Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Abstract Introdução
1 Coordenação de Prevenção The aim of this study was to present elements Hoje a ciência médica pode lutar contra uma
e Vigilância, Instituto
for debating guidelines on palliative care pro- doença potencialmente fatal e a morte, onde
Nacional de Câncer,
Rio de Janeiro, Brasil. grams for cancer. A literature survey searched uma vez o médico apenas podia oferecer con-
2 Escola Nacional de Saúde various databases (MEDLINE, LILACS, and forto e segurança. É comum na prática médica
Pública Sergio Arouca,
Cochrane Library), homepages of palliative care (ou dos profissionais de saúde) prolongar a vi-
Fundação Oswaldo Cruz,
Rio de Janeiro, Brasil. organizations, publications by renowned au- da a qualquer custo (e muitas vezes com suces-
thors in this area, reference textbooks on the so). A morte, desta forma, passa a ser entendi-
Correspondência
subject, relevant articles cited by these books, da como um fracasso e por este motivo deve
R. C. F. Silva
Divisão de Atenção and the thesis/dissertation database of CAPES ser “escondida”. Nos Estados Unidos, menos de
Oncológica, Coordenação (the Brazilian Coordinating Body for Training 10% da população morre devido a um infarto,
de Prevenção e Vigilância,
Instituto Nacional de Câncer.
University Level Personnel). The data were acidente ou um evento inesperado. Mais de
Rua dos Inválidos 212, grouped into four thematic categories: sympto- 90% morre de doença crônica, lentamente pro-
4 o andar, Centro, matic palliation, organization of services, psy- gressiva, com um período terminal de poucos
Rio de Janeiro, RJ
20231-020, Brasil.
chosocial characteristics, and spiritual charac- meses ou semanas (como o câncer) ou de pro-
rsilva@inca.gov.br teristics. The article then proceeds to discuss gressão lenta com períodos cíclicos de crise até
cancer as a public health problem and its im- advir a morte (insuficiência cardíaca e demên-
pact on individuals, the concept of palliative cia) 1. Das diversas causas de morte no mundo,
care and its context in health care, program o câncer é a única que continua a crescer inde-
models and their guidelines, death and dying, pendente do país ou continente e, nos países
and care and caregivers. The study concludes by em desenvolvimento, é atualmente responsá-
discussing the challenges for the Brazilian Na- vel por uma entre dez mortes 2.
tional Health System in structuring end-of-life Aprender a lidar com as perdas num con-
programs as a consequence of the population’s texto de uma doença crônica como o câncer é
aging and increasing cancer incidence. um desafio que poucos se propõem a discutir,
e muito menos a enfrentar. Ajudar indivíduos
Hospice Care; Medical Care; Home Nursing; Re- com doenças avançadas e potencialmente fatais
view Literature (doenças terminais) e seus familiares num dos
momentos mais cruciais de suas vidas é uma
atividade ou um modelo de atenção à saúde que
vem sendo denominado “cuidados paliativos”.
1991. Foram encontrados um total de 78 arti- viços (562), seguido da categoria controle de
gos, sendo que 33 se repetiam. sintomas (83) e um número bastante reduzido
Na base da Biblioteca Cochrane foram rea- de artigos nas categorias aspectos psicossociais
lizados dois modos de busca, com e sem restri- (15) e aspectos espirituais (12). Entendeu-se
ção de período. No primeiro, selecionando o que essa distribuição deveu-se ao fato dos cui-
grupo “pain, palliative care e supportive care” dados paliativos nos países desenvolvidos ocor-
na opção tópicos, e no segundo, realizando uma rerem um grande número de pesquisas volta-
pesquisa (de 1990 a 2003) refinada sem restri- das para o desenvolvimento organizacional vi-
ções, utilizando a expressão “palliative”. No pri- sando à melhoria da qualidade dos serviços.
meiro modo de busca foram identificadas 16 Identificou-se também um pequeno número de
publicações, enquanto no segundo foram iden- publicações relativas aos aspectos espirituais,
tificadas 1.359. Do segundo modo de busca, se- apesar deste número estar aumentando nos úl-
lecionou-se para análise as publicações sobre timos anos.
