectos relevantes encontrados no cotidiano,
deve ser atentamente analisada para então ser compreendida.
Na contemporaneidade a sociedade de modo geral está sendo invadida por imagens
com os mais variados discursos. Tamanha movimentação acaba por despertar “novas
percepções sobre as realidades e novas práticas sociais”. Portanto, considerar as dinâmicas
que possibilitaram as mudanças de paradigmas também no campo visual, as formas de
visualização inauguradas na pós-modernidade, é pressuposto determinante ao entendimento
da nova realidade que se instaura.
A pós-modernidade configura como o lugar onde se afirma as imagens, seus usos e
produções como uma prática relevante de socialização e construção simbólica, pois “[...]
fazem parte dos nossos processos de subjetivação, e nos subjetivam enquanto pessoas,
professores, estudantes” (OLIVEIRA, 2012).
Hoje, distintas teorias e disciplinas teóricas voltam sua atenção para tentar alcançar a
complexidade do ver e entender a crescente profusão imagética que se consolida como uma
marca incontestável do nosso tempo. Sabendo que as imagens são “forças comunicantes”,
íntimas dos seres humanos pelos quais passam e se manifestam, não configura um exagero
anunciar que nosso tempo se acha apresentado pelo aumento das funções exercidas pelas
imagens nas últimas décadas.
O tema já consta como uma preocupação de teóricos e de críticos pós-modernos e
também de especialistas em arte, educação e comunicação que entendem que considerar o
fenômeno de “visualização da vida” corresponde também a uma forma de mediação social
que contribui para as composições subjetivas, indenitárias e culturais.
Na pós-modernidade, as representações visuais adquirem um papel fundamental,
mediante a elevação do campo visual a fenômeno cultural, significativo para as práticas de
socialização, culturalização e subjetivação. O fenômeno da visualidade apresenta claramente
uma marca do nosso tempo, que para Mirzoeff (2003) “[...] quanto mais visual for, também
mais pós-moderno será”.
41
42

Sendo assim, também se faz necessário repensar os modos como coexistimos com esta
infinidade de imagens que nos passam e comunicam aos nossos desejos. No entanto, cabe
sublinhar que as novas funções das imagens no cotidiano afiançam a consolidação do mundo
que acontece visualmente orientado, e tal fato exige reelaborar as formas de enfrentamento e
recepção do campo visual.
Concordo com Raimundo Martins quando enfatiza que o enfrentamento que o campo
visual exige, na atualidade, só pode ser alcançado se pensado para “[...] além de um repertório
de eventos ou objetos visíveis porque pressupõe uma compreensão dos seus processos, o
modo como operam, suas implicações e, principalmente, seus contextos” (Raimundo Martins,
2009, p.35).
O anunciado corrobora o entendimento que o ver se dá num movimento muito mais
complexo do que se imaginou durante muito tempo. “Nessa perspectiva, artefatos culturais e
artísticos são compreendidos como formas de narrar ou mencionar vivências, cotidianos e
posicionamentos, caracterizando grupos de sujeitos, conceitos, valores e subjetividades”
(OLIVEIRA, PAZ, 2012 p.3).
Oliveira e Paz reforçam a ideia de que o visual não pode continuar a ser tomado como
um subproduto derivado da realidade social, cuja função se restrinja a representar discursos
verbais ou imitar a realidade, mas, sim, deve ser entendido como um componente ativo “[...]
vistas, dessa forma, não como um espelho da realidade, mas como maneiras de mediar a
produção de sentidos” (2012 p.3). Compostas por intensas tramas e ligações que também
interferem, preenchem a vida e apresentam a realidade.
No entanto, ainda é comum os estudos sobre as imagens verem-se confrontados pelos
estudos do discurso verbal ou, então, acreditarem na dependência da mediação verbal ou
mesmo no sentido de oposição ou rebaixamento dos discursos visuais. (BARTHES, 1990,
SANTAELLA, 2001). Barthes rebate veementemente estes posicionamentos e afirma que a
capacidade das imagens está muito além de meramente expor cópias. Para o autor, os usos e
interpretações das imagens se estruturam em sistemas simbólicos, associados a interesses
pessoais, políticos, econômicos, ideológicos instaurados por relações de poder dominantes de
cada época.
Tal leitura encontra ressonância na análise de Tomaz Tadeu, para quem

As representações culturais não são simplesmente constituídas de signos que expressam


aquelas coisas que supostamente “representam”. Os signos que constituem as representações

42
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focalizadas pela análise cultural não se limitam a servir de marcadores para objetos que lhes
sejam anteriores: eles criam sentidos (SILVA, 1999, p. 44).

Ambas as perspectivas levam a crer que os signos (também os signos visuais)


conectam-se ativamente a composições outras e, portanto, não se limitam a coisa que
representam. Na pós-modernidade, uma considerável mudança nas formas de conceber as
imagens e as artes demonstra que como formas de comunicação e expressão não apenas
representam objetos que lhes são anteriores, mas apresentam a vida.
Em outros termos, começa-se a entender que, “[...] a visão é tão importante quanto a
língua [...]” que sua contribuição a composição dos saberes humanos “[...] não é redutível a
linguagem, “sinal” ou discurso” (Mitchell, 2014, p.22).

3.1 A Cultura Visual no ensino das Artes Visuais

Sabendo que as imagens decorrem, e ao mesmo tempo integram e interagem as


formatações culturais e simbólicas ao longo de todo decurso da vida. Estabelecendo-se como
componentes axiológicos dos sujeitos, parte imprescindível dos saberes humanos. A
aproximação aos Estudos da Cultura Visual permite explorar e problematizar os meios visuais
pelos quais somos subjetivados, também analisa como dialogamos e produzimos as imagens
que nos passam. Raimundo Martins diz que:

A experiência visual e seus repertórios são responsáveis por sinapses entre conhecimentos
objetivos e subjetivos configurados por referências culturais que, de alguma maneira,
influenciam os modos e as práticas de ver dos indivíduos (2009, p.34).

No trecho supracitado, o professor aponta para as experiências visuais como


responsáveis pela elaboração de práticas significantes, tanto em termos das experiências dos
sujeitos, como para a dinâmica estrutural das sociedades.
Hernández acrescenta que as imagens “[...] contribuem para dar sentido a sua maneira
de sentir e de pensar, de olhar-se e de olhar, não a partir de uma posição determinista, mas em
constante interação com os outros e com sua capacidade de agenciamento” (2007, p. 31).

43
44

Nos primeiros anos do século XXI, vê-se a (re)definição das possibilidades das relações
humanas, o (re)dimensionamento do tempo e espaço, dada a ampliação das possibilidades de
comunicação, e a (re)estruturação dos parâmetros da estética, da ciência do belo e da própria
linguagem. os novos hábitos também exercem profunda influência na pintura, na moda, no
cinema, na música e demais vertentes artísticas. As perspectivas de olhar o mundo, de ver e
ser visto são re/significadas.

