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DOMINIUM E IUS: CONTROVÉRSIAS EM TORNO DA FUNDAMENTAÇÃO DOS

DIREITOS HUMANOS, A PARTIR DA RECEPÇÃO DA POLÍTICA DE


ARISTÓTELES EM FRANCISCO DE VITORIA (1483-1546) E DA INFLUÊNCIA DE
SUA INTERPRETAÇÃO SOBRE PENSADORES LATINO-AMERICANOS DOS
SÉCULOS 16 E 17

Renata Floriano de Sousa1

Resumo: O artigo apresentado a seguir trata-se da pesquisa sobre a recepção da Política de


Aristóteles na concepção dos pensadores do período da chamada Scholastica Colonialis.
Alguns desses autores como Las Casas, que influenciados por Francisco de Vitória, fizeram
parte desse novo pensamento em relação ao reconhecimento dos direitos humanos dos índios.
É deverás importante ressaltar que Francisco de Vitoria exerceu influência entre renomados
pensadores através do exercício de sua cátedra na Escola de Salamanca, onde aplicou sua
releitura da Política de Aristóteles dentre seus alunos. O que de modo prático, por sua vez,
culminou nas mudanças de tratamentos das instituições coloniais a fim de que fossem
respeitados os direitos fundamentais dos ameríndios do Novo Mundo. Mudanças essas que
infelizmente não passaram de tentativas, visto que a prática escravagista durou até o século
XIX América espanhola. Assim, também será mostrada a recepção e compreensão de
Aristóteles através do pensamento escravocrata espanhol. O trabalho visa mostrar como
alguns autores receberam e introduziram a influência de Vitoria e outras interpretações da
Política de Aristóteles nas disputas a cerca da legitimidade da escravidão indígena.

Palavras-chave: Aristóteles; Francisco de Vitória; Direitos Humanos; Política; Scholastica


Colonialis.

1. Considerações Iniciais
A presente pesquisa tem como objetivo destacar a relevância do Frei Francisco de
Vitoria(1483-1546)2 para a construção do pensamento humanista de sua época e sua
influência nos pensadores do período que conhecemos como Escolástica Colonial. Vitoria foi
considerado o percursor nas teorias relacionadas ao direito das gentes em perspectiva

1
Graduada em Licenciatura de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-
mail: adicsaner@gmail.com. Tel.: (51) 8117-4223.
2
Esse ponto na biografia de Francisco de Vitoria é controverso. Não existe definição sobre em qual cidade ele
nasceu, se em Vitória ou em Burgos, ambas situadas na Espanha. É sabido que ingressou jovem na ordem
dominicana. Por volta de 1509, foi enviado a Paris para realizar seus estudos no colégio de São Jaques, onde
completou seus estudos em humanidades, filosofia e teologia. Suas obras mais conhecidas são De potestate civili
(1528). Outras, no mesmo nível são: De Jure belli Hispanorum in barbaros, de 1532, e De Indis (1532) – todas
elas produzidas, digno de nota, no prazo de cinco anos. Cf PICH,R.H. Dominium e ius:Sobre a fundamentação
dos direitos humanos segundo Francisco de Vitoria(1483-1546). Teocomunicação, Porto Alegre, v.42, n.2, p.
376-401, jul./dez. 2012.
internacional ou da relação entre os povos, além de fundador da escola espanhola de direito
natural. Torna-se, portanto, imperativo relacionar Vitoria ao período histórico em que viveu,
em meio à conquista das Índias Ocidentais e o contato com o até então desconhecido povo
nativo. A sua inquietação era em relação ao modo em como se dava a ocupação espanhola
durante o período da colonização, e que outro sistema deveria ser adotado a fim de estabelecer
um bom relacionamento entre o homem europeu e os nativos do além-mar. Nesta época a
filosofia usada predominantemente como referência era a aristotélica interpretada a partir de
leituras de comentadores como Alexandre de Afrodísia, onde a escravidão era considerada
natural para aqueles bárbaros do novo mundo. Não convencido dessa interpretação do filósofo
estagirita, Vitoria negou a crença na escravidão por natureza, e assim, ele discutiu os
princípios vigentes do domínio e de direitos na tentativa de provar uma dignidade universal
do ser humano. Para que esta fosse estendida aos índios do Novo Mundo. Consequentemente,
ele buscou fundamentação para suas conjecturas a respeito dos direitos dos bárbaros em
Tomás de Aquino3. Mais tarde, quando assumiu a cátedra na Universidade de Salamanca,
Vitoria optou por reimplantar os estudos a cerca do pensamento do Doutor Angélico, trazendo
através de fundamentos metafísicos as respostas para as questões éticas cristãs em relação aos
povos das Índias Ocidentais.
Para Vitoria, era crucial a adesão do princípio tomista de que todos os seres humanos
são racionais e, portanto, essencialmente senhores de si e livres. Logo, ele considerava que os
índios eram soberanos em suas terras e que tinham o direito de defender a sua soberania
contra qualquer agressão injusta.
Vitoria exerceu influência na obra de Bartolomé de Las Casas, que por sua vez entrou
em disputas filosóficas contra Juan Ginés de Sepúlveda. Essas disputas, que tiveram sua base
políticas suscitadas na Corte de Castela a respeito da legitimidade da conquista, com auge nas
chamadas “Juntas de Valladolid”, convocadas pelo rei Carlos V entre os anos de 1547 e 1550.
Um marco fundamental na atividade dos intelectuais (e religiosos) europeus com respeito aos
direitos dos povos indígenas.
Mesmo anterior às disputas de Valladolid, já havia uma sensibilização por parte do
Papa Paulo III que em 1537 publicou a Sublimus Dei4, onde declara os indígenas entes

