Você está na página 1de 3

1

DELEUZE E PESSOA: A IMANÊNCIA


José Gil
Gazeta Improvável 01/primavera 98 p.29-31
Editora Relógio d'agua, Lisboa.

Deleuze obtém, graças à imanência, o que filósofos, místicos, terapeutas


quiseram alcançar recorrendo à transcendência (através da contemplação, da intui-
ção intelectual, da experiência extática, do transe, etc.).
O que é a imanência? O que significa na terapia, na poesia e no pensamento
construir a imanência? Na imanência, como diz Deleuze, já lá estamos desde
sempre, quer queiramos quer não (no plano de consistência, v. MilIe Plateaux, p.
185).
Para mergulhar na imanência, partimos de uma situação em que nos
achamos envolvidos por pequenas transcendências, ou um sem-número de
imagens que nos retêm fora de nós. Fora de nós que é vivido como o mais íntimo de
nós (pelo contrário, na imanência, é o mais "íntimo" de nós que é atravessado como
um infinito fora de nós). A operação de mergulho consiste em transformar a
distância vertical da separação (do transcendente) num plano de transporte de um
ponto para o outro.
Muda-se o vertical em horizontal, o movimento directo e unívoco em
movimento reversível: contrabando, falsificação ou outramento (Fernando Pessoa).
Faz-se como se se mantivesse a distância vertical, mas rebatendo-a sobre um plano
horizontal de passagem, de tal modo que agora se vai não só de A a B, mas de B a
A ao mesmo tempo (é o que Deleuze chama "o retorno", a uma velocidade infinita,
do "voltar-se para..." do pensamento: "Quando o pensamento de Heraclito se faz
polémos, é o fogo que retorna sobre ele" [O que é a Filosofia?, p. 54]). Quando
descolo (para a transcendência), a descolagem faz-me entrar num movimento que é
retorno, sobre um plano, ao mesmo ponto..
Num ritual primitivo, dever-se-á encarar o que se chamou a epifania do divino
nesta perspectiva: na área ritual cria-se um plano em que a possessão permite, ao
doente coexistir em dois planos ao mesmo tempo, o dos vivos e o dos mortos
(antepassados), de tal modo que viajar no mundo dos mortos (como no xamanismo)
é voltar a si, aos vivos. Plano de imanência do sobrenatural e da vida.
2

Foi também o que entendeu Alberto Caeiro quando escreveu: "Por isso se diz
que os deuses nunca morrem./Por isso não têm corpo e alma / Mas só corpo e são
perfeitos / O corpo é que lhes é alma / e têm a consciência na própria carne divina".
Para Artaud, para Deleuze, não há transcendência do pensamento
relativamente à acção. O movimento do pensamento age sobre o plano de acção,
desencadeando actos que são ao mesmo tempo acontecimentos (movimentos) do
pensamento.
Em Fernando Pessoa (mas em todos, certamente) dá-se o ponto de
incandescência (o mergulho, quando o movimento começa a voltar) da imanência,
quando o inconsciente invade a consciência. Entre mim e mim, entre a minha cons -
ciência e as minhas sensações, entre o pensamento e a vida, entre a poesia e o
real, entre o meu presente e o "outro" (inconsciente) que sou não existe já
separação. Não porque os dois pólos opostos se uniram; mas porque coexistem
num plano único de consistência em que viajo, a velocidade infinita, de um pólo a
outro, transformando a sua negatividade em diferença, a sua lógica exclusiva em
lógica disjuntiva. É porque a velocidade é infinita que não há fusão ou dialéctica
entre pólos contrários, mas afirmação das suas diferenças. Estas mantêm-se e
manifestam-se graças à velocidade infinita que os não-une: há agora, em mim, "uma
sinfonia de sensações incompatíveis e análogas" (Ode Marítima), realizo em mim
"toda a humanidade de todos os momentos / Num só momento difuso, profuso,
completo e longínquo" (Passagem das Horas).
Em Álvaro de Campos, em Bernardo Soares, no Fausto, a criação do plano
de consistência ou de imanência a partir da consciência e da sua transformação em
corpo de consciência é evidente. Nos outros heterónimos é mais obscura.
A imanência dá-se quando não existem um pensamento e uma consciência
fora do corpo. O corpo, os seus ritmos, o seu tempo próprio, plasmam-se no ritmo
do pensamento. O tempo do pensamento implica-se no tempo das coisas.
Alberto Caeiro: quando, na imanência, eu penso uma significação, ela não se
destaca do meu acto de pensar, mas logo encontro, no movimento do pensar, um
eco dessa significação. Esse eco é afectivo: como se o afecto produzisse a
significação que faz nascer o afecto como sendo o substrato real da significação.
"Comer um fruto é saber-lhe o sentido": não há separação entre sentidos (dos
órgãos sensoriais), sentido, pensamento, afecto.
3

A imanência é a implicação na vida, e desta em tudo o que é.


Mas o que é a vida? É o infinito actual dado agora, nas minhas sensações,
nas minhas relações, no toque e implicação do meu corpo com os outros corpos e
as coisas. A vida é o "cofre aberto" (como dizem as bruxas). É o regime de
circulação do impuro, das impressões materiais, sensoriais microscópicas que põem
as forças humanas em comunicação com energias que ultrapassam infinitamente o
humano. E o regime de dissipação infinita e permanente das forças, de que o
homem (e o artista, em particular) tira as suas próprias forças para dar a volta ao
infinito, criar a vida imanente, mergulhar na imanência da vida.
O dispositivo que agarra a imanência, em Alberto Caeiro, é: tudo o que penso
me implica, porque sinto com o pensamento. O que vejo (com "a minha ciência de
ver, que não é nenhuma") "volta" à linguagem (a velocidade infinita) sob a forma de
versos. Se penso, pois, em qualquer coisa fora de mim, basta-me pensar que existe
diferentemente de mim para entrar em não-conexão com essa coisa. Por isso eu
gosto dela: porque existe é diferente, e eu existo e sou diferente. Assim eu entro em
conivência com o mundo.
Por isso Alberto Caeiro vive contente: a beatitude da imanência, de que fala
Deleuze. Por isso Campos, Soares, mesmo Fernando Pessoa ortónimo e Ricardo
Reis, vivem tragicamente. O "sentimento de existir" (trágico, apocalíptico nestes
últimos, sempre ameaçados de mil transcendências quotidianas) tornou-se o
sentimento, finíssimo, de viver.

Você também pode gostar