Você está na página 1de 8

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

Eduardo Martin Miranda (No USP 10761590)

Professora Eliane Robert Moraes

"'A passagem da consciência individual ao posto de centro mimético da

narrativa' em Clarice Lispector e Hilda Hilst"

São Paulo

2019
Fluxo de consciência, de acordo com Humphrey em seu livro "O Fluxo da

Consciência" é um método utilizado “para representar o conteúdo e os processos

psíquicos do personagem [...] exatamente da maneira como esses processos existem

em diversos níveis do controle consciente antes de serem formulados para a fala

deliberada”, sendo assim, o fluxo de consciência pode ser entendido como o

pensamento corrente na psique da personagem, da forma como esse é concebido,

processado, com irregularidades e inconstâncias, podendo ser articulado ou não por

um narrador. Quando temos uma narrativa em que a personagem, através desse

narrador demonstrará o que se passa dentro de sua cabeça, seus pensamentos

correntes, bem como suas sensações, as quais verbalizará, pois muitas vezes, nem

mesmo as personagens conseguem fazê-lo, nomearemos como um Fluxo de

Consciência Tradicional, mas quando tratamos da não mediação da narrativa por meio

de um narrador, e que ainda trata da psique das personagens, nos referimos ao

monólogo interior, esse vai se apresentar como um diálogo entre a personagem

consigo mesma ou, até mesmo, com um interlocutor imaginário, dentro do plano

subjetivo; esse diálogo vai coincidir diretamente com os pensamentos da

personagens, pois retrata as vozes diretas de sua psique.

Tanto em Clarice Lispector, quanto em Hilda Hilst, suas narrativas se dão

centralmente através desse fluxo, que se passa na consciência de suas personagens,

todavia, articulam isso através de técnicas narratológicas pontualmente diferentes.

Em "A Obscena Senhora D", Hilda articula os pensamentos de Hillé na forma de

encadeamento das vozes que se passam em sua psique, numa espécie de transcrição

dos seus pensamentos, através do que Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes

conceituaram especificamente como monólogo interior em seu livro "Dicionário de


Narratologia". Já em Clarice, essas vozes, constitutivas da totalidade da obra de Hilda,

se interpelam a intervenções de um narrador, não onisciente, mas sim que busca

entender as personagens, e nos intermedia no mergulho à consciência delas no que

se pode caracterizar como um fluxo de consciência tradicional.

Tratando-se de "A obscena senhora D", de Hilda Hilst, percebemos que esse

fluxo de consciência é intenso, e pode ser observado no trecho a seguir:

"[...] Hillé, andam estranhando teu jeito de olhar

que jeito?

você sabe

é que não compreendo

não compreende o quê?

não compreendo o olho, e tento chegar perto.

Também não compreendo o corpo, essa armadilha, nem a

sangrenta lógica dos dias, nem os rostos que me olham nesta vila

onde eu moro, o que é casa, conceito, o que são as pernas, o que

é ir e vir, para onde Ehud, o que são senhoras velhas, os ganidos

da infância, os homens curvos, o que pensam de si mesmos os

tolos, as crianças, o que é pensar, o que é o nítido, sonoro, o que

é som, trinado, urro, grito, o que é asa hen? [...]"

O trecho acima é um exemplo suscinto de como em toda essa obra de Hilda tal

fluxo se desdobra em um tipo particular de monólogo interior, no qual a autora

sobrepõe uma sucessão de vozes introspectivas (no fragmento, hora de Hillé, hora de

seu marido, Ehud), em um diálogo interior, já que seu interlocutor já estava, inclusive,
morto naquele tempo. Sob a lente da formalidade, inteligentemente, Hilst quebra com

a gramática tradicional, ao apresentar a fluidez tópica desses diálogos através apenas

de vírgulas, bem como as vozes dos interlocutores são alternadas sem quaisquer

aspas, travessões, parágrafos, somente pulando linhas, não coloca nem mesmo letras

maiúsculas quando se trata do início de falas ou parágrafos para realizar a

diferenciação, o que contribui em grande parte para a construção de uma sensação

de um pensamento desordenado.

Hilda constrói suas personagens de forma fragmentada através desses

monólogos interiores, havendo uma busca por entender a si, ao mundo e a si inserida

nesse mundo e, por isso, ela perpassa por questões sociais, sexuais, do feminino,

sobre Deus, morte, envelhecimento e sobre o "eu". Tendo em vista a técnica utilizada,

percebemos que aqui, a escrita Hilstiana, passa por um processo de interiorização, os

fatores externos a Hillé, não são de grande importância, o que vai realmente importar,

é a expressão mental da personagem acerca dos acontecimentos que

acompanhamos de forma, até certo ponto, "confusa" através de seus pensamentos.

Por isso, o livro trabalha com uma grande incerteza, não temos como ter a noção da

veracidade dos acontecimentos, muito menos da ordem cronológica em que se

passaram, visto que o pensamento não é algo ordenado, transitamos constantemente

entre coisas, memórias sensações, etc., mas, da forma que são apresentados,

conhecemos muito sobre o interno da protagonista, enquanto, em relação ao seu

exterior, pouco sabemos.