3
Consta que en París, además de recibir las enseñanzas de la escuela tomista, a através de maestros como Pedro
Crokaert, estuvo em contacto com varios professores de la corriente nominalista, que habían llevado a sus
consecuencias los planteamientos de Guillermo de Ockam. Cf. PANDO.J.C. Francisco de Vitoria: Relectio de
Potestate Civili. Estudios sobre su Filosofia Politica. Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas,
2008. p 317.
4
“[...] e buscar com todas as nossas forças para trazer as ovelhas do seu rebanho que estão fora para o rebanho
comprometidos com a nossa carga, considere , no entanto, que os índios são verdadeiramente homens e que eles
racionais. Essa publicação se deu independente do consentimento de Carlos V, que por sua
vez considerou esta uma oposição à sua autoridade nas Índias. Mais tarde no ano de 1542, o
próprio Carlos V promulgou as “Leyes Nuevas”, leis essas que foram o cânone de como tratar
os povos das Índias Ocidentais, pelo menos até o ano de 1545.

2. O pensamento Escravocrata
Para delinear o pensamento de Vitoria, antes é preciso entender as bases do
pensamento escravocrata espanhol. Nesse perfil encontramos Juan Ginés de Sepulveda5, que
por sua vez concluiu seu doutorado em Bolonha sob orientação de Pedro Pomponazzi6.
Naquela época, em Bolonha os fundamentos filosóficos se firmavam sobre a tradição
aristotélica alexandrina, já que estavam circulando as traduções do comentador Alexandre de
Afrodísia7. Como Pomponazzi não aprendeu grego, e seu latim era medíocre, ele viu-se
obrigado a estudar os clássicos através das traduções recorrentes dos comentadores gregos
reencontrados, em especial Alexandre de Afrodísia. Seguindo então a tradição aristotélica
alexandrina, Pomponazzi entrou em disputas com aristotélicos averroistas (predominantes em
Pádua), e com os aristotélicos escolásticos (caracterizados, sobretudo, pelos tomistas).
Ginés por sua vez, irá se apropriar do pensamento alexandrino, via orientação de
Pomponazzi e também através de traduções que fará tanto de Afrodisia quanto do próprio
Aristóteles. Também aqui é importante ressaltar a influência de Agostinho de Hipona 8, onde
de acordo com ele a escravidão era tida como consequência acidental do pecado, sendo todo

não só são capazes de compreender a fé católica , mas , de acordo com as nossas informações , eles desejam
muito de recebê-la.” Cf. IGREJA CATÓLICA. PAPA (1534-1549: Paulo III). Carta encíclica Sublimus Dei.
Roma: < http://www.papalencyclicals.net/Paul03/p3subli.htm>. Acesso em 23 mai.2014.
5
Juan Ginés de Sepúlveda nasceu no ano de 1489 ou 1490, é incerta a localização exata do seu nascimento,
ficando entre em Pozoblanco, perto de Córdoba, na região de Andaluzia que pertencia ao Reino de Castela. Foi
um importante filosofo e jurista. Faleceu em Pozoblanco em 12 de julho de 1565. Cf RODRIGUES. J. P. M,
Juan Ginés de Sepúlveda:Gênese do Pensamento Imperial.2010,230f. Tese (Doutorado em Letras) - Centro de
Artes e Comunicação – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
2010.p.20 - 28.
6
Ou Pietro Pomponazzi (1462-1525) que por sua vez recebeu a típica educação aristotélica das universidades
italianas da segunda metade do século XV. Pomponazzi foi médico, catedrático de filosofia na Universidade de
Pádua, Ferrara e Bolonha, ministrando sempre em suas aulas diversas obras de Aristóteles, algumas até então
inéditas. Cf PRADEAU, J.F. História da Filosofia: Sob a Direção de Jean- François Pradeau. Trad. Jorge
Pereirinha Pires. Portugal, Dom Quixote, 2010. In o Aristotelismo. Pedro Pomponazzi.
7
Alexandre de Afrodísia conhecido como o exegeta, foi comentarista de Aristóteles. Teve muita influencia
durantes os séculos II e III d.C. Em Atenas foi chefe do Liceu e professor de Filosofia Peripatética. Teve grande
repercussão no mundo eclesiástico com a sua argumentação contra a imortalidade da alma influenciando
Pomponazzi. Cf. SCHULER,A.Dicionario enciclopedico de teologia.1.ed. Canoas: Ed.Ulbra, 2002. p 33.
8
“Esse nome [o de servo, escravo] mereceu-o, pois, a culpa, não a natureza. [...] Tornavam-se servos; palavra
derivada de servir. Isso também é merecimento do pecado.” Cf. AGOSTINHO. A Cidade de Deus. São Paulo:
Vozes , 2001, parte II. p. 406.
homem escravo de seus pecados, e que alguns também eram punidos convertendo-se em
escravos de senhores temporais.
Os estóicos também encontram-se representados no pensamento de Pomponazzi e, por
conseguinte, em Sepúlveda, onde o princípio é viver de acordo com a natureza. Para os
estóicos gregos, existem três acepções de physis: a) Princípio ou força que dá unidade ou
coerência; b) Deus, o princípio cósmico imutável, inteligente e inteligível, princípio ativo,
matéria inteligente que todo o penetra e recta ratio (que depois será o Direito Natural); c)
fogo artístico que avança em direção a um fim criador. Por fim, conclui-se que a natureza está
munida de um Logos, a racionalidade por excelência, e nesse sentido, a natureza é Deus como
pricípio racional supremo. Logos pode significar então, palavra, discurso ou razão.
Entretando, o logos não se revela igual em todos os seres: será hexis nos seres inorgânicos,
physis nos orgânicos e psyche nos homens, que é racional porque é um fragmento do logos, o
que faz o homem partícipe da divindade. Os estóicos acreditam que viver virtuosamente seria
viver seguindo essa natureza, de modo que todos os homens têm obrigações morais uns com
os outros e todos os fatos obedecem a um estrito regime de causa e efeito. Partindo dessas
referencias, Sepúlveda irá defender a seguinte interpretação da A Política de Aristóteles:

