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NIGHTSEET

1
LAURELL K. HAMILTON

ANITA BLAKE TRADUÇÕES


TRADUÇÃO: Anny, Cris, Lorena, Luana.
REVISÃO FINAL: Anny e Lais.
https://anitablaketraducoes.wordpress.com/

1992
SOBRE O LIVRO

O romance de estreia fascinante da autora best - seller nº 1 do New York


Times?

Autora da série extremamente popular Anita Blake, Vampire Hunter, Laurell K. 2

Hamilton trouxe o sobrenatural à luz - e deu aos leitores uma visão de um mundo em
chamas com um suspense eletrizante e paixões violentas. Neste, seu romance de
estreia, sua rica imaginação abre suas asas para voar - em um conto de uma mulher
conhecida como feiticeira, profeta e feiticeira.
SOBRE A AUTORA

Laurell K. Hamilton é a autora mais vendida da aclamado série Anita Blake,


Vampire Hunter. Ela vive perto de St Louis com seu marido, sua filha, dois cachorros
e um número cada vez maior de peixes.
Ela convida você a visitar seu site em www.laurellkhamilton.org.

3
SINOPSE

Keleios, a Meio-Elfa, tinha apenas cinco anos quando viu sua mãe ser assassinada pela
bruxa Harque. Durante anos, ela pediu aos deuses a força necessária para vingar essa morte
imunda, e parece que os deuses a responderam.

Ela recebeu uma série de poderes nunca antes vistos em uma pessoa, mas ela também
adquiriu um fardo aterrorizante, uma marca demoníaca. Essa marca pode abrir a porta para
habilidades não sonhadas, mas também pode abrir sua alma para o lado escuro proibido da magia.
4
Keleios deve escolher entre o poder contaminado da marca demoníaca e a vida daqueles que
ela mais ama. Em uma batalha épica do bem contra o mal, de espadas encantadas e dragões que
mudam de forma, de ódio insaciável e amor improvável, Keleios deve enfrentar seus próprios
demônios - antes que ela possa adquirir o poder mais importante de todos: o poder de perdoar.
SUMARIO

PROLOGO 06
CAPÍTULO 01: UMA SONHADORA RELUTANTE 10
CAPÍTULO 02: UM FEITIÇO DE LIGAÇÃO 24
CAPÍTULO 03: PROFECIA 41
CAPÍTULO 04: UMA RESPOSTA 62
CAPÍTULO 05: NA ESCURIDÃO 86
CAPÍTULO 06: JURAMENTO DE SANGUE 109 5
CAPÍTULO 07: BORDA DO DEMÔNIO 125
CAPÍTULO 08: A ADAGA BRANCA 144
CAPÍTULO 09: FOGO E GELO 165
CAPÍTULO 10: A ÚNICA COISA MAIS TRISTE 174
CAPÍTULO 11: CORRENTES 194
CAPÍTULO 12: ALHARZOR 204
CAPÍTULO 13: HARQUE, A BRUXA 220
CAPÍTULO 14: UM SOM DE CORNETA 234
CAPÍTULO 15: A ILHA DO GUARDIÃO 263
CAPÍTULO 16: UMA QUESTÃO DE MAGIA 281
PROLOGO

A PROFECIA COMEÇA COM o pesadelo de uma criança.


Keleios não sabia que o sonho era profético; ela só sabia que era diferente dos
outros sonhos.
Mãe, Elwine, a Gentil, estava no topo de uma escada. Ela sorriu e acenou com uma
esbelta mão branca. Keleios, a criança, correu para ela. Keleios a via como muito alta e
muito linda, como só uma mãe pode ser. Uma mancha apareceu no rosto da mulher, um
mero escurecimento da pele, mas cresceu. A escuridão estourou a pele em uma ferida
6
escorrendo. Uma segunda escuridão erguida em sua testa, e outra e outra. Keleios
segurou a mão branca, dizendo:
- Mãe, o que há de errado?
A mulher gritou e caiu de joelhos, afastando a mão de Keleios. Sua mãe sussurrou:
-Corra.
Keleios correu. Os corredores estavam escuros com tochas tremeluzentes, enviando
sombras no caminho dela. E de uma sombra surgiu uma mulher. Harque, a Bruxa,
formada a partir das Trevas. Keleios sabia que Harque não gostava de sua mãe, e a
criança sempre teve medo da bruxa sem saber o porquê. Harque disse:
-Onde está a Elwine, a Gentil? Onde ela está agora?
Keleios gritou e correu de volta por onde tinha vindo. Ela correu, mas a voz
continuou perguntando:
-Onde está a Elwine, a Gentil? Onde ela está agora?
Harque vinha de todas as sombras, ela estava sempre lá. Keleios colidiu com um
muro - um caminho sem saída, nenhum lugar para ir. Harque estava atrás dela, alta e
severa.
-Você quer ver a sua mãe?
Keleios olhou para ela, assustada demais para falar, cansada demais para se mexer.
A bruxa repetiu sua pergunta.
-Você quer ver sua mãe?
Keleios assentiu e não conseguiu se impedir de pegar a mão da mulher. A mão da
bruxa era boa com sua pele suada. Harque a levou por uma escada de paredes estreitas.
No topo havia um patamar estreito e uma porta. Harque sorriu para Keleios, sorriu com
olhos confusos, e a criança recuou. Ela arrastou Keleios até a porta.
-Não você quer ver sua mãe?
Agora havia um odor fraco, mas cada vez mais forte. O fedor da doença e roupas
imundas e azedas de suor. Keleios tentou se afastar, mas o aperto era como ferro. A porta
abriu tão lentamente. O cheiro tomou conta da criança e ela vomitou nas pedras. Harque
segurou sua testa gentilmente e a ajudou a ficar de pé depois.
Keleios recuou, não querendo entrar na sala. Harque a arrastou pelo chão, gritando,
arrastou-a pelo parapeito da porta para a sala fedorenta. Ela foi empurrada para ela em pé
e disse:
-Olha. 7

O quarto era estreito, com apenas uma cama raquítica. Algo estava amarrado àquela
cama. Aquilo era preto e pus escorriam dele. A pele estava rachada e sangrando como se
a doença fosse demais para a pele segurar. Keleios olhou para a coisa por um tempo, sem
entender. Aos olhos dela isso não fazia sentido. A menininha percebeu que uma pessoa
estava amarrada à cama. Keleios começou a chorar. Não havia sugestão de quem tinha
sido, apenas que tinha sido uma pessoa.
O rosto preto virou-se para elas e abriu os olhos - olhos castanhos, os olhos de sua
mãe. Keleios gritou. A voz de Harque veio.
-Onde está a Elwine, a Gentil? Onde ela está agora?
O pesadelo desapareceu ao som de seus próprios gritos. Ela acordou ofegante e
suada. Magda, sua ama, estava lá, trazida por seus gritos.
-Keleios, criança, o que foi isso?
Keleios chorou no peito gordo de Magda, soluçando, incapaz de falar. O medo ainda
estava lá, horrível e completo. Ela não podia respirar em torno do terror disso. Ela não
conseguia parar de pensar na visão dos olhos de sua mãe, a morte de sua mãe. Elwine
estava lá, alta e esbelta, vestida de branco. Keleios se soltou da enfermeira e chamou por
sua mãe. Elwine a abraçou e acariciou seus cabelos até que sua respiração se acalmou e
seus soluços se acalmaram.
-Agora, pequena, o que aconteceu para incomodá-la tanto?
Keleios sussurrou:
-Eu sonhei.
-Mas já conversamos antes, Keleios; sonhos não podem machucá-la.
Keleios se orgulhava de ser corajosa e não olhava para a mãe, mas olhava para o fio
de prata trabalhado no corpete de sua mãe. Formava uma linha prateada de folhas e flores
comuns, o tipo de coisa que entrava em um feitiço de ervas. Mãe cheirava a hortelã-
pimenta e flores de maçã desbotadas. Ela estava fazendo um feitiço quando Keleios
gritou. Elwine forçou a criança a se afastar dela e disse:
-Olhe para mim, Keleios.
A criança olhou, meio amedrontada.
-Você ainda está com medo?
Keleios assentiu. 8

-Não se foi, mãe.


-O que não se foi?
-O sonho, o pesadelo. Ainda está aqui– ela tocou a testa. – Ainda está aqui.
Elwine fez um sinal para a enfermeira sair e se arrastou na cama com Keleios. Ela
se aconchegou a criança e disse:
-Agora me conte sobre esse sonho que não vai embora.
Keleios contou tudo a ela. Sua mãe ouviu e assentiu e fez todo os barulhos de
conforto que ela deveria. Nunca houve um profeta dos sonhos nos dois lados da
Linhagem de Keleios; talentos mágicos simplesmente não apareciam sozinhos. Elwine
confortou sua filha e Keleios se sentiu melhor. Com a narração do sonho, um peso
parecia ter se mexido. Ela podia respirar novamente, e esse medo horrível se foi.
-Mãe, por que Harque não gosta de você?
Elwine suspirou e abraçou a criança.
-Você entende o que significa ser desafiado a andar nas areias?
Keleios franziu o cenho.
-Isso significa que você luta com alguém e vence.
Elwine sorriu.
-Nem sempre, mas você pegou a ideia. Harque me desafiou anos atrás, quando você
era muito pequena. Ela perdeu e sentiu-se humilhada. Você entende o que é humilhado?
-Isso significa quando você está envergonhado.
-Muito bom. Harque sente que eu a humilhei, e é por isso que ela não gosta de mim.
-Ela me assusta, mãe.
Elwine ficou rígida.
-Ela já machucou ou assustou você de alguma forma?
Harque não tinha feito nada, mas Keleios não tinha palavra para isso.
-Nunca, mãe.
Elwine abraçou a criança.
-Você deve sempre falar livremente comigo, Keleios. Se alguma coisa assusta você,
você deve me falar sobre isso.
-Eu vou.
-Bom. Você se sente melhor agora?
Keleios sorriu e assentiu. Aos cinco anos, Keleios foi facilmente consolada por sua9
amada mãe. Elwine colocou a criança na grande cama de dossel. Ela beijou Keleios na
testa e disse:
-Você gostaria de ter uma lâmpada?
Keleios era uma menina corajosa.
-Não, eu estou bem.
Elwine sorriu satisfeita.
-Durma bem, pequena.
-Boa noite Mãe. Espero não estragar o seu feitiço.
Elwine riu, um som gutural rico.
- Não, pequena, o feitiço se mantém bem.
Com isso ela se foi. Keleios ficou sozinha com o vento que gemia ao redor do
castelo, mas ela dormiu porque sua mãe disse que não havia nada a temer.
Três dias depois, Harque, a Bruxa, sequestrou Elwine e suas filhas, Keleios e
Methia. Cinco dias depois, Harque forçou Keleios a fazer o passeio de seu pesadelo para
o quarto onde sua mãe estava. O que o sonho ocultara havia sido o horror nos olhos da
mãe, a loucura que a doença lhe impusera. Ela morreu assim, a vida deslizando de seus
olhos sem saber que Keleios estava lá para ver e lembrar. Dois dias depois disso, a
fortaleza de Harque foi invadida; Keleios e sua irmã foram resgatadas. Harque, a bruxa,
escapou. E Keleios descobriu que os verdadeiros pesadelos tinham seus horrores, além
dos sonhos.
CAPÍTULO 01: UMA SONHADORA RELUTANTE

KELEIOS TINHA IDO AO JARDIM de rosas e se escondido atrás da parede para


fazer sua magia. A escuridão quente do verão estava espessa com a fragrância de rosas e
o canto dos grilos. Um sapo perdido vagou pela peça central do jardim, uma fonte.
Cantava sua música aguda sozinho. Keleios riu. Ela não tinha certeza se já tinha ouvido
um sapo cantar sozinho. Eles normalmente cantavam em coro. Logo sua magia acalmaria
os grilos e o sapo solitário. 10
Era estranho como a presença de magia ativa silenciava o mundo.
Os cabelos castanho-dourados de Keleios caíam em uma trança solta nas costas.
Qualquer espelho pelo qual Keleios passava lhe dizia que ela era como um fantasma de
sua mãe. A única coisa que a salvou foi o sangue élfico de seu pai, que afinou seu rosto e
deixou Keleios ter uma aparência única. Ela estava toda vestida de marrom, exceto pelo
vislumbre de linho nevado na gola da túnica. Ela usava calças atada às pernas com
ataduras cruzadas. Botas subiam até os joelhos, feitas de endurecidas solas de couro e
pele macia. Keleios sabia que sua mãe, sempre feminina, teria ficado horrorizada. Mas
sua mãe estava morta há dezoito anos. Era muito tempo para se preocupar com a opinião
de alguém.
Keleios tocou a pequena pilha de lascas e galhos secos. O fogo tinha sido a primeira
feitiçaria que ela já havia invocado; ainda era a mais fácil. Queimou como uma estrela
cadente e pousou na madeira. As chamas saltaram e estalaram ao redor do fogo seco. Ela
colocou duas varas maiores em cima da chama, e o fogo diminuiu, queimando a madeira
mais grossa. O mundo caiu em silêncio. Apenas o vento ainda soprava através das rosas.
Keleios derramou água em uma panela pequena e vazia. Ela não foi capaz de obter o tipo
certo de madeira para este fogo em particular, então pensou em trapacear. Ela colocou
um feitiço de proteção contra fogo em suas próprias mãos. Brilhou brevemente logo atrás
dos olhos, e logo depois não podia mais vê-lo. Era uma questão de confiança que, quando
ela tomasse o fogo nas mãos, não a queimaria. Uma questão de confiança em sua própria
feitiçaria.
Ela pegou a chama em uma mão. O fogo brilhou ao vento, faiscando contra as trevas.
Keleios olhou para o fogo, concentrando-se em suas profundezas onduladas vermelhas-
alaranjadas, estudando seu calor sem temê-lo. Ela concentrou-se e fez uma minúscula
coluna em chamas. Outro pensamento e queimou até o laranja-claro das brasas. Cintilava
mais forte, seguindo seus pensamentos. Ela quase perdeu a concentração, distraída pela
dança do fogo na superfície brilhante de suas braçadeiras. Ela voltou a pensar no trabalho
em questão. Era um mau sinal, ser distraída pela luz. Era sintoma de doença dos sonhos.
Ela era profetisa de visões, bem como de sonhos, também, então o risco era dobrado.
Keleios tocou a chama brevemente, curvando-a conforme sua vontade. Sua
concentração era pura. Ela estava pronta para a levitação. Era um tipo diferente de
conjuração do fogo. Em vez de conjurar algo do nada, ela tocava um objeto vazio e o
fazia se mover. Não havia linhas de poder, nenhum brilho tênue, que indicasse que estava11
no caminho certo. Ou a coisa se mexia, ou não. A panela cheia de água subiu e pairou
acima da chama. Ela esperou. Até com fogo mágico, levava tempo. A água começou a
ferver. Keleios estendeu a mão livre para a pequena tigela de barro. Ela pegou
quantidades pequenas, mas iguais de sementes de anis e raiz de valeriana perfumada.
Colocou-os gentilmente na água borbulhante. Keleios verificou a hora na torre do relógio
e suas batidas de quinze minutos. Mais espera.
Keleios já tivera poções para afastar pesadelos, um suprimento de quase uma
semana, mas tinha acabado na noite passada. Uma poção que vagamente permitia uma
noite pacífica para uma criança assustada bloqueava profecias em uma profetisa de
sonhos. Keleios estava à beira da doença dos sonhos e sabia disso. Valeriana perfumada
em excesso era venenosa, e ela sabia disso também. Ela já estava no começo da doença.
Se distraía facilmente em momentos estranhos e se pegava ouvindo vozes que não
estavam lá. Ela estava sendo tola. O medo torna uma pessoa tola de vez em quando.
Um sonho maligno a esperava. Ela estava com medo de dormir, com medo de
sonhar, com medo de não sonhar. Keleios odiava o dom da profecia. Desde o primeiro
toque, a profecia nunca a ajudou. Era a mais inútil das magias. O que quer que a
esperasse no futuro, era sempre algo horrível. Ela nunca tinha sentido tanto impacto em
sua mente como agora, nem mesmo quando ela sonhava com a morte de sua mãe. Isso
era pior; ela não tinha certeza de que poderia vir a enfrentar. Era o medo de uma criança
e ela se amaldiçoou por isso, mas não conseguia finalmente ter o tal sonho.
O relógio da torre bateu. Ela colocou a panela no chão de cascalho branco para
esfriar. Lançou o fogo na escuridão e desapareceu em uma cascata de faíscas. Ela
também cancelou o feitiço de proteção contra incêndio. Conserve a magia - havia sido
uma regra em sua mente nos últimos três anos.
Embora a feitiçaria fosse instantânea e poderosa, ela era facilmente destruída e
deixava o conjurador drenado e sem magia. Ela pensou no frio, o frio do outono que
sopra pela primeira vez pela porta em novembro. Não muito frio, ou ela solidificaria a
poção e a arruinaria. Ela queria apenas resfriá-la. Keleios prendeu a gaze sobre a panela
com um barbante e colocou o líquido no copo. Um pouco de água da fonte restaurou o
volume perdido em fervura.
Keleios segurou a xícara nas mãos. Outra noite sem sonhos estava literalmente em12
suas mãos. A lua erguia-se livremente pelas torres do castelo, banhando o jardim de rosas
em prata, cinza e preto. As torres eram silhuetas da meia-noite contra a lua ascendente. A
torre mais alta pairava negra e perfeita, aveludada ao luar: a torre da profecia. Zombava
dela, alta e ameaçadora, um desafio. Keleios apertou a xícara de madeira com as mãos e
ela rachou, derramando a poção nas mãos e os antebraços. Sua decisão foi tomada. Ela
iria para a torre hoje à noite, desprotegida, com nada além de sua habilidade de proteger a
si mesma. Qualquer coisa era melhor que esta covardia.
Keleios lavou a poção derramada em suas braçadeiras de ouro. A água não as
enferrujaria. Eram mágicas e nunca precisavam de polimento. As manchas escorriam
delas como a água que brilhava sobre elas agora. Tinham sido muito bem encantadas.
Sussurrou: “Eu sou uma mestra em encantamento e em sonhos, não importa o que diz o
conselho”.
Esta noite, as palavras pareciam vazias. Três anos atrás, ela era uma mestra. Então,
descobriu que era uma feiticeira. Aos vinte anos de idade, uma magia totalmente nova
correu por suas mãos. Foi sem precedentes, impossível, mas verdadeira. E o Conselho
dos Sete, órgão governante de Astrantha, julgara adequado tirá-la da categoria de mestre,
até que ela dominasse esse novo talento. Eles a mandaram de volta para a Escola de Zeln.
Era uma viajante de novo e já faziam três longos anos. Uma pequena palavra era tão
importante? Ela precisava ser chamada de mestre para ser uma?
Keleios se ajoelhou e mergulhou os braços na fonte. Ao jogar água no rosto, ofegou
com o frio repentino. O pequeno sapo mergulhou freneticamente, com um barulho
molhado. Keleios piscou para a lua. A água escorria pelo pescoço até a camisa de linho.
Ela se sentiu melhor, com a mente limpa. Essas dúvidas eram seu próprio veneno.
Duvidar da magia era uma coisa muito perigosa. Ela limpou a água dos olhos e passou
um pouco na trança dos cabelos às costas, secando a mão na calça. Era um dos benefícios
de usar as vestes simples de couro cru. Ela se pôs a reunir seus materiais de feitiço.
A segunda lua havia surgido pequena e escura, amarela ao lado da lua-mãe branca.
Nesta época do ano, seriam as primeiras horas da manhã antes que a lua vermelha
surgisse. Três luas para três faces da grande Mãe, ou era o que algumas das lendas muito
antigas diziam. A Mãe de Todos era Cia, a curadora, tudo o que havia de bom; Ardath,
ela equilibrava a balança do paraíso; e Ivel, a destruição encarnada e o ódio personificado.
Astrantha e seus vizinhos do outro lado do mar, Meltaan, eram países que acreditavam13
em todas as faces da Mãe igualmente. Eles chamavam isso de lei do equilíbrio. Se você
fosse identificado como seguidor de Ivel, ou de um de seus filhos obscuros, você poderia
literalmente se safar de um assassinato. Keleios passou a entender a lei do equilíbrio, mas
nunca a concordar. Havia algumas vezes em que Keleios pagou o preço do sangue em
segredo, porque alguns atos não deviam ser tolerados, não importava em que terra você
vivia.
Keleios passara grande parte dos últimos três anos em pesquisa. Ela havia caçado
porque a deusa era uma em três, três partes, mas não um todo. A lenda de como a lua se
partira em três pedaços parecia sugerir isso. Dizia que a deusa tinha enlouquecido com
uma dor na cabeça. Quando a dor diminuiu, ela foi dividida em pedaços, e assim foi a lua.
A lenda sugeria que a deusa poderia ser curada e reunida em uma só novamente, mas
nunca disse se isso seria uma coisa boa ou ruim.
Keleios tinha visto as luas através do telescópio de Zeln. Elas eram rochas mortas,
nada mais, mundos de luz e sombras brilhantes. Keleios achava difícil acreditar que as
luas eram ligadas à deusa. Ela acreditava que a Mãe tinha despedaçado a lua em um
ataque de raiva.
Keleios riu. “Estou perdendo tempo olhando as luas. Meu medo quer me enganar”.
Ela não demoraria muito mais agora. Havia liberdade na decisão. Agora que ela iria à
torre ter seu sonho, o medo diminuiu. Ela descobriu que a maioria dos medos diminuía
quando confrontados. Nem todos os medos, no entanto. Keleios empurrou o pensamento
de volta antes que pudesse crescer. Abriu a pequena bolsa de couro no cinto. Brilhava
suavemente com o encantamento. Não fora obra dela, havia comprado em Meltaan. A
panela deslizou para dentro através da abertura incrivelmente pequena, seguida pela
tigela. Ela espalhou os restos da madeira e jogou o copo rachado para fora do caminho.
Tirou o anel de ouro simples da mão direita e o colocou na bolsa encantada. Além disso,
soltou cada uma das braçadeiras e as guardou lá também. Elas eram quatro vezes maiores
do que a bolsa parecia, mas sumiram de vista. O punhal da cintura e as duas facas que
trazia escondidas seguiram depois.
Lweaver, sua espada curta, estava em seu quarto. Zeln tinha tentado proibir facas na
fortaleza, mas havia muitos outros usos para elas além de como armas. As espadas nada
mais eram do que armas, e é preciso obter permissão especial para usá-las abertamente.
Keleios concordava com a regra em parte. Havia muitos que usaram espadas que14
estariam vivos hoje se simplesmente estivessem desarmados. De sua parte, ela não
gostava da regra, mas obedecia. Não eram as regras de Zeln que mantinham
encantamentos e armas fora das salas dos sonhos. Sabe-se que os sonhadores fazem mal a
si mesmos ou a outros com armas. A torre de profecia não gostava de magia estrangeira.
Por alguma razão, esses encantamentos pareciam irritar a torre. A própria Keleios havia
esquecido o anel de proteção uma vez, mas apenas uma vez. A torre tentou enganá-la
para fazê-la cortar o próprio dedo.
A abertura da bolsa de couro estava encantada para que apenas sua própria mão
pudesse abri-la. Independentemente de quem fosse o guarda da torre nesta noite, estaria a
salvo. Ela fez tudo o que pôde para se preparar. Estava na hora de ir para lá. Keleios
andou através do arco treliçado e passou para o jardim de ervas. Os intricados canteiros
de plantas levavam até os degraus do castelo de Zeln.
Zeln, o Justo, já fora um rico nobre astrantiano, e o castelo mostrava isso, mas ele
havia mudado. Foi com ele que Keleios aprendeu seu amor por roupas simples e um
sentimento de igualdade por todas as pessoas. Qualquer um poderia vir para a escola de
Zeln, só precisavam de talento. E todo aluno aprendia trabalhos manuais. Algumas das
crianças nobres descobriram que realmente era um conceito muito difícil. Keleios achava
normal.
O castelo se elevava acima dela no escuro. Sua forma quadrada fora projetada para
defesa, mas séculos de vida mais tranqüila aumentaram as janelas e trouxeram jardins até
a porta. Os corredores internos do castelo eram mais escuros que a noite de verão.
Keleios parou para deixar seus olhos se ajustarem. Ela podia ver no escuro, como um
gato ou um demônio. Ela era um demônio chamado Nightseer 1, mas ainda precisava
esperar que seus olhos se ajustassem à escuridão.
As bibliotecas ficavam no centro do castelo, e no centro das bibliotecas estava a
torre da profecia. Keleios subiu a escada estreita e sinuosa. Ela podia sentir o gosto de
seu coração batendo na garganta. Ela não queria este sonho. As salas dos sonhos
circundavam um espaço aberto que continha as escadas e uma lareira. Ali, os guardiões
da torre vigiavam. Eduard, o mago das ervas viajante, estava sentado em frente ao fogo,
com os joelhos no peito. O fogo captava destaques vagos em seus cabelos negros. As
esmeraldas em sua túnica brilhavam com o fogo verde. A túnica tinha um elegante corte15
acima da cintura, deixando a maior parte da parte de seus membros inferiores vestindo
nada além de meia-calça verde. Seus olhos eram do azul cristalino das safiras.
– Keleios, a Encantadora, tenho a honra de guardar sua profecia.
O sorriso no rosto dele mentia sobre sua cortesia. Eduard e Keleios tinham um
entendimento entre ele: ele não gostava dela, e ela não gostava dele. Ele era seguidor de
Ivel.
– Certamente você não fica de guarda sozinho, Eduard, o Mago.
– Meu companheiro teve que mijar.
O rosto de Keleios permaneceu impassível. Se ele esperava irritá-la com
vulgaridades, falharia. Se alguém pudesse provocar sua ira sem uma boa causa, ganhava
controle sobre você. Ela nunca daria a Eduard essa satisfação novamente. Keleios não
gostava de Eduard, mas ele havia perdido a capacidade de irritá-la, e isso o irritava
também.
– Sua pequena seguidora está nos quartos dos sonhos hoje à noite.
Keleios sabia a quem ele se referia. Alys era a aprendiz mais jovem a ser
permitido na Escola de Zeln. Ela tinha cinco anos e viera atormentada por pesadelos
que eram sonhos proféticos verdadeiramente poderosos. Sempre que Alys não estava
fazendo tarefas ou estudos, estava atrás de Keleios. Às vezes, era incômodo ter uma
criança em tão constante presença, mas Keleios não podia dizer não. A criança
lembrava a Keleios de si mesma aos cinco anos, e você deve ser gentil com as
sombras da sua própria infância.