revisões sistemáticas (145), revisões sobre efe- Na base LILACS, que registra as pesquisas
tividade (48), avaliações tecnológicas em saúde produzidas na América Latina e Caribe, o pre-
(23) e avaliação econômica do NHS (147). domínio foi de publicações na categoria de con-
O banco de teses da CAPES (http://www. trole de sintomas (35) e organização de servi-
capes.gov.br) foi utilizado de forma comple- ços (9), de um total de 45 artigos (78 artigos no
mentar para coletar teses e dissertações do pe- total menos 33 que se repetiam). Esse achado
ríodo de 1991 até 2002 referentes aos temas reforça a afirmação de Singer 7 de que os paí-
“câncer”, “cuidados paliativos”, “cuidados ao fi- ses em desenvolvimento ainda estão em fase
nal da vida”, “medicina paliativa”, “morte”, “fi- de construção de modelos e programas de cui-
nitude” e “cuidados”. Foram encontradas 11 te- dados paliativos, uma vez que a preocupação
ses/dissertações. ainda é com a adoção de práticas de controle
O objetivo do levantamento foi destacar pu- de sintomas e organização de serviços.
blicações recentes que acrescentassem novas Na base da Biblioteca Cochrane, das revisões
discussões à luz dos textos e de autores de refe- sistemáticas completas (74 em 145), a maioria
rência, e identificar as tendências da produção se relacionava com a categoria controle de sin-
científica na área, de acordo com as categorias tomas (63). Das revisões sobre efetividade, ava-
temáticas. liação tecnológica em saúde e avaliação econô-
Os trabalhos foram agrupados em quatro mica do NHS, a maioria se relacionava com a
categorias temáticas: controle de sintomas, or- categoria controle de sintomas (39, 17 e 90, res-
ganização de serviços, aspectos psicossociais e pectivamente).
espirituais. Na primeira categoria (controle de No banco da CAPES foi identificado um nú-
sintomas) foram selecionados trabalhos sobre mero reduzido de teses/dissertações. Apenas
controle da dor e outros sintomas, atenção à 11 abordavam diretamente o tema, sem que
fase terminal da doença e aspectos éticos das qualquer uma delas salientasse as questões
intervenções. Na segunda categoria (organiza- conceituais e de organização de programas e
ção de serviços) foram selecionados trabalhos serviços.
que definiam o papel da equipe interdiscipli- A análise de todo o material bibliográfico (li-
nar, as experiências particulares de cada insti- vros de referência, bases de dados, sítios na In-
tuição, as discussões sobre modelos de aten- ternet, textos de autores referenciais e banco de
ção, o papel da educação e formação de recur- teses e dissertações) foi realizada em três fases:
sos humanos, as iniciativas de controle da qua- crítica do material coletado, análise e interpre-
lidade de serviços e pesquisa em cuidados pa- tação dos textos. É importante ressaltar que a
liativos. Na terceira categoria (aspectos psicos- revisão da literatura serviu como um balizador
sociais) foram selecionados trabalhos que dis- para a construção do texto, ou seja, o predomí-
cutiam o impacto da doença terminal nos indi- nio de publicações científicas na categoria con-
víduos e familiares, os transtornos psicológicos trole de sintomas (35) e organização de servi-
mais freqüentes, os programas de apoio psi- ços (9) nos países em desenvolvimento (base de
cossocial no período da doença e após a morte, dados LILACS) indicava a necessidade do apro-
e os transtornos psicológicos na equipe de saú- fundamento da discussão sobre organização
de. Na quarta categoria (aspectos espirituais) de serviços. O resultado é apresentado a seguir
foram selecionados trabalhos que discutiam o com a seguinte disposição: câncer como um
papel do apoio espiritual nos cuidados ao indi- problema de saúde pública; câncer e seu im-
víduo em fase terminal da doença. pacto no indivíduo; cuidados paliativos e alívio
Na base MEDLINE, observou-se o predomí- da dor; modelos de programas e suas diretri-
nio de artigos na categoria organização de ser- zes; a morte e o morrer; cuidados e cuidadores.
para cada caso. Outra forma comum de sofri- to humano que surgiu a modalidade de cuida-
mento psíquico (emocional) é a ansiedade. Ela do chamada cuidados paliativos.
