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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

PRISCILLA BARROS DA SILVA

PERSEVERAR E ESPERANÇAR: SUBJETIVIDADES DAS DOCENTES


NO PERÍODO DA PANDEMIA

GOIÂNIA
2021
  Perseverar na própria existência é mais que se conservar vivo, deixa claro Espinosa. É
expansão do corpo e da mente na busca da liberdade, da felicidade, que são necessidades tão
fundamentais à existência humana como o são os alimentos e os abrigos, e a reprodução
biológica. Daí sua conclusão de que a luta pela emancipação é uma dimensão irreprimível do
homem no seu processo de conservar-se, o que pressupõe passar da condição de escravo ao
modo livre, da heteronomia à autonomia. (Bader Sawaia)

“… É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem
gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é
espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é
não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro
modo…”. (Paulo Freire)

Com a constante ameaça contra a vida física, causada pela pandemia


do Novo Coronavírus, há concomitantemente a luta pela sobrevivência mental,
na busca de maneiras de enfrentar as condições sociais impactadas pelo novo
cenário. Considerando o ser humano em todos os seus aspectos,
biopsicossocial, sabe-se que uma dimensão não exclui a outra, mas se
relacionam o tempo todo. Portanto, conhecer o contexto social, histórico,
político e cultural do período é fundamental para que percebamos as
implicações diretas nas subjetividades.
É, portanto, o que se pretende investigar nesse artigo. Como a
materialidade expressa pela pandemia e as implicações no mundo do trabalho
afetaram as subjetividades, principalmente das professoras que necessitaram
realizar seus trabalhos via ensino remoto e conciliar as demandas domésticas
e muitas vezes a maternidade.
Está dividido em três capítulos, sendo o primeiro tratando das condições
materiais históricas e as contribuições para a formação das subjetividades
brasileiras, uma breve rememoração dos aspectos da colonização e o impacto
disso ainda hoje. No segundo será exposto o período atual de pandemia e
como as individualidades foram afetadas, principalmente no mundo do trabalho
em um momento político e econômico de instabilidades. O terceiro será uma
reflexão acerca do ensino remoto emergencial e como afetou e tem afetado as
rotinas das professoras com sobrecargas, acarretando adoecimentos. Por fim,
nas considerações finais, buscará caminhos para perseverar e esperançar
mesmo em meio à crise global.
É de grande importância ao estudar a educação escolar, considerar os
sujeitos responsáveis por ela, que estão com suas vidas diretamente
implicadas nesse processo. E em um momento que o mundo atravessa de
crise não se pode negar as implicações no cotidiano das professoras.

MATERIALIDADES E SUBJETIVIDADES NO BRASIL

Existir aqui e agora remonta construções materiais e imateriais


seculares de existência. Pensar em como as condições materiais no Brasil
constituem as subjetividades requer uma consciência da formação do país e
suas implicâncias nas individualidades e coletividades, já que não há existência
sem memória individual ou coletiva. O ponto que nos encontramos hoje não foi
construído ao acaso, mas a partir de interferências de homens e mulheres na
sociedade. A psicologia sócio-cultural nos situa como constituídos pelas e nas
relações sociais, com expressa Dias ao abordar o pensamento Vygotskiano:

O homem é produto histórico, pertencente a uma determinada


sociedade e fase evolutiva da mesma. O mais fascinante é a ideia de
que essa condição não faz com que o homem apenas se manifeste
como resultado direto do meio externo, como uma transposição do
social para o individual. O indivíduo reflete a historicidade social, as
relações sociais, ideologias, porém mantém a sua singularidade,
através dos sentidos subjetivos e das vivências que estabelece com o
meio, configurando o que Vygotski chama de situação social de
desenvolvimento. (Dias, 2019, p. 101)