1
Significa: “Aquela que enxerga à noite”
– Como ela estava quando entrou?
Ele deu de ombros:
– Nervosa, mas quem não estaria? Ouvi dizer que a torre pode devorar a alma de
uma pessoa.
Keleios ignorou sua tentativa de assustá-la.
– Há alguma sala de sonho aberta?
– Três.
Ela esperou, mas ele não se ofereceu para mostrar quais estavam vazias.
– Quais estão vazias, Eduard? 16

Ele se levantou apoiando-se nos braços e a conduziu para três portas. Ele fez
uma reverência cortês e disse:
– A escolha é sua, minha adorável coquete.
Era uma palavra legal para vagabunda, mas era isso que significava.
– Eduard, você está sendo infantil.
Não era a reação que ele esperava.
– Vou encontrar algo que irá abalar seu rosto calmo e estoico. Ouvi rumores de
que você tem um temperamento violento.
– Quando eu era criança. Mas não sou mais criança.
Ele percebeu a ênfase e seu rosto ficou sombrio.
– Vou encontrar algo que incomoda você.
Keleios se aproximou dele; eles eram quase da mesma altura.
– Se você alguma vez encontrar algo que realmente me irrite, Eduard, significará
um duelo nas areias. E eu vou matá-lo. – ele não recuou, mas suas mãos se fecharam
em punhos. Por um momento, Keleios pensou que ele a atacaria. Ela deixou um
sorriso lento dançar nos lábios. Foi um sorriso zombador. – Como você
constantemente me lembra, sou apenas uma viajante. E pela lei astranthiana, posso
desafiar qualquer outro viajante para a batalha.
Seus olhos azuis se arregalaram. Provocar uma mestra caída era uma coisa.
Lutar com ela nas areias era outra. Sua raiva descoloriu seu rosto e fez seus olhos
brilharem como pedras duras, mas ele deu um passo atrás.
– Pegue qualquer um dos quartos que preferir.
– Obrigada – ela estendeu a bolsa de couro. Ele pegou com relutância.
– Suas armas?
– Sim, tudo o que eu estava carregando comigo.
Ele pareceu perplexo, então, por ela ter confiado a ele grande parte de seu poder.
Ela riu.
– Não pareça tão preocupado, Eduard. Há um feitiço na abertura que acho que
você não consideraria agradável.
– Partirei numa missão de viajante este ano. Você acha que não posso desfazer
um bloqueio simples?
– Quem disse que era um simples feitiço de bloqueio? 17

Com o olhar confuso em seu rosto, ela decidiu explicar. Keleios não desejava
que o jovem testasse a bolsa e fosse morto. Fidelis, a bruxa, ficaria brava. Era
considerado muito indelicado matar um viajante.
– A bolsa pode ser facilmente aberta, mas se qualquer outra mão que não a
minha abrir... Digamos que será uma maneira desagradável de morrer.
– Você não fez isso.
– Não, mas o feitiço guardião foi trabalhado nela em sua elaboração. Portanto,
não pode ser dissipado ou desarmado. É como parte da substância da bolsa.
– Sempre há uma maneira de desfazer um feitiço; isso é uma lei da magia.
– Eu não disse que não havia.
Ele segurou a bolsa sem jeito. Keleios podia ler seus pensamentos em seu rosto,
mas ela sabia como garantir que não houvesse um acidente.
– Eduard, o Mago, eu ordeno que não abra a bolsa. Fazer isso é morte, eu avisei,
e agora não é mais culpa minha.
– Realmente existe um feitiço de morte aqui, não é?
– Você já me viu blefar?
Ele balançou a cabeça e segurou a bolsa cuidadosamente entre três dedos.
Keleios ficou satisfeita. Suas armas estavam seguras, e ela não explicaria a Fidelis
por que seu viajante havia sido comido. Ela escolheu uma porta e a abriu. O ar estava
fresco e seco. Pela única janela da sala, os últimos raios de um pôr do sol laranja
estavam morrendo. Os quartos dos sonhos tinham um tempo diferente que o do
mundo exterior.
A escuridão noturna de Astrantha foi deixada para trás. Alguns diziam que as
janelas refletiam sonhos, mas Keleios não pensava assim. Havia muitas teorias, mas
Keleios não acreditava em nenhuma delas. Ninguém se lembrava porque os
construtores tinham dado janelas para a torre. Era um mistério, e isso bastava. A luz
evanescia, morrendo em oblongos dourados pelo chão. Havia um cheiro forte vindo
da janela, como madressilva ou jasmim. Estufas, mas também não exatamente isso.
Era um cheiro doce e rico, e a fazia pensar em magia e lugares escondidos. Keleios já
tinha sentido aquele cheiro muitas vezes, mas ainda não tinha visto a flor que exalava
esse perfume. 18

Os sonhadores eram aconselhados a não olhar pela janela. Keleios costumava


fazer isso, apenas uma olhada. Ela tinha quase se familiarizado com as estrelas
alienígenas que brilhavam tão intensamente e o canto dos pássaros que nunca viram
Astrantha.
Esta noite o sonho lutava por sua atenção, e Keleios não foi à janela. A magia da
torre já estava começando a trabalhar nela. Keleios pertencia à torre até que a
profecia viesse.
Mesmo sem visão, ela saberia onde estava. A torre da profecia fora lentamente
construída por feitiços pesados, pedra por pedra, morte por morte, profecia por
profecia, pois aquela torre foi uma das primeiras construídas. Naqueles dias antigos,
os astrantianos de ouro serviam os deuses mais ferozes. Eles mataram para melhorar
sua mágica; sangue entrara naquela torre. Sonhos, especialmente os sonhos, refletiam
isso.
O quarto continha apenas uma cama estreita, uma mesa pequena, um abajur
escuro e uma bacia de pedra esculpida cheia de água. A escuridão caía na terra
através da janela. Uma escuridão aveludada engoliu o quarto dos sonhos. Flint e
Tinder estavam próximos. Talvez através do ar pesado ela pudesse ter jogado um
feitiço para acender a lâmpada, mas nem sempre era prudente fazer magia na torre.
Keleios não tinha necessidade real de luz. Ela ainda se sentia atraída por ela como
uma criança assustada que aplaudia chamas dançantes. Ela era Keleios Incantare,
chamada de Nightseer, e a verdadeira necessidade de luz era uma coisa do passado.
Keleios tirou a túnica e as botas. As botas eram de couro marrom macio e solas
endurecidas, coisa dos elfos. Ela odiava o barulho que os novos saltos de madeira
faziam. No máximo caçadores e batedores ainda usavam botas macias. As botas
élficas eram muito valorizadas, e ela tinha assistido seus primos Wrythianos fazê-las.
Mesmo um humano poderia fazê-las, se conhecesse as técnicas, mas Keleios, como
todos os wrythianos, gostava de mantê-las em segredo. Ela desfez a trança que
segurava os cabelos para trás. Eles caíram graciosamente em uma massa ondulada, e
Keleios correu os dedos por eles, brevemente. Ela deslizou entre os lençóis e quase
imediatamente sentiu a necessidade da torre. Ela deitou-se de costas, olhando para o
teto, tentando combater a atração do sono. A magia era muito forte. As pálpebras dela
começaram a fechar; a necessidade de dormir era uma coisa terrivelmente física. 19

Lutou até ficar enjoada e sua cabeça doer. O sono a puxou e a doença desapareceu.
Imagens brilhavam em sua mente: cores vivas, sentimentos, sonhos exigindo
que ela entrasse, mas eram sonhos antigos, lembranças de pessoas que se foram há
muito tempo. Keleios escapava deles com facilidade, praticada há muito tempo. Era
seu próprio sonho que ela tinha vindo encontrar, não a profecia desatualizada de outra
pessoa.
O verdadeiro sonho que ela viera encontrar começou silenciosamente com
lembranças, como todos os sonhos. Mestre Poula, professor de Ervas e Profecias na
escola, estava andando pelo corredor que atravessava a frente da torre. E no caminho
dos sonhos, a figura mudou para outros rostos que Keleios conhecia. Era Alys, a
profetisa mais jovem da escola, a quem Keleios confortava quando ela chorou com
saudades de casa. Era a aprendiz Melandra, com o rosto marcado e coração tímido.
Keleios tinha meio que adotado a menina assustada, a irmã mais nova que Keleios
nunca teve. Keleios sabia que um dia Melandra iria ser uma grande feiticeira, mas
Melandra ainda não sabia disso. Rosto após rosto fluía através do sonho, todos
andando pelo corredor em direção às janelas que davam para o pátio.
O medo começou. Comprimia seu peito até que ela lutasse para respirar. Era
Belor, sua amiga desde a infância e a maior ilusionista da fortaleza, que se virava
para as janelas. A janela estava cheia de escuridão. Uma luz prateada, que não era
exatamente luz, brilhou em volta da escuridão.
– Não! – Keleios lutou contra o sonho. Contra todo o seu treinamento, ela tentou
mudá-lo, mas a profecia não podia ser mudada. Belor não poderia entrar na escuridão,
pois se o fizesse, ela morreria. Era Feltan, a criança camponesa que Keleios levara
para a fortaleza para treinar, que caiu pela janela no escuro, seu pequeno corpo foi
varrido totalmente pelas trevas. Algo mais estava na escuridão, alguém em pé. Fidelis,
a Bruxa, professora de Ervas e Ilusão na escola, e seguidora dos deuses das trevas,
estava envolta em escuridão. Uma maldita adaga escorregou de sua mão e caiu
piscando no escuro como uma estrela desaparecendo. As paredes da torre estavam no
escuro, e alguém andava sobre elas, uma mulher alta vestida de cinza. Keleios sabia
quem se viraria para encará-la. Harque caminhava pelas paredes da escola. A parede
começou a desmoronar. Harque virou as costas e jogou as mãos para o céu. Quando
ela virou-se para encarar Keleios novamente, Fidelis quem estava na parede em 20

ruínas. A parede explodiu para dentro, pulverizando rochas na escuridão crescente. O


sonho desapareceu.
O caos chegou.
Keleios se encontrava em um lugar que nunca sonhara, nunca imaginara. Era
cercado por nada e por tudo. Cores borradas teciam tons de cinza. Formas distorcidas
que só podiam ser lembradas pela metade. Ela estava de pé, mas não havia nada para
sustentá-la, nada em que se segurar, nada. Keleios gritou e caiu de joelhos, cobrindo
os olhos. Se isso fosse um sonho, ela seria incapaz de se mover, mas não era um
sonho. Ajoelhou-se, gritando até que sua garganta ardeu e sua voz soou irregular.
Lágrimas foram escorrendo pelo rosto, e ela nem sabia que estava chorando. Houve
um sussurro de som, mas Keleios não o procurou. Ela apertou as palmas das mãos
contra os olhos até que flores brancas explodiram contra suas pálpebras fechadas. O
sussurro se tornou uma palavra, depois outra. O som era como se muitos suspiros
tivessem sido costurados juntos em uma voz, o mais fraco dos sons, o mínimo de
humanidade restava nela.
– Uma profetisa, uma profetisa, olhe para nós, profetisa. Veja o que você deve
se tornar.
Keleios ignorou a convocação, orando a Urle, deus da profecia. Ela se
concentrou na oração, cada palavra importante, cada sílaba um escudo contra a
loucura:
– Urle, deus dos bons sonhos, deus da profecia favorito, me ajude, a sua filha.
Uma profetisa clama por você por ajuda. Uma profetisa clama a você em grande
necessidade. Ouça-me, Urle, deus da forja, ouça-me e não deixe-me desolada. Ajude
sua filha profetisa. – Keleios recitou a antiga oração até os suspiros sibilantes se
tornarem gritos silenciosos.
– Ouça-nos, profetisa. Você deve obedecer. Olhe para nós e veja o verdadeiro
poder. Nós que já existíamos antes, ordenamos que você olhe para cima; olhe para
nós.
Keleios tropeçou nas palavras; sua língua parecia esquecer como formar
palavras. Era um grande esforço para lembrar, um esforço para cobrir os olhos, um
esforço para não olhar para cima. Keleios sabia o que era: fantasmas, comedores de
almas. Eles caçavam profetisas dos sonhos e eram servos da própria Dama Cinzenta, 21

deusa dos sonhos ruins e da traição. Eles foram atraídos para as profecias sombrias
como abutres para os recém-mortos.
A oração a Urle morreu em seus lábios. Ela não conseguia mais pensar nisso.
Algo mantinha fantasmas fora da torre. Ela sabia o que era. Ela sabia, mas não
conseguia pensar. As vozes suspirantes sussurraram:
– Profetisa, profetisa, olhe para nós. Você não pode escapar deste lugar, e não
pode sobreviver neste lugar. Olhe para cima e termine seu sofrimento.
Keleios se viu de joelhos, com os olhos ainda fechados. Ela falava: "Não, não".
Sentou-se, escondendo os olhos contra os joelhos. Dizia-se que bastava um olhar para
um fantasma e toda sanidade era apagada como uma vela, a alma, arrancada. Tão
alienígenas eram que apenas um olhar era suficiente. Keleios lutou para não dar
aquela olhada. Como os fantasmas estavam sendo mantidos longe da torre? Ela sabia
a resposta apenas alguns minutos antes, mas não conseguia pensar. Feitiçaria, alguma
feitiçaria, sim. Um símbolo de feitiçaria.
– Profetisa, ouça-nos. Você não pode escapar. Você é nossa. Não se atormente.
Desista e estará livre de tudo isto.
Feitiçaria, um símbolo, um símbolo... da lei. Os fantasmas são mantidos de fora
por um símbolo da lei. Todo aprendiz de sonhador sabia disso. O símbolo da lei era
substituído todos os dias, mas alguém tinha tirado o símbolo. Alguém havia aberto a
torre para o fantasma, e ela estava desamparada.
– Não…
Tinha que haver um jeito.
– Pequena profetisa, você ainda não está cansada? Você não está cansada desse
jogo?
Ela gritou, com a voz embargada:
– Cale a boca!
– No sonho você tem poder, mas não somos um sonho a ser moldado e
controlado. Não somos uma profecia para desaparecer quando cumprida. Nós somos
o seu destino. Você deve se juntar a nós. Você terá poder conosco.
Poder, era isso, poder. Ela era uma feiticeira agora, e a feitiçaria fazia os
símbolos da lei. Ela ainda não sabia como manejar a invocação de símbolos. Eram 22

alta feitiçaria, além da capacidade de um viajante, além de Keleios, a menos que... A


menos que fosse como qualquer outra feitiçaria. Depois de formar uma imagem em
sua mente, soube seu nome e não teve medo dela, então tinha poder sobre ela. Hesitar
era pior do que morrer. Se ela o invocasse e não pudesse controlá-lo, então morreria
de forma limpa e enganaria o devorador de almas.
Sem pensar mais, ela o invocou. Ela ficou de pé, olhos fechados, mãos
estendidas na frente dela, sussurros eram distantes, aquele flash de poder arrepiante
no pescoço que varria feitiçaria através dela, mas forte o suficiente para que ela nem
conseguisse respirar, esperando o poder se estabilizar, esperando que fosse
controlado. A magia cresceu até Keleios sentir que sua pele iria estourar com luz e
poder. O fantasma gritou:
– O que é isso, o que é isso? Coisa suja, coisa repugnante, leve-a para longe!
Leve embora!
O brilho batia contra suas pálpebras fechadas, formando sombras vermelhas.
Todo o seu corpo formigava com a proximidade de uma feitiçaria tão poderosa. Ela
respirou fundo e abriu os olhos cuidadosamente, uma fenda de cada vez. O símbolo
pendia bem na frente dos olhos dela, belo em suas linhas retas, sua simplicidade. Ela
não conseguia ver mais nada além do brilho. O fantasma falou logo além do seu
círculo brilhante.
– Profetisa, profetisa, me ouça. Livre-se dessa coisa! Junte-se a nós. Liberte-se
dessa concha frágil e torne-se uma só conosco.
Keleios olhou para o símbolo da lei, lendo seu poder e compreendendo parte
dele, e ela entendeu algo que seus professores não haviam lhe contado. Eles disseram
que um não viajante tinha forças para invocar um símbolo, mas isso era mentira.
Qualquer feiticeiro podia, mas muito poucos poderiam lidar com eles. Ela invocou o
símbolo para si mesma, mas o poder a dominava. Era apenas uma concha vazia
diante de si, esperando por seu comando. Tão rápida e tão completamente estava
possuída que Keleios nem sequer teve tempo de sentir receio. Keleios ouviu sua voz
falando, mas não por escolha própria.
– Eu, Methostos, terceiro de três. Pelo nome verdadeiro, pela feitiçaria, pela
palavra, pela vontade e pelo gesto, expulso você, fecho esta torre para você.
A coisa gritou. Contra o fogo da magia, ela estava cega; o símbolo queimava 23

ainda mais brilhante, alimentando a dor do fantasma. Quando o fantasma desapareceu


em gritos distantes, o símbolo da lei também sumiu, queimando as imagens em seus
olhos. Keleios tinha sido abençoada pelo símbolo da lei não ser uma runa gananciosa.
Havia outros símbolos que teriam levado para si tudo que tocaram.
CAPÍTULO 02: UM FEITIÇO DE LIGAÇÃO

KELEIOS ACORDOU INSTANTANEAMENTE, olhando para a escuridão,


ofegando por ar. Um grito, semi-formado, morreu quando reconheceu o ambiente.
— Segura, – ela sussurrou, – segura, apenas um sonho. – Mesmo quando ela
disse isso, ela sabia a verdade. O último sonho tinha sido muito real. Ainda havia
algo errado. Seu senso mágico pulsava com a proximidade da magia, e não era a dela.
A sala da torre estava vazia de magia humana. O pensamento veio a ela: se não
24
estivesse na sala, havia mais um lugar em que poderia estar.
Keleios pressionou os dedos no peito e procurou em si mesma. Um toque de
mágica estava lá, a magia de outra pessoa. Havia um feitiço amarrado ao fantasma
como uma cauda em uma pipa. O medo deslizou por sua espinha como gelo. Keleios
não sabia que tal feitiço era possível. O quanto ela poderia se proteger de algo que
não entendia? Keleios se forçou a respirar além do medo.
— Estou viva e sã. Eu derrotei o fantasma. Estou bem – sussurrou Keleios. Ela
não estava bem, e ela sabia disso. O feitiço estava inativo, mas ainda estava lá, e
Keleios não sabia exatamente qual era o feitiço. Ela engoliu em seco e se recusou a
ficar com medo. O medo não a ajudaria agora.
Então havia um feitiço dentro dela enrolado como uma cobra, mas ela estava
viva e sã. Ela teve o sonho dela. Ao contrário da maioria dos sonhos, este continuaria
vívido, cada recontagem trazendo terror fresco e horrível. Ela tinha que contar para
alguém. Já, a compulsão de compartilhar a profecia estava sobre ela. Só pioraria.
Ela sentou-se na cama estreita. A brisa noturna da janela aberta tocava friamente
seu corpo encharcado de suor. As cobertas estavam encharcadas, como se ela tivesse
tido febre durante a noite. Ela balançou as pernas sobre a beira da cama. Seus pés
balançavam impotentes acima do chão.
Havia pontos positivos e negativos em ser meio-élfica. Na maioria das famílias,
ela não teria tido nenhum problema, mas os Astrantianos eram uma raça elevada.
Suas roupas estavam amassadas por causa das horas de sono. A maioria dos
sonhadores usava roupões ou camisas de dormir, mas Keleios se sentia despreparada
em roupas de dormir.
A maioria das profetisas dos sonhos andava a passos largos pelos corredores,
profetizando à todos que estavam por perto.
Keleios apareceu com roupas masculinas amarrotadas, quieta, esperando para
contar apenas a alguns seletos. Ela ficava impressionada com os sonhadores
histéricos. Os visionários às vezes podiam ser desculpados; o imediatismo da visão,
muitas vezes, era demais mesmo para o profeta treinado. Visões não ficavam com o
profeta, como os sonhos, mas evaporaram-se em pedaços de névoa arruinada pelo sol.
Não havia desculpa para a falta de controle dos sonhadores.
Ela pegou as botas do lado da cama e sentou-se para colocá-las. Em outro quarto 25

havia uma menina de cinco anos que sonhava. Para tal idade com tal talento, havia
desculpas. Keleios franziu a testa; havia algo errado. Ela deveria estar preocupada
com Alys, mas não conseguia pensar no porquê.
Ela caminhou pelo chão de pedra frio até a bacia cheia de água. Ela falou:
— Graças a Urle, deus da profecia, que perfurei os véus uma vez e vi o que é
para ser, o que foi e o que é agora. – Ela jogou água no rosto e nos braços que caiu
em um esplendor fresco no peito. Keleios hesitou, sentindo-se especialmente
relutante em terminar o ritual hoje à noite. – Graças à Senhora das Sombras, deusa
dos sonhos ruins, por eu ter perfurado os véus uma vez e visto o que é para ser, o que
foi e o que é agora.
Ela jogou mais água em si mesma e acrescentou enquanto se afastava:
— Até as sombras merecem sua função.
Era uma frase antiga usada sem significado ou mágica no mundo. Na torre,
magia era diferente. Houve uma onda tranquila, como se as pedras respirassem. O ar
estava subitamente bom. Uma umidade agradável tocou sua pele como se fosse uma
névoa invisível. Seu pulso batia em sua garganta, e ela não conseguia respirar o ar
frio.
Algo estava aqui, algo ao lado da sombra ardente da profecia e feitiços de longa
data, algo poderoso.
A voz de uma mulher entrou no silêncio, um rico e profundo contralto, não
desagradável.
— Graças sejam dadas à profetisa que ainda adora as sombras.
— Eu não adoro – Keleios tentou dizer, mas ela não conseguia falar.
O calor começou a invadir a sala, e a umidade não natural se dissipou. Os
feitiços da torre recomeçaram com uma onda, uma onda que ela pôde ouvir com o
ouvido interno da magia.
Keleios encostou-se à mesa, subitamente fraca. Não era fácil ser escovada pelo
servo de um deus. Até um deus destronado tinha seu poder.
Keleios respirou cuidadosamente o ar seco e quente. O cheiro de jasmim ainda
era forte através da janela. Ela se afastou da mesa, com medo, Keleios tremia como
se estivesse com febre, a respiração dela ofegante. O mensageiro da Senhora estava
impedindo-a de pensar, e nem tinha sido um feitiço, apenas vontade e poder. 26

Mensageiros das sombras não eram incomuns em torres desprotegidas. Até o símbolo
da lei ser colocado sobre o torre, muitas coisas poderiam ir e vir. Ela tinha que
espalhar o alarme antes que mais monstros viessem.
Alys estava na torre com um fantasma solto. Que chance tinha uma criança de
cinco anos? Quantos outros estavam na torre quando ela apareceu?
O sonho lutou com seu medo. Tentou forçar-se sobre ela. Ela teve que perder
tempo acalmando-se, lutando pelo controle do sonho. Se ela começasse a profetizar
agora, ela seria inútil por um tempo. Não havia tempo para fraqueza.
Keleios ouviu a própria respiração, concentrando-se no fluxo simples de seu
próprio corpo. Quando ela abriu os olhos, não estava mais tremendo. O sonho tinha
sido contido, por agora.
Ela abriu a porta externa, mas o sonho lutou sob a calma. Era uma calma não de
águas plácidas, mas de aço esculpido.
A câmara externa estava escura; as brasas moribundas do fogo brilhavam,
estalavam e queimavam.
O flash de luz brilhou no cabelo de Selene, preto como uma asa de corvo e no
rosto virado para cima de Melandra.
Selene era uma bruxa viajante, profetisa de cartas. Nenhuma das garotas se
mexeu com sua entrada. Os guardiões das profetisas haviam mudado, talvez muitas
vezes hoje à noite. Keleios parou em frente a uma ala distribuída em semicírculo
diante de sua porta. Isso não a deixaria passar. As alas protegiam os guardiões da
profetisa de surpresas nos quartos dos sonhos. Isso lhes permitia dormir um pouco
sem ter que acertar o relógio. Às vezes, uma profetisa ficava temporariamente louca,
sem a ajuda de um fantasma. Uma vez eles tiveram apenas barreiras de acústicas, mas
uma sonhadora viajante matou um dos guardiões e uma ala de isolamento foi
adicionada ao recinto.
A profecia falou com sua feitiçaria, sua magia e sussurrou:
— Atravesse a barreira. Nós somos poderosos, não seremos feridos.
Keleios sabia que o sentimento de invencibilidade era uma ilusão. O poder
oferecido era real o suficiente. Sua mão esquerda coçava e queimava, ela também
sentia o poder do sonho. A palma da mão estava coberta com segurança por couro
rígido, as tiras que a seguravam no lugar traçavam uma correia nas costas da mão até 27

o pulso. Era uma marca de poder para alguns; para outros, corrupção; para Keleios,
um acidente infeliz. A esquerda alcançou a ala. Ela a fechou em punho e a colocou
rígida ao seu lado. A maior parte das vezes ela podia ignorar, mas depois de sonhar,
todo o poder era ampliado. Embora ela já tivesse ocupado o posto de mestre
sonhadora, seu controle era tenso e vazava pelas bordas. Pequenas faíscas de magia
esvoaçavam pela sala.
Ela os chamou, tentando engolir o poder em construção. A feitiçaria era a pior
para um sonhador, pois era muito mais fácil sofrer acidentes. Melandra acordou
primeiro, rolando de lado e piscando na penumbra. Ela apertou um xale de malha nos
ombros em seu vestido marrom. Ela ficou de pé, cabelos castanhos dourados e
grossos flutuando em desordem sobre o rosto cheio de cicatrizes. Ela tinha apenas
treze anos e ainda tinha gordura de bebê a perder. O rosto dela era velho, quebrado e
danificado. Ela era uma Calthuian, e eles proibiam a magia lá. Portanto, não havia
curandeiro para consertar os danos que seu pai e sua mãe infligiram nela.
Eles tentaram bater a magia do mal fora dela. A magia sairia de uma maneira ou
de outra.
Ela era uma encantadora e trabalhava com farinha, açúcar e especiarias.
Selene estava acordada, olhos castanhos procurando no escuro, como se não
fosse onde ela esperava estar quando ela acordou. Ela era alta, para uma nobre
Zairdiana, e esbelta. O corte quadrado do corpete de seu vestido estava coberto de
renda branca que formava um babado em volta do pescoço, traçado de veludo preto.
A única pele que aparecia era do rosto e mãos.
Melandra já estava ajoelhada na ala, tendo sentido a pressa de Keleios, mas
parou e olhou para a menina mais velha.
— Foi o sinal do fim, ou do infinito que permite passagem segura?
— Você poderia realmente traçar um símbolo do infinito em um espaço tão
pequeno? Acho que eu não poderia.
Melandra balançou a cabeça e murmurou:
— Não, suponho que não.
O símbolo do fim era traçado através do pó avermelhado e mantinha a ala neutra
até que o símbolo fosse apagado. Keleios passou por cima da linha, tomando cuidado 28

para não borrar.