é capaz de exacerbar outras formas de sofri-
mento, como por exemplo a dor, e também é
tratável. No cotidiano dos cuidados paliativos, Cuidados paliativos e alívio da dor
percebe-se que o sofrimento psíquico é tão per-
turbador quanto o sofrimento físico, e para mui- Na primeira definição da OMS para cuidados
tos é menos tolerável do que o sofrimento físi- paliativos, em 1998, estes foram categorizados
co. Nem os profissionais de saúde vinculados à como o último estágio de cuidado: “cuidados
assistência estão imunes aos efeitos dos cuida- oferecidos por uma equipe interdisciplinar vol-
dos aos indivíduos com câncer 2. É comum os tados para pacientes com doença em fase avan-
profissionais de saúde que lidam com indiví- çada, ativa, em progressão, cujo prognóstico é
duos muito enfermos ou moribundos apresen- reservado e o foco da atenção é a qualidade de
tarem exaustão emocional, insônia, absenteís- vida” 6 (p. 3). Entretanto, é sabido que os cuida-
mo, abuso de álcool e outras substâncias, além dos paliativos podem e devem ser oferecidos o
de sintomas somáticos 2. mais cedo possível no curso de qualquer doen-
As relações sociais costumam se modificar ça crônica potencialmente fatal, para que esta
pela presença do câncer. Tanto para aqueles não se torne difícil de tratar nos últimos dias
com câncer quanto para seus familiares e ami- de vida 2. A mais recente definição da OMS es-
gos, questões como perda do poder aquisitivo, tabelece que “cuidados paliativos é uma abor-
isolamento social, tensão familiar, manuten- dagem que melhora a qualidade de vida dos pa-
ção dos laços de amizade, capacidade de man- cientes e seus familiares frente a problemas as-
ter o emprego ou os estudos, entre outros, são sociados à doença terminal, através da preven-
comuns e desafiadores para os que convivem ção e alívio do sofrimento, identificando, ava-
com o câncer. Muitas vezes, um diagnóstico de liando e tratando a dor e outros problemas, físi-
câncer implica não somente em uma diminui- cos, psicossociais e espirituais” 2 (p. 84).
ção no salário, mas uma perda das reservas eco- Além da dor (um dos sintomas mais fre-
nômicas na busca por tratamentos que nem qüentes), outros sintomas acometem os indiví-
sempre aumentam a sobrevida. Atitudes so- duos com câncer, como: anorexia, depressão,
ciais perante a doença podem isolar uma pes- ansiedade, constipação, disfagia, dispnéia, fra-
soa, e os cuidados prestados podem levar a si- queza, entre outros. Todos diminuem de algum
tuações estressantes na relação íntima com o modo sua qualidade de vida, merecendo, por-
enfermo. Medo e luto antecipado podem ocor- tanto, a atenção dos profissionais de saúde. À
rer nos indivíduos com câncer terminal e seus medida que a doença progride, maior é a ne-
cuidadores, podendo causar mudanças na ori- cessidade de cuidados paliativos, o que os tor-
entação das relações afetivas. na quase que exclusivos ao final da vida, po-
Os textos literários são excelentes fontes pa- rém, não terminando com a morte do indiví-
ra se obter relatos da experiência do morrer e duo com câncer. Segundo a OMS 2, a propor-
do enlutamento antecipado. Um dos textos con- ção de indivíduos com câncer que requerem
siderados mais ilustrativos desta experiência é cuidados paliativos nos países menos desen-
o conto A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstoi volvidos economicamente é de 80%. Como o
9. Nele, Tolstoi relata a trajetória de um funcio- sofrimento de um indivíduo pode se apresen-
nário público na Rússia czarista nos últimos tar sob diversas dimensões (físico, psicológico,
meses de sua vida. O autor reflete sobre a con- espiritual, social, econômico), assim também
dição do personagem como portador de uma devem ser as dimensões do cuidado aos indiví-
doença intratável e fatal. Descrevendo as diver- duos sob cuidados paliativos.
sas fases de seu sofrimento (do diagnóstico à Atualmente, vêm sendo empregados com
morte), apresenta questões como a relação mé- mais freqüência e indistintamente os termos
dico-paciente, a autonomia do indivíduo, as re- cuidados paliativos, medicina paliativa, hospi-
lações familiares, o isolamento e a perda da ca- ce (sem tradução para o português), nursing ou
pacidade de trabalho, entre outras. residential homes (asilos ou casas de repouso).