A nova tendência cultural emerge das vertiginosas transformações sociais que vem
ocorrendo. A arte também está sendo afetada, como exemplo a arte contemporânea que está
em consonância/ressonância com o cotidiano e expressa relação íntima com o contexto, sendo
uma arte mais urbana e livre. Mas, devo destacar a complexidade da arte contemporânea, sua
variabilidade de estilos, sua estética não segue padrões rigorosos, sendo assim, quando aponto
para uma forma de arte mais livre significa em parte que ela não visa se encaixar unicamente
a uma fase da nossa cultura de forma descritiva, tampouco se limita a padrões prévios,
podendo estar instaurada no passado como também expressar acontecimentos do futuro, se
vale das tecnologias, dos meios midiáticos, dos resíduos e matérias advindos do meio popular,
para alguns a arte contemporânea instaura uma espécie de ponte entre o meio artístico, (que
sempre conservou uma espécie de aura superior protegido pelo dom, ou defendido como
erudição, etc.) e a cultura popular.

Fig. 9 You Know You Want It (Jacques Villeglé)


Tradução Você sabe o que voce quer

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Fonte: http://www.cortexathletico.com/en/expositions/presentation/153/jacques-villegle

O artista Villeglé, em suas obras realizadas a partir de restos de outdoors, revistas, e


propagandas, evidencia está nova estética que já adentra o meio das artes. A imagem criada a
partir de acúmulos de imagens, anúncios e informações onde nada morre para sempre e nada
vive por muito tempo caracteriza a meu ver a estética pós-moderna.
O fato é que o mundo mais do que nunca está saturado de imagens. Está afirmativa
justifica a era da visualização de que fala Mirzoeff (2003). No entanto a base da reflexão que
desenvolvo atenta para as tramas visuais que contribuem para a constituição de maneiras e
modos de ser. O ponto para o qual sinalizo, ao longo desta construção, atenta sobremaneira
para o sujeito envolvido neste embate, que produz cotidianamente e incessantemente seus
saberes e sua noção de realidade, a partir de um arcabouço de múltiplas mensagens que lhes
chegam: verbais, corporais, e também visuais etc. sobrepostas e cumulativas.
Por muito tempo a ciência, a filosofia e a própria educação abjuraram refletir sobre o
meio visual e, por conseguinte, às imagens, entendendo o mundo muito mais textual do que
visual.
A aparição da Cultura Visual surge no sentido de contribuir para este giro, que supõe,
como desafio, a compreensão que o visual constitui um problema tão profundo como as
demais formas de linguagem. A propósito, no cenário atual, quando se anunciam as imagens à
luz da Cultura Visual, fala-se de uma visualidade mais abrangente e complexa.
Ante as evidências que mostram as imagens como parte fecunda dos saberes
individuais e coletivos, ainda resiste como um dos grandes problemas a ser enfrentado pela
educação, nas escolas e universidades, a recursiva sedimentação do olhar, modelado por
“narrativas dominantes” (HERNÁNDEZ, 2007, p.11).
Antes de prosseguir, devo explicar por que penso que as narrativas visuais dominantes
ainda resistem como um problema a ser enfrentado pela educação, já que percorro um viés
teórico que se inscreve na pós-modernidade.
Inicialmente, quero afirmar que compartilho da ideia de que, em nossa época, não
existe uma única narrativa capaz de referenciar ou responder a toda a complexidade humana
como se tentou propor, no período moderno. Assim, cede-se lugar às pequenas e muitas
narrativas que compõem o contexto fragmentado do pós-moderno. Entretanto, devo admitir
que a educação (ao menos no Brasil) se movimenta regida pelo modelo da tradição
civilizatória herdada da expansão colonizadora europeia. Os velhos e arcaicos modelos ainda

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pesam sobre nosso formato de educação e alimentam a existência destas narrativas


pretensiosas desde a Ratio Studiorum.
Como exemplo, posso descrever uma cena bastante comum, ao menos aqui no Brasil,
que por parecer perfeitamente “natural”, dificilmente alguém a estranharia. Imaginemos uma
imagem de uma sala de aula, com crianças sentadas, organizadas em fileiras, umas atrás das
outras, todas muito similares, pelo menos em idade e tamanho, o professor presente, porém
conservando uma segura autoridade, encontra-se em pé, mais à frente.

Fig. 10 - Sala de aula da educação primária em 1938.


Fonte: http://restosdecoleccao.blogspot.com.br/2012/06/ensino-primario.html
A cena descrita mostra uma imagem que ninguém, ou alguns poucos estranhariam.
Devo fazer justiça a meu orientador Berticelli que do alto da sabedoria de seus 72 anos, se
mantém inquieto e contestador ao perguntar por que não pode ser de outro jeito. Por que a
educação deve manter-se neste formato “more geometrico, more mathematico”, salas em
ângulos de 90º, filas devidamente alinhadas, muita coisa cheirando a “baralho velho”
(expressão que colhe no ideário popular).
A dificuldade de estranhamento se explica por tal cena parecer-se bastante com o que
vemos nos dias de hoje, e estar de certo modo naturalizada em nosso imaginário. Porém
revela a imagem de uma sala de aula de mais de meio século atrás.
O professor Berticelli (2006, 2010) que se dedica há 42 anos a educação e pensa o
mundo a partir da teoria da complexidade versa com firmeza sobre a necessidade de
problematizar as ideias que já estão “naturalizadas” em nosso imaginário, atuando silenciosas
em impor roteiros educacionais repetidos, estereotipados e ineficientes.
O fato é que comumente não nos damos conta que conservamos um arquétipo
implantado a séculos atrás, que favorece um modelo de visão local subordinado ao olhar
46
47

hegemônico externo, sobremodo eurocêntrico. Inicialmente, à moda europeia e, agora e


especialmente, norte-americana.
No campo visual as imagens na contemporaneidade passam pelos meios de
midiatização e comunicação de coletivos. Especialmente na América Latina, a televisão, por
sua popularidade, que atinge e influencia grande parte da população. No entanto, cabe
sinalizar a exasperação imagética gerada pelo uso da internet que cresce desenfreadamente e
se afirma como uma realidade em grande número de domicílios e escolas, em nosso país.
Basta dizer que de acordo com a pesquisa brasileira de mídia 2015, sobre os hábitos de
consumo de mídia da população brasileira, “[...] 95% dos entrevistados afirmaram ver TV,
sendo que 73% têm o hábito de assistir diariamente. Em média, os brasileiros passam 4h
31min por dia expostos ao televisor, de segunda a sexta-feira, e 4h 14min, nos finais de
semana [...]” (2014. p.7).
A internet, como veículo mais recente, no Brasil (acessível há 20 anos), segundo a
mesma pesquisa atinge 49% da população. Os números são surpreendentes, “[...] entre os
usuários, a exposição é intensa” uma “média diária de 4h 59min de segunda a sexta-feira e de
4h 24min nos finais de semana”. Quando os usuários responderam sobre o que buscam, como
respostas: “[...] informações (67%) – sejam elas notícias sobre temas diversos ou informações
de um modo geral –, de diversão e entretenimento (67%), de uma forma de passar o tempo
livre (38%) e de estudo e aprendizagem (24%)” (2014, p. 49).
A pesquisa brasileira demonstra claramente que a visualização da vida se difunde por
seus vários setores: as famílias, o lazer, o ócio, a sexualidade, a própria educação são
penetradas por imagens que imperam ramificadas das mídias de massa, guardiãs do
“espetáculo” (DEBORD, 2003) à simulação do real de Baudrillard (1983), do voyeurismo ou
auto exposições em sites de relacionamento25 (BAUMAN, 2013). Ou, ainda, na contramão da
liquidez baumaniana, que pensa as sociedades efêmeras, germina novamente o sólido medo
de estar sendo visto, vigiado nos mínimos detalhes e em todos momentos. Agora não mais sob
a vigilância estruturada no modelo panóptico, idealizado pelo filósofo e jurista Jeremy
Bentham (1785) mas, sim, em todos os lugares.
Acreditando que a pós-modernidade inaugura uma nova maneira de produzir e
relacionar-se com as imagens, o “WWW” incessante e múltiplo em seus meios e canais
abarca enorme população de crianças e jovens, que destinam parte considerável de seu tempo
25
A obra de Baudrillard Simulacros e simulações de 1983 foi fonte de inpiração para os irmãos Wachowski à
criação do filme Matrix. Porém, em entrevistas sobre o filme concedida ao Le Nouvel Observateur, em 2003,
Baudrillard disse tratar-se de uma interpretação equivocada ao tomar os princípios de "simulacro" e "simulação"
a partir das categorias da realidade.
47
48