Assim, em toda parte onde se observa a mesma distância que á


entre a alma e o corpo, entre o homem e o animal, existem as
mesmas relações; isto é, todos os que não têm nada melhor para
nos oferecer do que o uso de seus corpos e de seus membros
são condenados pela natureza à escravidão. Para eles, é melhor
servirem do que serem entregues a si mesmos. Numa palavra, é
naturalmente escravo aquele que tem tão pouca alma e poucos
meios que resolve depender de outrem.9

Ou seja, para Sepúlveda, aquele que se mostre inferior racionalmente deve ser posto
em regime de escravidão sob a tutela de alguém racionalmente superior. Uma vez que o
superior está mais próximo da natureza divina, ao passo que o inferior está próximo da
natureza animal. Outro ponto importante nos argumentos de Sepúlveda será o argumento de
Afrodísia quanto à racionalidade. Segundo o aristotélico alexandrino, a razão é restrita ao
homem, uma vez que os animais movem-se pela faculdade impulsiva, assim essa distinção é
usada para analisar a função racional, exclusiva aos homens unicamente. Onde procedendo
desse método, Afrodísia também sugere uma ordem em que a dignidade do objeto é acentuada

9
ARISTÓTELES. A Política. Tradução Roberto Leal Ferreira. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.13.
pela sua posição final, sendo que o último a ser considerado é o elemento racional e é o que
possui maior grandeza10.
E em referência ao regime estóico de causa e efeito, Sepúlveda defendia que os índios
mereciam o tratamento que recebiam por que seus pecados e idolatrias se constituíam em uma
ofensa contra Deus. E essa interpretação ele emprega ao seguinte paragrafo de A Política de
Aristóteles:

Limitando-nos aos aspectos materiais, como no caso das


estátuas dos deuses, não hesitamos em acreditar que os
indivíduos inferiores devem ser submissos. Não pretendemos
agora estabelecer nada além de que, pelas leis da natureza, há
homens feitos para a liberdade e outros para a servidão, os
quais, tanto por justiça quanto por interesse, convém que
sirvam.11

Sepúlveda condena os sacrifícios humanos e atos dos indígenas como ofensa à Lei
Natural12. Quanto a Lei Natural, Sepúlveda entende que a mesma é de conhecimento de todos,
mesmo entre os bárbaros, já que essa lei foi impressa por Deus no coração e razão dos
homens. E de modo que os sacrifícios humanos que os índios praticam ferem a lei natural,
isso legitima a intervenção sobre a soberania de um povo, mediante a guerra justa e a
ocupação, já que a Lei Natural está acima do Direito dos Povos. Assim, há um único motor
inicial, Deus e uma única ordem natural, physis, cujas leis são inexoráveis. Ginés defende que
qualquer um pode seguir a lei natural, já que é de caráter quase intuitivo, longe da
complexidade e corruptibilidade do direito positivo, mesmo os índios são capazes de
compreender.
Um ponto controverso de Sepulveda é quando ele relata que seja preferível obedecer a
príncipes injustos e até tirânicos do que colocar em perigo o princípio de autoridade da
república.13 Logo, observa-se através de nomes como Pomponazzi e Sepulveda têm como