Portanto, ao se planejar ações para contro- É preciso conceituá-los e estabelecer as dife-
lar os impactos do câncer nos indivíduos e seus renças. A definição de cuidados paliativos da
familiares, deveria ter-se a sensibilidade (e a OMS já foi apresentada. Hospice pode ser utili-
capacidade) de identificar desordens do cam- zado para descrever uma filosofia de trabalho
po físico, bem como do campo psíquico, social voltada aos indivíduos com doenças terminais
e espiritual. Foi com o objetivo de identificar e (Estados Unidos), um prédio ou edifício onde
cuidar destas diversas dimensões do sofrimen- são praticados os cuidados paliativos (Estados
vocados, chorados, relembrados, homenagea- qualidade de vida e suporte aos mesmos. Não
dos e usados sem cerimônia pela sociedade. somente os profissionais de saúde, mas tam-
Tudo isso acompanhado de um silêncio pro- bém familiares e amigos, comunidade e insti-
fundo sobre a morte 16. tuições sociais, deveriam ser motivados para os
No Brasil, segundo Da Matta 16, se fala muito cuidados ao indivíduo com câncer e, em con-
mais dos mortos do que da morte. Isso implica seqüência, serem qualificados para tal.
uma contradição, uma vez que falar dos mortos
já é uma forma sutil e disfarçada de negar a mor-
te, fazendo prolongar a memória do morto. Para Cuidados e cuidadores
esse autor, a morte no Brasil é concebida como
uma passagem de um mundo a outro, uma me- Com o progresso da medicina, principalmente
táfora de subida ou descida, algo verticalizado no último século, os cuidados ao final da vida
como a própria sociedade brasileira. Finaliza passaram a ser realizados, sobretudo nos paí-
suas considerações com uma frase primorosa: ses desenvolvidos, em um ambiente impessoal,
“... podemos entender por que no Brasil a morte cercado de pessoas estranhas, muitas vezes
mata, mas os mortos não morrem” 16 (p. 158). sob monitoramento de aparelhos eletrônicos e
Dentre os que já tiveram a oportunidade de submetidos a procedimentos médicos invasi-
acompanhar as fases finais de um indivíduo ao vos. Esse panorama reflete o que é denomina-
final da vida, muitos experimentaram descon- do “medicalização da morte” 19. Na contramão
forto, principalmente se esse indivíduo foi um desse processo encontram-se os cuidados pa-
ente querido. É fácil compreender a dificulda- liativos ou os cuidados ao final da vida. O cui-
de que os médicos, bem como outros profissio- dado, segundo Boff 20, possui muitas repercus-
nais de saúde, têm em lidar com essas situa- sões, conceitos afins que emergem do cuidado
ções. Muitas vezes, sob o disfarce da afirmativa e o traduzem em atitudes e ações. Uma dessas
“não há mais nada a fazer por ele”, esconde-se repercussões é a compaixão. Trata-se da capa-
a dificuldade em lidar com a morte. Na verda- cidade do ser humano de compartilhar o sofri-
de, não é exatamente a morte a principal difi- mento (ou alegrias) do outro, construindo a vi-
culdade, mas sim o acompanhamento do indi- da em sinergia com este. Não é passiva e nem
víduo que está morrendo. Nas últimas décadas, representa um sentimento de piedade. Como
a literatura tem sido pródiga em publicações salienta Caponi 21, a motivação para a compai-
sobre as atitudes do médico diante da morte e xão com a pessoa que sofre pode ser resultado
do doente terminal 17. Apesar da grande proje- de um sentimento de que algo semelhante po-
ção sobre o assunto em anos recentes, os senti- de acontecer a qualquer um (solidariedade ge-
mentos dos médicos e dos estudantes de me- nuína), de outra forma, pode também ser mo-
dicina em relação à morte e o morrer são pou- tivada por um sentimento de piedade pelos
co conhecidos. que sofrem ou pelo simples fato de pensar que
É importante destacar que os grandes pro- socorrer os infortunados contribui para o bem
gressos da medicina instrumental não foram comum. A solidariedade genuína procura to-
acompanhados de progressos na atenção aos mar como ponto de partida as diferenças entre
indivíduos com câncer. É como se os progres- os que sofrem. Existindo a diferença, o diálogo
sos científicos, voltados para a efetividade, fos- é essencial para se criar vínculos. E nesse diá-
sem incompatíveis com os cuidados, voltados logo são estabelecidos modelos de atenção que
para a afetividade. Os hospitais dispõem de respeitam as crenças e saberes daqueles indiví-
equipamentos e tecnologias de última geração, duos, e principalmente não permitem a exclu-
mas são incapazes de desempenhar sua função são ou a adoção de projetos (de cuidados) pré-
primeira: oferecer hospitalidade. “Ao seculari- estabelecidos.