em frente a um computador/celular/tablet, como a pesquisa de mídia deixa bastante claro. A


proliferação de imagens que passeiam por todos os meios, níveis sociais e levam seu discurso
“[...] à velocidade da luz para disponibilizá-lo em inumeráveis lugares”. A propósito, diz
Berticelli que “[...] a informática retira o texto da escrita e o faz ‘deslizar’ pelas ondas curtas
das telecomunicações à velocidade da luz para disponibilizá-lo em inumeráveis lugares”
(2010, p.26)
Penso que Berticelli (2010), ao considerar o lugar do texto, o lugar da imagem,
também como o massivo uso das tecnologias, como “lugares do aprender”, onde o virtual
pode converter-se no real “formatável ad infinitum”, tanto física quanto simbolicamente,
reforça a busca por uma ontologia visual.
Tais disposições instigam a pensar nas relações que estão implicadas na produção,
disseminação e recepção das imagens. E direciona-me a olhar para as imagens como um
possível lugar onde os indivíduos encontram suas referências. Entendendo-as, por conseguinte
como “[...] lugares do aprender” (BERTICELLI, 2010).
Para Alice Fátima Martins: “[...] todo conjunto de imagens articula um discurso,
apresenta e problematiza questões, constituindo redes de argumentações em favor de
determinados posicionamentos ideológicos, políticos, estéticos, sociais”. (2007, p.116).
O que quero dizer é que por esta ótica entende-se que as representações visuais têm a
ver com a constituição dos desejos, das subjetividades construídas singularmente, porém
alimentadas da pluralidade. À luz de Martins (2007), Hernández (2000; 2007) Mitchell
(2003) e Berticelli (2010), posso imprimir que das representações imagéticas, com as quais
nos defrontamos constantemente, derivam muito dos sentidos e significados dados ao
cotidiano, especialmente por crianças e adolescentes.
No campo educational, à luz do anunciado e a partir de Hernández, nota-se que a
projeção destas construções “naturalizadas”, provenientes de fontes midiáticas, na
organização curricular das escolas perpetuam a construção de enredos seletivos, onde o “nós”
anunciado como legítimo e hegemônico revela-se excludente. E o outro “[…] é apresentado
em posição de subordinação – pela qual há de ser civilizado e, portanto, justificadamente
explorado e despojado de seus saberes” (HERNÁNDEZ, 2007, 13).
As trocas simbólicas subjetivas e as composições identitárias dos jovens educandos
decorrem espelhadas em imagens advindas de fontes diversas que povoam seu imaginário.
Logo, se a empiria se dá mediada por signos, perceber que os signos passeiam sorrateiros
reforçando no âmbito educacional, social e cultural, não poucas vezes preconceitos,
consumismo, competição, exposições sensacionalistas e desnecessárias, bem como
48
49

esteriótipos derivados de leituras apressadas e superficiais, mais do que nunca expõe à luz a
necessidade de pensar uma educação visual, uma mediação do olhar como possibilidade para
a educação em tempos pós-modernos.
Os argumentos interpelados qualificam a produção deste texto e ampliam a
compreensão que as imagens não falam por si, não preexistem a si mesmas, mas habitam o
homem e seu imaginário desde muito antes de este balizar o mundo por meio da linguagem e
códigos escritos, materializando muitos dos signos contribuintes para o processo de
humanização dos homens e mulheres, até chegar ao que conhecemos.
Sendo assim, as narrativas visuais ao serem simplesmente deglutidas criam ou
reforçam estereótipos, desqualificam saberes e sobrepõem-se às culturas locais. Um dos
resultados primeiros que pode ser identificado quando estas “narrativas visuais dominantes”
são lançadas em contextos culturais e assimiladas pelos sujeitos é a imediata construção de
uma visão de “nós” (homem, branco, cristão, ocidental, magro, jovem, etc.) ocupando uma
posição de destaque em relação aos “outros”. Acrescento também que tais “narrativas” geram
uma visão que privilegia alguns saberes, como afirmei anteriormente, em detrimento a outros
saberes tidos como menores (HERNÁNDEZ, 2007).
Em termos gerais, mesmo se considerarmos a indiscutível hegemonia da linguagem
oral, jamais deixaram, as imagens, de ser parte inerente aos seres humanos, compondo parte
da própria linguagem humana, que aqui é entendida para além das formas convencionais, oral
e escrita. Basta ver que diariamente as imagens penetram em todos os espaços e dialogam
com cada um de nós (e a partir de nós), impactando consideravelmente o andamento da vida
cotidiana. E mesmo que estas imagens sejam construtos dotados de forte potencial dialógico,
ainda assim não recebem, em espaços escolares, a devida atenção.
É certo: há rasgos e sobreposições nos decursos das imagens, sobretudo quando
somadas à sua multiplicação, quando vazam por entre as culturas no cenário contemporâneo,
facilitadas pelo acesso às tecnologias diversas, chegando a lugares distintos, abertas a
interpretações variadas.
Reforço que não se trata de um processo estático mas, sim, um movimento contínuo,
decorrente das amarrações entre processos de visibilidade, composições discursivas e
experiências pessoais.
Saunders (1984), ao evidenciar a fervorosa passagem da “cultura verbalmente
orientada” para a “cultura visualmente orientada” desnuda um novo aspecto que fundamenta
as sociedades e culturas na atualidade. A “cultura visualmente orientada” que Robert
Saunders anunciou é, hoje, o principal meio pelo qual crianças e jovens em idade escolar
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chegam aos saberes, que não se pode afirmar ou medir se serão verdadeiramente
significativos às suas vidas, mas ainda assim, são saberes.
Hernández, atento a esta discussão, adverte sobre a urgência de “[...] potencializar a
criação de estratégias de inovação educativa para a educação voltada ao campo visual” (2007,
p.3). No entanto, existe a dificuldade de superação destas “narrativas dominantes” que se
encontram fixadas e naturalizadas no cotidiano das pessoas por uma aparente aporia já que se
torna impossível romper este círculo a partir dos modelos heurísticos de outrora.
Levando na devida conta que o modelo d’antanho, que em muitos casos ainda
continua vigente nas formas de conceber a recepção e agenciamento das imagens, tal
condição "[...] impunha limites estreitos para fazer frente às demandas de um mundo em um
processo de mudança e para abordar os novos objetos e temas de investigação"
(HERNÁNDEZ, 2001, p.6).
Explico: dada a enormidade de artefatos visuais que povoam o cotidiano, chegando
aos mais variados contextos e neles incitando discursos, vê-se, por um lado, a urgência de
promover a desnaturalização do ver, problematizando todas as imagens que nos passam na
atualidade. Porém, vê-se, também, a reafirmação dos discursos dominantes, ao tomar estas
imagens como naturais e, portanto, inquestionáveis ou de difícil suspeição, produzindo-se,
deste modo, visualidades hegemônicas.
Autores como Mirzoeff (2003) sinalizam para o destacado papel da tecnologia na
formatação de um modelo de visualidade, na contemporaneidade, capaz de promover a visão
como um sentido hegemônico. Afirma que dessas representações imagéticas decorrem muitos
dos sentidos e significados dados ao cotidiano.
Como exemplo vale citar uma prática comum e crescente na atualidade. As
intervenções cirúrgicas que mutilam mulheres e homens de todas as idades, atraentes pela
promessa de aproximação da imagem globalmente anunciada pelos meios tecnológicos e
aceita como sendo a forma ideal.