10
ZINGANO, M. O Tratado do Impulso e da Faculdade Impulsiva de Alexandre de Afrodísia e sua versão em
Miguel de Éfeso. Journal of Ancient Philosophy, São Paulo, Vol II, No 2, 2008. p. 6.
11
ARISTÓTELES. A Política.Tradução Roberto Leal Ferreira. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.14.
12
Por Lei Natural entende-se todas as coisas, que a razão prática, naturalmente apreende, como ser o bem do
homem, pertencem aos preceitos da lei natural sob o aspecto das coisas que se hão de busca ou evitar. Cf
CAVALLARO.M.F. Lexicon: Dicionário teológico enciclopedico. São Paulo: Ed. Loyola, 2003. p.436.
13
Aqui nota-se uma preocupação com qualquer tipo de insubordinação ao poder vigente. Isso deve ao fato de
que Sepulveda durante os oito anos que permaneceu na Itália ( 1515 – 1523) permitiu-lhe estabelecer relações
com pessoas importantes no âmbito politico e intelectual – Julio de Medicis, que logo seria o papa clemente VII,
Adriano, também papa, Alberto Pio, príncipe de Capri de protetor de Pomponazzi. CF BRUIT.H.H. Bartolomé
de Las Casas e a simulação dos vencidos. Campinas: Ed.Unicamp,1995.p.120. Seu biografo e apologista Ángel
Losada o descreve como”dominado pelo desejo de aumentar sua propriedade”. E continua Losada, “ quem
consultar os numerosos documentos sobre a vida de Sepúlveda no Arquivo de Protocolo, em Córdoba, deve
fundo uma interpretação de Aristóteles arraigada também por interesses políticos e
econômicos da sua época.

3. A escola de Salamanca
A escola espanhola de direito natural foi fundada por Vitoria, e a ele também foi
atribuído o pioneirismo ao tratar do direito natural das gentes em perspectiva internacional ou
das relações entre os povos. Sob influência de Crokaert, Vitoria dedicou-se aos comentários
à Suma de teologia. E mais tarde, quando assume a cátedra na escola de Salamanca, Vitoria
segue o exemplo de Crokaert e introduz o estudo dos textos do Aquinate.
Dentre os feitos de Vitoria, destaca-se o mérito de ter formulado, o que hoje é o
Direito Internacional dos Povos. Mesmo perante os riscos de ameaças da Santa Inquisição,
14
Vitoria questiona a autoridade do Papa nas relações internacionais , descentralizando essas
mesmas relações da esfera da ética cristã. Ainda sobre autoridades, Francisco de Vitoria
defende a existência de um direito superior à vontade do soberano, uma vez que criado pela
volição divina, e intrínseco à natureza humana, o Jus naturale15, que seria paradigma para a
regulamentação do Jus positivu instituído pelo rei. Nas Epístolas de São Paulo16, baseia-se na
fraternidade existente entre os seres humanos, acentuando a condição de regra moral aliada a
uma origem divina. De fato, frei Francisco de Vitoria escreveu o Direito Internacional dos
Povos visando à proteção dos Direitos Humanos dos povos recém descoberto da América.
Enquanto que, os defensores do domínio sobre esses povos os consideravam passíveis de
escravidão e maus tratos, devido a sua baixa racionalidade e costumes condenáveis, tais como
os sacrifícios humanos, e a sua infidelidade. Vitoria altera o significado político da relação

concluir que ele nada fez na vida exceto comprar, vender, arrendar, e acumular benefícios eclesiásticos”. CF
HANKE.L. Aristóteles e os índios americanos. Tradução de Maria Lucia Galvão Carneiro. CARNEIRO. São
Paulo: Livraria Martins, 1955. p 103 e 104.
14
No dia 4 de maio de 1493 foi publicada a A Bula Inter Coetera expressão em latim que em língua portuguesa
significa "entre outros (trabalhos)", foi a primeira bula do Papa Alexandre VI. Esta bula tratava-se de uma
doação do Papa beneficiando os Reinos de Espanha e Portugal na divisão do chamado novo mundo. O Papa
atribuía a sí este poder sobre as novas terras segundo a visão medieval Santo Agostinho de que a Igreja seria
responsável por ordenar e organizar a cidade dos homens a fim de aproximar-se da cidade de Deus.
Cf. SEITENFUS.R.LegislaçãoInternacional.2.ed.Barueri:Ed.Manoele,2009.p.1411.pg 1360
15
O direito natural tem suas origens no Direito Romano Clássico, uma vez que de inspiração dos filósofos
estóicos, conforme a definição de Gaio: “quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud
omnes populus peraeque custoditur, vocaturque ius gentium” traduzido livremente por mas a que a razão
natural estabelece entre todos os homens, que igualmente observadas entre todas as pessoas, e é chamado a lei
das gentes. Cf. RUIZ.R. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação
indigena espanhola no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS,2002.p.9.
16
Não há, pois, judeu nem negro, escravo ou livre, varão ou fêmea, pois sois um em Jesus Cristo. Galátas, 3,28.
Cf RUIZ.R. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação indigena
espanhola no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p.222 (Coleção filosofia: 147).
entre ordem natural e ordem sobrenatural a partir de Tomas de Aquino. “Mas o sobrenatural
tem como sujeito um ser natural, uma natureza que sobreleva sem exprimi-la. Não existe uma
ordem das realidades sobrenaturais que existiria separadamente da ordem das realidades
naturais”.17E interpreta que existe uma autonomia da ordem natural como criada por Deus. E
sendo assim, todo homem é naturalmente a imagem e semelhança de Deus, de modo que nele
contém em si um conjunto de direitos naturais próprios que não são subjugados a nenhuma
outra ordem externa, seja ela jurídica, política ou religiosa. Todavia, Vitoria não considera a
lei natural como incondicional ou irrestrito, dado que o ser humano não é um ser a se, e sim
um ser ab alio18. De modo que como animal social, como determinou Aristóteles, o homem
tem deveres para com os outros homens, e como tal, também têm direitos, dentre eles a
manutenção da própria vida; e deveres para com Deus, uma vez que ciente de sua condição,
esse homem deve procurar orientar-se moral e religiosamente ao seu criador, o ser a se. Ainda
que submetido às autoridades externas, o homem mantém a sua essência independente, com
propriedades que são imutáveis, universais e necessárias, de maneira que a sua falta destrua
essa essência. Logo, essas propriedades são livres de qualquer domínio positivo, religioso e
político, sendo elas inerentes à natureza humana e devendo ser respeitadas por todos. Com
tudo, a dignidade humana é para Vitória, o princípio natural que determina todo o sistema
político e jurídico. Da essência da natureza humana e sua dignidade se deriva a lei natural.
Lei natural é prévia a qualquer lei positiva ou civil. Ou seja, nenhuma lei positiva pode violar
a lei natural19.