zar os tratamentos, o hospital parece que se de- Em geral, a maior parte do tempo do último
sumanizou” 18 (p. 43). Daí surgirem os movi- ano da vida dos indivíduos é passada em casa,
mentos para humanização dos serviços, como muito embora 90% deles passem algum tempo
se a aplicação da técnica fosse “desumana”. O em um hospital e 55% das mortes ocorram nes-
fator humano parece formado para desempe- te local 22. As obrigações e recompensas de cui-
nhar papel de máquina reparando outras má- dar de pessoas no seu último ano de vida são
quinas. Não são formados para desempenhar compartilhadas pelos cuidadores informais
uma parte significante de sua função que é cui- (parentes, amigos e vizinhos) e formais (profis-
dar de seres humanos. sionais de saúde) 22. Cerca de 75% das pessoas
Diversos atores sociais estão envolvidos nos recebem cuidados em casa por meio de cuida-
cuidados ao moribundo e desempenham pa- dores informais, sendo que a maioria deles é de
pel importante no compromisso de oferecer mulheres. Quase a metade dos indivíduos com
câncer recebe cuidados de dois ou mais paren- Sem o apoio da família e dos amigos (cui-
tes, freqüentemente a esposa e um filho adul- dadores informais), seria difícil para muitos in-
to. Aproximadamente 2/3 destes indivíduos re- divíduos permanecerem em casa. Normalmen-
cebem alguma forma de cuidado formal 22. te os familiares assumem os cuidados, no en-
Com a transição demográfica observada no tanto amigos e vizinhos também podem assu-
Brasil, uma significativa parcela dos indivíduos mir papéis de cuidadores informais. A tarefa de
com câncer está em idade avançada. Essa po- cuidar está sob a responsabilidade quase ex-
pulação (bem como a idosa) é freqüentemente clusiva da família, uma vez que a organização
dependente de uma ou mais pessoas. A atual comunitária também se mostra bastante defi-
tendência em muitos países, e no Brasil tam- ciente 26. Os cuidadores informais necessitam
bém, é sugerir a permanência dessa população de informação e orientação sobre a doença do
em suas casas, sob os cuidados de sua família 23. indivíduo e como cuidá-lo, além de suporte psi-
Em vários programas de cuidados paliativos no cológico e social 22.
Brasil e no mundo são utilizados cuidados do- Estar bem informado sobre a doença do in-
miciliares como estratégia de oferecer cuida- divíduo parece diminuir a ansiedade referente
dos humanizados. a medos improváveis e irreais. Como a grande
A delicada relação entre o cuidador e o in- maioria dos cuidadores informais não possui
divíduo ao final da vida permite inferir que a treinamento em enfermagem, beneficiam-se de
humanização, muitas vezes, está longe de acon- instruções práticas, tais como administrar re-
tecer. “Não é necessariamente o local que hu- médios, mudança de posição no leito, entre ou-
maniza a relação terapêutica, mas, sim, o inte- tros. É alta a prevalência de sintomas como an-
resse empático que o profissional desenvolve pe- siedade e depressão, como também distúrbios
lo paciente” 24 (p. 991). Se o objetivo é aperfei- do sono e perda de peso 22. A preferência do cui-
çoar a qualidade dos cuidados oferecidos a es- dador pelo local da morte do indivíduo é uma
sa população, torna-se fundamental reconhe- informação que freqüentemente não está dis-
cer as necessidades dos cuidadores formais e ponível. Desgaste psicológico, falta de apoio de
informais e estabelecer estratégias de suporte enfermagem e ausência de equipamentos são
para os mesmos. as justificativas mais comuns para admitir no
Vários profissionais de saúde (cuidadores hospital indivíduos moribundos 22.