Dessa forma, compreender as subjetividades criadas no Brasil,


necessita relembrar que se trata de um país que foi colonizado de forma
violenta por meio da invasão das terras com a narrativa de descoberta, o
genocídio e epistemicídio dos povos originários, escravização e
desumanização dos povos africanos, o catolicismo como responsável pelo
apagamento de culturas, religiões e histórias. A construção da ideia de
miscigenação na tentativa de camuflar as violências contra mulheres por meio
de estupros de índias e negras, o desamparo aos povos escravizados após a
abolição da escravatura, o patriarcado e o machismo como forma de
dominação de mulheres, além de uma economia de dependência que se
baseia na exploração interna para servir ao externo. Formação social baseada,
portanto, pelas desigualdades.
Desigualdades essas que se renovam e assumem nova roupagem, e se
mantêm hoje com o avanço de grileiros em terras indígenas, assassinato e
encarceramento de corpos negros e pobres, intolerância religiosa
principalmente contra religiões de matriz africana, números alarmantes de
feminicídio, práticas machistas e misóginas inclusive proferidas por
representantes políticos, desigualdades sociais crescentes, retorno ao mapa da
fome com a insegurança alimentar de milhares de pessoas, e o avanço
desenfreado do capitalismo e neoliberalismo. “Assim, sem compreendermos
que a relação entre o hoje e o ontem é eminentemente dialética e de
permanências, não conseguiremos operar rupturas significativas no presente.”
(Cruz, Minchoni, Matsumoto e Andrade, 2017, p. 241).
Como é, então, ser sujeito nesse tempo e espaço brasileiro presente?
Como a realidade do ontem e do hoje forma as individualidades?
As subjetividades, nesse contexto, são afetadas pelas condições de
existência histórica e materialmente construídas. São frutos de uma “trama
psíquica que se constrói a partir do que é fornecido socialmente, que, por sua
vez, é subjetivamente assimilada.” (Lima e Lima, p. 2).
Nesse sentido, e somando aos aspectos históricos da formação
brasileira, cabe a reflexão de como o modo de produção capitalista e as
políticas econômicas neoliberais agravam as condições de vida objetiva e
subjetiva, através de violências que aparecem de forma implícita sobre corpos
e mentes de trabalhadores e trabalhadoras. Pessoas tratadas como
mercadorias, coisas, e, portanto, descartáveis, com a obsolescência
programada, em um sistema que suga as energias vitais através do trabalho
escravizante, adoecedor e alienante. O sujeito neoliberal ideologicamente
formado para pensar a partir de uma perspectiva egoísta, competitiva,
interesseira, com a liberdade reduzida a livre-arbítrio, e dessa forma
culpabilizam os indivíduos pelos fracassos, já que o empreendedorismo e a
meritocracia aparecem como soluções mágicas para a mudança social,
reproduzindo a lógica quantificada do capital. Sobre a interferência do
neoliberalismo no mundo interno dos sujeitos, Pavón-Cuellan diz que,
Dardot y Laval (2009) han mostrado cómo este sujeto, por más
desvinculado que esté, no es libre más que em apariencia, debiendo
someterse, constantemente a uma vigilancia y evaluación, de su
desempeño y de su eficacia. El control extremo, empero, no impide que
se viva cada vez más em condiciones de crisis crónica, inestabilidad,
incertidumbre y precariedad, que favorecen La proliferación ya sea de
formas tan perversas de subjetividad como las descritas por Layton
(2010) (PAVÓN-CUELLAN, 2017, p. 591)

E assim, o capital que se isenta da responsabilidade trabalhista,


propiciando espaço para condições cada vez mais precárias que refletem na
saúde física e mental dos trabalhadores e trabalhadoras, cada vez mais
adoecidos, insatisfeitos, angustiados, depressivos e ansiosos. O que se vê,
portanto, é a constituição de uma subjetividade quantificada, da produtividade
extrema, que não permite que se pare até mesmo em meio a uma crise
sanitária.