3.1 Bartolomé de Las Casas


O pensamento inovador de Vitoria se propagou no meio acadêmico e influenciou
pensadores como Bartolomé de Las Casas20, tido como patrono dos povos indígenas das

17
Cf .AQUINO.T. Suma Teológica I. 2.ed. São Paulo: Ed.Loyola, 2001. p.91-92. Cf. DOIG. G. Direitos
Humanos e Ensinamento Social da Igreja. São Paulo: Ed. Loyola, 1994.p.57.
18
No vocabulário latino da escolástica, é comum distinguir as expressões a se e ab alio. A se significa por si
mesmo, a partir de si; ab alio significa procedente de outro. Diz-se que Deus é um ser a se. Em contrapartida, de
uma entidade criada se diz ser ab alio. CF MORA.J.F. Dicionário de Filosofia, tomo I(A-D).2.ed.São Paulo: Ed
Loyola, 2004. p.8.
19
La ley civil, em efecto, es fruto de la razón humana, así como la ley natural. Esta última, sin embargom es
anterior a la ley positiva y es fundamento de la ley humana civil. Este origem condiciona no sólo el valor moral y
jurídico, sino la misma obligatoriedad de las leyes civiles, que, en realidad, no son auténticas leyes, cuando no se
derivan de la ley natural. Cf VITORIA, Francisco de. De Legibus; estúdio introductório Simona Langella;
traducción al español Pablo Garcia Castillo; tradución al italiano Simona Langella. Salamanca: Ediciones
Universidad de Salamanca, 2010, p 45.
20
Las Casas Bartolomé de Las Casas nasceu em Sevilha, em 1474. Em abril de 1502, já formado em direito pela
Universidade de Salamanca, embarcou para a América em companhia de Nicolas de Ovendo. Morreu em 1566
na Espanha. Cf. NETO.J.A.F. Bartolomé de Las Casas: a narrativa trágica, o amor cristão e a memória
americana. São Paulo: Annablume, 2003. p.34, 64.
Américas. O primeiro contato de Las Casas com a questão indígena se deu quando seu pai
recebeu um índio escravo de presente do comandante da expedição. Nascido numa família
com dificuldades financeira, Las Casas viu nas promissoras Índias Ocidentais a possibilidade
de mudar a sua condição social. Com esse propósito no ano de 1502, Las Casas parte para o
Novo Mundo, entretanto, é importante salientar que ele chegou a Santo Domingo como
clérigo assumindo as atividades de encomendero21 e doutrinador dos índios. Contudo no ano
de 151422, Las Casas renuncia a sua encomienda em prol da causa dos índios. Mais tarde entre
as idas e vindas ao velho continente, ele retorna a Espanha mais uma com o objetivo de
denunciar os maus tratos empregados contra os índios. Então no ano 1517, ele consegue falar
com o rei recém-instalado Carlos V que por sua vez autoriza o seu projeto de colonização
pacífica na região de Tierra Firme. Projeto esse que fracassou no ano de 1522, com o ataque
indígena na aldeia de Las Casas, exterminando o maior numero de pessoas que ali estavam.
Sendo que Las Casas escapou apenas por que estava em viagem. Após esse episódio,
Bartolomé de Las Casas ingressa na ordem dominicana retomando seu período de estudos,
tendo como modelo os padres da Igreja, em especial Tomás de Aquino, documentos papais,
além dos filósofos gregos. Participou de missões evangelizadoras de sua ordem religiosa em
viagens, inclusive com a companhia de Hernán Cortés. No ano de 1540 Las Casas retorna e
Espanha, e em 1542 publica a Brevísima relación de la destruición de las Índias23
tencionando a suspensão das encomiendas. A obra escrita em linguagem calamitosa perturbou
a corte espanhola. Tanto que em resposta o rei Carlos V, convocou um conselho e promulgou
as Leis Novas, substituindo as Leis de Burgos24 (1512). Com a implementação das Leis