Um arrepio percorreu sua espinha.
Selene perguntou:
— Você está bem?
— Não, tinha um fantasma na torre hoje à noite.
As duas garotas ofegaram. Melandra disse:
— Keleios, como?
— Não há tempo. Há mais alguém na torre além de mim? – Ela rezou para que
Alys tivesse ido há muito tempo.
— A criança Alys ainda está aqui. – Selene empalideceu. – Oh, Keleios, você
acha?
— Melandra, vá encontrar uma curandeira, de preferência uma manto-branco.
A garota assentiu e se foi, descendo as escadas correndo. Um tique começou
logo abaixo do olho direito de Keleios, um sinal de estresse. O sonho a levou a se
descontrolar; sem tempo, ele chorou, sem tempo. Suas costas tremeram e ela cobriu o
rosto com as mãos.
— Eu controlo meus poderes; eles não me controlam. – Quando ela se sentiu
firme mais uma vez, ela baixou as mãos.
— Keleios, você está cheia de sonhos esta noite.
— Se ela ainda não se foi, o tempo é precioso. Abra a ala para mim.
Selene fez o que lhe foi dito, embora como colega viajante ela pudesse ter
discutido.
Keleios parou na frente do quarto da criança e pausou com a mão na maçaneta
da porta.
Ela reuniu sua vontade uma última vez. Não havia como dizer que tipo de
energia espreitava no quarto. A visita do mensageiro das Sombras ainda era vívida e
próxima. O mal estava no exterior hoje à noite, e se um feitiço pudesse entrar na torre,
poderia haver outros.
Ela empurrou a porta para frente, lutando contra o desejo de usar magia nela. Ela
estava constantemente exortando os aprendizes de feiticeiros a não usarem seu poder
em trivialidades como abrir portas. 29

O quarto estava tão escuro quanto o dela. Os móveis eram os mesmos. Quase
perdida em uma cama de tamanho grande, uma pequena figura se agitou, gritando,
uma mão minúscula erguida para cima, como se estivesse evitando um golpe.
Keleios correu para o lado dela. A espuma ondulada dos cabelos castanhos
claros estava grudada na cabeça de Alys. A criança murmurava palavras enquanto
dormia, palavras que ela não sabia, frases antigas de grande poder. Ela estava lutando
com magia que ainda não possuía, em uma batalha travada há muito tempo.
O fantasma não a pegou. Alys havia se escondido em um dos sonhos da torre.
Foi preciso muito talento para isso. Agora ela estava presa. A questão
importante era: há quanto tempo ela estava assim? Há quanto tempo ela lutava para
se libertar? Se fosse muito tempo, poderia ser fatal.
Keleios sentou-se na cama e agarrou as mãos agitadas, suas próprias mãos
delicadas envolvendo os punhos minúsculos. Ela falou baixinho no começo.
— Alys, Alys, você pode me ouvir?
A criança choramingou e gritou:
— Keleios! Keleios, me ajude, me salve!
— Acorde, Alys, é um sonho. Acorde!
A criança lutou, o esforço aparecendo no rosto e fluindo em tensão por suas
mãos.
Ela estava tentando, mas algo a estava segurando. Levou apenas um momento
para encontrar a reviravolta do feitiço na criança, nem uma ligação completa, nem
mesmo ativa. Ainda não a estava mantendo no sonho, mas estava lá.
De onde estavam vindo todos os malditos Verm feiticeiros?
Keleios arrastou a criança em seus braços e estremeceu, segurando a menina
com ela. Havia muito poder hoje à noite. Ela teria que usar feitiçaria, mas um feitiço
de despertar era bastante simples. Ela se acalmou e segurou firmemente filtrando seu
poder. Demais, e ela acordaria todos os que dormiam no castelo.
— Acorde, acorde!
Alys se mexeu em seu sono, mas não obedeceu.
— Sangue de Loth, vou ter que entrar na mente dela.
O pequeno corpo se contorcia em seus braços como se tentasse escapar, mas
seus esforços não eram muito fortes. Ela estava cansada e perdendo a batalha. Se ela 30

desistisse ou morresse no sonho, seria incapaz de quebrá-lo…


— Selene!
A garota entrou correndo pela porta, com as perguntas prontas, mas não houve
tempo.
— Sente-se na cama. – Selene fez o que lhe foi dito, encarando a forma surrada
da criança.
Keleios empurrou a garota sem reação nos braços de Selene.
— Segure-a com força. – Enquanto assistiam, as lutas ficaram mais fracas. Ela
estava tremendo, os membros contraindo, a pele esfriando.
Selene disse:
— Keleios, você não está tentando entrar na mente dela? Não é o seu melhor
feitiço.
— Não há tempo para mais ninguém vir. Que Zardok guie meu poder esta noite,
mas estamos sem tempo.
Keleios pressionou as pontas dos dedos contra o crânio de Alys. A feitiçaria
chegou até ela, com um poder de arrepiar o pescoço e apertar o estômago. Ela se
concentrou e se conteve. Levemente, levemente, ou você destrói a mente que sonda.
Ela entrou na mente de Alys, os pensamentos da criança girando, mas, através
de tudo, havia medo.
Keleios chamou calmamente:
— Alys, você me ouve?
Um soluço suave veio de longe.
— Keleios, me ajude.
— Mostre-me o sonho, Alys.
Um toque, uma asa de borboleta de poder, e ela entrou. O mundo era o caos da
batalha, armas zumbindo, magia flamejando. Keleios conhecia esse sonho. Era a
batalha de Ohi-elle.
Os nativos loiros mais baixos lutavam principalmente com armas. Os
Astranthians conquistadores usavam ambos. Uma bola de fogo jogou o campo em
alto relevo, gritando. Era crepúsculo; os velhos deuses seriam soltos em breve. Ela
tinha que encontrar Alys antes disso. Ela ficou perfeitamente imóvel, apenas os olhos
procurando a criança. Como ela não chamou a atenção, ninguém a notou. 31

Alys deve ter interferido de alguma forma.


Então, ao longe, sobre uma ninhada de corpos, havia uma pequena forma de
camisola branca, que se defendia valentemente com poderes mágicos que ela nunca
tivera fora do sonho.
Keleios avançou lentamente. Ela era um fantasma pelo qual as figuras gritando
passavam; ela estava enevoada até que escolheu agir. Então ela esperou até que
pudesse estar perto o suficiente para agarrar Alys.
O anoitecer caiu e com ele os deuses dos nativos. Eles correram para o campo de
batalha, gritando e jogando magia para combinar com os invasores. Um demônio
com chifres de pelo menos dois metros de altura se aproximou de Alys. A espada que
ele usava brilhou magia aos olhos de Keleios. Ela correu para a frente, tropeçando em
um corpo que pendia cuspido em uma lança quebrada. Keleios fez uma pausa,
desejando que o pânico passasse. Se ela perdesse o controle, seria pega na briga e
nunca alcançaria a criança a tempo. Ela foi, segurando-se com cuidado. A criatura se
aproximou da criança mais rapidamente. Keleios estava quase lá, a poucos metros.
Ela poderia puxar Alys para ela e elas desapareceriam à vista dos seres dos sonhos. A
espada que a coisa carregava era poderosa, quebrando os raios de energia que Alys
lançou nela.
Keleios quase conseguiu alcançá-la e tocá-la quando a espada caiu, e não havia
mais tempo.
A reviravolta do feitiço dentro de Keleios ganhou vida. Real, dizia; dor, dizia.
Se ela hesitasse, Alys morreria; se ela seguisse em frente, as duas poderiam morrer ou
não. Keleios pegou o 'ou não' e se lançou para frente, aparecendo repentinamente
para o demônio. O golpe foi pesado e ele não conseguiu mudar de rumo. Embora
fosse apenas um sonho, Keleios gritou quando a lâmina quebrou sua clavícula. O
feitiço a forçou a ficar com a dor. Ela gritou e atacou com força. Ela lançou uma
explosão no fio que a ligava a esse sonho como certamente como ele ligou Alys.
Enquanto ela estava lá, impossivelmente ainda viva no sonho, ela viu os fios cinza
subindo no céu:
— Eu não estou sangrando –, ela disse a si mesma. – Isso é apenas um sonho. –
Seu coração disparou freneticamente, ferido pela espada. Gritos estridentes vieram
logo atrás dela. Alys, é claro, pobre criança. Keleios atraiu poder, tudo o que ela pôde 32

encontrar. Estendendo a mão para fora e para dentro, ela explodiu os fios. Os fios do
céu murchavam como fogo. O sonho acabou.
Keleios via a escuridão por um tempo, do tipo que sua visão noturna não
alcançava. Aveludado, macio e reconfortante. Cansada, ela estava cansada, mas algo
a incomodava, a puxava.
Magia penetrando em sua mente, a magia de outra pessoa. Ela atacou com o
toque, e ele quebrou abruptamente. Havia outras coisas para fazer além de flutuar no
escuro. Alys teve que ser encontrada e ajudada. Sim, ajudada.
— Me ajude, Keleios, me ajude. – E havia o sonho, aquele sonho terrível e
urgente que precisava ser contado.
Keleios abriu os olhos para olhar para Bertog, a curandeira viajante. Havia um
aperto em seus olhos azuis e Keleios sabia de onde tinha vindo a segunda explosão de
magia.
A curandeira havia usado uma sonda profunda para despertá-la, e Keleios havia
ferido Bertog. Ela tentou falar, mas uma tosse rouca foi tudo o que veio.
Bertog falou com cuidado, machucada.
— Não tente falar ou se mover, Viajante Keleios. Agora você está fora de perigo
imediato, e Selene foi buscar uma curandeira completa.
Keleios fez um som de protesto.
A garota sentou-se muito rígida, cada centímetro era uma nobre Astranthian. A
seda amarela do vestido era quase da mesma cor do cabelo.
— Eu encontrei Selene no corredor. Eu vim para ver o que eu poderia fazer.
Keleios estendeu a mão para agarrar a manga esvoaçante da curandeira, mas sua
mão não o fez.
Havia uma dor desbotada no ombro esquerdo no meio das costas. Era um ângulo
de latejar abafado.
Bertog continuou como se relutasse em falar com Keleios:
— Alys está bem. Ela está dormindo, exausta. Estudei completamente a doença
dos sonhos. Ela dormirá por horas, sem sonhar, exceto os sonhos que as meninas
normais têm.
Keleios recuperou a sua voz. 33

— Correto –, ela tossiu para limpar a rouquidão e tentou lembrar por que não
conseguia falar com facilidade. Um brilho prateado quando a espada desceu - sim,
tinha sido uma espécie de corte no pescoço. Ferimentos na garganta às vezes
afetavam a fala. Lembrou-se dos fios amarrando-as ao sonho.
Tendo chegado tão perto da morte, Keleios teria falado com Bertog sobre os
feitiços e o fantasma, mas ela desconfiava da curandeira. Os votos da curandeira a
impediam de prejudicar alguém, mas ela ainda podia guardar segredos. Para uma
curandeira branca, a menina passava muito tempo se associando aos seguidores de
Madre Bane. A porta abriu para dentro.
Jodda, no manto branco disforme de uma curandeira completa, veio, e um
fôlego de cura veio com ela. Seu cabelo preto tinha um comprimento rico contra o
tecido nevado. Seus olhos azuis estavam preocupados, seu rosto profissionalmente
vazio, mas agradável. Atrás dela estava Belor, o criador de sonhos.
Seus olhos azuis estavam nublados com sono ou magia. Ele era baixo, de
ombros largos, cabelos amarelos. Uma mandíbula firme e quadrada salvava seu rosto
de ser macio e juvenil. Ele usava uma calça folgada enfiada em botas acima do joelho.
Uma túnica azul estava aberta e sem cinto sobre o peito nu. A túnica e as calças não
combinavam. As ilusões de Belor eram a inveja do resto. Até o ilusionista grão-
mestre da escola estava aprendendo com elas.
Somente Belor e Keleios suspeitavam da fonte de seu presente: marca
demoníaca, magia demoníaca que fluía por suas veias. Como a mão dela atrás da
prisão de couro, o mesmo acontecia com a magia inata dele – contaminada.
Seus olhos procuraram os dela agora, e um olhar foi suficiente entre eles. Ela
estava bem.
Seu medo diminuiu.
Melandra veio por último, calmamente, com a cabeça baixa, para que o cabelo
escondesse o rosto. Ela tinha uma queda por Belor, mas se considerava horrível e, por
isso, era estranha no papel.
Jodda traçou uma linha vermelha do ombro esquerdo de Keleios, perto do
pescoço, para desaparecer no tecido da túnica que usava.
— Você conseguiu isso em um sonho? 34

Keleios conseguiu fazer que sim.


O rosto da curandeira apagou, ficando limpo de toda emoção. Jodda abriu as
mãos, palmas para baixo, no início e no fim do ferimento. O calor se espalhou de suas
mãos para Keleios, então Jodda começou a se mexer e se debater, sem perder o
contato com o corpo de sua paciente. Um grito de tirar o fôlego ecoou pela sala da
torre, e uma barra vermelha se espalhou lentamente pelo manto branco. A dor
latejante deixou Keleios. Jodda recuou para sentar-se de pernas cruzadas em profunda
meditação. Somente para feridas graves um curandeiro branco precisava de transe
depois. Keleios se perguntou o quão ruim o dano interno teria sido, ou se era mais
uma ferida da alma.
— Algum dia, eu farei isso –, disse Bertog em voz baixa.
Keleios olhou para a garota em seu elegante vestido de seda. As mangas eram
afuniladas e caíam quase no chão. Jóias decoravam o cinto que envolvia sua cintura.
O cabelo amarelo estava enrolado e envolto em fios de ouro. Muitos das curandeiras
copiavam seus mestres e usavam vestes disforme de azul pálido. Quando eles se
tornassem curandeiras, o azul seria trocado pelo branco. Bertog não pareceria tão
atraente nas roupas folgadas de curandeira. Keleios sorriu; era um pensamento
animador.
Belor se ajoelhou do outro lado de Keleios.
— O que deu errado?
Ela falou suavemente apenas para os ouvidos dele.
— Um fantasma e um feitiço de ligação.
Seu sussurro foi um silvo de choque.
— Fantasma - mas como? E um feitiço na torre, como?
Ela se apoiou nos cotovelos; Belor mudou-se para ajudar.
— Estou bem. – Ela podia ver Alys agora, encolhida contra a parede oposta. –
Alguém aqui abriu a torre. O símbolo da lei não está mais protegendo esta torre. Deve
ser substituído antes que outros monstros entrem.
Jodda afastou Belor e começou a explorar sua paciente com firmes mãos
profissionais.
Keleios chamou Melandra para ela.
— Melandra, eu preciso de um favor. 35

— Claro. – Ajoelhou-se perto, mantendo os cabelos grossos como um véu ao


lado, perto de Belor.
Jodda disse a ela:
— Por favor, pare de falar para que eu possa examiná-la.
— Jodda, a torre deve ser fechada para os que procuram a noite. Acho que todos
os feiticeiros abaixo dos viajantes deveriam ser verificados. Deixe-me enviar
Melandra para acordar o pai e a mãe do dormitório e alertar um dos feiticeiros-mestre
para que eles possam fechar a torre. Ficarei quieta depois disso.
— A torre sendo aberta eu entendo, mas o que há de errado com os feiticeiros? –
Jodda perguntou.
— Quando eu estava tentando libertar Alys, depois que me machuquei, procurei
o poder. Temo ter usado o poder de pelo menos um outro feiticeiro sem o
consentimento deles.
Bertog disse:
— Isso é feitiçaria do mal.
— Não foi feito de propósito, mas por falta de controle.
Jodda disse:
— Muito bem. Bertog, vá com a aprendiz caso haja necessidade de cura.
— Não –, disse Keleios. – Eu a machuquei acidentalmente quando ela entrou
em minha mente para curar.
— Venha aqui, Bertog. – A garota avançou hesitante. Jodda tocou seu corpo e
fechou os olhos por um momento. – Você certamente fez. Vá para o seu quarto e
descanse; cure a si mesma. Melandra, pegue Feldspar, o curador. Você o conhece de
vista? – A menina assentiu. – Bom. Agora vá.
A garota fez uma reverência à mestre Jodda e saiu correndo. Selene entrou sem
fôlego.
— Curandeira, precisamos de você lá embaixo.
— O que é desta vez?
— Mestre Fidelis, ela foi encontrada inconsciente. Aparentemente, algo deu
errado no meio de um feitiço.
Jodda levantou-se. 36

— Eu não terminei com você, Keleios, então descanse. – Ela voltou os olhos
para Belor. – Estou encarregando você de ver que ela descansa e não se machuca
mais hoje à noite.
Ele fez uma mesura.
— Como você disser, curandeira.
— Ainda não posso descansar, Jodda. Minha profecia não pode esperar até
amanhã.
Os olhos de Jodda estavam com raiva, quase pretos.
— Por que eu te curo? Você se abusa constantemente. Vá profetizar, mas eu não
vou curá-la se você desmaiar esta noite. Seria bom você ficar de cama por um dia ou
dois. – Ela se virou com um abanar de saias e pegou Alys. – A lesão da criança é na
mente e levará mais tempo. Ela provavelmente vai dormir amanhã fora, ou melhor,
hoje.
Keleios disse baixinho:
— Eu tive que entrar na mente dela para libertá-la do sonho. Eu a machuquei?
Quando lutei para nos libertar, eu ainda estava dentro de sua mente, chamando
feitiçaria.
— Ela está ferida, Keleios, mas vai se curar. Você não causou dano permanente.
Você salvou a vida dela. Se ela tivesse morrido enquanto sonhava, a torre teria levado
sua alma. Não haveria chance de ressurreição.
— Você virá me pegar quando ela acordar.
Ela hesitou, depois assentiu.
— Sim, eu irei buscá-la. Alys provavelmente precisará vê-la, viva e inteira.
Tente ficar assim até que ela acorde.
Keleios sorriu.
— Farei o meu melhor.
Jodda partiu, suas saias abanando nas pedras. A luz da única lâmpada tremeluzia
com uma brisa que começava dentro da sala. Keleios falou baixinho para que sua voz
não ecoasse na sala.
— Como você chegou aqui?
— O som de corrida me acordou. Selene me disse apenas que você foi ferida e 37

estava na torre – disse Belor.


— Então você veio me resgatar.
— Para proteger suas costas. Você faria o mesmo por mim.
— Verdade. – Ela ficou em pé, sentindo uma rigidez persistente que passaria. As
sombras pareciam engrossar. A chama da lâmpada fluía no vento crescente.
Belor vasculhou a sala, inquieto.
— O que é isso?
— Vento. Vamos deixar a torre para si mesma. – Keleios pegou sua bolsa no
local próximo à parede. Ela enfiou os punhais nas bainhas. As braçadeiras de ouro
escorregavam em seus antebraços; o feitiço de força brilhou através deles. Ela já se
sentia melhor. O anel de proteção foi o último. Ela amarrou a bolsa de couro no cinto.
Ela entrou pela porta e ele a seguiu.
— E a lâmpada? – Quando ele perguntou, a chama desapareceu, deixando o
quarto escuro. Ele ficou um momento com o vento bagunçando seus cabelos, até que
Keleios colocou a mão em seu braço e o puxou para fora. O fogo na sala externa
havia diminuído para um brilho azul sombrio.
Ele perguntou novamente.
– O que é isso?
Ela caminhou em direção à escada.
— A torre deseja ser deixada em paz, Belor. Vamos dar a ela o que ela quer.
Ele seguiu com muitos olhares para trás. Ela ficou impaciente, observando-o
voltar.
O cabo de sua longa espada espreitava pelos cabelos e pelo colarinho da túnica.
Ele a prendera nua no peito e na cintura.
— Belor, devemos sair agora. – Ele veio até ela e eles entraram nas paredes
próximas da escada. Seus pequenos degraus estreitos e paredes muito próximas
pareciam piores esta noite. Eles pressionaram com um grande peso que Keleios nunca
havia notado antes.
— Você poderia ter se vestido antes de amarrar sua espada, Belor.
— Oriona teve sorte de eu vestir calças, botas e túnica –, continuou ele numa
imitação quase perfeita do guarda do dormitório das meninas. – Você está correndo 38

seminu para o mundo, na frente das minhas meninas.