SUBJETIVIDADES EM TEMPOS DE PANDEMIA

A materialidade, ou seja, tudo que ocorre fora do indivíduo


constituirá a subjetividade. É, portanto, por meio das relações sociais
com outros indivíduos, instituições, discursos, cultura e história que ela
se formará. As condições materiais são um fator importante, mas cada
indivíduo responderá de acordo com suas vivências, fazendo com que as
experiências vividas formem a singularidade. Sujeitos que são
submetidos à mesma realidade respondem de maneiras diversas, pois
todo ser humano é um ser singular e social, constituído de uma
dimensão subjetiva, simbólica, interna, e outra objetiva, concreta, sócio-
histórica (Dias, 2019 p.18). Assim, há infinitas histórias particulares
dentro da História global.
Com a chegada da pandemia, ficaram em evidência problemas
anteriores de desigualdades, opressões, falta de investimentos em
serviços públicos de saúde, educação, transporte, entre outros, além de
políticas que desrespeitam a diversidade e a vida. O avanço neoliberal
sobre as vidas explicitou a negação dos direitos básicos dos seres
humanos de condições seguras de existir. O sujeito-mercadoria, tratado
como números, os CPFs, não contaram com políticas capazes de deter
mortes, ou de no mínimo respeitar vidas. A ideia de não poder parar para
salvar a economia, ou os CNPJs, fez com que milhares de pessoas
morressem no Brasil. Uma lógica que continua matando pobres e negros,
antes nos navios negreiros, hoje nos ônibus superlotados. Expresso pela
crueldade de um sistema desigual, capaz de atingir corpos, mentes,
razões e emoções, como expressa Sawaia:
A desigualdade social se caracteriza por ameaça permanente à
existência. Ela cerceia a experiência, a mobilidade, a vontade e impõe
diferentes formas de humilhação. Essa depauperação permanente
produz  intenso sofrimento, uma tristeza que se cristaliza em um estado
de paixão crônico na vida cotidiana, que se reproduz no corpo
memorioso de geração a geração. Bloqueia o poder do corpo de afetar
e ser afetado, rompendo os nexos entre mente e corpo, entre as
funções psicológicas superiores e a sociedade.(SAWAIA, 2009, p. 369)

Diante da indissociabilidade entre corpo e mente, manter a saúde física


e psicológica envolve tanto aspectos para a manutenção do aparato biológico,
quanto das emoções propiciadas nas e pelas relações sociais, como Sawaia
assinala que “o homem tem necessidade, sim, de pão, mas igualmente de bons
encontros potencializadores de liberdade, felicidade, criação e fruição do belo.”
(SAWAYA, 2009, p.370). Encontros que com o avanço da pandemia e a
necessidade do isolamento social, precisaram de novas reformulações. As
conexões presenciais dando lugar aos vínculos virtuais.

Percebe-se também, no que se refere às atividades laborais, de um lado


pessoas que tiveram suspensas suas atividades em formato presencial e
implantação do home Office, e outras que continuaram o trabalho presencial,
apesar do avanço do vírus. Realidades que necessitaram de adaptação, tanto
pelo espaço de trabalho, que antes acontecia fora de casa invadir o espaço
doméstico e todas as suas demandas particulares. Quanto circular pela cidade
mesmo com o risco de contágio da COVID-19 para manter seus empregos e
condições básicas de vida. Uma mistura de dor e sofrimento, que Heller, citada
por Sawaia conceitua como, “dor é próprio da vida humana, um aspecto
inevitável. É algo que emana do indivíduo, das afecções do seu corpo nos
encontros com outros corpos e diz respeito à capacidade de sentir...” e “o
sofrimento é a dor mediada pelas injustiças sociais. É o sofrimento de estar
submetida à fome e à opressão, e pode não ser sentido como dor por todos”
(SAWAIA, 1999, p. 102). E, dessa forma, o período da pandemia foi e tem sido
o momento de encontrar formas de lidar com a proximidade da morte e a
busca por condições de viver, à procura de capacidades interiores de
superar. Busca de conservação dupla, da saúde material e subjetiva,
como diria Espinosa:
O homem é um grau de potência, uma força interior para se conservar,
perseverar na própria existência, um esforço de resistência, que Espinosa
chama de conatus e, também, de apetite e de desejo (cupiditas) quando o
apetite é consciente. O desejo é a própria essência do homem, é a força que
nos leva ao encontro com algo que sentimos que compõe com a potência de
nosso corpo e alma para se conservar (SAWAIA, 2009, p. 366).