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Fig. 11 - Barbie humana: Valeria Lukyanova


Fonte: http://varelanoticias.com.br/barbie-humana-e-agredida-por-dois-homens-na-
porta-de-casa/

Fig. 12 Você não é um esboço


Fonte: http://www.curionautas.com.br/2015/07/30-anuncios-chocantes-sobre-
problemas.html

A imagem anunciada como sinônimo de beleza passa a ser objeto de desejo, muito
embora comprometa ou altere a organicidade fisiológica do gênero humano. E mesmo que
descarte especificidades do gênero humano, como cor da pele, texturas de cabelos, formações
ósseas etc., estranhamente, ainda serve de referência global. Ao adotar um modelo beleza
dominante a partir de uma imagem ideal, como primeiro prejuízo constata-se a

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desqualificação dos diferentes povos que habitam o planeta, produzindo ou reforçando


preconceitos.
Outro exemplo preocupante, e que segue esta mesma linha, aponta para o crescente
número de mulheres e homens orientais que se sujeitam a cirurgias, sobretudo nos últimos
anos, que prometem a “ocidentalização dos olhos”. Tal prática é incitada por grupos
hegemônicos que almejam impor e confirmar sua cultura, seus caracteres também físicos, seu
nível de verdade, e o fazem por meio das imagens.
Hernández tenciona esta problemática ao afirmar que “[...] a construção da identidade
se articula, não de modo determinista e natural, mas a partir de múltiplos compromissos,
alianças, lealdades e rejeições [...]” (2007, p. 73).

Cada indivíduo tem uma percepção de si que pode ou não ser coincidente com a que outros
indivíduos ou diferentes grupos têm a seu respeito. As discrepâncias entre a própria
subjetividade e a identidade grupal é a causa de preocupação e ansiedade nos jovens. O que
leva com frequência que a identidade do grupo prevaleça sobre a experiência individual. Por
isso, rapazes e moças dedicam muito tempo, muita energia e muito esforço procurando ver e
agir de forma igual ao restante dos membros do grupo (HERNÁNDEZ, 2007, p. 73).

Para Hernández, aqui reside um dos problemas fundamentais com ao qual nos
deparamos na contemporaneidade: a centralidade da imagem na formação das subjetividades
e na qualidade da experiência estética, mediante a grande penetração imagética ofertada pelas
mídias.
Guattari e Rolnik, explicam que as subjetividades são construídas em esferas individuais
ou coletivas por onde “circulam”.

O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma
relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a
recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos
componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização.
(GUATTARI; ROLNIK, 1996, p.33)

A subjetivação pela imagem, deixa notar claramente as relações de poder que se


assentam em tal processo. As imagens neste contexto assemelham-se a “dispositivos”
(AGAMBEN, 2009; FOUCAULT, 2000) que, quando arraigadas às práticas sociais tornam-se
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objetivadoras das formas de ver e produzir olhares, assumindo um importante papel na


formação identitária dos indivíduos, sobretudo das novas gerações, neste sentido produzem
seus sujeitos.
Isto tudo é envolto pelo fato de as experiências visuais que compõem as visualidades,
por sua grande diversidade (tantas quanto o número de espectadores) se manterem resistentes.
Visto que é imperativo considerar as singularidades dos que veem, lembrando que as
“imagens passam por alguém”. Tal especificidade responde pelo fato das experiências visuais
não serem inteiramente elucidáveis ou, ainda, é o que torna um único método de educação
visual, e leituras das imagens impróprio.
É importante frisar que as imagens advindas das narrativas dominantes, naturalizadas
em contextos culturais, avalizam axiomas de beleza, de sucesso financeiro e de felicidade
importados nos moldes de outras realidades.
No entanto, Hernández (2003) alerta que não está firmado “[...] como se pode abordar
os temas relacionados com o visual por meio de estudos empíricos nas escolas”, nas casas ou
nas ruas, entendendo como improvável um modelo genérico de abordagem. Mesmo assim,
não declinam de sua importância, embora as imagens ofereçam resistência à completa
elucidação de seus caminhos. Fugir delas ou ignorá-las, como educadores ou pesquisadores,
não me parece uma saída inteligente. Penso que sentenciar ou restringir o uso das imagens no
tempo presente, além de uma tarefa de execução improvável, também é pôr de lado um
manancial de possibilidades para a construção de saberes que a pós-modernidade demanda.
Para o espanhol também é papel da escola problematizar “[...] os valore e efeitos que
as diferentes visões sobre a realidade projetam nas subjetividades.” O autor cita como
exemplo que ao brincar com bonecas Barbies meninos e meninas tem sua atuação infantil
vinculada ao consumo e à sexualização do olhar sobre os corpos, tal atividade pode iniciar um
processo desestabilizador na medida que as crianças questionam as próprias práticas. Segue
por afirmar que, por outro lado também pode ajudar-los a ver na Cultura Visual e a avaliar
outras possibilidades e posições que não tenham considerado anteriormente (HERNANDEZ,
2007 p. 71)
Em conformidade com o entendimento de imagens que propus ao longo do texto
reconheço a enormidade de deslocamentos possíveis. Martins faz coro ao dizer que “[...] essas
imagens” ao serem “Processadas culturalmente como visualidades e transformadas em
experiências”, desencadeiam “[...] fortes componentes emocionais que expressam sentimentos
de alegria, satisfação, medo, insegurança, vergonha, timidez, tristeza, decepção etc.”
(MARTINS 2009, p.36).
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Nesse processo de compreensão que se desenvolve a partir de imagens, as visualidades