Keleios riu:
— Você tem praticado.
As pedras capturaram suas risadas e as intensificaram até que a escada estreita
parecia estar rindo de volta. O sorriso de Belor desapareceu. Ele encolheu os ombros.
— Notícias sobre você machucada significam pouco tempo para se vestir e a
necessidade de uma espada.
— Sua espada não poderia ter me ajudado esta noite, Belor.
A escada continuava em espiral sem a ajuda de paredes. O ar parecia mais frio e
bem-vindo.
— Mas Luckweaver poderia ter ajudado você.
— Itens encantados não são permitidos na torre –, a concha da torre terminava
em quatro arcos que levavam aos pontos da terra. Através de cada arco, os livros da
biblioteca brilhavam, jóias derramadas na escuridão.
Keleios se viu atraída pelos livros. Ela queria acariciar cada encadernação
brilhante e as escuras também. Mas mesmo os livros não-mágicos mereciam ser
salvos; os três volumes sobre ervas, embora não fossem mágicos em si, eram como se
fossem.
— Tanto conhecimento e deve queimar.
— Keleios, o que você quer dizer com “deve queimar”?
Ela se virou para ele no escuro e continuou falando, como se a primeira
conversa não tivesse parado.
— Eu sei que você está preocupado. Mas um fantasma não pode ser combatido
com uma espada. – Keleios atravessou o arco sul. Belor a seguiu.
— Você tem alguma idéia de quem era a magia?
— O feitiço de ligação foi feitiçaria de ervas. E foi poderoso. Somente duas
pessoas nesta fortaleza conseguiram: Poula e Fidelis. Poula não faria isso, mas Fidelis
faria. Ela adora Madre Bane e a Senhora das Sombras. Mas não tenho provas a
apresentar ao conselho.
— Existem outras maneiras de lidar com essas coisas.
— Porque, Belor, você ficou sanguinário sobre mim. 39

Ele sorriu.
— Estou com você há muitos anos. Você pegou um ilusionista cumpridor da lei
e o transformou em um guerreiro. – O sorriso dele desapareceu. – Não acredito em
matar quando há outras respostas. Mas Fidelis não tem escrúpulos. Esperar por
provas para tomar o conselho pode matá-la. Keleios, você não está me ouvindo. Por
que você está tocando os livros?
Ela se virou, surpresa.
— Eu estou, não estou? Belor, se houver algo aqui que você valorize, pegue,
salve.
— De quê?
— Minha profecia.
— Keleios?
Ela riu. Ela se sentiu tão estranha, emocionada, como se sonho e visão
estivessem combinando, mas estava consciente:
— Não, Belor, não estou em transe, mas meu sonho não vai me deixar hoje à
noite. A fortaleza cairá, e tudo nela será perdido. A força da profecia está me
puxando esta noite. – Ela tirou a bolsa preta do cinto e a abriu. Também brilhava
suavemente nos olhos do encantador. Ela despejou a parafernália de feitiços.
Encantamentos Incríveis desapareceram, assim como os três volumes de ervas. Ela
parou no Grande Livro, seus dedos traçando suas runas. – Não, você deve
permanecer, mas não queimará. Relíquia que você será, não é minha mão que irá
salvá-lo.
Ela escolheu um volume espesso de histórias populares camponesas, a única do
gênero para os camponeses astrantianos. Grande parte da cultura que os criara se fora
agora.
— Se você pudesse escolher apenas um livro para salvar, qual seria? – Era tão
inútil, tantos livros e tão pouco espaço ou tempo.
Belor escolheu o Livro das Ilusões; pulsava branco-rosa debaixo do braço.
Como convinha a um livro com esse nome, parecia mudar de tamanho e cor, até de
textura - um minuto de couro fino, no próximo, folhas grossas. Ele entregou a ela sem
uma palavra, e ela enfiou na abertura incrivelmente pequena. 40

— Como você sabe quais livros levar?


— Eu os vejo através de um filme de chamas. Os que eu pego não queimam. E
há um sentimento de retidão – ela estremeceu. – Eu preciso falar em breve; o sonho
se constrói – ela se virou abruptamente e ele a seguiu.
— Não, Belor, eu preciso terminar esta caminhada sozinha.
— Por quê?
— Não me questione!
A visão profética girou diante de seus olhos. A biblioteca estava em chamas; a
fumaça formava uma névoa que subia em direção ao teto, explosões enquanto os
livros de magia eram pegos e queimavam. Uma visão a arrebatando. Keleios gritou
com ele por causa do rugido em seus ouvidos:
— Saia! Saia! Deixe-me!
Ele não iria. Ela o levou de volta com chamas e medo, sua visão quase completa.
Ela não podia garantir a segurança dele depois que ela fosse levada. Quando ele
estava em uma distância segura, Keleios se entregou à visão. Impossivelmente, um
fio fino de feitiço a envolveu, como uma corda de ancoragem. Não havia tempo para
lutar contra isso; o imediatismo da visão era real demais. Chamas lambiam as paredes,
os livros amassando, queimando, as prateleiras escurecendo. Ela ficou nos escombros
em chamas, que não estavam lá, e gritou:
— Fogo! – Brasas eram como vespas ardentes em seus cabelos e pele. Ela gritou:
– Queimando, queimando! – até sua garganta secar. Uma voz a chamou através das
chamas, uma voz gritando seu nome.
CAPÍTULO 03: PROFECIA

— KELEIOS, KELEIOS!
O ar embaçado pela fumaça entupiu sua garganta. Ela se encolheu no chão,
deixando a fumaça subir até o teto, tentando respirar. Pedaços do chão explodiu em
chama. Prateleiras caíram, em chamas no chão.
A voz chamou com urgência:
— Keleios, me ouça!
41
O calor chamuscou sua pele, muito perto. Seus olhos lacrimejaram, e a respiração
era uma agonia.
Um vento escovou suas bochechas, uma branca e magra mão a puxou para fora.
Ela agarrou a mão quando o telhado gemeu e começou a dobrar as vigas comida pelo
fogo no chão.
Pensamentos legais vieram para ela.
— Não é real, isso não é real. Visões não podem machucar, você está segura.
Keleios ficou no fogo e não queimou. Uma visão—agora ela lembrava. Isso ainda
não tinha acontecido e não podia machucá-la de verdade.
O espetáculo começou a desaparecer. O fogo era uma névoa laranja escura. Uma
última pitada de fumaça picante, um flash de queimada, e se foi.
Keleios se viu deitada no escuro; braços fortes a rodeia com pano cobrindo seus
peitos. Pano era de seda e preta como a escuridão. Apenas uma pessoa em toda a
fortaleza seria tão descarada a ponto de usar a cor de Loth, o deus do derramamento de
sangue: Lothor, o Curador Negro. Keleios queria se afastar de seu toque, mas
estremeceu em relação à visão, tão frio. Estava tão cansada, e ainda assim o sonho
permaneceu. Ela não podia pagar outra visão como essa.
Ela se afastou dos braços que a continham, ainda tremendo. Keleios rastejou até o
final da linha da prateleira; ela não tinha forças para ir além. Seus braços envolveram
seus joelhos em um esforço para parar de tremer. A flexão do braço direito e da
panturrilha esquerda mostrou que os dois punhais ainda estavam no lugar. Uma luz de
feitiçaria vermelha ganhou vida por cima do ombro do homem e lançou seu rosto
desossado em relevo carmesim.
— Você nunca dorme, Lothor? ela perguntou.
— Não, frequente, ele disse sem deixar um sorriso.
— Quando você puder andar, eu à ajudarei a chegar no seu destino.
Keleios abriu a boca, pronto para dizer:
— Mas não preciso de ajuda.
Verdade era verdade, mas por que tinha que ser ele?
— Era você me chamando. Como você soube o que fazer? Eu pensei que profecia
era rara em Lolth.
— Meu irmão era um visionário. Estou acostumado a tentativas de assassinato em
Lolth, mas não aqui na escola de Zeln. 42

— O que você quer dizer com tentativa de assassinato?


Ele fez um som agudo, meio riso, meio bufo.
— Ainda não confia em mim? Bem, Keleios, alguém colocou um feitiço obrigatório
em você e eu tive que quebrá-lo para libertá-la da sua visão. Se eu quisesse você morta,
eu poderia ter ficado parado olhando.
Keleios se inclinou contra os livros e fechou os olhos por um momento.
— Obrigado por me salvar.
— Foi meu . . . prazer.
E a última palavra rolou de sua língua cheia de obsceno sugestão.
Ela abriu os olhos e olhou para ele. Ele chegou mais perto; a luz de feitiçeiro
vermelho de fogo realça o pelo na garganta.
— Por que você faz isso?
— Fazer o que?
Seu rosto não mostrou inocência, mas ele parecia confuso.
Keleios balançou a cabeça.
— Não importa.
Ela se levantou, forçando-se a não se agarrar as prateleiras.
— Acredito que podemos ir agora.
Ele não fez nenhum protesto, não tentou questioná-la mais. Ele entendia pelo som
na voz dela e isso significava que o assunto havia mudado. Irritou-a que Lothor pudesse
lê-la tão bem.
Ele passou os últimos três meses aprendendo sobre ela. Ele havia questionado todos
que conversaria com ele e fizera todos os esforços para cortejá-la adequadamente.
Keleios desejou que ele fosse embora.
Ela cambaleou, e ele a segurou, o braço como ferro sob a mão dela. Keleios olhou
para ele. Ele era impossivelmente alto para um vareliano, mas depois ele era meio
humano. Sob a escura seda de um príncipe curandeiro preto estavam ombros largos e um
corpo esbelto demais para um humano da mesma altura e circunferência. Pêlo preto afiou
a gola e decorou a barra do gibão, que caiu logo acima dos joelhos. A única cor era o
vislumbre do vermelho no padrão vermelho seda que dizia a cor de seu gibão, escondida43
sob toda aquela escuridão. Seu cabelo caiu liso e grosso, bem delicado, passando por seus
ombros. Era da cor da neve recém-caída. A pele dele estava geada, e seus olhos eram a
prata do gelo velho ao sol de inverno. Ele era um elfo de gelo esticado fora de forma,
mas ainda mostrando por que eles eram considerados uma das raças mais bonitas.
Evidentemente, a palavra elfo era um insulto a um vareliano. Keleios nunca tinha
entendido o porquê, mas os elfos brancos se consideravam melhores que isso. Chamar
um vareliano de elfo na sua cara, ele ou dela pode matar uma pessoa em resposta. Lothor
não sabia nada sobre ser vareliano. Ele não saberia que o elfo de gelo era um insulto. O
sangue por si só não transformou ninguém em um elfo.
Ela olhou para baixo e sentiu um rubor subir pelo rosto. Ela estava olhando para ele.
Ele riu, um som gutural rico que jogou seu rosto pálido em linhas amigáveis.
Keleios tentou afastar-se, mas ele a abraçou e disse:
— Sinto muito, mas é tão raro que você mostre interesse. Por semanas eu esperei.
Sua cor favorita é verde. Suas melhores feitiçarias são aquelas que lidam com fogo e frio.
Mesmo que você possa fazer muitas coisas com a mente flexível, você prefere usar
produtos de ervas. Você gosta da lenta construção do poder. Você se sente mais no
controle dessa maneira.
Os braços dele envolveram suas costas, e ela olhou para ele.
— Eu estudei você como um livro raro. Eu te conheço, mas você me ignora. Esta
noite você sentiu o desenho do meu corpo como eu sinto o seu.
A raiva emprestou sua força, e ela se afastou dele, poder encantado contra poder
encantado.
— O que você quer, curandeiro preto?
— Você, para ser minha esposa.
— Eu não estou pronta para lhe dar uma resposta.
Seus olhos prateados traçaram o corpo dela e ele disse:
— Você deve decidir em breve, ele se aproximou e olhou para ela.
— Os casamentos reais são muitas vezes uma questão de fronteiras, especialmente
quando os dois países em questão. . . contato.
— Não me ameace ou me pressione.
Ela balançou, colocando a mão na frente do rosto. O poder estava de volta, irritante,
enganando. Ela sorriu desagradável para ele e estendeu a mão para acariciar seu rosto. 44

O toque da luva de couro o fez recuar. O medo se mostrou por um momento. Então
um sorriso doentio cruzou seus lábios.
— Você não ousaria.
— Hoje à noite, Lothor, eu devo, ela passou por ele e pegou sua bolsa encantada de
onde havia caído.
— Eu tenho algo para essa sua bolsa.
Keleios virou-se com relutância. Ele estendeu um livro preto grosso. Foi cercado
pelas chamas de escuridão. Os primeiros rastejamentos do poder retornado se
fortaleceram ao ver aquele livro.
— Você tem o hábito de ouvir as conversas de outras pessoas?
— Sim.
Ele sorriu e estendeu o braço. Seus dedos eram como raízes brancas contra o preto,
como se, quando ela pegasse, a mão a acompanhasse como um parasita, ligada a ela à
força.
Ele esperou pacientemente como se pudesse oferecer-lhe o mal para sempre. O
brilho vermelho de sua feitiçaria transformou seus cabelos brancos em sangue, e ela
tocou a adaga na bainha do braço para se sentir segura.
Ela foi até ele.
A mão dela se fechou no cordão e enviou um choque através da luva de couro, um
ardor sobre a marca na palma da mão. Ela conhecia este livro, ou um semelhante. Uma
sombra pálida disso residia na Ilha Grey. Seis anos atrás, essa cópia fina, um punhado do
valor deste livro, tinha sido usado contra Belor e ela. Ele conjurou demônios e abriu o
caminho para o Cova. Harque, a Bruxa, tinha valorizado isso acima de todos os outros
poderes. No entanto, sua profecia lhe disse este deve ser guardado. Aqueles que vierem
depois podem causar grandes danos a ela. A bolsa encantada apagou as chamas negras e
o livro desapareceu da vista. A queima na mão dela não parou e esfregou-a contra a perna.
Ela tinha um forte desejo de tirar a luva da mão dela e esfregar a dor. Havia uma
necessidade de sentir o ar frio nela. Havia uma grande sensação de leveza para ela pegar
o livro, mas era perigoso. Era um perigo que de certa forma ela não conseguiu definir.
Como se ciente do volume escuro passando por suas mãos, um grito veio de perto.
— Keleios!
Ela saiu de entre as prateleiras e pôde sentir Lothor seguindo logo atrás. Um círculo45
de chamas lambeu e vacilou, lançando sombras alaranjadas nas prateleiras.
Vislumbrando entre as chamas estava Belor. Seus últimos pensamentos foram mantê-lo
seguro, mas as chamas estavam tão perto. Ele foi preso, mas não ferido, a salvo de sua
visão, mas preso.
Lothor falou em voz baixa.
— Ele não parece feliz.
— A visão veio sem aviso prévio. Eu tinha medo de machucá-lo por acidente.
— Suponho que ele esteja seguro o suficiente, mas ele não ficará satisfeito com
você.
Um arrepio percorreu sua espinha e sua mão esquerda exigiu atenção.
— Ele não está feliz, mas se eu o libertar agora, ele fará perguntas, perderá tempo
com preocupações, respostas e desculpas.
Não havia tempo para tudo isso, e Keleios se virou e caminhou pelo corredor
principal. Belor não gritou com ela; talvez ele não pudesse ver através das chamas.
Lothor seguiu a luz da feiticeira balançando à frente deles como um testamento
inchado.
Quando eles ficaram no corredor aberto, ela se virou para ele.
— Agradeço sua ajuda, mas eu estou me sentindo muito melhor agora. Meu destino
fica a poucos passos de distância.
— Eu não sou tão facilmente dispensado. Você ainda está fraca. Acompanho você
até a porta.
— Eu não preciso de sua proteção, príncipe Lothor.
— Mas eu já protegi de todas as suas profecias esta noite.
— Todas as minhas profecias?
— Fui guardador de profetas hoje à noite.
Raiva e algo próximo ao medo passaram por ela.
— Você não pertence a esta escola. Você é apenas um convidado, embora
permaneça por muito tempo.
Ele sorriu e seus olhos prateados brilharam.
— Estou aqui há tanto tempo que me foi concedido privilégios.
O poder estava retornando. Sua pele se arrepiou e um tique começou em sua
bochecha esquerda. Ela queria se livrar dele e de sua pergunta amaldiçoada. Tão fácil -46
apenas diga que foi acidental, também muito poder e um insulto velado demais. Keleios
balançou a cabeça para limpar tal pensamento para longe. Era a feitiçaria falando; queria
usar. O sonho era urgente, e tinha que dar algo em breve.
Ela apertou os punhos e falou com cuidado.
— Você está aqui apenas para atormentar ou existe uma propósito para isso?
— Eu tive apenas um propósito desde que cheguei.
Ele se moveu ao lado dela suavemente, com um graça de esgrimista. Seus olhos
prateados encontraram os dela, e ela não desviou o olhar.
— Você quer se casar comigo?
— Eu já disse muitas vezes que você deve ser paciente.
— Eu tenho sido paciente. Eu acredito que você responderia não se eu não fosse um
príncipe e herdeiro de um trono. Não é educado recusar um príncipe às pressas.
A raiva apareceu em seu rosto. Sua brancura corou levemente, os olhos brilhando.
— Se você acredita que essa é sua resposta, então vá, deixe-me em paz.
Ela se virou para ele.
Ele a chamou:
— Você não se livrará de mim tão facilmente, Keleios Nightseer.
Ela parou, tentando respirar através do poder. Isso a sufocou, exigindo ser libertada.
Ele escolheria usar um nome de demônio, lembrando a ela que também tinha laços com
eles.
Ela não ousou se mexer, apenas inspirou e expirou.
Ele deu a volta nela e levou a mão esquerda para cima. Seus olhos zangados
observavam os dela. Viu a luta neles. Ele girou a palma da mão para cima e beijou a luva
de couro suavemente.
— Minha pobre pequena feiticeira, meio boa e meio ruim, que confusão.
— Lothor, por favor.
— Nós poderíamos terminar agora. Lute e você se livraria de mim.
Ela olhou para ele, a magia pulsando perto.
— Você me daria essa saída?
— Eu sim, meu pai que me enviou, não. 47

Ele tocou o ombro dela, e uma luz de feitiçaria brotou em seus dedos.
— Eu pouparia a nós dois um casamento infeliz se me permitissem.
Sua mão caiu ao seu lado.
— Mas eu não sou meu mestre.
— Todo mundo deveria ser seu próprio mestre pelo menos em parte, Lothor.
Ela andou ao redor dele, respirando cuidadosamente através da magia que ameaçava
transbordar. Pequenas faiscas de magia esvoaçava pelo corredor.
Ela ficou na frente da porta da Mestre Poula, mas antes que pudesse falar, uma voz
chamou:
— Entre, querida.
Keleios empurrou a porta para dentro com magia e entrou no quarto escuro como
uma tempestade prestes a começar.
A sala estava tão escura quanto a torre. Os juncos rangeram sob os pés, cada passo
pressionando as ervas espalhadas na fragrância. O cheiro de pinho de alecrim, hortelã,
hortelã-pimenta e um pouco de hortelã, talvez maçã, enchiam o ar. Hortelã e alecrim
foram velhos favoritos da mestre Poula. Os cheiros acalmaram Keleios. Sem luzes e o
feitiço calmante no chão, mostrava que Poula estava preparada para uma Keleios que
pesava os sonhos. Ela também era uma profeta, mesmo que de cartas.
A mestre estava sentada muito quieta em uma pequena mesa redonda. Era formado
de cinzas e escuras. Foi levemente encantado para fortalecer suas profecias de cartas e
seus chás de cura.
Ela usava uma túnica solta com cinto que Keleios já tinha visto antes. Era verde
floresta profunda com branco afiando-o em volta. As ervas eram bordadas na borda
branca, mas havia nada de mágico nele, nem mesmo para uma feitiçeira de ervas. Era
apenas uma túnica bonita.
Na penumbra, o rosto de Poula tinha cicatrizes terríveis: um olho quase fechado
com tecido cicatricial, o outro uma escuridão vazia. Seus longos cabelos castanhos,
ficando grisalhos, não estavam presos. A máscara branca que ela usava geralmente estava
ao seu lado na mesa. Keleios teve o privilégio de ser uma de um seleto grupo, que já a
viu sem a mascara.
Ela era cega, mas através do colar encantado que usava, objetos estavam delineados
com cores como auras. Foi uma alegria singular para Poula que Keleios não precisasse de48
luzes. Até embora não escondesse suas cicatrizes do meio élfico, Poula estava mais à
vontade no Sombrio.
Certa vez, um Keleios muito mais jovem perguntou como ela tinha essas cicatrizes.
Foi um debate interminável entre os aprendizes e vaiajantes, sobre o que ela escondeu e
por que, e como. Poula olhou além da criança e parecia estar olhando para outras coisas,
depois disse:
— Uma vez eu era jovem e tola. Fui desafiada por uma feiticeira e a encontrei na
arena. Eu poderia tê-la matado. Ela estava deitada aos meus pés e não conseguia se
mexer, mas eu adorava Mãe Blessen e tive misericórdia. Ela desviou os olhos para
Keleios e disse:
— Mas ela era má, e porque eu a deixei viva, ela fez isso comigo.
Até onde Keleios sabia, ela era a única aprendiz a ser homenageada com a história,
e ela não disse a ninguém. Foi essa história que deu a Keleios a coragem, ou o medo, de
matar na arena. Dois desafios, duas mortes, ambos como viajante. Ninguém a desafiou
desde que ela voltou de sua busca e se tornou uma mestre. Houve um desafio depois de
ter sido despojada da classificação de mestre, mas oficial ou não, ela era uma mestre, e o
feiticeiro morreu.
— Entre, criança. Eu tenho uma xícara de chá pronta para você.
— Mestre Poula, eu vim para profetizar.
— Estou ciente disso. O chá o ajudará a controlar seus poderes. Pedaços de mágica,
como coloridos vaga-lumes, dançam ao seu redor. Beba, depois profetize.
Keleios estendeu a mão; a xícara e o pires voaram para ela. O movimento foi muito
rápido, e o líquido verde-âmbar derramou sobre a borda.
— Sangue de Loth, não posso fazer nada certo esta noite?
— Seja aliviado, criança; o chá removerá os últimos toques remanescentes do
feitiço que quase te matou duas vezes hoje à noite.
A xícara era branca delicada, com raminhos de lavanda azul pintados ao lado. O
cabo curvado encaixava-lhe bem os dedos, pequenos. Ela respirou fundo o vapor do chá.
Hortelã-pimenta, tão forte que fazia pensar no verão e nas folhas frescas amassadas. A
fragrância frutado de camomila, como maçãs fracas de verão. Keleios levantou a borda
dourada até a boca e tomou um gole do líquido. Estava quente, mas não escaldante, e
carregava magia. Houve a leve doçura das flores de lavanda, a conhecida raiz de49
valeriana perfumada, erva-doce e milfoil.
Keleios conhecia bem o feitiço. Cada rascunho endurecia sua calma; cada gota
perseguia uma dos feitiços esvoaçantes. Quando terminou, ela o levitou cuidadosamente
de volta à mesa e sentou-o ao lado do pequeno bule redondo.
— Você se sente melhor?
— Muito obrigado, mestre.
Ela riu.
— É para isso que eu estou aqui.
Ela recostou-se na cadeira e não ofereceu uma para Keleios - ela sabia melhor.
— Bem, criança, conte o seu sonho.
Keleios ficou de pé e olhou para as paredes escuras. Respire fundo para controlar,
canalize o poder, e ela tocou a calma de aço que continha o sonho. A divisão de aço e o
sonho se libertou como um inverno de borboletas preso por muito tempo.
— E o sonho acabou.
Ela piscou, afundando e respirando profundamente.
Quando olhou para cima, Poula ainda estava imóvel.
— Mestre, o que devemos fazer?
— Venha, criança, sente-se e tome uma segunda xícara de chá enquanto pensamos.
Keleios sentou-se agradecida. Se não fosse o feitiço no chá, ela seria boa apenas
para dormir agora. Ela serviu um segundo copo e perguntou:
— Poula?
— Não, obrigado, o feitiço é tudo para você.
A feiticeira de erva ficou muito quieta e disse:
— Você é uma profeta; esta mensagem foi sua. O que você diz sobre isso?
Keleios tomou um gole de chá e falou com cuidado.
— Está assustadoramente claro, Poula. A grande escuridão, seja um buraco ou uma
janela, é meu símbolo da morte. Tenho certeza de uma morte: Feltan.
— Estou triste como você, Keleios. Você vai contar a ele?
— Como você diz a um garoto de oito anos que viu a morte dele?
— Então você não contou a ele?
— Ainda não sei. Eu o trouxe aqui para a escola para que ele pudesse treinar. Ele já
tinha atraido um familiar. Você sabe como isso é raro em uma feitiçeira não treinada. 50

Poula assentiu.
— Ele tem um grande potencial.
— Eu o trouxe aqui, talvez até a morte dele.
— Você não pode pensar assim.
Keleios olhou para a mesa.
— Mas eu penso assim.
— Não posso lhe oferecer conforto, Keleios. Eu já vi a morte nas cartas antes. Não é
um coisa fácil ou simples de saber o que fazer com o conhecimento.
Keleios assentiu e tomou um gole de chá, pensando.
— E o resto do sonho? Poula perguntou.
Keleios respirou fundo e soltou o ar lentamente.
— As paredes da torre serão quebradas. Seja por mágica ou força de armas, não
tenho certeza. Fidelis, a Bruxa, ajudará na traição, isso nos permite cair. Como ela ajudou
esta noite.
Poula olhou para ela e não disse nada.
Keleios disse:
— Você sabe tão bem quanto eu que tinha que ser Fidelis. Nenhuma outra feitiçeira
de ervas na escola poderia ter feito tal feitiço. Exceto você, é claro.
— Você nunca gostou de Fidelis.
Keleios não tinha certeza de que era uma pergunta, mas ela respondeu.
— Não, eu não aprovo magia negra. Acredito que existem alguns feitiços que não
devem ser usados.
— Então por que eles estão nos volumes? Alguém teve que criá-los.
— Eu sei, eu sei. É o mesmo argumento antigo. Você e ela dividem um quarto há
mais de dois anos.
— E eu aprecio você lutando por mim. Teria sido pior, de alguma forma, voltar ao
viajantes que dormem.
— Eu sabia que seria.
Poula fez uma pausa, olhos cegos encarando suas próprias mãos cruzadas.
—Lhe ocorreu que o feitiço de ligação poderia ter sido uma tentativa pessoal contra
sua vida.?
— Não, acredito que foi para manter a profecia em segredo. 51