21
A encomienda foi estabelecida a partir de um arranjo contratual, caracteriza-se pela submissão de um número
variável de indígenas pagadores de impostos a um encomendero, – inicialmente os mais notáveis soldados
espanhóis nas guerras de conquista – responsável por viabilizar sua incorporação aos moldes culturais,
econômicos e sociais europeus. No âmbito da circunscrição territorial, a encomienda não é uma concessão de
terras, mas uma concessão de recolhimento de tributos em troca da educação cristã e de proteção. Cf
BETHELL,L. História da Ámerica Latina: America Latina Colonial, volume II. São Paulo: Ed. USP, 1999.
p.219-224.
22
Conta-se que a conversão de Las Casas se deu durante as festas de Pentecostes, após a leitura de um trecho
Eclesiástico (34,18) escolhido para celebração. O trecho diz que “oferecer um sacrifício fruto da iniquidade é
fazer uma oferenda manchada”. Cf NETO.J.A.F. Bartolomé de Las Casas: a narrativa trágica, o amor cristão e
a memória americana. São Paulo: Annablume, 2003. p.41.
23
Certo número de índios pacíficos vieram pôr-se em suas mãos oferecendo-lhes seus serviços, que eles haviam
mandado pedir; mas como não vinham bastante depressa, ou então, segundo o costume que têm, pelo fato de
querer gravar neles um temor horrível e espantoso, o governador ordenou que fossem entregues aos outros índios
que os consideram inimigos, motivo pelo qual, chorando e suplicando, imploravam que os matassem os
espanhóis mesmo e não os entregassem a seus inimigos; e não querendo sair da casa em que estavam, foram
feitos em pedaços enquanto gritavam e diziam: Nós vimos vos servir em paz e vós nos matais; nosso sangue fica
nessas paredes em testemunho de nossa morte injusta e de vossa crueldade. Cf: LAS CASAS, B. Brevíssima
relação da destruição das Índias: O paraíso destruído. Porto Alegre: LePM Editores Ltda, 1984. p. 97.
24
Estas leis autorizavam e legalizavam a prática colonial de se criar encomiendas, onde índios eram agrupados
para trabalhar para senhores coloniais, limitando o tamanho destes estabelecimentos. Elas também estabeleciam,
Novas, Las Casas finalmente conseguiu atingir seu objetivo que era a proibição de novas
encomendas, a retirada das que estavam sob a responsabilidade do clero, a proibição da
servidão indígena, mesmo em situação de guerra, uma vez que estes eram livres.

3.2 Juntas de Valladolid


Dado o panorama em que foi inserido Las Casas, era natural que ele encontra-se
oposição em Sepúlveda, visto que os dois defendiam publicamente opiniões opostas quanto
aos tratos aplicados na colonização espanhola. Sepúlveda escreveu em 1533 o tratado
Democrates primus o de la conformidad de la milicia con la religion Cristiana, onde defendia
a ação bélica em determinadas condições, mesmo nos conflitos religiosos. E em 1543, no
mesmo ano da edição das Leis Novas, Sepúlveda escreve o segundo texto, o Democrates
Secundus, contra os opositores da conquista espanhola e críticos das ações do império e da
Igreja até aquele período.
As Juntas de Valladolid foram convocadas por Carlos V com o objetivo de ouvir as
argumentações prós e contra as ações da coroa espanhola durante a ação colonizadora nas
Índias Ocidentais, e se elas poderiam ser estendidas a outras terras conquistadas pela coroa. O
intuito era a construção de valores universais que seriam aplicados na expansão do império
espanhol sobre culturas e raças distintas das deles. A teoria triunfante foi a do patrono dos
índios, Las Casas, que, por sua vez, erigiu suas teses alicerçando-as em Vitoria.
Apresentaremos aqui as três teses centrais da discussão:
- Racionalidade inferior e costumes condenáveis: Como já vimos Sepúlveda, baseado
em A Politica de Aristóteles irá dizer que devido a sua condição de racionalidade inferior
quase paralela com os animais classifica os índios como servos naturais, cabendo aos
espanhóis, como portadores da cultura civilizada, tomar tutela sobre eles25. De maneira que
essa mesma racionalidade pífia apresentada pelos índios impede que eles possam exercer o
governo sobre suas terras e si próprio. Vitoria irá contra argumentar dizendo que:

no entanto, um regime de trabalho minuciosamente regulado, o salário, as provisões, o alojamento, a higiene e o