formais) estão envolvidos com os cuidados ao Quanto aos cuidados realizados por um cui-
indivíduo no final da vida e em diferentes locais dador informal, dois aspectos devem ser salien-
(hospitais, ambulatórios, asilos e residências). tados: as condições necessárias à manutenção
As atividades assistenciais levam a diversas for- dos cuidados na residência e as condições que
mas de estresse, mas também proporcionam realmente a família dispõe para ser responsa-
momentos de satisfação. É reconhecida a ocor- bilizada pelo mesmo. Sabe-se que os gastos fa-
rência da Síndrome de Burnout (Síndrome de miliares com os indivíduos ao final da vida são
Esgotamento Emocional) entre os profissionais crescentes e, muitas vezes, o cuidador também
de saúde que lidam com a morte ou situações é o provedor (ou um dos provedores) dos recur-
próximas da morte 25. É importante ressaltar sos financeiros, e que, infelizmente, o sistema
que a prevalência de morbidade psiquiátrica de seguridade social no Brasil não tem conse-
entre médicos e enfermeiras que trabalham guido cumprir seu papel, recaindo sobre a fa-
com cuidados paliativos e hospices é menor do mília a cobertura destas falhas 26. Outros fato-
que em outros profissionais de saúde 26. res como o baixo nível de renda, baixa escolari-
Manter e aprimorar a saúde mental dos tra- dade, carência de serviços públicos e de sanea-
balhadores é essencial para os próprios profis- mento básico são indicadores da precariedade
sionais de saúde, bem como para a qualidade das condições e qualidade de vida, e apontam
dos cuidados oferecidos aos indivíduos. Algu- para dificuldades no cuidado desses indivíduos
mas estratégias sugeridas para melhorar a saú- na comunidade 26.
de mental dos profissionais de saúde em cui-
dados paliativos são: manter uma cultura de
cuidados paliativos, oferecer treinamento em Considerações finais
comunicação e gerenciamento, oferecer super-
visão clínica adequada e que inclua as diversas O objetivo maior deste trabalho foi apresentar
dimensões dos cuidados ao indivíduo (física, a discussão atual sobre os cuidados paliativos
social, psicológica e espiritual) e oferecer um oncológicos. Para isso, a estratégia foi mostrar
serviço de saúde mental independente que um panorama amplo sobre cuidados paliativos
atenda problemas de caráter pessoal e os rela- no que diz respeito a conceitos, organização de
cionados ao trabalho 22. programas e desafios futuros.
Entende-se que essa discussão é essencial res têm papel determinante na estruturação de
para a definição de políticas, programas e ser- modelos de programas e serviços.
viços em cuidados paliativos. Procurou-se dei- O Brasil ainda não possui uma estrutura pú-
xar claro que o período que antecede a morte blica de cuidados paliativos oncológicos ade-
de um ser humano portador de uma doença quada à demanda existente, tanto sob o ponto
crônica avançada, progressiva e incurável é tal- de vista quantitativo e qualitativo. Em pior si-
vez um dos períodos mais importantes de sua tuação encontra-se o subsetor privado de saú-
vida. Não somente pelo seu caráter irremediá- de. Preocupante é reconhecer que a maioria dos
vel, mas principalmente pelos distúrbios psí- indivíduos com câncer procura a rede pública
quicos, financeiros, afetivos e físicos que com- de serviços com a doença em estágio avançado
prometem os indivíduos, seus familiares e cui- e elegíveis apenas para cuidados paliativos. Tor-
dadores. O modo como os indivíduos morrem na-se urgente o conhecimento dos conceitos
modificou-se nos últimos cinqüenta anos. Pas- fundamentais dos cuidados paliativos e hospice,
sou-se a “medicalizar” ou “institucionalizar” a bem como empreender esforços para implemen-
morte. Este é o final do processo iniciado quan- tar iniciativas centradas no cuidar solidário nos
do a ciência assumiu o compromisso de lutar serviços de saúde, sejam públicos ou privados.