— E o propósito do fantasma?
— O mesmo . . . para manter em segredo as notícias da destruição iminente
— Você realmente acha que Alys poderia ter se escondido de um fantasma?
— Ela deve ter!
— Não se um feitiço de encadernação foi colocado nela primeiro. Isso a amarraria
ao primeiro sonho que veio junto.
— Mas com qual propósito?
— Keleios.
— Então eu a salvaria? Mas isso não faz sentido. Certamente o fantasma mataria a
maioria dos profetas.
— Sim, mas você está aqui, viva, sã. E você fechou a torre ao fantasma - não é algo
fácil de fazer.
— Você está dizendo que esta noite foi para mim, o único sonhador feiticeiro da
fortaleza, o único com chance de escapar do fantasma.
— Sim, minha querida.
— Então, Fidelis planejava me matar e manter o sonho em segredo, de um jeito ou
de outro. Mesmo se isto significava matar Alys no processo.
— Talvez houvesse outro motivo para ela se certificar de sua morte.
— O que você sabe que eu não sei?
— Ela adora Mãe Bane, Keleios, e não seria contra os votos dela matar você.
Especialmente se fosse sua dívida indagadora.
— A dívida dela? Quem desperdiçaria a tarefa deles na minha morte?
— Fidelis procurou Harque, a Bruxa.
Keleios recostou-se na cadeira e apenas olhou:
— Como Zeln e você puderam fazer isso? Harque é louco, um perigo, e você enviou
um viajante para procurar ela.
— Fidelis pediu. E Harque era uma feiticeira de ervas, sacerdote das sombras e
profeta. É raro essa combinação e combinava com Fidelis.
— Fidelis também é ilusionista.
— Seja razoável, Keleios. Combinações perfeitas são difíceis de encontrar.
Harque - o nome a levou de volta aos cinco anos de idade e ao assassinato de sua
mãe. 52

— Ela me assombra como um fantasma. Eu tive meu velho pesadelo esta noite, com
ela me perseguindo pelos corredores.
— Você ainda mantém o voto que fez há tanto tempo?
— Sim, Poula.
Ela sorriu e seus olhos castanhos dourados escureceram enquanto falava.
— Todos nós devemos tem objetivos. Meu primeiro foi ser um viajante completo.
Meu segundo foi matar Harque. Eu realizei o primeiro e falhou no segundo, seis anos
atrás.
— Você e Belor quase morreram nessa tentativa.
Keleios acenou como se não tivesse importância.
— Belor sabia tão bem quanto eu o que tentávamos; nós nos arriscamos.
Ela virou os olhos quase pretos para Poula.
— Belor queria alimentá-la para o poço como ela havia feito conosco.
— Mas você disse que não. Por quê?
— Quero ver a luz morrer nos olhos dela do jeito que morreu nos olhos da minha
mãe. Você sabia que a única parte reconhecível, no final, eram os olhos dela? Minha mãe
tem olhos marrons perdidos em um rosto que estava decaindo. As feridas eram inchadas,
a carne dividida; ela foi comida viva. E por dezoito anos Harque insultou meu pesadelos.
— ‘Onde está a feitiçeira Elwine, a Gentil? Para onde ela foi?’ Riso.
Keleios balançou a cabeça e sentou-se muito reta. As mãos dela agarraram a cadeira,
e a madeira começou a protestar. Keleios se deteve e agarrou suas mãos juntos no colo
dela.
— Eu vou vê-la morrer na minha mão.
Poula perguntou calmamente:
— Do mesmo jeito que sua mãe morreu?
Keleios flexionou a mão esquerda, tocando uma luva de couro na bochecha.
— Não, eu pensei sobre, mas não. O aço seria uma preferência.
— O ódio é autodestrutivo.
— Sim, mas alguém precisa destrui-la. Ela era mais louca seis anos atrás do que
dezoito anos atrás. Harque deve ser parada. Não vejo razão para que eu não possa detê-la.
— E você quer saber por que ela quer a sua morte a uma distância segura.
— Poula, nós escapamos com ajuda demoníaca e sorte. Os deuses estavam conosco.53
Ela poderia ter matado com facilidade e rapidez dias antes. Por que ela deveria me temer
o suficiente para desperdiçar sua tarefa em mim? Por falar nisso, por que não me desafiar
para a arena?
Poula suspirou.
— Eu não sei, criança. Talvez ter perdido para sua mãe todos esses anos atrás que a
assustava. Ou você fugindo da cova com essa marca em você.
Keleios olhou para a mão, esfregando-a atrás do couro.
— Talvez ela tenha medo de terminar como Elwine.
— Isso eu posso acreditar. Ela sempre temeu seus próprios métodos de punição.
Harque enviou nós na cova para morrer, mas nós emergimos e ganhamos poder, de certa
forma. Poder que ela era com muito medo de tentar. Keleios procurou o rosto da bruxa de
ervas com cuidado.
— Poula, por que você colocou Fidelis e eu na mesma sala?
Ela deu uma rica risada gutural, e Keleios sempre imaginou o rosto que a
acompanhava rir. Era jovem e cheio de olhos brilhantes, desejável e desapareceu.
— Criança, foi a única sala aberta. Pretendíamos alterá-lo quando o próximo
professor fosse embora, mas você não reclamou, nem ela.
— É por isso que você me questionou de vez em quando sobre como nos dávamos?
— Sim, nós não sabíamos que Fidelis iria machucar você. E quem mais
colocaríamos com ela, mal como ela é? Jodda, uma curandeira branca, não. Allanna, ela
se recusou a ser alojada com um plebeu. Mas você, você a manteria em seu lugar e -
Poula hesitou e depois continuou suavemente — e sendo já marcado por demônios, o mal
não era desconhecido para você.
— Mas agora ela está tentando me matar.
— Eu acredito que sim.
— Devo desafiá-la à arena, colocá-la em campo aberto?
— Não, não a desafie.
— Por que não?
Os olhos cegos a encararam.
— Porque eu tenho medo por você. A Fidelis conhece sua reputação e já viu você
lutar. Ela é ilusionista e uma das feitiçeiras de ervas mais poderosas que eu já treinei.
— Você espera que eu volte para o meu quarto, sabendo que ela pode tentar me54
matar de novo.
Poula assentiu.
— Precisamos de provas para apresentar ao conselho.
Keleios não disse nada, mas todos sabiam que Poula era tímida. Ela era como Zeln.
Ela preferia resolver problemas no sistema jurídico do que nas areias da arena.
Se eles e alguns outros conseguissem o que queriam, o sistema de desafios seria
abolido e assassinato seria assassinato.
— Proteja-se bem, no entanto.
— Sem deixá-la me pegar.
— Preferencialmente.
— Há uma velha guarda na minha cama, de feitiçarias. Vou ativá-lo. Se alguém
interrompe meu sono, ele grita para acordar os mortos. Se Fidelis perguntar, eu direi a ela
que fiquei curioso para ver se ainda estava funcionando.
— Seus encantamentos têm uma vida extraordinariamente longa, talvez porque você
também seja um encantador.
Keleios deu de ombros.
— Eu não questiono. Eu apenas uso. Ela tomou um gole do chá gelado.
— Eu gostaria de invoque o direito do profeta e tenha as barreiras para cima. Sele a
manutenção por três dias e a perigo será passado.
— E?
— E eu tive uma visão na biblioteca. Os livros estavam queimando, exceto os que
eu salvei. Eu acredito que esta escola, essa fortaleza, vai queimar.
Keleios segurava a xícara de porcelana fina nas mãos como se não tinha acabado e
encarava o chá, respirando a fumaça da força e da calma.
Poula disse:
— Vou entrar em contato com um dos feiticeiros-mestre e pedir que ela levante a
barreira. Agora, o que mais podemos fazer para proteger a escola?
— Mande chamar o mestre Zeln e o resto. Alertar Carrick para dobrar o cuidado.
Ter alguém vigiando Fidelis. Eu acredito que ela é a chave. Keleios abriu as mãos na
mesa.
— Mas nada disso pode ajudar. De fato, isso pode prejudicar. 55

Poula assentiu. Esse era o cerne da profecia de qualquer tipo. O que se viu era
válido para o futuro, mas as ações de alguém impediriam ou causariam isso?
— Certo ou errado, Poula, devemos fazer alguma coisa.
— Concordo. Vou alertar Zeln e os outros usando a torre de comunicações.
Nenhuma outra mágica de mensagens são permitidas no castelo de Nesbit.
Keleios riu.
— O sumo conselheiro de Astrantha tem muito medo de assassinato e tramando
pelas costas.
— Ele ainda está com sua irmã Methia? Poula perguntou.
Keleios se encolheu e não conseguiu esconder.
— Ele não visita mais minha irmã ou o filho deles.
— Ele realmente desafiou você nas areias?
Keleios assentiu.
— No dia em que deixo esta escola como uma feiticeira mestre, ele planeja me
matar.
— O que você fez com ele, Keleios?
Ela olhou para Poula.
— Eu, o que eu fiz com ele? Poula, ele tratou minha irmã pior do que a prostituta
mais baixa.
— Você chamou a atenção dele, minha viajante de temperamento quente?
Keleios quase sorriu.
— Sim. Enfiei uma faca entre as costelas dele durante um daqueles bobos Duelos de
Meltaanian.
— Se bem me lembro, é considerado má educação matar alguém durante um do
aqueles duelos tolos de Meltaanian.
— Ele não morreu.
— Por que acredito que não foi por falta de tentativa de sua parte?
Keleios deu de ombros.
— Nosso anfitrião, Duke Cartlon, tinha um curandeiro branco muito bom.
— O que devo fazer com você?
Keleios sorriu e mudou de assunto.
— Nesbit acredita que a única razão pela qual Zeln permitiu que camponeses56
astrantianos entrem na escola, é porque ele se tornará sumo conselheiro.
Poula disse:
— Conhecemos Zeln. Ele deseja provar que os camponeses são humanos e têm
direitos. Para fazer isso, eles devem ter magia. Este ano provará que ele está certo com
três camponeses graduado. Que mudanças isso fará em Astrantha?
Keleios respondeu curioso sobre a nova linha de perguntas.
— Todos os camponeses poderão votar nas próximas eleições do conselho - Keleios
a encarou.
— Ele não ousaria. Ele não ousaria atacar uma fortaleza em seu próprio país.
— Homens assustados fazem muitas coisas tolas.
— Nem Nesbit faria isso.
— Você acha um acidente termos apenas um punhado de mestres aqui? Zeln me
deixou no comando. Temos um mestre encantador, um mestre conjurador, um mestre
ilusionista, e dois mestres feiticeiros. Fidelis é uma mestra em ilusão e feitiçaria, mas se
ela nos trair, duvido que possamos confiar em sua ajuda. O resto está em Altmirth,
participando desta reunião improvisada do conselho. Zeln não queria tirar tantos da
escola, mas é apenas por mais dois dias. Se eu estivesse atacando esta fortaleza, seria
antes que eles retornassem.
— Então, entre agora e depois de amanhã.
Outro pensamento veio a Poula:
— Zeln e os outros foram atacados em seu sonho?
— Não, pensei que eles não estavam no meu sonho. Se meu sonho fosse verdade,
eles estão seguros.
— Você acha que seu sonho pode ser nublado?
— A Dama das Sombras tinha seus servos na torre hoje à noite. É possível, mas eu
não acho que sim.
— Nós os avisaremos de qualquer maneira.
— Se você pode enviar uma mensagem privada para eles.
Poula riu.
— Isso não tem sido fácil com os espiões de Nesbit, mas eu tenho uma solução.
— Eu aposto que você tem.
Keleios esticou os ombros e as costas. Ela estava começando a sentir o sono. 57

— O feitiço de força parece estar acabando. Me sinto cansada.


Ela ficou de pé e empurrou a cadeira debaixo da mesa.
— Era de uso limitado. Eu só sabia que você estava vindo uma hora antes de vir. Eu
não tenha tempo para qualquer coisa mais extravagante.
Keleios sorriu e se espreguiçou novamente.
— Foi extravagante o suficiente. Vou lhe dar bons sonhos e profecias agradáveis.
— E para você. Avise Carrick ou seu tenente antes de ir para a cama, se quiser.
— Feito, mas primeiro eu preciso cuidar de alguma coisa.
Os olhos de Poula se arregalaram.
— Que tipo de coisa?
Keleios sorriu.
— Vamos dizer que Belor não ficará feliz comigo.
Poula riu de novo.
— Você não tem ideia de como ser chato, não é?
Keleios não respondeu, mas deixou a sala ao som do riso de Poula. A lanterna do
salão parecia muito brilhante. E o silêncio do sono continua pressionado muito perto.
Ela voltou ao corredor da biblioteca. As chamas eram um farol no caminho estreito.
Belor não era mais visível e, ao se aproximar do círculo, Keleios se perguntou se ele teria
escapado de alguma forma. Se ele tivesse passado por todo esse problema, como
ficaria zangado?
Ela se aproximou o mais perto que o calor permitiria e espiou. Belor, o Criador de
Sonhos sentado, tornozelos dobrados, um cotovelo apoiado no joelho direito. Sua túnica
estava amassada ao lado dele. O punho de sua espada e os acessórios de metal em sua
bainha brilhavam na luz do fogo. Um brilho de suor brilhava em suas costas e ombros.
Keleios levantou as mãos para cima e puxou para dentro. O inverso dos feitiços sempre
parecia estranho, como se você estivesse tentando respirar o ar que você já usou. As
chamas hesitaram e empalideceram até ficarem incolor como vidro derretido.
Apressadamente, o fogo desapareceu.
Deixou-os na escuridão aveludada, com o brilho disperso dos livros apenas
enfatizando-o.
Keleios chamou uma luz de feitiçeira para a mão e colocou-a brilhando acima deles.
Era luz branca, então Belor podia ver normalmente, uma oferta de paz. A noite estava58
ocupada e o esforço trouxe uma gota de suor para a testa. Ela podia sentir a energia
drenando.
Keleios se viu olhando em um par de olhos hostis. Ela se aproximou e ofereceu uma
mão; Belor olhou para ele friamente. Ele se levantou em um único movimento, usando
apenas as pernas. Seu azul pálido dos olhos se tornaram quase cinzentos, um sinal muito
ruim.
— Belor, por favor, eu não tive escolha.
Ele não disse nada, tendo descoberto há muito tempo que o silêncio a deixava mais
desconfortável do que acusações.
— Eu tinha medo de machucá-lo. Você sabe disso - ela pegou a túnica caída e disse:
— Aqui, deixe-me limpar suas costas. Lamento ter demorado tanto tempo.
Ele se virou sem dizer uma palavra e ela tentou alisar as costas dele. Belor pegou o
roupão dela e esfregou o peito.
— Eu estava preocupado com você, disse ele sem encontrar seus olhos. Nunca vi
você tão perto de perder o controle de uma visão antes. O que aconteceu? Eu ouvi você
gritando e um homem gritando seu nome.
Ela sorriu. Enquanto ele estava disposto a conversar, ele não estava tão puto.
— Vou contar a todos vocês de maneira de alertar a guarda.
Ele sacudiu a túnica e a segurou com cuidado na mão direita.
— Alertá-los para o quê?
— Vou lhe dizer isso no caminho.
Ela falou em voz baixa enquanto desciam o corredor oeste. A luz branca flutuava
firmemente cerca de 20 cm acima do ombro esquerdo de Keleios. Ela contou tudo,
exceto que ela carregava o livro conhecido como O Livro dos Demônios. Ao longo dos
séculos desde a sua criação, ele recebeu muitos nomes: Peste Negra, Abridor de Poços,
Demônio Invocador.
Belor a deteve antes que eles chegassem ao corredor externo, segurando seu braço
frouxamente. Os olhos dele ficaram distante.
— Você está mentindo, escondendo alguma coisa.
Ela poderia ter quebrado o aperto dele, mas não teria sentido.
— Belor, eu carrego outro livro.
A mão dele caiu ao seu lado. 59

— O Livro dos Demônios.


— Sim.
— Por que, em nome da Cia, por quê?
— Eu não posso deixar para trás para ser encontrado por quem quer que seja. É
muito perigoso estar flutuando livre.
— E está seguro com você?
Ele olhou para o chão e respirou fundo.
— Keleios, você e eu estamos contaminados. Você se põe em perigo carregando
essa coisa. Isto tem uma mente própria, como a maioria dos livros de poder.
— Você não precisa me dar sermões de livros encantados.
— Não, mas no senso comum, sim. Livre-se disso, por favor.
— Eu não posso. Não vai queimar. Alguém o encontrará. Alguém o procura e não
deve tê-lo.
— Procura por isso? É do conhecimento geral que está aqui.
— Mas com feitiços restritivos. Não pode ser retirado enquanto isso permanecer. E
é atrofiado em poder até que as feitiçarias e ervas que o ligam sejam quebradas. Belor, se
a fortaleza cai, é grátis. Você sabe o que isso pode fazer.
— Leve-o, se precisar, mas ainda não terminei de argumentar contra isso.
— Eu sei.
Eles entraram no salão iluminado por tochas e Keleios apagou a luz da feitiçaria
agradecidamente. Um guarda de plantão ficou atento à porta da sala de teletransporte. Era
um feitiço permanente que permite que os soldados não-mágicos venham e vão para a
parede externa. Keleios reconheceu o guarda em seu uniforme dourado e preto. Bundie
era um alto calthuiano, jovem e ambicioso demais, mas bom com uma arma. Ele colocou
a mão no punho da espada e disse:
— Keleios, Belor, o que faz você acordar tão tarde?
— Profecia, Bundie.
Uma sobrancelha marrom pálida levantou:
— Oh, notícias sombrias?
— Sombrio o suficiente para que a guarda seja dobrada. As enfermarias devem
subir em breve. A fortaleza será selada por três dias, a partir desta noite.
— O que você viu? 60

— Morte.
Com sua expressão sombria, ela sorriu.
— Mas acho que também pode ser combatido com aço como mágica.
Ele sorriu.
— Então estaremos prontos. Carrick dirige os guardas mais bem treinados da ilha, e
quem tem mais magia do que a escola de Zeln?
Keleios não o desiludiu, mas concordou:
— Passe a palavra adiante.
Ela se virou para ir embora e Bundie chamou:
— Vejo você no campo de treino amanhã de manhã, profeta.
Foi um insulto astuto. Carrick, o mestre em armas, costumava dizer:
— Os conjuradores são pobres espadachins e profetas, o pior de tudo, porque a
maioria deles é louca.
Keleios quase ignorou o insulto.
— Eu estarei lá, Bundie, e é melhor você cuidar das seus costas.
Ele riu.
— Com você e o ilusionista por perto, sempre.
Eles andavam pelos corredores silenciosos e sentiam a mágica escoar por baixo das
portas. As próprias pedras pareciam respirar feitiços. Ela sabia que o sentimento era
causado pela falta de sono e também muita magia, mas tudo estava silencioso, como se o
mundo prendesse a respiração.
Belor falou em um sussurro.
— O que há de errado esta noite?
— Você sente isso também.
Ele assentiu.
Ela sussurrou de volta:
— Os deuses andam entre nós. É um mau sinal.
Eles ficaram na frente do quarto dela.
— Eu não sinto a presença deles. Eu sei que sou apenas um ilusionista e não um
feiticeiro, mas meu o senso mágico não é tão franco.
— Era apenas uma expressão, você sabe. Quando as coisas dão realmente errado, os
deuses estão no exterior. 61

Ele deixou para lá, abafando um bocejo:


— Sonho justo, Keleios, e tenha cuidado.
— E para você. E terei cuidado.
Ela o observou ir até que ele desapareceu na esquina. Ela estremeceu de repente
com calafrio. Keleios não sabia ao certo o que a fez falar dos deuses, mas as palavras
soaram o ar como um sino. Profecia falada em tom de brincadeira, talvez. Ela sabia que
os deuses podiam esconder suas presença, se adequado às suas necessidades. Ela
sussurrou no ar carregado de magia:
— Os deuses andam entre nós. É um mau sinal.
CAPÍTULO 04: UMA RESPOSTA

A PORTA SE ABRIU COM o menor suspiro. Keleios fez uma pausa, pensando
em assassinato. O quarto estava escuro e prateado. Fidelis estava deitada em silêncio,
cabelos castanhos pálidos arremessados sobre o travesseiro, uma mão esbelta semi-
presa no quadril. Quando ela tinha seis anos, Keleios marcava atrás da menina mais
velha, assim como Alys seguia Keleios agora. Num dia claro de verão, Keleios
brincava perto do jardim da água com um gatinho. Fidelis pediu para segurá-lo.
Keleios estava tão orgulhosa que a garota mais velha a tinha notado. Fidelis
62
segurou e acariciou o pequeno gato. Então, com um sorriso maravilhoso que chegou
até os olhos dela, Fidelis enfiou o gatinho debaixo d'água e o segurou lá enquanto
Keleios a batia com punhos minúsculos.
Keleios aprendeu o ódio com Fidelis. Foi ela quem ensinou a Keleios que todo o
seu medo e raiva por Harque pelo assassinato de sua mãe poderiam se transformar em
outra coisa. O medo aleija, a raiva cega, mas o ódio podia ser transformado em
vingança. Com a vingança pode vir a satisfação.
Quando Keleios era um pouco mais velha, ela e Belor haviam emboscado a
garota mais velha. Eles a espancaram. Fidelis perguntou:
— Por quê?
— O gatinho que você afogou –, disse Keleios.
— Você nunca esquece, esquece?
— Não – , disse Keleios, – nunca esqueço.
Fidelis estava tentando matá-la agora? Era melhor ser cautelosa. O feitiço desta
noite tinha sido uma tentativa flagrante; talvez houvesse outros – apesar de ser uma
adoradora das sombras, Fidelis estava mais inclinada à traição do que ao ataque
frontal.
Keleios procurou na sala com sua visão noturna. A brisa fresca do vento da noite
a tocou através das janelas abertas. Mexeu os papéis nas duas mesas de trabalho e
enviou fileiras de ervas penduradas contra a parede. Ela desistiu de suas suspeitas e
revistou a câmara com outro sentido que não podia ser enganado por sombras
prateadas; até a visão noturna tinha seus defeitos.
As correntes de ar se moviam em torno de coisas familiares. As prateleiras que
revestiam as paredes estavam cheias de livros e papéis, potes e garrafas, e a estranha
miscelânea que feiticeiros de qualquer tipo parece acumular. Havia mal na sala, mas
novamente mal familiar. Uma garrafa grande de galão, cuidadosamente soprada e
encantada, estava na terceira prateleira do lado de Fidelis. Um demônio rodopiava
suavemente, preso por magia e ódio. Oh, como os demônios odiavam ser usados.
Um escape debaixo da cama de Fidelis atraiu sua atenção, e pontadas de muitos
olhos a encararam mostrado que Fas, familiar de Fidelis, estava acordado. A aranha
era do tamanho de um cão de tamanho médio, pequena para uma aranha de desejo, 63

mas ele deu a Fidelis o poder da ilusão.


O vento soprava mais forte, e os papéis na mesa de Keleios lutavam contra o
peso revestido de chumbo do crânio do demônio que os mantinham pressionados. O
crânio branco e nu era um troféu que ela levara da Ilha Grey. Era um dos demônios
menores, mas poucas pessoas viveram encontros com o diabo. Tudo o que era
necessário era uma arma mágica e muita sorte; sua espada havia lhe dado os dois.
Agora, o crânio com chifres agia como um peso de papel e um lembrete de que ela
havia feito o quase impossível. Um pedaço de minério bruto estava próximo,
esperando ser forjado, se Keleios pudesse decidir o que aquilo deveria ser.
A prensa de ervas cheirava a tomilho e verdis esmagados. Ela se perguntou
brevemente se um dos aprendizes havia esquecido de limpá-la novamente, mas pela
primeira vez estava cansada demais para se importar.
Algo tremulava no canto mais distante, mas era apenas o pano escuro que
escondia o espelho de Fidelis – uma coisa bonita em si, carinhosamente esculpida em
carvalho polido, um vidro oval sem mancha no assoalho do chão. Tinha poder como
todos os objetos encantados, e era mau. Fidelis escondeu-o da vista de Keleios desde
o dia em que Keleios olhou para ele e disse:
— Vejo você parada em uma câmara com um homem loiro. Eu quase posso ver
o rosto dele.
— Como você pode fazer isso? – ela perguntou, de repente pálida. Keleios
sorriu.
— Lembre-se, eu sou uma encantadora. Eu posso adivinhar o uso de itens
encantados muito mais minuciosamente do que uma ilusionista e feiticeira de ervas.
— Isso é mau. Você não deve poder usá-lo.
Keleios deu de ombros.
— Também é mágica auxiliada por demônios, e goste ou não, eu também sou.
— Traficante de demônios! – Fidelis sussurrou: – Há quanto tempo você olha o
espelho?
Keleios brincou com a idéia de mentir, fazendo-a suar, mas Fidelis era um
pouco perigosa demais para brincar.
— Não muito tempo, Fidelis. Seus segredos estão seguros, na maior parte. E
antes que você comece a chamar nomes, lembre-se, minha aliança demoníaca foi 64

acidental; a sua, não era.