cuidado pelos índios num espírito razoavelmente humanitário. CF. RUIZ.R. Francisco de Vitoria e os direitos
dos índios americanos: a evolução da legislação indigena espanhola no século XVI. Porto Alegre:
EDIPUCRS,2002.p.163.
25
Consta no Sumário da Disputa entre o Bispo Dom Frei Bartolomé de Las Casas e o Doutor Sepúlveda: Outra
conclusão era que os índios são obrigados a se submeter-se para ser governados pelos espanhóis, como os menos
sábios devem submeter-se aos mais prudentes e sábios; e que, se não querem submeter-se, os espanhóis podem
mover-lhes guerra. Cf: LAS CASAS, Frei Bartolomé. Brevíssima relação da destruição das Índias: O paraíso
destruído. Porto Alegre: LePM Editores Ltda, 1984. p. 116 .
“É evidente que têm certa ordem nas coisas: que têm cidades devidamente
organizadas, casamentos bem definidos, magistrados, senhores, leis, professores, industrias,
comércio; tudo isso exige o uso da razão” ( De Indis, I1, 15,p.29)26.
Enquanto que Las Casas considera absurdo o conceito de bárbaro empregado aos
índios por Sepúlveda, e defende a racionalidade indígena argumentando que o conceito de
servidão natural do estagirita aplica-se apenas a espécie de povos bárbaros que são de
costumes perversos, que vivem nos campos e selvas, sem organização politica, sem leis e sem
ritos. O que não era o caso dos índios do Novo Mundo.
De modo que como defende Vitoria, os índios não eram escravos por natureza, mas
livres e senhores de seus domínios. “os índios, antes da chegada dos espanhóis eram
verdadeiros senhores, publica e privadamente (De Indis, I 1, 16,33-34, p.31)27.
- Infidelidade: Aqui Sepúlveda acusa os índios pelos pecados, torpezas e impiedades
cometidas pelos indígenas, em especial os pecados de sodomia e idolatria. Defendendo que os
índios deviam sofrer a guerra para que fossem desviados dessas perversões. Vitoria responde
a esse argumento da seguinte dizendo que os atos de cometerem incestos, atos de
homossexualismo não eram exclusividade dos índios, sendo praticados também por europeus,
como os franceses e italianos. De modo que se fosse considerar este um motivo válido para
aplicar a chamada Guerra Justa contra os índios, também autorizaria os índios a declarar
guerra aos europeus pelos mesmos motivos. Ainda que infiéis, a sua infidelidade não pode ser
castigada pelo Papa, justo por que o pontífice não pode legislar sobre os índios por não ter
jurisdição sobre eles. Já que os prelados só podem exercer autoridade sobre aqueles que se
submeteram a fé. Las Casas utiliza-se da tradição tomista e vitoriana dizendo que os infiéis
não podem ser punidos por nenhum juízo do mundo antes que recebam por vontade própria o
santo batismo28.
- O sacrifício humano: Como já apontado, Sepúlveda condena os sacrifícios humanos
de vítimas inocentes como ofensa à Lei Natural, argumentando inclusive que o não respeito
essa lei legitima qualquer interferência sobre a soberania de um povo. Las Casas aqui aceita a

26
Apud. RUIZ.R. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação indigena
espanhola no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS,2002.p.81.
27
Apud. RUIZ.R. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação indigena
espanhola no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS,2002.p.83.
28
Segundo o Extrato da Sexta Razão: Acusaram-nos também de idolatria, como se, ainda eu fosse idólatras
pudessem ser punidos pelos homens e não unicamente por Deus, contra quem eles pecam. Possuindo terras e
reinos e não devendo obediência a ninguém senão a seus próprios senhores naturais, estão na situação de nossos
antepassados que do mesmo modo foram idólatras antes que lhes fosse pregada; todo o mundo era idólatra no
momento em que veio Jesus Cristo. Cf: LAS CASAS, Frei Bartolomé. Brevíssima relação da destruição das
Índias: O paraíso destruído. Porto Alegre: LePM Editores Ltda, 1984. p. 130 .
argumentação de Sepúlveda e acrescenta que nesse caso a Igreja tem autoridade de promover
a guerra justa, considerando que a por lei divina a Igreja tem obrigação de defender a vida dos
inocentes. No entanto, Vitoria, mesmo aceitando que o principio de defesa da vida, levantado
por Sepúlveda fosse verdadeiro, ira defender que intervenção nesse caso deverá ser feita por
solidariedade internacional, podendo ser proibidos pelos reis da Espanha. Esta intervenção,
feita por solidariedade humana é o que evidencia a linha moderna na teoria vitoriana. De
maneira que Vitoria a articula sobre esse nova pessoa jurídica, a humanidade. De modo que o
crime contra a lei natural se configuraria em injúria contra a humanidade. Todavia,
preocupado com a distorção dessa premissa, Vitoria legitima a ação da solidariedade
internacional nas seguintes condições: “sem dolo nem fraude e não se procurem fingidas
causas de guerra” (De Indis, I 3, 7, 33, p.28) 29.
Enfim, a despeito de todos os impedimentos, tanto Vitoria quanto seus seguidores
sobrepujaram os argumentos de Sepúlveda. Mesmo que o imperador tenha escrito ao superior
de Salamanca solicitando a proibição das discussões sobre as conquistas espanholas; em
contrapartida, o próprio imperador ordenou aos seus subordinados que não abusassem da
doação papal como titulo justificador da conquista do Novo Mundo. De modo que, graças ao
empenho de Vitoria em desmantelar o pensamento escravocrata espanhol, erguido sobre as
teses aristotélicas e suas influências na escola de Salamanca, que Las Casas comovido com a
condição indígena fez uso das concepções vitorianas no intento de denunciar e reverter à
situação indígena.

4. Outros argumentos a partir de Aristóteles


Ainda no século XVI, o jesuíta José de Acosta publica De procuranda Indorum Salute
em 1588, sendo este o primeiro livro produzido na América pela ordem jesuíta. O livro foi
escrito em Lima, onde podemos traduzir o título como “Para garantir a segurança dos índios”.
Neste livro Acosta reprova os que insistiam em acreditar na ignorância e incapacidade dos
índios, de maneira que procurava orientar e fundamentar os métodos com que os missionários
deveriam por em prática nas pregações do cristianismo entre os indígenas. Acosta é adepto da
doutrina de Las Casas acerca da pregação pacífica. No pro oeminum faz a distinção entre os
três tipos de índios, onde classifica os índios do Caribe (os que andavam nús e comiam carne