contra a morte. Como conseqüência, a morte O sistema de saúde brasileiro enfrenta gran-
significa derrota, vergonha e falha; tudo que o des desafios para o novo século. Uma das gran-
sistema moderno de saúde precisa esconder des questões é o aumento da população idosa
sob suas instituições. e o crescente número de indivíduos com cân-
Na década de 60, inicialmente na Inglaterra cer e doenças cardio e cerebrovasculares. Esse
e posteriormente estendendo-se ao restante da cenário indica a necessidade de se estabelece-
Europa e aos Estados Unidos, a idéia de uma rem políticas de saúde voltadas para os indiví-
morte mais digna, menos sofrida, próxima das duos ao final da vida. Por meio dos modelos de
pessoas que se ama e que nos são caras, propor- programas de cuidados paliativos e suas dire-
cionou a criação de um movimento de cuidados trizes de ação, se poderiam estabelecer as ba-
mais humanizado, integral, voltado mais espe- ses técnicas para discutir uma política nacio-
cificamente para indivíduos com doenças crô- nal de cuidados ao final da vida. Reconhece-se,
nicas, progressivas e sem possibilidade de trata- entretanto, que a singularidade do tema requer
mento curativo 5. Foi a partir desse movimento uma discussão multisetorial e com a participa-
que as discussões sobre os cuidados aos indiví- ção efetiva da sociedade civil. Talvez a análise
duos ao final da vida passaram a ganhar espaço do movimento da reforma psiquiátrica brasi-
nos serviços de saúde. Se for admitido que a na- leira possa contribuir para sugerir estratégias
tureza da formação do profissional de saúde de ação, uma vez que observadas as devidas
que lida com a terminalidade é complexa, será proporções, os dois temas (doença mental e
fácil compreender porque a preocupação com a morte) guardam semelhanças, tais como: são
formação de recursos humanos neste campo é temas polêmicos, estigmatizados, envolvem
mais do que urgente, porque passa a exigir aten- diretamente as famílias, propõem mudanças
ção a todas as dimensões do ser (plano físico, paradigmáticas e de atitudes, envolvem mu-
espiritual, social, psicológico e econômico). danças na legislação, necessitam de coordena-
O ser humano como tal deveria investir-se ção dos diversos níveis de atenção à saúde,
da responsabilidade e do dever de cuidar de propiciam conflitos de interesse e acarretam
seus semelhantes. Mas que forma de cuidado ações de educação em saúde.
se poderia oferecer? Uma das traduções do cui- A contribuição deste trabalho consistiu em
dado é a compaixão. A capacidade do ser hu- apresentar algumas considerações sobre cui-
mano de compartilhar o sofrimento ou a ale- dados paliativos oncológicos, com a finalidade
gria com o outro. No entanto, qual seria a mo- de motivar um debate com a participação de
tivação para a compaixão? O que motiva a com- todos os atores sociais interessados em promo-
partilhar o sofrimento dos moribundos? A mo- ver um sistema de saúde mais justo e humani-
tivação fundamentada pela piedade ou pelo fa- zado, e que entendam a morte como um pro-
to de que socorrendo os infortunados se esta- cesso natural e irremediável. Todos irão morrer
ria contribuindo para o bem comum não garan- um dia. Alguns, próximos aos seus entes queri-
te o respeito pelo beneficiado. Tornar-se-ia ne- dos, em um ambiente familiar, com seus sinto-
cessário desenvolver o sentimento de solida- mas controlados e sua autonomia preservada.
riedade. É na solidariedade que o diálogo se es- Outros, isolados, em um ambiente impessoal,
tabelece e que as crenças e saberes são respei- com dor e outros sintomas não controlados e
tadas. No caso dos cuidados paliativos fica cla- impossibilitados de exercer sua autonomia. A
ro que características culturais, crenças e valo- escolha depende de todos nós.
Resumo Referências
Este artigo tem como objetivo apresentar elementos 1. Education for Physician on End-of-Life Care. EPEC
para o debate de diretrizes em programas de cuidados Participant’s handbook: Plenary 1 – gaps in end-
paliativos no Brasil. Foi construído por meio de levan- of-life care. Chicago: The Robert Wood Johnson
tamento bibliográfico em base de dados (MEDLINE, Foundation; 1999.
LILACS e Biblioteca Cochrane), em sítios na Internet 2. World Health Organization. National cancer con-
de organizações e instituições interessadas em cuida- trol programmes: policies and managerial guide-
dos paliativos, em textos de autores fundamentais na lines. 2nd Ed. Geneva: World Health Organization;
área, em livros de referência, em obras citadas nas re- 2002.
ferências destes mesmos livros e no Banco de Teses da 3. Milicevic N. The hospice movement: history and
CAPES. Os dados foram agrupados em quatro catego- current worldwide situation. Archive of Oncology
rias temáticas: controle de sintomas, organização de 2002; 10:29-32.
serviços, aspectos psicossociais e espirituais. Com isso, 4. Figueiredo MTA. International Association for
procedeu-se a discussão do câncer como um problema Hospice & Palliative Care News On-line. Regional
de saúde pública e seu impacto no indivíduo, o con- News Brazil. http://www.hospicecare.com/news
ceito de cuidados paliativos e seu contexto na atenção letter2004/april04/page5.html (acessado em 03/
à saúde, os modelos de programas e suas diretrizes, a Nov/2004).
morte e o morrer e os cuidados e cuidadores. O artigo 5. Silva RCF. Cuidados paliativos oncológicos: re-
termina apontando os desafios do sistema de saúde flexões sobre uma proposta inovadora na atenção
brasileiro em estruturar programas de cuidados ao fi- à saúde [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janei-
nal da vida em conseqüência do envelhecimento da ro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação
população e do aumento da incidência do câncer. Oswaldo Cruz; 2004.