Então o espelho estava coberto.
Keleios sentou-se na beira de sua cama, de volta à Fidelis e Fas. Se isso fosse
feitiçaria-de-ervas, ela não iria querer trazer a culpa para si mesma. Provavelmente os
ataques continuariam fora do quarto. Ela provavelmente estava segura esta noite, ou
já era amanhã? A espada, Luckweaver, deslizou ao longo do colchão inclinada para
tocá-la. Keleios chegou para trás e atraiu o frio punho de ouro para ela. O punho era
esculpido simplesmente para agarrar, mas sua única joia não era simples. Aquela jóia
laranja era uma pedra de sorte quase tão grande quanto seu punho. Ela montava o fim
do punho e pulsava magia ao seu toque. Era um encantamento elementar, sua
primeira arma em forma. Seria tão poderosa nas mãos de qualquer outra pessoa, se
soubessem como usá-lo. Não havia sangue, ou alma encarcerada nela, então ela tinha
que tocá-la para que a magia mudasse as coisas a seu favor. Se ela tivesse usado
Luckweaver esta noite, o dano teria sido menor ou teria sido evitado completamente.
Não se levava magia estrangeira para a torre. Ela acariciou a espada e resistiu à ideia
de desembainhá-la.
Talvez fosse hora de ir abertamente armada. Ela suspirou, se esticou, e colocou a
arma cuidadosamente na cama. Ela tirou uma bota. Uma gata se materializou pela
porta. Era um feitiço que eles tinham trabalhado entre eles. A porta estava encantada
por ser macia perto do fundo, mas apenas o toque de Poth a ativaria. Keleios não
queria qualquer criatura do tamanho de um gato rastejando para o quarto. Gilstorpoth,
que tinha muitos nomes ao redor da escola – Senhora Poth, ou apenas Poth – veio se
esfregar contra seus tornozelos. Keleios pegou a gata Ela confiou em suas mãos para
dizer-lhe que a gata estava bem.
Embora Poth não fosse familiar, ela era mais do que um animal de estimação e
às vezes sentia o que apenas um familiar, ou outro feiticeiro, deveria ter sentido.
A mãe da gata tinha sido uma elfo metamorfa que ficou presa. A linda gata
branca de olhos prateados finalmente havia pegado um verdadeiro gato como
companheiro, e Poth tinha sido sua primeira e única ninhada. Dizem que depois de
um tempo esquecemos a forma antiga; Keleios sempre esperava que isso fosse
verdade. Havia um olhar naqueles olhos de gato prateados que a assustavam. 65

Independentemente da dor que possa ter causado à mãe gata, a ancestralidade mista
dera feitiçaria a Poth. Poth miou para ela e Keleios segurou o queixo pequeno na
palma da mão. Ela olhou para aqueles olhos dourados, da cor de peças de ouro bem
gastas. Elas conversaram em silêncio por vários minutos até o gato ronronar em uma
longa fila de conteúdo. Embora não houvesse necessidade de palavras, Keleios falou
suavemente.
— Estou feliz em vê-la também.
Ela suspirou. Ela estava muito tempo entre os humanos e adquiriu o hábito de
falar quando não era necessário. Já era hora de uma visita aos seus elfos. Os elfos
sabiam o valor do silêncio. Um baque suave do canto oposto anunciou que Piker
estava acordado. Incentivado por seu olhar, o vira-lata branco meio crescido
caminhou em sua direção. Ela sorriu e seus pensamentos se voltaram para a dona de
Piker, ou melhor, mestre. Feltan era a bruxa mais jovem e destreinada a atrair um
familiar, e ele era um camponês. A própria Keleios os trouxe para a escola. Se o
sonho dela acontecesse, Feltan morreria. Ela deixou o pensamento passar, pois havia
aprendido a não insistir nas profecias da morte. Ela esteve errada uma vez. Piker
ficou com Keleios porque nenhum animal era permitido nos dormitórios dos
aprendizes. Se eles fizessem uma exceção, mesmo para um familiar, o local se
transformaria em um zoológico, ou assim disse Toran, chefe dos garotos aprendizes.
Pessoalmente, Keleios achava que Toran simplesmente não entendia as crianças e
suas necessidades de animais. Fidelis reclamou que o quarto deles estava se
transformando em um zoológico. A sombra da lua da gaiola do canário colocou
enormes barras no chão. Keleios sorriu.
Talvez houvesse animais suficientes no quarto.
O familiar de Fidelis, a aranha Fas, tentou livrar a sala de alguns de seus
ocupantes. Keleios entrou na câmara a tempo de ver Fas fechando a gaiola do canário
com as pernas peludas.
— Fas! Não! – A corrente que segurava a gaiola no teto quebrou, derrubando a
aranha e libertando o pequeno pássaro, que voou para a prateleira mais alta, ofegante.
Keleios estava prestes a fritar a coisa vil quando Fidelis entrou gritando. Ela
convenceu Keleios de que puniria a aranha. Keleios deixou assim, pois era uma
ofensa muito séria matar o familiar de alguém. Secretamente, ela pensou que a 66

própria Fidelis havia ordenado que os animais fossem mortos. A gaiola do canário
mais uma vez foi pendurada no teto, e Poth, a gata, dormiu onde ela estava, e Piker
dormiu no canto, tudo sem ser molestado. Para aqueles que podiam ver, a gaiola, os
cobertores do cachorro e a própria Poth brilhavam mágica.
Fidelis protestou contra a severidade das enfermarias. Mais tarde, Keleios
admitiu a Zeln que talvez um quartel de bombeiros fosse demais, mas para mudar
isso seria admitir que ela estava errada. Ela era excessiva, não estava errada.
Fas era inteligente o suficiente para deixar o suficiente em paz, então Zeln
deixou isso de lado.
Keleios se sentou na cama, a cabeça do cachorro afundou em sua perna e ela
coçou a orelha. Poth subiu pelas costas e se enrolou em volta do pescoço. Um poleiro
precário para uma gata, mas ela gostou e seus ronronos ecoaram na nuca de Keleios.
A pele de Keleios formigou e Poth pulou com uma rajada. Piker gemeu baixinho.
Fidelis chamou sonolenta da cama.
— O que é isso?
— Os guardas se foram. A Profetisa está certa.
— Por que eles se foram?
Keleios virou-se para ver Fidelis adormecer.
— Eu te disse: a profetisa está certa.
— Você sendo o profeta.
— Sim, volte a dormir. Podemos discutir de manhã, se você quiser.
Fidelis abriu a boca para falar, mudou de idéia e recostou-se nas cobertas.
Alguns minutos e a respiração da mulher encheu a sala.
Keleios esfregou a cabeça do cachorro, fazendo suas orelhas baterem, e o
mandou para sua cama. Poth caminhou pelas cobertas de Keleios, tentando encontrar
um local confortável.
— Estamos seguros agora –, ela sussurrou para a gata. Mas, ao terminar de se
despir, ela se perguntou o quão seguro alguém poderia estar com traidores deste lado
das alas.
Ela colocou a mão na cabeceira da cama e ativou o feitiço. Deu um pulso, uma
mera faísca de poder. Keleios deitou-se agradecida. Não haveria mais mágica esta
noite, não importa qual a necessidade. Poth se enrolou em uma bola preta e branca ao 67

lado de seu ombro, sua cauda emplumada descansando logo abaixo do queixo de
Keleios. Ela checou brevemente para se certificar de que a adaga da bainha do pulso
estava no lugar e, colocando a mão sobre o Luckweaver, ela se entregou ao sono.
Keleios estava aconchegada no calor de seus lençóis, cansada, muito cansada.
Algo estava batendo em seus cabelos. Ela o afastou, mas o toque hesitante retornou.
Ela abriu os olhos apenas o suficiente para pegar um preto e desfocado. Keleios
gemeu.
— Poth, o que é isso? – Então ela notou o ângulo da luz do sol. – A forja de Urle,
estou atrasada.
Poth pulou no chão com um grito assustado quando Keleios puxou as cobertas.
A gata bateu no pé dela, garras cuidadosamente embainhadas.
— Sinto muito, e obrigada por me acordar. – A gata estava sentada muito reta,
parecendo virtuosa e paciente. Keleios riu e a pegou. Poth tentou permanecer imóvel,
mas consentiu e começou a ronronar. Keleios a colocou na cama e começou a se
despir.
— Não durmo tão tarde há meses –
Ela estava viva, a ala estava intacta e Fidelis se fora. Um bilhete estava pregado
nas roupas que ela havia tirado na noite passada. Lia-se simplesmente:
KELEIOS.
NÓS PODEMOS DISCUTIR MAIS TARDE HOJE. EU TINHA NEGÓCIOS
PRECOCES E URGENTES PARA CUIDAR.
A FEITICEIRA
Ela sorriu. Elas estavam deixando notas uma para a outra por dois anos. Keleios
assinava "a meio-elfo" e Fidelis sempre foi "a feiticeira". O sorriso desapareceu
quando ela percebeu que o assunto urgente poderia ser o planejamento de sua própria
morte.
Keleios sentiu um leve toque em sua mente. Ela abriu e Allanna pediu permissão
para entrar em seu quarto. A mulher apareceu no meio do chão. Como sempre,
Keleios foi levada com a beleza de Allanna. Ela era a heroína de uma antiga lenda, ou
deveria ter sido.
Sendo astranthiana, era alta e esbelta, com cabelos lisos amarelo dourado que 68

caíam por seus joelhos. Seus olhos eram o azul surpreso das flores, e sua pele nunca
tinha conhecido o toque do sol, branca e pura como uma boneca de cera. Ela estava
vestida de azul hoje, o que enfatizava tudo – os olhos, a pele, os cabelos dourados.
Seu vestido era de seda azul estampada em azul. Ele abria abaixo da cintura ajustada
para revelar um vestido azul claro. Um colar de pérolas e safiras adornava seu
pescoço esbelto. Allanna do Cabelo Dourado era uma princesa esperando por seu
príncipe, e ninguém estava mais consciente disso do que a própria Allanna. Sua
beleza teria roubado a respiração se tivesse sido uma beleza inconsciente, mas era
afetada, como o vestido que combinava com seus olhos e os gestos refinados. Era um
show autoconsciente.
Ela começou a frase com uma mão longa e afunilada.
— Belor me pediu para apressar você.
Keleios puxou o vestido por cima da cabeça.
— Estou atrasada?
— Uma hora.
— Carrick vai me esfolar viva.
Os lábios impossivelmente vermelhos sorriram.
— É uma possibilidade.
— Você acha divertido; eu não. – Keleios despejou água da jarra na bacia, fria.
Ela engasgou com a sensação da água fria.
Allanna disse:
— Aqui, deixe-me aquecê-la para você.
— Não, obrigado.
Allanna encolheu os ombros. Ela desperdiçava feitiçaria em pequenas coisas
como aquecer a água sem pensar que era um desperdício.
Allanna suspirou graciosamente.
— Eu sinto muito. Sei que você está com problemas, mas por que se coloca à
mercê de um homem assim?
Keleios se secou em uma toalha pequena.
— Um homem como o quê?
Allanna se mexeu desconfortavelmente.
— Oh, vamos lá, você sabe o que quero dizer. 69

— Não, me diga.
Allanna bateu um pé delicado e enviou a seda azul sussurrando no chão.
— Ele não é mágico, nem mesmo um feitiçeiro de ervas.
— É verdade, mas ele não precisa de mágica para ser o melhor espadachim das
ilhas. – Era uma discussão antiga entre elas. Allanna tinha idéias muito astrantianas
sobre pessoas sem mágica. Sem magia, a pessoa era menos que humana, e era essa
ideia que mantinha os camponeses escravizados por tantos anos. – Quando você tiver
esgotado seus feitiços, o que resta? Você nem pode usar uma adaga, muito menos
uma espada. O que acontece quando você fica sem magia?
Ela ficou perfeitamente reta, as mãos soltas ao lado do corpo.
— Eu não fico sem feitiços.
Era verdade, de certa forma. Allanna era talvez a mais poderosa que saiu de
Astrantha desde Zeln e sua irmã Sile.
— Você é poderosa, Allanna, mas todo mundo, todo mundo, acabará ficando
sem feitiços. Ou pelo menos a força para usá-los.
O rosto pálido era altivo; sua opinião sobre sua magia era muito alta.
Infelizmente, até agora a opinião era merecida. Ela era uma das quatro pessoas que
poderiam entrar na arena com Zeln e ter a chance de sair viva.
Keleios observou o rosto de Allanna até sua blusa de linho bloquear sua visão.
Era inútil discutir. Até que alguém mais forte que Allanna desafiasse a garota, ela se
consideraria imbatível. A coisa assustadora era que ela poderia estar certa.
Keleios puxou o cabelo de dentro da gola da camisa.
— Talvez você seja um caso especial, Allanna, mas eu, com meus talentos mais
humildes, sinto a necessidade de mais.
Allanna deu uma pequena risada.
— Você humilde? Meu pai é apenas um visconde; o seu era um príncipe e sua
mãe, uma princesa.
— Tais coisas são muito mais importantes em Astrantha do que em Wrythe. E
quanto à família de minha mãe, eles me consideram uma filha bastarda. – Ela fungou.
– Os calthuianos são um povo bárbaro, sem intenção de ofender. Sua mãe estava
muito acima da maioria de seus compatriotas. 70

Keleios, sendo meio calthuiana, não sabia ao certo o que era elogio e o que não
era, mas disse:
— Obrigado, Allanna.
— Eu não professo entender os caminhos dos elfos, mas em Astrantha você não
é humilde.
Um torso de Belor flutuou pela janela. Como fantasmas, eles podiam ver através
dele. Keleios sussurrou:
— Estou com pressa. – Keleios começou a vestir o colete que havia descartado
na noite anterior.
Os delicados lábios de Allanna se curvaram levemente, um olhar de nojo
tocando seu rosto.
Keleios segurou-o no comprimento dos braços. Allanna tinha razão. Ela abriu o
baú no final da cama e começou a vasculhá-lo.
— Eu ainda não alimentei os animais.
— Eu farei isso.
A voz de Keleios veio abafada de dentro do porta-malas.
— Lembre-se de picar salsa para o canário.
Como se em resposta, o pequeno pássaro cantou um trinado estridente. Allanna
disse:
— Vou ver que o cachorro chega a Feltan, e a senhora Poth janta na cozinha sob
meu olhar atento.
— Obrigada.
Ela piscou, cílios longos e dourados se curvando para baixo.
— Sua pressa é minha única recompensa.
Keleios estava de pé, com um colete verde claro na mão. Ele se ajustou bastante
confortável, mas teria que servir. Não parecia haver outros limpos. Poth circulou em
torno de seus tornozelos.
Keleios pegou a gata e a abraçou.
— Allanna cuidará de você, Poth. Se você não se importa?
A gata não se importava, talvez porque Allanna fosse um pouco parecida com
ela. Elas se davam muito bem. E ela alertou o cão:
— Comporte-se ou Allanna transformará você em um coelho. –.O cachorro deu 71

um baque apologético na cauda.


Keleios largou Poth e passou uma escova apressada pelos cabelos grossos. Ela
começou a trançar.
Allanna deu um passo à frente.
— Aqui, deixe-me fazer. – As mãos delicadas e rápidas teciam seus cabelos
dourados em uma única trança. Os dedos permaneciam em uma orelha um tanto
pontuda.
— Como elas seriam adoráveis se você me deixasse colocar brincos nelas.
— Obrigado pelo pensamento, mas elas estão bem do jeito que estão.
Keleios pegou sua espada curta e seu cinto. Ela prendeu Luckweaver no lugar.
— Talvez, Keleios, você deva seguir uma rota mais direta hoje.
— Direta? – Ela apontou para as janelas. – Você quer dizer levitar. Eu acho que
não.
— Oh, venha agora, Keleios, você é uma feiticeira viajante. Certamente você
pode levitar-se ao pátio.
— Não é uma questão de poder, ou não poder, mas um desperdício de magia.
Allanna fungou.
— Eu vou levitar você mesmo se você for tão mesquinha com seus feitiços.
Keleios suspirou, resignada. Ela avançou, tocando a janela do meio para soltar o
feitiço de abafar o som. Aço sobre aço ecoava pelo pátio.
O canário verde-marrom saltou de poleiro em poleiro, a gaiola de madeira
balançando suavemente com seu movimento. Ela sorriu ao ouvir o piar dele.
— Seja um bom pássaro, Shotzi, e tia Allanna lhe dará uma surpresa.
A astrantiana riu, e o som era como sinos de vento ou sinos de festa. Certamente
a mulher teve que sentar-se e praticar. Keleios hesitou, olhando para o pátio abaixo.
Foi demais para a paciência de Allanna. Keleios desapareceu com um grito assustado
e reapareceu nas pedras abaixo. Ela franziu o cenho para as mãos magras que
estavam fechando a janela, mas não ousou chamar mais atenção para si mesma.
Carrick não aprovava a magia nem perto de suas práticas. Uma brisa de verão varreu,
puxando mechas de cabelo.
Ela estava no centro de um dos gigantescos blocos de pedra quadrada. Eles
haviam sido levados para seus lugares e ainda eram suportados por magia. No meio 72

da vasta extensão pedregosa, amontoava-se a prática de armas. A maioria sentava-se


em um amplo círculo. Carrick caminhou ao redor do interior daquele círculo. Ele
usava um gibão marrom sem mangas e calças largas enfiadas em botas até o joelho.
Ele era grande, com um corpo forte e musculoso. Ele parecia lento, mas era enganoso.
Keleios sentiu seus golpes relâmpagos muitas vezes para ser enganada. Seus
músculos eram do tipo que se escondia disfarçado de volume, nenhuma definição no
corpo bem torneado de Carrick. Seu cabelo preto estava cortado perto da cabeça
redonda e careca. Seus rápidos olhos castanhos capturavam todos os erros. O bastão
que ele carregava espetava, cutucava e tropeçava, para que você também notasse seu
erro.
Dois lutadores dançaram um com o outro. As espadas de prática de madeira
foram deixadas para trás por aço sem corte – aço sem corte que era duas ou três vezes
o peso da maioria das armas comuns. Tobin era um deles; o outro era um guarda loiro.
Tobin era baixo, mas aos dezesseis anos ainda não havia atingido sua altura
máxima. Seu cabelo era vermelho-cobre escuro e sua pele corava com reflexos
dourados. Em algum lugar de seus ancestrais havia algum tipo de fada. Era uma
herança comum em Meltaan. Apenas seus olhos âmbar eram comuns e jovens. Sua
camisa de linho passava por cima de uma calça vermelha brilhante. Suas botas eram
pretas e brilhantes, e, como Zeln considerava um excesso para os criados fazerem
isso, Tobin havia trocado as próprias botas. Ele era herdeiro de toda a província de
Ferrian. Ele era um príncipe e um dia ele seria um rei.
O guarda ergueu-se sobre Tobin; e o alcance dele era o dobro do garoto. O
homem também possuía força superior. No entanto, Tobin circulou, fingindo. O
garoto abriu bem os braços, dando a Darius o peito e o estômago como um alvo.
Darius estendeu a mão com o braço longo; seria uma fatia do intestino. Rápido como
uma cobra, a espada de Tobin deslizou sob o braço e deu um golpe no coração com
polegadas de sobra para sua própria vida. Era uma coisa élfica, e Tobin havia suado e
trabalhado para adquirir a força do pulso para fazê-lo. Sua rapidez ainda não era
élfica, mas estava próxima.
Keleios chegou em segurança ao grupo sem ser notado por ninguém, exceto 73

Belor. Ela rapidamente se mudou para tomar seu lugar.


Carrick ignorou sua chegada e ela deslizou entre Tobin e Belor. Os cabelos
ruivos de Tobin grudavam em mechas escuras no rosto. Ele sorriu e seus olhos
brilharam. Ele nunca havia derrotado Darius antes. Belor franziu o cenho para ela.
Ele parecia pronto para falar, mas não se atreveu com o mestre de armas tão perto.
Cinco pessoas à esquerda estava Lothor, sem camisa, suando e olhando para ela
com seus estranhos olhos prateados. Ela colocou Luckweaver e as braçadeiras
mágicas no chão ao lado dela. Carrick não permitia nenhuma arma mágica em suas
práticas. Aqueles com armas mágicas mantinham uma prática por conta própria à
tarde ou no início da noite. O guarda começou a vir assistir e usar algumas das armas
mágicas. Carrick finalmente consentiu em deixar Bellenore, seu segundo em
comando, dirigir a prática.
A partida seguinte terminou cedo, um guarda tropeçando e quase esmagando o
nariz. Carrick virou-se para Keleios como uma grande nuvem negra. Ela sentiu
aquela vontade desconfortável de recuar. Mas ela se sentou ereta e encontrou os olhos
zangados dele. Sua voz era profunda e grossa de emoção, cada palavra um chicote.
— Zeln me forçou a deixar usuários mágicos em minhas sessões de treinamento.
Eu disse que seria uma perda de tempo treinar não-guardas. Ele rebateu dizendo que
fossem guardas de meio período. Ele quis; eu obedeci. Mas eu disse a ele que
lançadores de feitiços não são bons soldados; eles se distraem com muita facilidade.
A magia é mais importante que o aço para eles. Mas eu levo vocês lançadores de
mágica a sério. Eu treinarei vocês e vocês aprenderão. Vocês aprenderão que essas
práticas são importantes e vêm em primeiro lugar. – Ele latiu o nome dela.
Keleios se levantou. Ele chamou:
— Bellenore para o círculo. – Bellenore era alta, com ombros largos. A trança
de seus cabelos castanhos estava listrada de cinza, embora ela não tivesse passado
dos trinta anos. Ela estava vestida como Carrick, gibão e calça marrom sem mangas.
Cicatrizes decoravam seus braços nus. Seu rosto ficou em branco até que ela sorriu, e
então ficou linda. Olhos castanhos pálidos encaravam Keleios sem sorrir.
Carrick entregou a cada uma delas um escudo e uma espada. O escudo era
pesado para lutar e a espada era afiada. Armas cortantes não eram uma punição
incomum. Era um tipo de elogio. Ele confiou apenas os melhores de seus lutadores 74

com armas afiadas durante o treino. Seus olhos brilhantes desafiaram Keleios a
protestar. Ela não protestou, apesar de Bellenore ser uma lutadora melhor do que ela.
Elas lutariam com espada curta e escudo, o método favorito de Keleios, e Bellenore a
venceria. Era para ser uma experiência humilhante.
Carrick gritou:
— Ao terceiro sangue; um nick é tão bom quanto uma ferida.
Quando se enfrentaram, a carne pálida de Lothor parecia brilhar, como alabastro
esculpido. Keleios balançou a cabeça para clarear a visão e Bellenore reteve a
pergunta:
— Você está apta para o círculo? – Keleios assentiu e elas começaram a dança.
Já haviam lutado antes, e Keleios havia vencido duas vezes, mas não com uma arma
afiada, e não para tirar sangue. Mesmo com armas contundentes, Bellenore venceu
nove em cada dez vezes. Uma lição teria funcionado melhor nos outros, porque
Keleios não considerava embaraçoso ser derrotada, na prática, pelo segundo em
comando dos guardas. Carrick sabia disso, mas era um de seus castigos comuns. Ele
não havia punido satisfatoriamente a meio-elfa. Embora ele descobrisse que poderia
deixá-la com raiva, ele não poderia fazê-la verdadeiramente arrependida. Elas
circulavam, cautelosas, os escudos mantidos próximos cobrindo a parte superior do
corpo e o estômago, tensas para subir ou descer. A arma preferida de Bellenore era a
espada de duas mãos. Ela era uma das duas únicas mulheres que Keleios tinha visto
com força para usá-lo adequadamente. Por falar nisso, ela não tinha visto muitos
homens que poderiam usar bem as duas mãos. Muitos deles o carregavam, mas
apenas um punhado tinha força, resistência e mentalidade para a arma. Elas testaram
uma ao outra com algumas fingidas tímidas, pelas quais nenhum delas se interessou.
Então Bellenore sorriu e Keleios também. A luta começou com um estrondo de aço.
Bellenore correu para dentro, cortando a espada. A tensão não estava lá; foi um
ardil. Keleios deixou o golpe passar, mas rebateu com um golpe de escudo contra o
corpo de Bellenore. Isso desequilibrou a mulher, mas antes que Keleios pudesse
colocar a espada em jogo, ela se recuperou. Enquanto elas circulavam, Keleios
encontrou seus olhos atraídos por Lothor. A mão dele que varreu o braço a fascinou.
Bellenore estava sobre ela, a lâmina piscando para baixo. Keleios jogou o aço para
cima; as espadas cantaram umas nas outras, com uma chuva de faíscas. Quando elas 75

se separaram, uma fina linha de vermelho começou a se mover pela testa de Keleios.
A ponta da lâmina a encontrou antes que ela reagisse. Com o conhecimento do
sangue, o corte começou a arder. Pior, o fino fluxo de sangue escorria pelo olho
esquerdo, dificultando a visão. A lâmina encontrou a lâmina, bloqueando. Lâmina,
escudo, encontraram-se lutando um contra o outro. Sem ajuda mágica, Keleios não
poderia segurar Bellenore. Sabendo disso, sentindo, ela desabou. Era uma ótima
aposta, e se ela estivesse lutando por sua vida, talvez não tivesse feito. Bellenore
cambaleou para frente, e a espada de Keleios a atingiu através do estômago. A
rapidez élfica permitiu que ela se afastasse e se preparasse para a próxima investida.
Toda vez que o círculo mostrava Lothor, sua concentração vacilava. Algo estava
errado. Keleios decidiu antes que a dança a levasse a Lothor mais uma vez para tentar
outra jogada perigosa. Era uma técnica desarmante mais favorecida nos círculos
élficos do que humanos. As lâminas se encontraram. Keleios forçou seu aço ao longo
do comprimento de Bellenore e torceu o ponto ao longo do cabo. Deveria tê-la
desarmado e cortado o pulso. Mas isso era Bellenore. Ela sangrou, mas manteve a
espada. O sangue jorrou da fatia e tornaria o punho escorregadio em pouco tempo.
Keleios se afastou para dar um tempo. A mulher sabia disso também e pressionou a
luta. Keleios sacudiu sangue do olho esquerdo, mas o olho estava inútil até ser limpo. 76