ganham sentido como representações que transitam e emergem de repertórios visuais criando
associações, acionando referências e evocando contextos. Desse modo, podemos dizer que as
representações visuais são moldadas por práticas subjetivas e culturais que as transformam em
visualidades (MARTINS, 2009, p.35).
Em termos gerais o que se pode saber é que ao contatar o mundo visualmente este
reverbera sobre as culturas, sobre subjetividades e identidades. Isto significa que urge
problematizar a centralidade das imagens como mediadoras do cotidiano e,
consequentemente, ponderar sobre a importância do olhar na formação de crianças e dos
jovens como parte relevante do processo formativo humano, também educacional.
Pois, como afirma Fernando Hernández, “[...] a importância do reconhecimento dos
códigos visuais de nossa sociedade dentro da escola, “[...] como fora dela” “[...] é
fundamental para que os alunos não permaneçam “indefesos” diante de todas estas
informações que se apresentam” (2007, p.43).
Como já dei a entender, o modelo de escola que temos, de modo geral, ainda tem suas
bases firmemente fincadas na modernidade. Digo isto por entender que as práticas escolares
privilegiam o código escrito, matemático, bem como a passividade corporal. Existe uma
hegemonia da mente em relação ao corpo. Da linguagem oral em relação as imagens, da
ociosidade em relação ao movimento. O modelo de educação, também de educação visual que
está sedimentado no Brasil coopera para a obediência e impotência do aluno e solidão
profissional da atuação docente.
Neste sentido, penso que tencionar as imagens que circulam e dialogam com os
sujeitos corresponde a exercitar nossa capacidade de agenciamento do mundo visível,
simbólico e cultural e consiste, também, em permitir revisitar as narrativas visuais que nos
chegam normalizadas.
Somente a partir da elevação de nossa capacidade de “agenciamento” do visível e do
invisível, na constante e complexa construção da visualidade por meio da qual aprende-se a
“olhar e a olhar-se” é que se recrutam elementos para a construção de representações
autônomas sobre si, sobre o outro e sobre o mundo, participando, assim, efetivamente, da
construção da realidade.
Assim, as narrativas visuais oferecem a possibilidade de se trabalharem questões da
experiência formadora dos indivíduos que, de maneira geral, são constituídas por imagens ou
referências imagéticas isoladas, dispersas. Essas imagens são, de certa forma, marcas da
trajetória e das vivencias dos indivíduos (MARTINS, 2009, p.36).
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O professor Thomas Mitchell (2003; 2009), que buscou descobrir alternativas


interdisciplinares para debater o enredamento e a diversidade dos aparatos visuais que
integram os processos formativos, culturais e históricos, avalia as práticas visuais cotidianas
como sendo “tão problemáticas” em suas interpretações, alcance e capacidades discursivas
quanto as presentes nas formações da linguagem convencional.
Assim, pode-se dizer que Cultura Visual surge como a disciplina genuinamente pós-
moderna que se volta ao campo visual, atenta às novas configurações dadas pelo ver, que se
expandem e atravessam inumeráveis compartimentos da vida e do próprio sujeito, criando
casulos e firmando morada, deixando eclodir ou gerar alguma outra coisa.
Acredito que a educação escolar, quando embasada pela Cultura Visual, agrega uma
possibilidade à estruturação do currículo do curso de educação em Artes Visuais, enquanto
oferece caminhos para discutir as construções das visualidades também no ensino
sistematizado, bem como nos cursos de formação de professores. A prerrogativa gerada por
este intento, ou movimento, no ensino das Artes Visuais, manifesta-se como um avanço nas
formas de ensino e aprendizagem, ao anunciar uma educação visual transdisciplinar conectada
com a realidade. Vigilante em relação às mudanças recentes, entendendo que a cultura
contemporânea se relaciona cada vez mais ao meio visual.
O ensino das Artes Visuais, na atualidade, não por acaso recebe o acréscimo do termo
“visual”26. O termo indica a importância da visão no cenário atual. Também demonstra que
sua preocupação enquanto área de saber não se concentra unicamente na obra de arte e no
artista. A nomenclatura assumida aponta que o objeto de interesse das Artes Visuais, enquanto
disciplina escolar, situa-se não mais exclusivamente no fazer artístico ou na representação do
belo. A incorporação do termo “visual” como parte do título da disciplina de artes revela
indícios de sua atual preocupação, que se volta para todas as imagens de que a visão se ocupa.
A meu ver, trata-se de uma oportuna resposta à premissa de que o ensino deve estar
conectado com os problemas culturais do seu tempo.
Não penso que se trate de uma tarefa simples incluir a educação visual, seus meandros
sinuosos e singulares, como uma problemática relevante também na educação formal. Nem
poderia constituir em algo simples dada a complexidade dos meios e percursos por onde se

26
Algumas nomenclaturas utilizadas no Brasil aludiam às Belas Artes: Desenho, Arte Aplicadas, Educação
Artística, Artes Plásticas etc. relativas às “escolhas conceituais que definem trajetórias metodológicas”
(MARTINS, 2003, p. 52).

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instituem os saberes. E as visualidades compondo uma parte dos saberes partilha desta
complexidade.
As dificuldades que envolvem e, por vezes, emaranham esse processo de abertura do
ensino se deve às diversas epistemologias que o pensam e cultivam um terreno amplo
atravessamento por incompatibilidades, rivalidades, desconfianças e protecionismos explícitos
e implícitos, fixados como modelos de educação que se sedimentam, muitas vezes, alheios às
transformações sociais ou culturais.
Da mesma forma, entender o ensino das Artes Visuais como disciplina escolar
obrigatória na atualidade não se justifica mais apenas pelo ensino pautado na recepção e
interpretação de imagens artísticas. Exige problematizar, bem como criar estratégias de
mediação às experiências visuais e produção de visualidades.
Para um educador de Artes Visuais ou pesquisador que se debruce sobre o tema do
visual, na pós-modernidade, penso que é necessário “[...] buscar aproximar-se, do ponto de
vista de uma perspectiva crítica, às representações visuais a que se vinculam crianças e
jovens, [...]”, buscando entender como se elaboram suas formas de apropriação e também de
resistência (HERNÁNDEZ, 2007, p. 32).
É preciso, porém, deixar claro que presentificar a arte nas escolas pela Cultura Visual
não significa deixar de trabalhar as imagens e produções artísticas. Entretanto, o campo
teórico adverte que é necessário superar antigas práticas no ensino de arte que impedem uma
compreensão mais crítica e holística da própria arte e da Cultura. Pois, em nosso tempo, nos
encontramos frente às evidências que demonstram que as profundas mudanças nas formas de
comunicação e hábitos dos sujeitos se dão subsidiadas pelo campo visual, que repercutem
fortemente na educação e nas artes e requerem novas iniciativas.
A Cultura Visual apresenta-se, neste sentido, como um caminho que autoriza novas
entradas, pois abre “brechas”, atua em parcerias oferecendo um repertório rico de
possibilidades que permitem o enfrentamento à saturação visual no cotidiano. Oliveira
anuncia a emergência de “uma outra estética, mais permissiva”, dada a amplitude do visual
relacionado ao meio cultural e social. Trata-se de uma abordagem que nasce com a finalidade
de responder aos novos parâmetros da estética, bem como à ciência do belo na atualidade
(2009, 2011).
A intenção da autora ao reportar-se a uma “estética mais permissiva” pode ser
justificada pela percepção de que as imagens operam em meio as culturas em vias que
escapam aos tradicionais métodos utilizados pelos estudiosos da arte.