29
Apud. RUIZ.R. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação indigena
espanhola no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS,2002.p.88.
humana) como os mais próximos da descrição de Aristóteles30. E que seriam eles uma vasta
parte dos rebanhos a serem cristianizados no Novo Mundo. Condenava a ideia de guerra justa
contra os indígenas por causa de seus crimes contra o direito natural ou motivado pela teoria
da escravidão natural de Aristóteles.
No século XVII, Juan Solórzano Pereira redigiu o livro Política Indiana (1647), onde
defendia a ação espanhola na América e os chamados criollos, os espanhóis nascidos na
América. Solórzano aceitava que vários autores adotavam a teoria de Aristóteles de que os
índios eram servos e escravos por natureza, que poderiam ser submetidos a obedecer aos que
fossem doutos, de modo que a guerra contra eles era justificada31. Todavia, juntamente com
José de Acosta dividia os índios em três categorias, de acordo com a capacidade e a
quantidade de cultura32. Onde a seu ver, apenas o último grupo, formado de indígenas nus e
obtusos que vagavam pelas florestas, estariam inclusos na classe de escravos naturais
conforme o pensamento de Aristóteles. Solórzano justifica que a dominação sobre os índios
da terceira classe serviria para fazê-los cristão, mas para isso primeiro era necessário fazê-los
homens, ensinando-os, para que se comportassem como tal33.

5. Conclusão
Com as descobertas do Novo Mundo e a conquista espanhola sobre as Índias
Ocidentais, A Política de Aristóteles precisou ser atualizada e usada como argumento para
justificar filosoficamente o domínio sobre aqueles povos. Partindo da teoria da escravidão
natural, os pensadores escravocratas, justificavam a escravidão classificando os índios como

30
No canto da página onde Acosta faz a referência a Política de Aristóteles escrito da seguinte abreviatura Arist.
I. Polit.,n.2 pass. et 5. Ao lado, Acosta escreve Huc barbarorum genus Aristoteles attigit, cum fererum more
capi et per vim domari posse scripsit, quórum in novo orbe sunt infiniti greges. Que pode ser traduzido
livremente como “"Aristóteles menciona esse gênero de bárbaros, visto que escreveu que podem ser capturados
a modo de feras selvagens e domados pela força, e desses existem no novo mundo grupos sem fim".” CF.
ACOSTA, Jose de. De Procuranda indorum Salute. Lima, 1588. Pro oeminum. sem paginação.
31
Por que los que llegan à ser tan brutos, y barbaros, son tenidos por bestiais; mas que por hombres, y entre ellas
se quantan en la Sagrada Escritura, y en otros autores, y en outras partes son comparados á los leños, y á las
piedras. Y assi segun la opinion de Aristoteles, recebida por muchos siervos, y esclavos por naturaleza, y pueden
ser forzados à obedecer à los mas prudentes: y es justa la guerra, que sobre ello se les hace. Y à un Celio
calcagnino, comentando al mesmo Aristoteles. CF SOLÓRZANO,P, J. Politica Indiana, Livro I, cap IX, n.20
(41-44).
32
Y assi advertidamente el Padre Joseph de Acosta, que miró estas materias de las Indias, è Indios, y su
naturaleza, y costumbres con mas antencion, que otros, los divide en tres classes. En la primera constituye à los
Chinos, Japones, y Orientales, que tenian, y tienen su forma de Republicas, Leyes, letras, o caractéres, y otras
cosas, que descubrem su entera capacidad. En la segunda è los Peruanos, Mexicanos, y Chilenos, que tambien,
aunque no tanta, mostraron tener alguna, y se governaben por Reyes, y en forma de poblaciones, si bien todo
tiranizado, mal ordenado, y mezclado con tantos errores, y supersticiones, que obscurecian la poca luz de razon
natural, que les alumbraba. En la tercera cuenta à los mas, que como he dicho, aun carecian de ellos, y andaban
desnudos, y por los montes. . CF SOLÓRZANO,P, J. Politica Indiana, Livro I, cap IX, n.25 (57-58), n.26, n.27
(59),n.28.
33
CF SOLÓRZANO,P, J. Politica Indiana, Livro I, cap IX, n.31.
incapazes e ignorantes, sendo o mais apropriado que permanecessem sobre a tutela dos doutos
espanhóis. Haviam os que baseados no argumento aristotélico da escravidão natural,
defendiam a guerra justa contra os índios devido ao que os espanhóis consideravam como
desrespeito aos direitos naturais.
Em meio a tudo isso, eis que surge Francisco de Vitoria que através de uma nova
interpretação da teoria aristotélica a cerca a escravidão natural, introduz uma nova concepção
em relação à dignidade dos índios e a soberania desse povo sobre suas terras. Esse
pensamento foi disseminado na Escola de Salamanca, e acabou respingando na Corte
espanhola, graça a intervenção de defensores dos índios como Vitoria, Las Casas e Acosta.
Contudo, o pensamento escravagista de Sepúlveda apoiava-se mutuamente nos
interesses dos exploradores que dependiam da mão-obra indígena e da extração das riquezas
do Novo Mundo como fonte de renda e ascensão social. De modo que a escravidão na
América espanhola só foi abolida no século XIX, depois de quatro séculos de matança,
exploração, escravidão e maus tratos empregados aos índios.
Fica então registrado aqui, que já no início houve uma tentativa real de mudar a
situação calamitosa em que os índios se encontravam por meio da conquista e dominação
espanhola.

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