Ainda pensando a relação forma-conteúdo, Hilda faz com que haja um

incomodo durante toda obra, visto que é intensamente trabalhada as relações de

busca sem uma conclusão definitiva, Hillé procura entender o físico através do

metafísico e vice-versa e, ao fim do livro, vemos que nenhum desses questionamentos


são respondidos, Hillé se vê cada vez mais perdida dentro de si, sem encontrar

respostas, parte de seu isolamento, provém desse aprofundamento no "eu",

percebendo que não encontraria respostas no mundo exterior, ela se isola, se confina,

no centro "de alguma coisa que nem sei dar nome", mas, ao mesmo tempo, se afasta

cada vez mais dele.

Quanto ao fluxo de consciência presente no conto de Clarice, será

exemplificado pelo trecho referente a epifania das personagens Catarina e Severina:

"Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também

a Catarina acontecera um desastre? Seus olhos piscaram

surpreendidos, ela ajeitava depressa as malas, a bolsa,

procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe.

Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder:

Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo

há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe.

Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado.

Do pai, sim. Catarina sempre fora amiga. Quando a mãe enchia-

lhes os pratos obrigando-os a comer demais, os dois se olhavam

piscando em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois do

choque do táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar -

por que não chegavam logo à Estação?"

No exemplo, temos o ponto central de intensificação do fluxo de consciência na

obra de Clarice, o da epifania, desencadeada por um acontecimento banal, que revira

a consciência e percepção das personagens sobre a si e sobre o mundo. A autora,

aqui mostra, sensações da mãe e da filha, e articula isso através de um narrador


externo, que, conjuntamente com as personagens, e com o próprio leitor, está na

"busca humilde", palavras da própria Clarice, de entender a posição delas e de suas

vidas, principalmente quanto suas ações e sua felicidade. As vozes da consciência de

suas personagens também são representadas – no trecho "Por que não chegavam

logo à Estação?" - porém, perceptivelmente, através de um narrador, exibindo assim,

um fluxo de consciência tradicional, que, diferentemente da obra de Hilst, se apresenta

de maneira perceptível por meio de travessões, aspas e paráfrases no tocante às

sensações e vozes.

A partir do momento de epifania, Catarina começa a questionar sua felicidade,

sua vida e, principalmente, sua relação com a mãe, o que dará margem para expandir

suas reflexões às suas relações familiares. A partir dessa reflexão, realizada sozinha,

no caminho de volta para casa, no fim do conto, ela resolve sair, sem qualquer

explicação, com seu filho, o que representa, de certo modo, o seu isolamento do

mundo, assim como fez Hillé em Hilst, nesse ponto, a focalização, assim como o fluxo

de consciência, que até então a acompanhavam, voltam-se para o seu marido, que

permanece no apartamento sentindo-se enciumado, tirado de sua zona de conforto

ao ver a partida de sua mulher e seu filho. Seus entes, passam a ser vistos pelos seus

olhos, as sensações voltam-se a ele, bem como as vozes interiores.

Quando a questão é enredo, ambas as autoras o põem em segundo plano.

Clarice apoia seu fluxo de consciência em um enredo simples, no caso de "Os laços

de família", a visita de uma mãe à sua filha, especificamente o momento de regresso

da visitante, em que uma freada brusca provoca o toque inesperado das familiares e,

a partir de então, se dá o momento de epifania da filha. Já quanto "A obscena senhora

D", Hilda elimina totalmente a ideia de um enredo, a temporalidade do momento é

banida. Sabemos sua idade, sua condição de viuvez, os diálogos que teve com seu
marido e algumas situações que viveram, somente através do mergulho que a autora

faz à consciência de Hillé. Parece, até mesmo, que a escrita não conta com um leitor

ativo, sentimos que estamos invadindo a cabeça da protagonista e explorando sua

intimidade através das suas memórias e questionamentos.

Em Hilst, a introspecção segue um mesmo nível constante do começo ao fim,

mas em Lispector, temos um processo ascendente que vai culminar no mais alto nível

da representação das relações internas, sendo assim, percebemos que as autoras se

utilizam de variações de um mesmo artifício para chegar a um mesmo objetivo final,

que é a fragmentação do ser e sua tentativa de reconstrução através de

questionamentos, em Hilda apresentado pelo monólogo interior, em Clarice, pelo fluxo

de consciência tradicional.
Referências Bibliográficas

GAY, Peter. "Modernismo: fascínio da heresia: de Baudelaire a Beckett e mais

um pouco." São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

GUIMARÃES, CINARA LEITE. "A OBSCENA SENHORA D, DE HILDA HILST, E

AS RELAÇÕES ENTRE EROS, TÂNATOS E LOGOS"João Pessoa, 2007.

Acessado em: 29/11

HILST, Hilda. "A Obscena Senhora D" São Paulo: Globo, 2001.

HOLANDA, P. D. S; CRUZ, Mestrando Felipe."O FLUXO DE COSNCIÊNCIA E O

MONÓLOGO INTERIOR NO CONTO 'OS LAÇOS DE FAMÍLIA' DE CLARICE

LISPECTOR.". Paraíba, 2013. Acessado em: 29/11

HUMPHREY, Robert. "O Fluxo da Consciência: um estudo sobre James Joyce,

Virginia Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner e outros;" trad. de Gert

Meyer. São Paulo, McGraw-Hill do Brasil, 1976.

JAMES, William. "O Fluxo do Pensamento." In: ___. Pragmatismo e outros textos.

São Paulo: Abril Cultural, 1979.

LISPECTOR, Clarice. "Laços de família." Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

NUNES, Benedito. "O drama da linguagem." São Paulo: Ática,1995

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. "Dicionário de narratologia." Coimbra:

Almedina, 2007.

Você também pode gostar