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Frente ao quadro, Oliveira entende que a subsistência da “[...] cultura visual requer um
campo epistemológico que se aproxime ao modelo rizomático” (2009, p.78). Pois uma das
características que determinam um rizoma é justamente a ausência de um ponto que determine
seu início ou o seu fim. Sendo assim, qualquer ponto de um rizoma pode ser ou estar
conectado a qualquer outro.
Hernández também utiliza a metáfora do rizoma para indicar as diferentes perspectivas
de estudos que caracterizam e compõem a Cultura Visual como uma estrutura
multidisciplinar. O autor entende que construir interpretações sobre as manifestações do
visual, desembocadas no campo social, depende do acesso a um repertório grande de
disciplinas que atuarão em complementaridade. O espanhol acredita que a aproximação e
interpretação das imagens não podem estar confinadas aos estudos apenas da história da arte,
à estética ou à semiótica.
Para Hernández, os Estudos da Cultura Visual apresentam importantes contribuições
para atualidade, pois se nutrem de teorias como: as teorias críticas, os estudos culturais, do
feminismo, a psicanálise, da teoria literária, da fenomenologia, da antropologia e dos estudos
dos meios etc., a fim de averiguar mediante o visual "a dimensão social do olhar" (2006, p.
24.) Pois que atenta para as visualidades como construção humana complexa que se inscreve
entre o mundo subjetivo e o mundo natural.
Dado as infinitas possibilidades de estudo das interações visuais humanas, envolvendo
vastas áreas do conhecimento, o objeto de estudo do ensino das Artes Visuais amparado pela
da Cultura Visual não poderia se restringir as produções estritamente artísticas, ou as
pertencentes ao meio visual já consagrado.
Penso assim, que ao anunciar uma “estética mais permissiva”, Oliveira coloca neste
sentido, uma estética que se abra para a generalidade do meio visual.
A problemática central que define o ensino das Artes Visuais temperado por uma
“estética mais permissiva” incide em explorar o contexto do estudante como parte
imprescindível as composições da visualidade. E isto torna possível associar ao currículo,
além da análise de obras de arte consagradas, as novas formas estéticas, as imagens cotidianas
advindas das tendências digitais e midiáticas, que, por sua vez, exercem forte apelo junto aos
estudantes, podendo também ser ponderadas como objetos de estudo.
A movimentação na qual construo esta dissertação até aqui, mencionando as imagens,
assim, de forma generalizada, se justificada nesta mesma perspectiva: revela a intenção de me
aproximar das imagens sem definir ou diferenciar hierarquicamente imagem artística, popular,
publicitária etc.,vigilante a todas as imagens que passam pelos sujeitos.
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A perspectiva assumida se vale do que expressa Cultura Visual, que propõe a


incorporação de todas as imagens que são produzidas na cultura, do presente e passado como
problematizáveis. De acordo com essa visão, as imagens são tomadas como espaços ativos de
produção de sentidos, identidades, subjetividades, enredos pessoais etc. O que as torna sem
exceções espaços privilegiados de estudo.

Estamos em um mundo saturado por monitores, painéis e telas de diferentes tamanhos, em


que imagens e objetos atraem e repelem olhares, cobram e desviam atenção. Nosso trabalho
também está sendo mediado por esses aparatos imagéticos que exigem cada vez mais tempo e
habilidade aguçada para interpretação e negociação. (TOURINHO, 2011, p.52).

A citação acima deixa claro o desafio de colocar em perspectiva as imagens como


componentes da construção de significados e saberes. A professora Irene Tourinho assinala o
contínuo desafio que é dialogar com o meio visual como parte fundamental da cultura, visto
que as dinâmicas visuais se dão em movimentos extremamente variados, exigindo “tempo e
habilidade aguçada” para mediação.
A fala de Tourinho assinala sobre as transformações nas “[...] formas de aprender e
ensinar” sobre arte e imagens, como uma exigência da educação na atualidade. Acrescenta
que tanto para os educadores quanto para os alunos o enfrentamento do campo visual decorre
por “constantes e múltiplas re-descrições e interpretações”.
Irene Tourinho reconhece que o trabalho dos professores também está sendo invadido
pelo que chamou de “aparatos imagéticos”, e que a capacidade de interpretação e negociação
frente aos meios visuais é uma exigência cada vez maior.
Já que pressupõe, ainda, compreender que nem todos temos as mesmas respostas ou
vemos as mesmas coisas quando olhamos uma imagem. Portanto, para a autora, “[...] a
escola necessita refletir sobre como vemos e porque vemos de determinadas maneiras”.
Problematizar as imagens no contexto escolar “[...] é colocar em cena e fazer circular a
diversidade de sentidos e valores que elas geram”. (TOURINHO, 2011)
Em conformidade ao exposto infiro a necessidade de a educação contemporânea
pensar o ensino das Artes Visuais de modo mais abrangente, para além das obras de arte e
seus artistas, mantendo ressonância com a visualidade de nossa época. Tal necessidade é o
que explica a entrada da Cultura Visual em cena também no ensino das Artes Visuais, quando
põe foco na visualidade. Ao enfatizar a relação da imagem como parte indispensável do