No caso do período da pandemia, o desejo de se conservar ou


perseverar diante da vida, esbarra no que Bader Sawaia chama de sofrimento
ético-político, onde as questões que se colocam perante a pandemia são: ou se
morre de fome ou se corre o risco de morrer pelo vírus. E os sujeitos percebem
suas vidas sendo desrespeitadas, com indiferença, podendo a qualquer
momento serem substituídas por outras, afinal há um exército de reserva
faminto e necessitado de algum lugar no mercado. Para Sawaia,

portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das


questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente
a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior,
subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. Ele revela a
tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade, da negação
imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da
produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar
no espaço público e de expressar desejo e afeto. (Sawaia,1999, p
105)

Encontra-se, também, evidente naquilo que Costa e Mendes, ao retomar


o pensamento de Darcy Ribeiro diz sobre a ninguendade, que “essa produção
de ninguéns se dá pelo movimento contrário e complementar de se produzir
‘alguéns’, ou melhor, os alguéns se produzem fabricando os ninguéns.” (p. 102)
Expresso, portanto, nesse movimento, a velha e sempre renovada exploração
da base da pirâmide social para manter o privilégio de poucos que se mantém
no topo. Afinal, o que são vidas diante da economia? E a cota de sacrifício pelo
país?

O que se vê, então, é mais uma vez a repetição histórica de


desigualdades sociais na produção de riquezas e bens para alguns sobre
sangue, morte e dor de outros. Mas isso não acontecerá sem que haja
consequências tanto no plano objetivo quanto subjetivo das coletividades e
individualidades. “E como mente e corpo são uma mesma e única coisa, as
afecções do corpo são afecções da alma, sem hierarquia ou relação causal
entre eles.” (SAWAIA, 2009, p. 367). Dessa forma, o adoecimento causado
pelo vírus terá reverberações em todo o seio social e caberá às ciências, artes,
filosofias e educação o lugar para reflexão e atuação.

PROFESSORAS NA PANDEMIA E A LÓGICA DA INCLUSÃO


PERVERSA

Ao se pensar a inserção da mulher no mercado de trabalho, estar


incluída nesse universo que por muito tempo foi predominantemente dominado
por homens, requer pensar o lugar desses sujeitos nesse contexto. Por séculos
as mulheres estiveram em um lugar subalterno, deviam obediência ao pai e
depois ao marido, sem direito à fala, a se posicionar ou atuar socialmente.
Homens incluídos, mulheres excluídas. Após várias lutas para emancipação da
causa feminina e direito à participação na vida pública, elas puderam
finalmente conquistar o direito de trabalhar fora de casa.
O problema é que não aconteceu de forma justa e igualitária. Ao saírem
para o trabalho e a possibilidade de liberdade e contribuição financeira para a
economia doméstica, acarretou sobrecarga de trabalho muito superior à
masculina no que se refere ao cuidado com a casa e filhos, visto culturalmente
como serviço para mulheres. Portanto, incluir, mas sem dar condições para que
se efetive com equidade apenas reforça o lugar ainda desigual da mulher na
divisão do trabalho.
O trabalho doméstico e, portanto, não remunerado e ainda inferiorizado
e invisivibilizado, como diz Mirla Cisne, “O ‘trabalho desvalorizado’ e o “trabalho
considerado feminino’ são entendidos, ainda, como tudo o que se encontra
entre a extração de trabalho mediante salário e a extração de trabalho
gratuitos.” (Mirla Cisne, 2014 p.144) representa a realidade de milhares de
mulheres e grande parte de suas horas de vida gastas sem auxílio ou algum
tipo de retorno. Angela Davis ressalta essa ideia ao dizer que,
os incontáveis afazeres que, juntos, são conhecidos como “tarefas
domésticas” – cozinhar, lavar a louça, lavar a roupa, arrumar a cama,
varrer o chão, ir às compras, etc. -, ao que tudo indica, consomem,
em média, de 3 mil a 4 mil horas do ano de uma dona de casa. Por
mais impressionante que essa estatística seja, ela não é sequer uma
estimativa da atenção constante e impossível de ser quantificada que
as mães precisam dar às suas crianças. Assim como as obrigações
maternas de uma mulher são aceitas como naturais, seu infinito
esforço como dona de casa raramente é reconhecido no interior da
família. As tarefas domésticas são, afinal de contas, praticamente
invisíveis: “Ninguém as percebe, exceto quando não são feitas –
notamos a cama desfeita, não o chão esfregado e lustrado”.
Invisíveis, repetitivas, exaustivas, improdutivas e nada criativas –
esses são os adjetivos que melhor capturam a natureza das tarefas
domésticas. (Davis, 2016, p. 225)
Esse entendimento do que é relacionado aos cuidados da casa ser
vinculado à uma questão de gênero, ainda faz com que homens, mesmo
participando ativamente se vejam ainda como colaboradores e não
responsáveis também por essas tarefas. E o que se vê são mulheres
cumprindo jornadas duplas e até triplas, com esgotamento físico e mental,
nesse trabalho que nunca se esgota.
No trabalho docente, principalmente na educação infantil e primeira fase
da educação básica é composto predominantemente por trabalhadoras, o que
precisa ser levado em conta nos estudos, políticas e condições de trabalho.
Portando,
qualquer medida que se proponha a melhorar a qualidade da educação deve
considerar as questões de gênero. Melhores condições de vida e trabalho,
inclusive superando-se socialmente a cultura de atribuir às mulheres a
responsabilidade pelo cuidado da casa e dos filhos, terão como retorno
mulheres mais saudáveis, professoras melhor preparadas, aulas mais adequadas
às necessidades das crianças, portanto melhor qualidade de ensino. (Jacomini,
M. A. da Cruz, R. E., & de Castro, E. C. 2020, p. 8)