Nada sangrava como uma ferida superficial no couro cabeludo. Por alguma razão que
ela estava sendo distraída, Bellenore notou e começou a movê-la para olhar assim.
Funcionou como um encanto. Os olhos de Keleios foram atraídos para Lothor, e ela
se viu no chão com a espada de Bellenore na garganta. Ela não deixou cair a espada.
A ponta atingiu seu pescoço duas vezes, uma quase em cima da outra. Carrick
avançou.
— Vencedora.
Bellenore estendeu a mão para Keleios e ela aceitou.
— O que havia de tão interessante por lá?
Keleios tocou seu pescoço e seus dedos ficaram vermelhos.
— Não tenho certeza. – Keleios voltou e sentou-se ao lado de Belor. O
curandeiro que participava da sessão de treinos desta manhã se ajoelhou e pressionou
uma mistura de ervas em seu rosto. Ele começou a limpar o sangue do rosto dela. Ela
entrou em contato com Belor pela mente.
*Belor, Lothor está vestindo algo novo, diferente? Um anel, um pedaço de
corda, um colar?*
*Sim, uma corrente de prata com uma grande gaiola. É algum tipo de mágica*.
As ervas absorveram o sangue, e o curandeiro começou a colher creme para dor
e para acelerar a cura.
*Belor, não consigo ver esse colar.*
*Então, um encanto a favor ou contra você.*
Keleios não respondeu; não havia necessidade. Belor levantou-se e caminhou
até Carrick. Carrick deu o bastão para Bellenore e foi falar baixinho com Lothor.
Belor retomou seu assento. Lothor protestou. Keleios observou-o do outro lado do
círculo, segurando o encanto prateado, ainda invisível para ela.
Relutantemente, Lothor se moveu para desfazer a cadeia invisível. Ele entregou
a Carrick, que ficou visível aos olhos de Keleios. Os dois lutadores sentaram-se e o
círculo ficou vazio.
O mestre de armas entrou no círculo e disse:
— Nosso visitante aqui estava usando um feitiço mágico, o que é contra as 77

regras para minhas práticas. Ele afirma que é um encanto contra o clima
excepcionalmente frio da nossa ilha. – Ele deixou a corrente deslizar em sua grande
palma uma poça de corrente de prata. – Kelios, o que é isso? – E ele a jogou pelo ar.
Lothor saltou para a frente e os reflexos dos guardas assumiram o controle
enquanto o seguravam.
Keleios a pegou e quase se engasgou com a proximidade.
Até Belor se ajoelhar ao lado dela, ela não percebeu que havia caído no chão
quase desmaiada. Ele teve que arrancar os dedos dela da corrente.
Carrick se ajoelhou ao lado dela, toda a raiva esquecida.
— Garota, garota, você está bem?
Ela conseguiu falar:
— Sim, mestre, eu estou...bem.
Belor estava dissecando cuidadosamente a bola de ervas. A bola de metal vazia
estava à mão.
Keleios permitiu que Carrick a ajudasse a sentar-se e observou Belor rasgar as
ervas retorcidas e colocá-las em pilhas arrumadas. Quando tudo foi limpo, restaram
duas mechas de cabelo. Um era o branco da neve fresca; o outro, um marrom dourado.
Lothor ficou muito ereto, a raiva provocando um rubor nas bochechas pálidas
como a morte. Ele foi cercado por guardas, ainda incertos se ele deveria ser
prisioneiro. Ninguém se sentia à vontade com um curandeiro das trevas na escola;
eles estavam bastante dispostos a acreditar que ele havia feito algo mau.
Keleios se levantou, sacudindo as mãos desejando bons presságios. Ela
atravessou o círculo de guardas para enfrentar Lothor.
— Suponho que deveria perguntar onde você conseguiu isso, mas apenas três
pessoas nesta fortaleza poderiam ter feito tanto encanto. Eu não fiz; Poula não faria
isso. Isso deixa Fidelis. – Ela ficou bem perto dele e disse: – Você queria minha
resposta, aqui está ela: não. Não, nem se você fosse minha única chance para fora dos
sete infernos.
Sua voz estava baixa, calma com a ameaça.
— Não diga com raiva algo de que vai se arrepender mais tarde.
— Não me ameace.
Carrick interrompeu: 78

— Keleios, o que é isso? É algum tipo de arma mágica?


— Não da maneira que você quer dizer, Carrick. Foi um encanto de luxúria.
Ele riu.
— Então como isso te machucou? Você caiu quando tocou.
— Era tão poderoso, muito poderoso. Ele se entregou.
Carrick acenou com os guardas de volta.
— Muitos homens se voltaram para a magia para conquistar o favor de uma
dama. Não é crime.
Keleios foi forçada a concordar com ele:
— Não, mas é motivo de recusa.
Lothor ficou isolado, sozinho. Ele se curvou lentamente.
— Você me recusou, muito bem. Eu desafio-te.
— Para quê?
— A Arena.
Alguém se engasgou.
— Se isso irá satisfazê-lo, Lothor, você o terá.
Ele sorriu, seu olhar percorrendo o corpo dela, deixando-a em sua mente.
— Não satisfará, mas servirá.
Ela se aproximou e quase assobiou.
— Pare com isso.
— Parar com o quê?
— Pare de olhar para mim como se eu fosse algo para comer.
O sorriso dele se alargou.
— Eu não estava ciente disso. Sinto muito.
— A falta de sinceridade convém a você. Como quem está sendo desafiado, eu
escolho esta noite, logo após o anoitecer, e mágica. – Ela se virou, pegou Luckweaver,
colocou as braçadeiras e subiu os degraus principais do castelo. Belor e Tobin a
alcançaram no corredor do lado de fora de uma das salas de aula. O murmúrio de
vozes flutuou no corredor. Um estalo agudo de magia e uma explosão de gargalhadas
infantis disseram que um feitiço deu errado.
Belor correu para conversar com Keleios.
— Aonde você está indo? 79

— A sala silenciosa.
Tobin os alcançou.
— Você não vai desafiar Fidelis também?
Ela sorriu, mas seus olhos permaneceram escuros.
— Que ideia maravilhosa.
Belor pôs a mão no braço dela, mas ela não parou.
— Keleios, você acha sensato fazer dois desafios em um dia? Por lei, você pode
acabar lutando contra os dois hoje. Você certamente perderá o segundo.
Ela parou e virou-se para eles.
— Estou quase certa de que Fidelis quase me matou ontem à noite. Estou
cansada de esperar por provas enquanto ela planeja pelas minhas costas. Quero meus
inimigos na minha frente através das areias. – Ela apertou a mão de Belor e começou
a andar novamente.
Belor tentou argumentar com ela enquanto passavam pelo arco sul para os
jardins da fortaleza.
— Isso não é sábio. Você está deixando sua raiva dominar você.
— Talvez, mas é um erro meu, não seu.
Tobin disse calmamente:
— Keleios, não faça isso –, seu sorriso geralmente zombador se foi; seu rosto
estava sóbrio.
O jardim de ervas era de mil tons de verde, do cinza prateado do quartel ao
pinho escuro das folhas de alecrim. Keleios os conduziu através da treliça pintada de
branco e entrou no jardim de rosas. O cheiro de rosas era uma doçura próxima que se
agarrava ao ar do verão. Os caminhos de cascalho branco formavam uma cruz em
volta da fonte, cada caminho levando a uma cerca viva de buxo e a um portão.
Belor disse:
— Você sabe que não concordo com a regra do conselho sobre esperar por
provas. Eu disse antes que você seria morta, mas dois desafios em um dia, Keleios. É
loucura. 80

O portão distante levava ao jardim do curandeiro. As plantas ficavam sozinhas


em seus padrões circulares, atadas e cercadas por caminhos de pedra. O mármore
branco e o relógio de sol dourado estavam no centro do jardim, um lembrete contra o
tempo perdido. As ferramentas de escavação estavam descartadas ao longo do
caminho, como se as vigias tivessem saído às pressas. O portão do outro lado se abriu
e um trio de aprendizes entrou, Melandra entre eles.
Keleios levou um tempo para notar as olheiras sob os olhos da garota. Então o
cabelo sempre encoberto caiu sobre o rosto marcado.
— Keleios, o que está errado?
Os outros dois, uma menina e um menino, ficaram calados e de olhos redondos.
Algo estava acontecendo. Um mestre e dois praticantes de expediente direto da
prática – isso eram novidades.
— Mestre Fidelis está na sala de silêncio?
Melandra hesitou, depois assentiu, sentindo que havia feito algo vagamente
errado.
Os aprendizes se separaram como pássaros assustados para deixá-los passar.
Eles seguiram a uma distância discreta.
Keleios se virou e disse:
— Não nos siga.
Os aprendizes ficaram muito quietos. Melandra disse em voz baixa:
— Como desejar, Keleios.
Quando chegaram à porta, Belor e Tobin haviam voltado cada um para um lado.
Eles a puxaram por trás, sabendo que as braçadeiras faziam dela uma causa perdida.
Belor falou com os dentes cerrados enquanto eles lutavam.
— Keleios, pense, pense, controle sua raiva. Comporte-se como um mestre, não
como um viajante. Ela congelou por um instante, olhando para o céu. Sua respiração
ficou dura, mas ela parou de lutar contra eles.
— Me deixar ir.
Eles se levantaram lentamente e se ofereceram para ajudá-la. Ela pegou as mãos
deles e disse:
— Vou enfrentá-la, mas não vou desafiá-la. Isso é satisfatório?
Belor sorriu um de seus sorrisos gentis. 81

— Muito.
Eles recuaram como uma guarda de honra e a seguiram. O edifício estava
emoldurado pela luz dourada do leste, mas por dentro tudo era fresco e escuro. A luz
do fogo e a luz da lâmpada lançavam poças amarelas na penumbra. O rico perfume
de ervas encheu o lugar. A espessa secura das ervas penduradas, a rica umidade das
ervas fervida em uma panela, tornava o ar quase sólido com seus cheiros. Como
sempre, o cheiro de uma sala silenciosa bem administrada lembrava a Keleios de sua
mãe, mas foi aqui que ela encontrou a bruxa.
Fidelis estava colocando as ervas em um moedor. Seu vestido cinza claro se
agarrava ao corpo, quase como um deslizamento, mais sedutor do que qualquer uma
das saias com gola alta. Um único colar de pérolas era seu único ornamento. Um
pequeno aprendiz virou virilmente para o cabo do moedor. Foi ele quem os viu entrar,
e seu rosto empalideceu, deixando seus olhos castanhos como ilhas. Fidelis perguntou:
— O que é isso? – Ela se virou irritada e viu Keleios. Algo brilhou em seu rosto
– medo, talvez, mas não exatamente. Uma panela pequena borbulhando no fogo
cuspiu nas chamas, e a gota chiou, fazendo o fogo estourar.
O garoto deu um pulo e Fidelis disse:
— Isso é tudo.
O garoto caminhou lentamente entre as duas mulheres e, uma vez afastado de
Keleios, ele correu. Um farfalhar do lado da sala e duas meninas entraram
hesitantemente à vista.
Keleios disse calmamente:
— Saiam daqui. – Elas fugiram.
– Estamos sozinhas agora, Keleios, exceto pelo seu cortejo e pelo meu familiar.
– Fas, a aranha, clicou do topo de uma prateleira próxima. Belor e Tobin eram uma
garantia sólida nas costas de Keleios.
— Enuncie seus negócios, meio elfo.
— Você escreveu que poderíamos lutar mais tarde; bem, é mais tarde.
A feitiçeira piscou e sorriu.
— Pelo o quê devemos lutar?
— Belor.
Ela deu um passo à frente e mostrou a Fidelis o feitiço desmontado. 82

— Por que, Fidelis, por quê?


— Você passou por isso. – Ela começou a rir. Ela se encostou na mesa e
gargalhou até lágrimas escorrerem pelo rosto. Eles não tinham certeza de como reagir
a isso. Keleios havia planejado quase qualquer reação, mas não risos.
— Não acho que isso seja motivo de riso, feiticeira.
Fidelis assentiu, enxugando os olhos com os dedos.
— Não, não. Você perguntou o porquê. – Ela se endireitou, um estranho meio
sorriso ainda nos lábios finos. – O príncipe sombrio queria algo para atrair você, e eu
precisava da ajuda dele com feitiços.
— A ajuda dele? Ele não conhece artesanato com ervas. Que ajuda ele poderia
lhe dar?
O sorriso se alargou, os olhos cobertos com as pálpebras de cílios longos.
— A ajuda que qualquer homem poderia me dar. – Ela se aproximou deles, seu
corpo esbelto parecendo deslizar sobre o chão de pedra. – Pedi ajuda ao ilusionista,
mas ele segue a Cia e não me ajudaria.
Belor corou.
— Quase convenci o viajante, mas no final ele teria perguntado sua opinião e
sabia qual seria essa opinião.
Tobin simplesmente olhou para ela, olhos âmbar brilhando.
— Mas Lothor queria algo de mim. Um homem disposto por um feitiço, essa era
a barganha.
O rosto de Keleios empalideceu.
— O ciclo de Landien. A forja de Urle, Fidelis, como você pôde?
Os olhos dela escureceram, a raiva subindo.
— Poder, meio elfo, poder.
— Quantas vezes ele te ajudou?
Lothor respondeu da porta:
— Duas vezes.
Keleios recuou para o lado da sala para observar os dois.
— Você barganhou por mais um?
Ele assentiu.
— Você precisa do coração de uma criança para o último feitiço. Onde você 83

estava planejando consegui-lo?


Fidelis começou a rir novamente; o som borbulhou e encheu a sala.
— Keleios, não seja ingênua.
— Você dá às feiticeiras uma má reputação, Fidelis.
O riso parou abruptamente:
— Talvez, mas valeu a pena pelo poder, e ele é um amante maravilhoso. Eu o
invejo por seu companheiro de cama.
Lothor fez uma mesura.
— E posso retribuir o elogio, minha senhora.
Keleios tinha um grande desejo de gritar.
— Parece que nunca vou saber; lutamos na arena hoje à noite.
— Que pena, e se você não tem mais negócios comigo, tenho trabalho a fazer.
— Mais uma coisa. Você ficou surpresa por eu vir confrontá-la por esse encanto.
Bem, é tudo o que tenho de prova sólida. Mas eu sei que você está tramando algo
traiçoeiro.
— Eu estava em seus sonhos ontem à noite, profeta? Mas, mesmo assim, você
não tem provas.
— Você foi muito cuidadosa. Sem prova, não posso comparecer ao conselho,
mas há outras maneiras de lidar com isso.
— Sim, meio elfo, existem outras maneiras de lidar com isso. Uma faca no
escuro, talvez.
— Você está me ameaçando?
— Oh, não, eu não. Não uso facas como armas, é muito mais a sua área.
— Então o que você quis dizer?
— Ora, o que você quiser que signifique. – A feiticeira sorriu docemente,
mostrando uma covinha em um lado dos lábios.
Keleios olhou para ela pelo espaço de três batimentos cardíacos e disse:
— Isso não acabou entre nós, feiticeira.
— Pelo menos, meio elfo, podemos concordar. – Fidelis voltou-se para a mesa
de ervas e começou a separá-las. – Minha primeira aula é cedo, se é só isso?
— Por enquanto, feiticeira. – E Keleios virou-se abruptamente. Ela passou por
Lothor com as palavras: — Vejo você hoje à noite. 84

— Estou ansioso por isso.


Belor e Tobin foram embora com ela. Tobin olhou para trás e apenas Fidelis
estava sorrindo.
Eles andaram em silêncio por alguns passos, então Belor disse suavemente:
— Ela planeja matar você, Keleios.
Tobin balançou a cabeça e disse:
— “Uma faca no escuro” significa um assassino. Por que ela avisaria você?
— Talvez ela espere me assustar.
Tobin deu uma risada áspera.
— Ela já não conhece você agora?
— Acho que Fidelis nunca me entendeu, ou eu a entendi.
Belor tocou em seu braço.
— Eu não acho que você deva se preocupar com assassinos até depois desta
noite.
— Você quer dizer que Fidelis pode esperar e ver se Lothor me mata.
— Se eu fosse ela, é isso que eu esperaria. – Ele apertou o braço dela. – Está
feito agora, mas você deve fazer planos, estratégias. Ele é um encantador/feiticeiro, o
mesmo que você. Você nunca enfrentou alguém que combinasse com você.
— Ele não é um feiticeiro de ervas.
— Não, mas você pode não usar ervas hoje à noite.
— Ela balançou a cabeça. Vou planejar Belor. Encontre-me no meu quarto em
meia hora. Devo dizer ao Mestre Tally que hoje não posso ajudá-lo na forja.
Tobin perguntou:
— O que posso fazer?
— Venha vestido para a batalha para jantar hoje à noite; cumpra seus deveres
como se tudo estivesse normal.
— Devo ser seu segundo então?
Ela sorriu para ele.
— Não, Tobin, mas luto contra um seguidor de Verm e Ivel, e isso pode
significar traição. Gostaria que todos estivéssemos em guarda esta noite. Agora você
está quase atrasado para sua primeira aula. Allanna não é gentil com chegadas tardias.
Ele sorriu: 85

— Não, mas um dia talvez ela seja gentil com um jovem príncipe Meltaanian.
Keleios o empurrou.
— Oh, vá para a aula, caçador de saias.
— Lutador. – E ele correu em direção às salas de aula.
Belor falou suavemente.
— Eu quero conhecer seus planos.
Ela deu um tapinha nas costas dele e sorriu alegremente demais.
— Meu segundo tem que saber.
— Estou honrado em apoiá-la, mas você não tem um plano, não é?
— Ainda não. Melhor esperar uma hora antes de me encontrar. – E com isso ela
se voltou para a torre principal e as oficinas de ferreiro.
Belor gritou atrás dela:
— Espero que você saiba o que está fazendo.
Um toque delicado de feitiçaria trouxe seus pensamentos à mente dele.
*Eu também.*
O pensamento não o confortou nem um pouco.
CAPÍTULO 05: NA ESCURIDÃO

A ÁREA DA FORJA FICAVA sob a torre próxima das cozinhas. Ficava


duplamente protegida. Uma ala continha a magia para o caso de falhas. Uma boa
explosão podia derrubar metade do castelo. Tinha acontecido com outros ferreiros
que faziam reparos de relíquias. A outra ala continha o cheiro do fogo e de metais
queimados, evitando que escapassem para as cozinhas e arruinassem a comida.
Apenas algumas janelas pequenas levavam luz solar à forja. A maior parte da
luz vinha do fogo. O metal brilhava no quase breu, azul, amarelo palha, branco e 86

vermelho cereja. O fole gigante lançava ar na forja principal e, acima de tudo, havia o
barulho de martelos.
O calor podia arrancar a pele, roubar o ar: o calor constante, a escuridão - não
era um lugar para procurar um elfo, nem mesmo um meio-elfo.
Ela passou pelos fundos com escudo conjurado brilhante, mantendo-o separado
do resto da forja. Keleios mandou Allanna conjurar o escudo, porque se falhasse, não
seriam meras explosões. Tally, ferreiro-mestre, receberia um presente. Era um
resquício de uma espada e um cabo, com inúmeras peças enegrecidas ao longo dela.
Foi um presente do próprio Alto Conselheiro. Ele queria uma espada feita das peças,
mas ninguém mais sequer tocaria no trabalho.
Dizia-se que eram os restos da espada, a Matadora de Elfos. Fora feita por um
ferreiro élfico renegado. Ele, apropriadamente, foi sua primeira vítima. Tinha sido um
ladrão de almas, entre outras coisas. Keleios não queria colocar uma relíquia nas
mãos de Nesbit, mas ela não resistiu ao desafio de descobrir alguns dos segredos de
como os elfos haviam perdido durante a guerra. Se eles conseguissem salvar o metal,
a lâmina não seria a Matadora de Elfos de volta à vida. Essa espada prometia ser um
casamento entre magia do mal e Keleios e Tally.
Tally não se virou quando ela entrou. Ele era o Astranthian mais baixo que
Keleios já conhecera, e sua cabeça quase careca, com uma franja de cabelos loiros
finos, dava-lhe uma aparência peculiar.
- Bom – disse ele, ainda curvado sobre a peça principal da espada. – Você está
aqui. Hoje vamos terminar de salvar a última peça. – Ele se virou então com a maior
peça inteira na mão, e seu sorriso desapareceu. – Você não está propriamente vestida
para a forja.
– Não, Mestre. Devo duelar esta noite.
Seus dedos apertaram o metal.
– Com aquele curandeiro das trevas, não é?
Ela assentiu com a cabeça.
– Bem, isso estava por vir, suponho.
Ele colocou o metal novamente sobre a mesa de trabalho e pegou um bocado de
serragem do balde onde ficava. Jogou nas brasas e logo uma chama surgiu. 87

– Tally, não posso ajudá-lo hoje. Devo me preparar.


– Eu sei, eu sei. Mande Jarick.
– Considera isso sábio?
Ele franziu a testa e voltou-se para ela:
– Ele apenas manejará o fole. Não farei nada além de purgar o aço.
Vendo o olhar em seu rosto, ele disse:
– Prometo.
– Tudo bem, eu o mandarei quando sair.
– Tenha cuidado esta noite, Keleios. Posso não gostar da religião daquele
homem, mas ele é cuidadoso e meticuloso quando forja, e seus encantamentos são
fortes. E se qualquer coisa acontecesse a você, em quem eu poderia confiar para me
acompanhar nisto?
Ela riu.
– Ninguém mais é louco o suficiente, Tally.
Quando ela contou a Jarick, suas sardas se destacaram contra sua pele
repentinamente branca.
– Não se preocupe, ele só vai restaurar o metal; você manejará o fole – ela deu
um tapinha em suas costas. – Além do mais, Jarick, você vinha querendo mais
responsabilidade.
Ele olhou para ela, os olhos castanhos arregalados.
– Não desse tipo.
A viajante Nerine parou-a na porta ao sair.
– Keleios nosso elemental de gelo está prestes a ser libertado. Pode refazer os
feitiços de aprisionamento?
O elemental estava perto da forja principal. Brilhava em gelo cintilante com
olhos e boca vagos. Nada temperava aço como um elemental de gelo cativo. Traços
de branco cruzavam os limites do feitiço de aprisionamento.
– Tem razão; alguém já devia ter visto isso há dois dias. Peça a Allana para fazê-
lo. Se ela se recusar a entrar na forja, diga que fui eu quem pedi.
A garota parecia hesitante, considerando.
– Farei isso, mas por que você não faz isso? Já está aqui. 88

– Andarei pelas areias esta noite.


Sendo Nerine, seu rosto não entregava emoções.
– Você precisará de toda sua energia então. Obrigada por ajudar. E, Keleios, se
cuide.
– Farei isso, Nerine.
Nerine disse, numa voz suave, neutra:
– E se você lutar contra o curandeiro das trevas, mate-o. – a voz não denunciava
nada, mas havia um olhar diferente em seus olhos.
Keleios disse:
– É essa a intenção.
Nerine sorriu, uma coisa muito rara para ela. Ela deixou a área da forja,
supostamente para ir encontrar Allana, mas Keleios se perguntou o que o curandeiro
das trevas tinha feito àquela garota.
Logo do lado de fora, um envelope branco flutuava à altura dos olhos. Lia-se
“Keleios” e estava selado com cera. Trazia o selo de Poula: ramos de hortelã
cruzados com um anel embaixo. O bilhete pedia que Keleios fosse ao quarto de Poula,
e ela fez o que pedia.
Poula estava sentada na escuridão familiar, de costas para a porta. Ela não se
virou quando Keleios entrou.
– Então, vai às areias esta noite.
– Parece que sim, Mestra Poula.
O silêncio estendeu-se, e Keleios permitiu, Poula levantou-se de sua cadeira
arrastando-se para trás.
– Creio que isso foi mal recomendado, Keleios.
– Talvez tenha sido, mas ele me desafiou.
Poula virou-se rapidamente e com raiva, lançando-se sobre ela.
– Mas você o subjugou na frente de testemunhas. Você deu a ele um motivo
para desafiá-la. E deixou sua raiva vencê-la. Sabe quais são suas chances de vencer
um curandeiro das trevas?
– Acho que as chances são boas.
– Como pode ser tão tola? Não entende, Keleios? Ele é um curandeiro das trevas,
completamente traiçoeiro. Você nunca enfrentou nada assim na arena. 89

– Estou preparada, Poula.