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cotidiano, os Estudos da Cultura Visual aplicados no ensino das Artes Visuais ampliam os
limites culturais e educativos.
Uma passagem encontrada em Oliveira assevera que a “Cultura Visual não se alimenta
somente à interpretação das imagens, mas também da descrição do campo social da mirada”
(2009, p.78). Sendo assim, a Cultura Visual questiona as rígidas fronteiras do ensino das
Artes Visuais quando resumidas ao fazer artístico. É evidente que a Cultura Visual não tem
como objetivo alijar da sua discussão as práticas artísticas como parte relevante do ensino e
aprendizagem das Artes Visuais. Elas também compõem objeto de análise. Mas está claro que
a partir da Cultura Visual o importante já não é buscar aproximar apenas do valor estético,
mas examinar o papel da imagem na vida da cultura. Dito com outras palavras, o valor de uma
imagem procede da interpretação de seu significado.
A Cultura Visual põe em evidência, assim, a “[...] relevância que as representações
visuais e as práticas culturais têm dado ao ‘olhar’ em termos das construções de sentido e das
subjetividades no mundo contemporâneo” (HERNÁNDEZ, 2007, p. 27). Aliás, ao examinar o
caráter cambiante dos objetos artísticos, analisando-os como artefatos culturais, transparece a
importância da compreensão e também da interpretação crítica de todas as imagens que são
produzidas. Uma imagem televisiva passa a ter relevância como objeto de estudo tanto quanto
uma obra erudita, apenas de modo diferente e próprio.
Insisto: as imagens compõem os cotidianos, passando pelos sujeitos. Estão presentes
na construção das culturas. No entanto, tem-se feito isto, em geral, “[...] sem que seja dado o
devido valor formativo e informativo a elas" (FRANZ, 2003, p.1). A este respeito, penso que
estudar os repertórios visuais nos quais as crianças e adolescentes se educam é uma maneira
para compreender as transformações sociais e culturais que repercutem na educação.
Na era da comunicação e da informação vemos a proliferação de variadas técnicas de
divulgação de imagens. A escola e o ensino de arte precisam ficar atentos ao impacto
provocado por jogos de videogames, televisão e fotografias de revistas e jornais. São cenas
que “[...] modificam a maneira de pensar e de atuar no mundo” (FRANZ, 2003, p.1).
Terezinha Sueli Franz, assim como Oliveira reconhece a necessidade de diminuição
das fronteiras entre a arte e a cultura popular e, sobremaneira, do ensino das Artes Visuais e o
meio visual.
Na citação, a autora chama atenção para os impactos que as imagens tecnológicas
oferecem ao passarem pelos sujeitos. Há evidencias que apontam que grande parte das
referências de crianças e jovens e até mesmo adultos advém dos meios de comunicação e
informação, cada vez mais popularizados. O fato é que as mídias visuais como a televisão,
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revistas, internet e outros meios respondem por grande parte das imagens que preenchem o
cotidiano.
Consequentemente, grande parte do repertório imagético atual vincula-se aos meios de
comunicação globalizados que engendram profundas transformações nas subjetividades, bem
como nas culturas. Sendo assim, o papel da Cultura Visual associada ao ensino das Artes
Visuais como possibilidade para a educação pós-moderna é articular e problematizar a
recepção das imagens.
No capítulo anterior, trouxe a questão proposta por Mitchell (2003) direcionada aos
incrédulos da Cultura Visual como campo teórico. A pergunta que inquire sobre “[...] o
porquê uma coisa desnecessária apareceu?”, formulada por Mitchell, ainda se presta para
pensar sobre o ensino das Artes Visuais, já que interpela sobre as disciplinas que estão por aí
e se estas dão conta da visualidade de nossa época.
Reconhecer as transformações que singularizam o cenário contemporâneo na produção
e usos das imagens assoalha a re/visão das instâncias educacionais e do próprio ensino das
Artes Visuais como mediadores das práticas do ver.
Portanto, refletir sobre estas questões se coloca como um desafio na construção de
propostas educativas que tenham relação com a realidade, obrigando igualmente uma revisão
dos conceitos e dos conteúdos trabalhados em Artes Visuais. Na pós-modernidade a
miscigenação das culturas, a cultura popular atuante nas construções das identidades, as novas
propostas de arte muito mais conectadas às realidades e aos cotidianos reorientam os estudos
acerca do campo visual e também estimulam a repensar o formato das disciplinas escolares.
Vale lembrar que nas últimas décadas a disciplina de arte vem passando por variadas
propostas pedagógicas e enfoques de métodos de trabalho, bem como tem se fundamentado
em uma série de teorias. Para Hernández, apesar da sequência de revisões por que passou o
ensino da arte no decorrer do século XX, e muito embora cada uma delas conserve alguma
singularidade, todas as revisões e concepções anteriores segundo, o autor, eram dirigidas aos
mesmos objetos (2006, p.8). No entanto, Fernando Hernández reconhece que com a Cultura
Visual tem-se uma nova proposta. Por esta concepção o campo visual é composto por diversas
"[...] formas culturais vinculadas ao olhar denominadas como práticas de visualidade [...]" e
por esta perspectiva, pela primeira vez, altera-se o objeto de estudo do ensino da arte e abre-se
espaço para diversos "artefatos visuais" que estão além dos considerados como arte (2006. p.
5).
Como professora de Artes Visuais, vislumbro que a aproximação do ensino com a
Cultura Visual contribui muito para o enfrentamento da imponência do meio visual como
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parte dos processos de formação educacional identitária e subjetiva. Penso também que para a
educação sistematizada é imprescindível dar atenção ao vasto repertório visual que passa
pelos sujeitos, constrói suas mensagens e delibera sobre saberes.
A propósito, é válido reforçar que o entendimento sobre a importância das imagens na
formação dos sujeitos no cotidiano não exige abdicar das obras de arte, dos museus etc. Aliás,
como representações visuais, também estão incluídas como foco de interesse, mas sem o peso
de outrora. O que deixa de existir é austera divisão de obra de arte e artefatos populares,
lentamente se diluem as rígidas margens que definem algumas imagens como legítimas, e, por
isso configuram objeto de estudo das Artes e outras, no entanto, são tomadas como vulgares
ou fúteis, ou seja, inadequadas para serem levadas às salas de aula.
Quero reforçar que a aproximação de uma imagem artística, midiática ou popular na
atualidade, pela perspectiva da Cultura Visual, também admite apropriações formais da
imagem, entretanto, trabalhar na perspectiva da Cultura Visual exige muito mais do que
concentrar os esforços no objeto artístico, na aproximação da obra e seu autor. A Cultura
Visual como campo teórico, demanda, além disso, trazer o sujeito que vê também como parte
significante da construção visual, o que determina que todo seu repertório visual se torne
objeto de interesse.
Penso, assim, que a contribuição dos estudos da Cultura Visual para a educação,
sobretudo para o ensino das Artes Visuais, também se efetiva no momento em que questiona
as práticas de ensino já consolidadas e sua relevância na atualidade. Se considerarmos a visão
fundada em de Mitchell (2003), “tão problemática”, ou a partir de Oliveira (2009) “tão
fundamental e tão generalizada”, como a linguagem tradicional, estamos diante de um vasto
leque de conhecimentos que necessita ser reconhecido e enfrentado como parte dos saberes
humanos.
O conhecimento enquanto necessidade humana parece ser um campo inesgotável de
possibilidades. Por isso requer repetidas vezes que se assumam as incertezas. Também
implica, necessariamente, quebrar algumas barreiras disciplinares para, então, colocar outras
mais permeáveis em seu lugar (MIRZOEFF, 2003, p. 4). A Cultura Visual, quando subsumida
pela educação, quebra algumas dessas barreiras de que fala Mirzoeff. Aproximar-se da obra
do autor remete para o fim da hierarquização entre as formas de arte e as imagens cotidianas,
bem como a revisão dos conceitos que definem as imagens que podem e as que não devem ser
trabalhadas na escola etc.

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Contudo, tal leitura não configura uma medida que impetre impedimento de realizar
uma leitura de uma imagem estritamente artística, por exemplo, da principal obra de Leonardo
da Vinci, nem tão pouco tentar desmistificar o sorriso de Mona Lisa.
Marilda Oliveira de Oliveira explica, a respeito do ensino das artes, que por muitos
anos primou-se “[...] pelo processo de produção da obra/imagem e pela autoria”. Que durante
vários anos, do ponto de vista dos educadores “[...] interessava era estudar o objeto
(imagem/obra) e seu autor”. Hoje, diz ela, com a entrada em cena da Cultura Visual, os
interesses são outros. O ensino das artes pensado pela Cultura Visual atenta para “[...] os
intervalos, os interstícios, e o que está entre os discursos que se produzem ou produziram em
torno do objeto, os dispositivos que esta obra/imagem pode lançar, as formas de subjetividade
que esta obra/imagem gera” (OLIVEIRA, 2009, p. 77).
Nascimento (2009, p.70) também assevera que por muito tempo o ensino “[...]
privilegiou saberes pouco significativos para os estudantes [...]”, pouco conectado às suas
realidades. E que a Cultura Visual atua como uma “provocação educacional” que surge pela
necessidade de “[...] aproximar a escola da vida e a vida da escola”.
A partir da análise da professora Oliveira e Nascimento se nota um deslocamento do
eixo que conduz o ensino das Artes Visuais. Que embora se dê num movimento que se pode
dizer sutil, já torna possível evidenciar questionamentos que outrora indagavam sobre a obra e
o artista serem reestruturados, guardando lugar também ao sujeito que vê. Assim, a pergunta
que outrora interrogava sistematicamente sobre o que Da Vinci quis dizer ao representar o
sorriso de Mona Lisa, (para manter o exemplo dado) tem seu eixo reformulado, e a questão
que interessa perguntar hoje passa a ser: “O que esta imagem/obra diz de mim?” (OLIVEIRA,
2009, p. 77).
Um belo exemplo da viabilidade prática de tudo o que aqui se propõe, pode ser
encontrado em Francieli Regina Garlet, vinculada à Universidade Federal de Santa Maria.
Num texto breve, fruto de uma pesquisa em estado inicial intitulado A construção da
subjetividade docente a partir de imagens e as imagens como enunciados (2012), testemunha
o seguinte:

Entendendo a subjetividade docente como um terreno movediço, cambiante, que ora adere a
regimes de verdade, ora escapa por suas frestas, nesta investigação, propus a um grupo de
cinco professoras de arte de escolas públicas de Santa Maria – RS, a construção de narrativas
a partir de imagens do seu acervo pessoal, de forma que fosse possível conhecer o modo com

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que tais visualidades tocam as suas subjetividades e que enunciados elas fazem emergir na
forma como configuram e reconfiguram as suas maneiras de ser professor” (p. 1).