Em relação às professoras, com a chegada da pandemia e a utilização


do ensino remoto, tiveram suas rotinas transformadas e o período que antes
era destinado para estarem fora de casa em seus empregos, se transforma
agora em tempo integral dentro de casa. A lógica do não poder parar para
manter a economia somou-se à realização das tarefas da casa e de cuidados
que também não param. A não divisão dos espaços físicos para realização das
atividades também afeta as subjetividades. O contato com outras pessoas fica
restrito ao círculo doméstico e os encontros físicos são substituídos pela
exaustiva exposição à tela em ambientes e redes virtuais. Gerando grande
afetação interna nessas mulheres, como Davis salienta ao trazer a contribuição
de Oakley:
Oakley chegou à conclusão de que as tarefas domésticas –
particularmente quando são ocupações de tempo integral – invadem
a personalidade da dona de casa tão profundamente que não é
possível distingui-la de seu trabalho: “Em um sentido determinante, a
dona de casa é seu trabalho: a separação entre os elementos
subjetivos e objetivos nessa situação é intrinsecamente mais difícil”.
Com frequência, a consequência psicológica é uma personalidade
tragicamente reprimida, assombrada pelo sentimento de inferioridade.
(Davis, 2016, p. 243)
Ficou evidente então, como a inclusão da mulher no mercado de
trabalho se dá de forma perversa e até violenta quando essas condições
desiguais provocam adoecimentos físicos e psicológicos. Não existe a
igualdade que tanto se lutou e luta para ter, mas existe sim a romantização da
sobrecarga, tratando-as como heroínas, super-mães, que dão conta de tudo
para o bem do lar. Sem apoio e sem escuta seguem exercendo o “seu lugar”
de mulher na sociedade machista e patriarcal brasileira.
Com a crise sanitária, o que se percebe é que não houve uma atenção à
saúde mental dessas trabalhadoras docentes, que seguiram os seus trabalhos
como se houvesse normalidade no mundo, como se as condições de existência
não tivessem se alterado e o risco eminente de contágio e morte, que
infelizmente se efetivou em alguns casos, tanto de professoras quanto de seus
familiares que tiveram seus sonhos, planos, vidas interrompidas pelo vírus e
não cuidado por parte das políticas de atenção à saúde física e mental.
O trabalho antes da pandemia, já precarizado, exigia muito de suas
rotinas, mas existia um espaço físico para que a profissão acontecesse à parte
da vida doméstica. O que se viu no momento que o ensino remoto invadiu as
casas, foram exigências internas ilimitadas, necessidade de alto rendimento,
disponibilidade o tempo todo, culpabilização de si por qualquer fracasso, como
o não acesso dos estudantes nas aulas. Medo, insatisfação, insegurança,
depressão, ansiedade.
Ao estarem confinadas em suas casas, vivenciando um novo formato de
vida, sofrem. Sofrem por terem a liberdade, um bem precioso, cerceada. Por
não poderem decidir sobre suas vidas ou saber sobre seu futuro. As dúvidas,
incertezas, o processo de adaptação à nova realidade acarretam sofrimento. A
experiência do cotidiano contradiz os documentos reguladores do ensino
remoto que chegam às escolas em tom de normalidade. A realidade
vivida pelas professoras, com as plataformas, os planejamentos, prazos,
cobranças, dificuldades de acesso e falta de formação em tecnologias,
somado aos filhos também em casa necessitando de atenção e apoio na
organização de suas rotinas, o trabalho doméstico incessante, questões
financeiras, além do vírus podendo a qualquer momento invadir suas
vidas.
Ao não poderem parar, foram negadas reflexões sobre condições
psicológicas básicas dos sujeitos envolvidos no processo educativo. Ao
seguir sem refletir nas histórias dos sujeitos, alunos, professores,
famílias, equipe gestora, servidores administrativos, não fomos também
negacionistas da pandemia? Ao continuar nossas rotinas sem levar em
conta esses aspectos não seria a continuação do culto e celebração dos
atos de dominação a que os brasileiros estão sujeitos a tanto tempo? E a
nossa condição humana de se afetar?
Manter-se vivo não significa apenas deixar o corpo intacto das
intempéries da vida. Significa, sobretudo, manter acesa a chama interna da
vida, a capacidade de sentir, afetar e ser afetado pelo amor e dor do outro. A
saúde mental é relacional, consigo e com os demais sujeitos. Perseverar em
meio ao caos é uma forma de afirmar a importância de todos, como Sawaia
mais uma vez reflete com o pensamento espinosiano:
Perseverar na própria existência é mais que se conservar vivo, deixa claro
Espinosa. É expansão do corpo e da mente na busca da liberdade, da
felicidade, que são necessidades tão fundamentais à existência humana como
o são os alimentos e os abrigos, e a reprodução biológica. Daí sua conclusão
de que a luta pela emancipação é uma dimensão irreprimível do homem no seu
processo de conservar-se, o que pressupõe passar da condição de escravo ao
modo livre, da heteronomia à autonomia (SAWAIA, 2009, p. 7).