6. Doyle D, Hanks GWC, Mac Donald N, editors. Ox-
Cuidados Paliativos; Cuidados Médicos; Assistência ford textbook of palliative medicine. Oxford: Ox-
Domiciliar; Literatura de Revisão ford University Press; 1998.
7. Singer P. Quality end-of-life: a global perspective.
BMC Palliat Care 2002; 1:4. http://www.biomed-
central.com/1472-684X/1/4 (acessado em 02/
Colaboradores
Set/2003).
8. Higginson IJ. Evidence based palliative medicine.
R. C. F. Silva contribuiu para concepção e desenho do BMJ 1999; 319:462-3.
estudo; coleta, análise e interpretação dos dados; re- 9. Tolstoi L. A morte de Ivan Ilitch. Porto Alegre:
dação do artigo para submissão à publicação. V. A. L&PM Editores; 1997.
Hortale contribuiu com a revisão crítica do conteúdo 10. Fordham S, Dorwick C. Is care of the dying im-
do artigo e revisão final do texto. proving? The contribution of specialist and non-
specialist to palliative care. Fam Pract 1999; 16:
573-9.
11. Morrison R, Meier D. Palliative care. N Engl J Med
Agradecimentos 2004; 350:2582-90.
12. Elsayem A, Swint K, Fisch M, Palmer J, Reddy S,
Este artigo é parte da dissertação de Mestrado do au- Walker P, et al. Palliative care inpatient service in
tor principal, e para tanto o apoio financeiro da Coor- a comprehensive cancer center: clinical and fi-
denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Su- nancial outcomes. J Clin Oncol. 2004; 22:2008-
perior e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 14.
respectivamente no curso do Mestrado e na finaliza- 13. National Consensus Project for Quality Palliative
ção da dissertação, foram fundamentais. Agradece Care. Clinical practice guidelines for quality pal-
aos Profs. Paulo Roberto Vasconcellos-Silva, Kenneth liative care. Pittsburgh: National Consensus Pro-
Rochel de Camargo Jr. e Luis David Castiel pela con- ject for Quality Palliative Care; 2004.
tribuição teórico-conceitual durante as fases de ela- 14. Palliative Care Australia. Standards for palliative
boração e defesa da dissertação. care provision. 3 rd Ed. [s.l.]: Palliative Care Aus-
tralia; 1999.
15. Schramm FR. Morte e finitude em nossa socie-
dade: implicações no ensino dos cuidados palia-
tivos. Rev Bras Cancerol 2002; 48:17-20.
16. Da Matta R. A casa e a rua: espaço, cidadania,
mulher e morte no Brasil. 5 a Ed. Rio de Janeiro:
Editora Rocco; 2000.
17. Vianna A, Piccelli H. O estudante, o médico e o
professor de medicina perante a morte e o pa-
ciente terminal. AMB Rev Assoc Med Bras 1998;
44:21-7.
18. Hennezel M, Leloup J. A arte de morrer: tradições
religiosas e espiritualidade humanista diante da
morte na atualidade. Petrópolis: Editora Vozes;
1999.
19. Clark D. Between hope and acceptance: the med- 24. Floriani CA, Schramm FR. Atendimento domici-
icalisation of dying. BMJ 2002; 324:905-7. liar ao idoso: problema ou solução. Cad Saúde
20. Boff L. Saber cuidar: ética do humano – compai- Pública 2004; 20:986-94.
xão pela terra. 4 a Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 25. Maslach C, Schaufeli WB, Leiter MP. Job Burnout.
1999. Annu Rev Psychol 2001, 52:397-422.
21. Caponi S. Da compaixão à solidariedade. Rio de 26. Caldas CP. Envelhecimento com dependência:
Janeiro: Editora Fiocruz; 2000. responsabilidades e demandas da família. Cad
22. Ramirez A, Addington-Hall J, Richards M. The Saúde Pública 2003; 19:773-81.
carers. BMJ 1998; 324:1291-2.
23. Karsch UM. Idosos dependentes: famílias e cui- Recebido em 14/Jan/2005
dadores. Cad Saúde Pública 2003; 19:861-6. Aprovado em 21/Fev/2006