Não é o caso, aqui, de descrever procedimentos, processos e resultados da pesquisa de


Garlet (2012). O que quero trazer à luz, aqui, é o exemplo de uma proposta metodológica
calcada exatamente numa premissa desta dissertação, ou seja: é tempo de assumir um
conceito mais aberto de artefato visual, para além das obras de arte convencionais. E
reafirmar que os artefatos visuais são, sim, lugares e meio pelos quais somos produzidos
enquanto subjetividades ou, ao menos, que as imagens, como entende Jorge Larrosa (1984, p.
83), fazem parte da experiência de si, daqueles que com elas interagem. Diz Larrosa, a
propósito: uma experiência “[...] não depende nem do objeto nem do sujeito [...]” mas, sim, da
relação entre eles que produz ambos. Observe-se que a proposta de Garlet se concentra em
artefatos do cotidiano, quais sejam as “do acervo individual” para desenvolver sua pesquisa.27
No entanto nos argumentos de Joly (1994) está posto que muitos dos recursos que
utilizamos para interpretar ou nos aproximar de uma imagem advêm de uma “tirania
herdada”. E se justifica no estudo de textos antigos em que se buscava explanar as “intenções
do autor” ou, conforme a expressão utilizada pela hermenêutica clássica de Schleiermacher e
outros clássicos, a tentativa de penetrar na mens auctoris (em latim significa a mente do
autor).
A autora cita o exemplo de como aconteciam as leituras de textos tradicionais que,
segundo ela, “[...] impediu gerações e gerações de crianças e de adolescentes de refletirem por
si próprios acerca dos textos que liam, incapazes que eram de encontrar as intenções do autor”
(1994, p.49). Segue afirmando que ao pensarmos sobre as imagens, “Estudar as circunstâncias
históricas da criação de uma obra para melhor a compreender pode ser necessário, mas nada
tem a ver com a descoberta das intenções do autor” (JOLY, 1994, p.49).
A partir de Oliveira e Joly posso afirmar que pensar o ensino das Artes Visuais é
colocar o sujeito como parte importante do processo de visualização.
Certamente a posição assumida não significa abandono de determinadas matérias
interpretativas e retóricas das imagens, da história da arte e o do fazer artístico como parte
importante do ensino da disciplina. Contudo, (e principalmente) não se resume isto. “O que
queremos dizer com isto é que, para analisar uma mensagem, é preciso começar por nos

27
Para um melhor aprofundamento da questão da experiência na produção da subjetividade é, sem dúvida, bem
proveitosa a leitura da obra organizada por Tomaz Tadeu da Silva intitulada O sujeito da educação (1994), na
qual se encontra o texto de Jorge Larrosa aqui mencionado.
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colocarmos deliberadamente do lado em que estamos, a saber, o lado da recepção” (JOLY,


1994, p.49).
Analisar uma imagem do lugar do receptor, a despeito das leituras hegemônicas,
oportuniza ressignificar o que se vê a partir de recursos interpretativos vinculados às
singularidades dos sujeitos e contextos, construindo então efetivamente sentidos. Para
Oliveira e Paz (2012) “Esta perspectiva teórica nos proporciona a construção de uma narrativa
na qual somos convidados a produzir, inventar”(p. 4).
Deste modo, anunciar a (re)definição do objeto de estudo das Artes, no qual a história
da arte se insere num formato mais aberto e dinâmico, vinculando o universo visual com o
contexto da cultura e da sociedade à qual as imagens pertencem significa dizer que a educação
arregimentada pela Cultura Visual possibilita a dissolução dos limites e fronteiras que cercam
a muito o ensino das Artes Visuais.
Para Hernández, "[...] a cultura visual como conceito e como campo de estudos
oferece uma série de marcos teóricos e metodológicos para repensar o papel das
representações visuais do presente e do passado e as posições visualizadoras dos sujeitos"
(2006, p.7).
A partir da aproximação dos estudos da Cultura Visual é imprescindível, cada vez
mais, “[...] abandonar a idéia de uma metaimagem ou visualidade que poderia controlar a
nossa compreensão de imagens, para então explorar formas em que as imagens estão tentando
representar a si mesmo” (2009, p. 30). Por esta angulação, do lugar da recepção, analisar um
artefato visual, artístico ou não, consideram-se as interseções que singularizam cada
experiência visual, como etnias, geração, classe social, gênero, nacionalidade etc., como
pontos relevantes das construções das visualidades que são demasiadamente complexas para
serem submetidas a narrativas hegemônicas.
A aproximação da Cultura Visual com uma diretriz do ensino das Artes Visuais
propõe um novo redimensionamento da dimensão visual, para além da obra de arte ou de seu
autor, também oferece uma abertura de seus objetos e temas. Sua maior oferta, a meu ver, é a
possibilidade de alargamento do campo educacional.
A professora Oliveira enfatiza ainda que a emergência deste campo de estudos não
acontece casualmente. Que não se trata de uma invenção “fantástica”, mas que brota como
reflexo das mudanças mundiais que vêm acontecendo nos últimos trinta anos, e que também
nos acometem (2009).
O modelo de visualidade que o sujeito pós-moderno consagra, também no Brasil, cada
vez mais, contesta os padrões da estética que concebia a arte como uma prática solitária,
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independente e autorreferente, sob o estigma de que ela estava restrita a poucos gênios.
Abrem-se, assim, precedentes para refletir sobre o campo visual de modo menos restritivo e
elitista.
O que quero dizer é que as novas tecnologias de informação e comunicação alteram a
experiência humana do campo visual, bem como das atividades cognitivas, produzindo novas
formas de pensamento. A estética moderna que por muito tempo fundamentou o ensino da
arte com base num modelo universal de elementos e princípios, tomados como únicos, não dá
conta de mediar a infinidade de organizações visuais possíveis na pós-modernidade. A
Cultura Visual vem, neste sentido, preencher algumas lacunas, trabalha com a ideia de
democratização da imagem.
A este aspecto se soma a descentralização do papel da obra de arte e do artista.
Ampliam-se e diversificam-se as matérias e ações que se voltam à formação estética e visual
no cotidiano, levando a entender que a visualidade se caracteriza pela complexidade e
contingência, e as imagens constituem importantes dispositivos na construção dos sujeitos e
também dos saberes.

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