E o caminho para que se efetive o respeito às subjetividades é o da não


conformação com práticas que negam a realidade vivida pelas individualidades.
Mas só ocorre a partir de construções da coletividade, que se compreende
como tal e luta por condições mais humanas de vida para cada um e cada
uma.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Espero que essas considerações finais possam ser reflexões


iniciais de discussões necessárias, de possibilidades de que vozes sejam
ouvidas e respeitadas em sua condição humana de existência. Que
trabalhadores e trabalhadoras deixem de ser gente descartável em
condições precárias e inumanas de trabalho, e que possam se
reconhecer em suas práticas.
A história não é só o que foi, mas, sobretudo o que será. Séculos
vindouros serão fruto das construções e conquistas do hoje. Portanto
cabe a luta pela emancipação humana e reconfiguração das relações
sociais menos desiguais e cruéis. E isso perpassa pela amplificação das
vozes que foram silenciadas no curso da construção do Brasil.
O crescimento de um país está diretamente ligado à importância
que se dá à educação e aos profissionais que a representam
institucionalmente. Dessa forma, a valorização das professoras que
também são donas de casa, mães, esposas, dará espaço para melhoria
nas condições de trabalho e vida, interferindo diretamente nos diversos
ambientes e atividades por elas desempenhadas. Qualidade na
educação perpassa pela melhoria da qualidade de existências que
refletirão nos mais variados campos.

REFERÊNCIAS

CISNE, M. Relações sociais de sexo, “raça”/etnia e classe: uma análise feminista-materialista.


Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 211-230, maio/ago. 2018.

COSTA, P. H. A.; MENDES, K. T. (2020) Subjetividades no Brasil da cólera: formação e


conjuntuta. Curitiba: CRV.

CRUZ, A. V. H.; MINCHONI, T.; MATSUMOTO, A. E.; ANDRADE, S. S. (2017) Direitos


Humanos e Militarização da questão social.

DAVIS, A. Mulher, raça e classe. São Paulo, Boitempo, 2016.

DIAS, M. S. L. (Org.) Introdução às leituras de Lev Vygotski: debates e atualidades na pesquisa


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JACOMINI, M. A. da Cruz, R. E., & de Castro, E. C. (2020). Jornada de trabalho docente na
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LIMA, P. M. R., & LIMA, S. C. (2020). Psicanálise Crítica: A escuta do Sofrimento Psíquico.

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SAWAIA, B. B. Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade e transformação


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desigualdade social. Petrópolis: Vozes.

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