– Não pode estar. Nada prepara você para lidar com o verdadeiro mal.
Keleios ergueu a mão esquerda, coberta de couro, até a altura dos olhos de Poula.
– Eu sei o que é o mal, Poula.
Poula afastou-se dela e andou alguns passos. Sem virar-se, ela perguntou:
– Quem é seu substituto?
– Belor.
– Encontre-o. Eu vou reorganizar minhas aulas da tarde. Você e ele estão
dispensados pelo resto do dia para se prepararem. Vá; saia.
Keleios deu um passo à frente, uma mão estendendo-se, em seguida, caindo
novamente.
– Eu tinha que responder ao desafio.
– Lembre-se do que ensinei a você.
Keleios atravessou a escuridão e a abraçou.
Poula ficou rígida e tocou os braços que a seguravam.
Keleios sussurrou:
– Lembro-me de tudo que você me ensinou.
Poula a soltou primeiro e Keleios deu um passo para trás.
Keleios começou a dizer algo, mas tudo teria sido mentira. Não havia conforto
real quando a morte estava próxima.
Keleios percebeu então que Poula tinha usado sua máscara. Pela primeira vez
desde que Keleios tinha dez anos, Poula se escondera dela. Keleios hesitou na porta,
querendo dizer algo, qualquer coisa, mas ela saiu, fechando a porta silenciosamente
atrás dela.
Os dormitórios dos aprendizes estavam vazios, cada cama cuidadosamente
arrumada, umas iguais às outras. No final do quarto comprido, Alys estava na cama.
Uma viajante vestindo azul de curandeiro estava sentada em uma cadeira ao lado da
cama, lendo para si mesma. A risada de Alys encheu a sala escura. Poth estava
pacientemente perseguindo um pedaço de fio amarelo sobre a colcha. Ela se agachou,
com a cauda tensa, e atacou. A criança riu.
Foi Poth quem a viu primeiro, dando um miado alto. Alys gritou: 90

– Keleios, Keleios! - a viajante levantou-se e jogou os longos cabelos loiros. –


Keleios, que gentileza sua em visitar. Deseja que eu vá embora?
– Sente-se...Valira, não é?
– Sim, estou honrada por você se lembrar.
– Sente-se. Não há necessidade de você sair.
Keleios estava sentada na beira da cama.
– E como vai esta manhã?
– Ah, muito melhor.
– Você se lembra do que aconteceu ontem à noite?
Uma carranca cruzou o rosto pequeno, e ela não encontrou os olhos de Keleios.
– Não, não, mim lembro...
Keleios a corrigiu.
– Me, “Eu não me lembro”. Você deve ter uma dicção clara ou nunca poderá
lançar feitiços de ervas.
– Eu sei.
– Eu não vim aqui para dar lições, aprendiz. Eu vim para ver como você estava.
A garota olhou para cima, com os olhos brilhando.
– Poth veio me visitar.
– Estou vendo – Keleios pegou a gata e a acariciou. – Ela faz minhas tarefas
melhor do que eu, às vezes.
Alys jogou o fio para a gata. Poth lançou um olhar de reprovação a Keleios e foi
atrás dele. Poth nem gostava de perseguir fios quando era gatinha. Keleios escondeu
o sorriso da melhor maneira possível. Era terrivelmente óbvio para Keleios que o
gato estava apenas fingindo se divertir. Mas a criança fora enganada.
– Alys, precisamos conversar sobre a noite passada, mas posso esperar até que
você sinta vontade de falar sobre isso.
Mais uma vez, ela não olhou para Keleios.
– Eu não quero falar dissagora... – ela olhou rapidamente. – Quero dizer, disso
agora.
– Tudo bem, aprendiz, descanse um pouco e tentarei checar você antes do jantar.
Venha, Poth. 91

– Ah, ela não pode ficar?


– Não, temos trabalho a fazer. – vendo a expressão no rosto da criança, Keleios
acrescentou: – Mas talvez ela volte a visitá-la em breve.
A gata parecia completamente enojada, mas deu a Alys um último carinho no
corpo e pulou no chão. Ela andou silenciosamente nos calcanhares de Keleios.
Quando estavam no corredor, Keleios disse:
– Foi um gesto muito legal da sua parte.
A gata não respondeu, mas saltou para a frente, a cauda com ponta branca
sempre ereta. Ela desapareceu pela porta do quarto de Keleios sem esperar.
Keleios abriu a porta e foi atrás dela.
– Tudo bem, o que há de errado com você?
A gata sentou na cama e lambeu uma delicada pata dianteira e olhou para
Keleios.
– Você acha que eu poderia ter evitado o desafio com Lothor.
A gata se concentrou em arrumar as costas e ignorou Keleios.
– Você acha que eu vou me matar. Nós podemos vencer hoje à noite. – Keleios
caiu de joelhos na cama, ao nível dos olhos do gato. Os olhos dourados a encaravam,
hostis, distantes. – Eu vencerei esta noite – disse Keleios.
A gata deu um pequeno espirro e voltou a se arrumar, passando uma pata no
rosto.
Houve uma batida na porta. Belor entrou sem permissão. Ele usava um gibão
cinza-carvão, curto, sobre calças marrons. Linho branco aparecia na gola redonda e
nas mangas. Ele parou.
– O que há de errado? Nenhuma notícia emocionante demais, espero.
– Não, Poth está brava comigo. Ela acha que eu fui tola, como Poula, e você.
Belor não disse nada, mas encostou-se à cabeceira da cama. Seus olhos azuis
diziam tudo por ele. Keleios se levantou e andou de um lado para o outro na sala.
– Tudo bem, tudo bem, deixei minha raiva me superar. Mas quem poderia saber
que ele me desafiaria? Ele veio aqui para se casar comigo, afinal. Não foi totalmente
inesperado. Tudo bem, ele teve dois duelos desde que entrou em Astrantha. Mas ele
perdeu o segundo; se Glairstran não tivesse feito voto de misericórdia, poderíamos ter
nos livrado dele. 92

– Isso é muita frieza para um seguidor de Cia.


– Nossos votos dizem que só não podemos matar. Quando alguém está tentando
tirar a nossa vida, não somos obrigados a dar misericórdia.
Era uma questão de desacordo entre eles. Ele lutou na arena duas vezes, uma
vez por aço e outra por mágica. Ele havia vencido as duas vezes. Havia matado as
duas vezes, mas não estava confortável com isso.
– Quais são os seus planos, Keleios?
– Usar os feitiços de ervas que eu já inventei. Atacar cruel e completamente.
– Que feitiços você inventou?
– Pelo menos dois feitiços de sono, um encantamento de dor, um de fogo, um
feitiço de convocação de dragão em que eu estou trabalhando e um para convocação
de demônios.
Ele levantou uma sobrancelha pálida.
– Você acha isso sábio?
– Eu estava curiosa; Ainda não o usei.
– Curiosidade como essa, você não precisa.
Ela o ignorou e continuou.
– Eu tenho uma poção para trazer sonhos agradáveis e um pouco de poder de
ilusão. O pó é muito imprevisível.
– Não há substituto para um bom ilusionista.
Keleios sorriu.
–Ainda não, pelo menos.
– O feitiço de sono, sim; encantamento de dor e do fogo, sim. Não sei o que uma
boa convocação de dragões fará. Ele pode ser capaz de bloquear um demônio sozinho,
então a convocação de demônios pode ser útil. Mas, pelo amor de Magnus, tenha
cuidado com o que você levar à arena. A ilusão pode ser útil como uma distração.
Keleios concordou com sua avaliação.
– Tanta coisa para planejar.
– Agora espere, Keleios. Você precisa de mais um plano. Lembre-se, se ele te
matar, eu luto contra ele.
– Eu absolvo você disso, Belor. Você é o meu segundo, mas essa luta não é sua. 93

Ele se aproximou dela e falou suavemente.


– Se ele te matar, será minha luta.
Ela sorriu.
– Suponho que, se fosse o oposto, eu faria o mesmo. Você sabe que faria.
Ele puxou um pedaço de papel da cama onde estava preso. Era uma nota de
Fidelis. Ela tinha se retirado para a sala silenciosa pelo resto do dia e não os
interromperia. Belor disse:
– Isso foi muito atencioso da parte dela.
– Muito. Ela planeja me matar amanhã à noite, então por que deveria se
preocupar?
Keleios esticou os braços acima da cabeça e disse:
– Devo passar algum tempo no salão dos deuses esta tarde.
– Algum tempo... Quantos deuses você costuma adorar agora, quatro?
– Três, mas terei que desperdiçar algo com Zardok e Loth.
Belor levantou uma sobrancelha pálida.
– Você fará uma oferta ao deus do príncipe negro?
– Ele não o possui pessoalmente; ele é apenas um sacerdote. E Loth é o deus da
guerra, derramamento de sangue e batalhas. Você não entra na arena sem antes
oferecer algo ao deus que pode controlá-la.
Belor encolheu os ombros; ele não fazia sacrifício a Loth, independentemente da
circunstância. Como se estivesse lendo sua mente, Keleios disse:
– E antes que você banque o moralista comigo, ilusionista, você adora a Senhora
das Sombras. Ela não é exatamente boa.
Ele se mexeu desconfortavelmente.
– Não, mas ela é a única ilusionista entre os deuses.
– Isso não é verdade. Há Shalinelle, a deusa élfica da beleza, verdade e música.
Ela é uma ilusionista.
Ele sorriu.
– E você tem que ser pelo menos parcialmente élfica para adorá-la.
– Nem sempre.
Keleios deixou por isso mesmo. Se Shalinelle o quisesse, ela teria. Caso
contrário, todos os sacrifícios na ilha não o tornariam um adorador. 94

A refeição do meio-dia foi tensa e curta. Rumores se espalharam como o vento


pelo refeitório. Todas as vozes se calaram quando Keleios passou, mas o vento de
vozes zumbiu atrás dela.
O salão dos deuses se estendia fresco e sombreado. Uma espessa névoa de
incenso quase a sufocou quando ela entrou. O vasto salão com colunas estava cheio
de altares e figuras esculpidas de deuses.
Zeln tinha pensado que as pessoas prefeririam enviar seus filhos para uma escola
onde pudessem adorar como seus pais escolhessem. Ele estava certo.
Havia algo no salão dos deuses. Talvez tenha sido a presença de tantos itens
sagrados, ou a mágica, ou apenas as emoções dos adoradores, entrando em sua fila
sem fim. Ou a presença de estudantes solitários pela primeira vez fora de casa,
chorando para seus deuses. O local tinha uma sensação claustrofóbica, as pedras
pesavam, os pilares pareciam frágeis demais para sustentar. O canto e o incenso doce
e tentador tentaram esconder, mas sob tudo aquilo havia o cheiro de sangue que
arrepiava a nuca. Este era um lugar de sacrifício, e coisas morriam aqui.
Todos passavam pelas portas duplas, todos. Quando os deuses podem alcança-lo
e puni-lo, não há descrença.
Os deuses élficos estavam aqui, escondidos em um canto apertado, quase se
tocando. Keleios fez seu primeiro sacrifício a Elventir, deus da agricultura. Ele foi o
primeiro deus que ela escolheu para si mesma.
Quando Keleios tinha sete anos, um ramo de hortelã que ela havia cultivado
brotou no altar dele e se transformou em uma tremenda planta diante de seus olhos.
As pessoas haviam percorrido quilômetros ao redor para conhecer aquele pé de
hortelã. Keleios adorava Elventir desde então, mesmo que ela não fosse uma
feitiçeira da terra e tivesse pouco tempo para jardinagem.
Ela colocou uma rosa branca entreaberta, um raminho de tomilho e um tomate
vermelho maduro em seu altar. Ele era o único deus élfico que ela adorava
regularmente. O panteão humano parecia mais compassivo de sua dupla natureza.
Uma deusa compartilhava dois panteões. Ela era a deusa da caça, tiro com arco e
coisas selvagens; e também tinha uma natureza vingativa. Era filha meio-élfica de
Urle, deus ferreiro humano, e Shalinelle, deusa élfica da beleza. Ela ficava com os
humanos no salão dos deuses. Keleios colocou uma pequena adaga que ela mesma 95

havia feito, e uma pele de coelho que havia sido morta e curada com suas próprias
mãos. Urelle ou Wolelle sempre exigiam sacrifícios que haviam sido feitos pelas
mãos de seus adoradores.
Urle, deus ferreiro, era o próximo. Ele era o deus pessoal de Keleios, pois ela era
uma sacerdotisa menor em seu templo, como a maioria dos encantadores. Colocou
um anel de ouro liso em seu altar. Era o anel de proteção que ela usava e fez com as
próprias mãos. Não costumava dar uma magia tão rara ao altar. Urle entendia o
trabalho que dava fazer algo tão simples. Ele ficava satisfeito com pouco, menos um
dia por ano. Se esta era a última vez que ela o adorasse, Keleios queria que fosse
especial. O anel era todo brilhante, e ela se sentiu bem em entregá-lo ao seu deus.
Zardok, consorte da Mãe de Todos, era o próximo. Ele era o feiticeiro entre os
deuses, e Keleios precisaria de todos os seus poderes de feitiços hoje à noite. Ela
colocou uma opala impecável, do tamanho da unha do meio, no altar dele. Zardok era
o deus da riqueza e aceitava apenas jóias e metais preciosos. Ele não era o deus de
homens pobres. Ele também era o deus da loucura, e só por esse motivo Keleios o
adorava o menos possível. Ele era imprevisível e poderoso demais.
Ajoelhou-se diante do altar de Loth, deus do derramamento de sangue, guerra e
violência. Ela veio de mãos vazias e sacou a adaga. Ela fez um corte diagonal no
antebraço esquerdo e deixou o sangue pingar no altar. Ela deitou o braço sangrando
diretamente na pedra fria e disse:
– Eu não costumo vir até ti, grande deus que és. Mas eu venho a ti agora,
oferecendo-me como sacrifício, meu próprio sangue para revestir teu altar. Guie-me
esta noite; que meus golpes sejam rápidos e seguros, que meus inimigos se escondam
em terror. Dê-me a vitória hoje à noite como eu lhe dou sangue agora.
Houve um pequeno som atrás dela, e ela girou, com a faca pronta na mão direita.
Lothor estava lá, com um meio sorriso estranho no rosto e um falcão amarrado, mas
vivo, debaixo do braço. Keleios podia ver o batimento cardíaco frenético do pássaro
quando seu peito subia e descia.
Ele usava as roupas de sacerdote por cima das roupas; escuridão perfeita com a
espada de Loth com ponta de sangue costurada no peito.
– Bem, Keleios, os dois sacrifícios favoritos de Loth, uma ave de rapina e o 96

sangue de seu seguidor. Eu me pergunto quem ele vai favorecer.


Ela não disse nada, mas limpou a adaga e a guardou. Ela passou por ele sem
dizer uma palavra e ele chamou:
– Keleios.
Ela parou e deu meia-volta.
Ele andou a passos largos em direção a ela e agarrou seu pulso direito. Ela se
afastou, mas ele foi rápido, quase tão rápido quanto um elfo. Seu rosto pálido ficou
vermelho e ele disse:
– Seu braço, me mostre seu braço.
Havia algo em sua voz, uma nota de urgência; ela fez o que ele pediu. Ela
estendeu o braço esquerdo.
– A ferida...
Ele parecia quase com medo, e ela lhe mostrou a parte de baixo do braço sem
dizer uma palavra. Ele limpou o sangue com os dedos longos, mas não havia ferida.
Ele sibilou entre dentes.
– Você é uma mulher; ele não a honraria.
Keleios olhou para a carne sem mácula. Ela ficou abalada, um sinal de
favoritismo de um deus do mal nem sempre era um bom sinal. Mas ela falou com
ousadia, calmamente.
– Você diz “honrar”. O que isso significa?
Ele olhou para ela, zangado.
– Você é sacerdote de Loth; aja como um. Cumpra seus deveres sacerdotais;
interprete esse sinal para mim.
Ele assentiu e falou.
– Qualquer sinal de que o deus Loth se dignou a usar seus poderes é uma honra.
Isso pode significar que ele está satisfeito com sua oferta e nada mais. Isso poderia
significar que ele concederia o que você pediu: vitória sobre mim hoje à noite, eu
acho. Isso pode significar que ele deitará uma mão pesada em sua vida nos próximos
dias. Isso é o que isso poderia significar.
– Obrigada, sacerdote. Que seu sacrifício seja tão abençoado quanto o meu.
Ela se virou para ir embora, e ele não a chamou.
Keleios entrou em seu quarto para encontrar uma multidão. Melandra estava na 97

cama, acariciando Poth. Seu vestido era verde-floresta, o que favorecia seus cabelos
castanhos dourados. Keleios a ajudou a escolher o pano. Estava na hora de ela parar
de se vestir como um camponês.
Tobin e Belor conversavam em silêncio. A roupa vermelho-alaranjada brilhante
do homem mais jovem contrastava com o casual cinza e marrom de Belor. Eles
tinham colocado sua armadura, armas e feitiços na cama; Keleios foi até a bacia e
derramou água da jarra para a tigela. Ela limpou o braço ensanguentado às pressas.
Tobin se aproximou dela e disse calmamente apenas para seus ouvidos:
– O que há de errado?
– Fiz sacrifício a Loth.
Ele olhou para a pele macia e ininterrupta de seus braços.
– Um animal?
– Não.
Ele sorriu.
– Então significa vitória. Você triunfará sobre Lothor hoje à noite.
– Sobre um sumo sacerdote de Loth? Sobre o príncipe herdeiro do país de
estimação de Loth? Tem algo de errado aí.
– Você se preocupa demais, Keleios. Aceite isso como um bom sinal e vá.
– Quando os deuses estão próximos, os problemas nunca estão muito atrás.
– Se você está determinada a pensar mal disso, não posso ajudá-la. Mas pela
mão vermelha de Magnus, não estrague sua concentração.
Belor entreouvira e ela teve que repetir a história para todos no quarto. Os olhos
castanhos de Melandra eram um brilho cintilante sob o véu dos cabelos. Ela e Tobin
deviam estar em outro lugar agora, e Keleios sabia quantas trocas de favores tinham
acontecido para estarem ali.
– Estou feliz que vocês estejam todos aqui.
Tobin sorriu e Melandra baixou a cabeça ainda mais. Keleios passou muito
tempo ajudando a garota a ganhar algum senso de valor. Agora ela olhara para cima,
e a cicatriz que torcia a boca fez do sorriso uma coisa desconfortável de se ver.
Melandra foi muito corajosa em fazê-lo com seu amado Belor no recinto.
Vestiram Keleios com a armadura de couro, seus brincos banhados a ouro; era
um aconchego familiar. As braçadeiras mágicas continuavam sobre os braços. Uma 98

faca longa para lutar foi presa no quadril direito. Luckweaver estava presa ao seu lado
esquerdo. O elmo de ouro, um presente de seu avô elfo, colocou sobre a cama. Era
uma prova de grande habilidade. Era a cabeça esculpida de um pássaro, cada pena
gravada, os buracos dos olhos no centro como uma coruja, para que ela pudesse ver.
O nariz era um pequeno gancho.
Seu queixo e boca ficavam onde uma mandíbula inferior estaria. A proteção de
penas na clavícula, esculpidas para afofar nas bordas, como se penas reais
descansassem em seus ombros. O elmo era algo estético, não mágico. Os feitiços
estavam envoltos em sacos de pano, um vaso de barro, todos encantados e protegidos
contra a quebra. Eram usados com uma tira cruzada no peito, presa ao cinto da espada.
A última coisa a colocar na cama era um escudo de ouro. Foi um presente de seu
mestre-ferreiro, Edan. O escudo continha um pouco de magia de anões. Custara-lhe
muito encantar o escudo.
Keleios soltou os cabelos e Melandra desfez todos os emaranhados. Era uma
massa espumosa e ondulada. Keleios trançou apenas os cabelos dos dois lados do
rosto, deixando a maioria livre, mas afastando-os dos olhos. Era um costume élfico,
algo que o meio-élfico Loltun não reconheceria. Por tudo o que sabia dos elfos, ele
poderia muito bem ser totalmente humano. Ela pediu que eles fossem embora, depois.
Eles o fizeram, exceto Poth. A gata rolou para o lado dela e encarou Keleios com
preguiçosos olhos dourados. Apenas Poth assistiu às últimas peças de armadura se
encaixarem. Era uma regra entre os Nagosidhe que ninguém além de um
companheiro guerreiro visse você. Os Nagosidhe eram uma pequena seita do exército
wrythiano. Os homens os chamavam de assassinos. Embora Keleios tivesse apenas
roçado a superfície do caminho trevoso e violento dos Nagosidhe, ela não violara as
regras. Seu tio, Balasaros, dissera que Keleios não tinha temperamento para ser um
verdadeiro Nagosidhe. Keleios nunca tinha certeza se isso era um insulto ou um
elogio.
A bainha do pulso era inútil com as braçadeiras e ela mudou a faca de arremesso
para uma bainha que descia pelas costas. O punho roçava em seu pescoço. O segundo
ficava na bainha da bota. Dentro do pescoço de sua armadura, ela colocou um garrote.
O fino fio duplo de arame, com seus pontos de fixação nas duas extremidades,
encaixava-se confortavelmente e invisivelmente. 99

Ela estava sentada com Poth no colo quando houve uma batida na porta. Tobin
tinha vindo buscá-la para a refeição da noite.
– Entre.
A maioria dos meninos não recebia seu primeiro conjunto de malas até
conquistar o título ou atingir seu pleno crescimento, mas sendo um príncipe, Tobin
havia sido uma exceção. Em seu último aniversário, ele recebera uma cota de malha.
Era brilhante e dourado como grande parte da armadura de Meltaan, com flores e
bestas gravadas ao longo dela. O capacete enfiado debaixo do braço trazia trepadeiras
enrolando-se e dois leões batalhavam no topo. Tobin estava muito orgulhoso do traje
berrante, pois ele, como a maioria dos meltaanianos, gostava de brilho e mais brilho.
Tinha um pouco de magia de anões, porque nenhum mago podia usar tanto metal
normal e ainda ser capaz de lançar feitiços.
Keleios colocou o capacete, frio, constritivo, protetor. Ela ergueu o escudo com
o braço esquerdo e testou seu equilíbrio. Uma pulseira precisava ser apertada. O
escudo de Tobin era grande, quase tão grande quanto ele, e amarrado às costas. Uma
espada curta e um punhal pendiam do cinto.
Por fim, ela colocou seus feitiços e bolsas em volta do cinto. Quando estava o
mais confortável possível, ela disse:
– Vamos lá – e liderou o caminho para a porta. Poth seguiu atrás deles.
Nenhum dos dois falou enquanto se viravam para as escadas. Alguém estava
correndo pela biblioteca, alguém cuja respiração estava irregular e alta, uma voz
dizendo:
– Mãe nos ajude. Mãe nos ajude.
Tobin vestiu o capacete e Keleios se agachou para frente, fazendo um sinal para
que ele ficasse em sua armadura.
Ela procurou pelas prateleiras, sombreando o estranho ofegante. Era Selene,
encostada em uma prateleira, com lágrimas escorrendo silenciosamente por suas
bochechas.
– Selene?
Ela pulou como se atingida, depois se virou e se achatou contra os livros,
afastando-se de Keleios. Ela murmurou:
– Eu não sabia, não sabia. 100

– Selene, o que aconteceu?


– Eu não entendo como...
– Viajante, me diga o que aconteceu.
– Eu... Dei chá ao mestre Draeen, o mestre de conjuração, chá contaminado, chá
enfeitiçado.
– Selene, que tipo de feitiço havia no chá?
– Eu não sabia.
– Você não sabia que o chá estava alterado?
Ela balançou a cabeça.
– Quem lhe deu o chá?
– Mestra Fidelis.
– Onde está Draeen agora?
– Ela o levou.
– Fidelis? Como, Selene, como?
– Ela tinha uma varinha e o transformou em uma grande cobra preta. Ele nem
acordou depois de ter sido modificado.
Selene voltou a arregalar os olhos castanhos para Keleios e disse:
– E Poula...
– O que tem Poula?
A garota se virou e começou a andar pela ilha das prateleiras. Keleios a pegou e
girou.
– E Poula o quê!?
Tobin estava atrás deles, todo dourado e invisível.
Selene disse:
– Ela está morta, ela está morta.
Depois de ter dito isso, ela continuou dizendo repetidamente. Lágrimas e risadas
vinham em torrentes. Keleios empurrou Selene nos braços de Tobin.
– Leve-a a um curandeiro e envie outro para o quarto de Mestra Poula. Faça com
que parem e detenham Fidelis.
Antes que ele pudesse responder, ela estava correndo em direção ao quarto de
Poula.
Luckweaver escapou de sua bainha quando ela abriu a porta. De um lado da 101

mesa, Poula estava de bruços. Uma grande poça de escuridão se espalhava de suas
costas pelo chão. Os juncos haviam sido arranhados e o sangue traçado pelas pedras
nuas.
Seu primeiro instinto foi correr até ela, protegê-la de alguma forma, mas não
ajudaria se ela também fosse vítima. Keleios se forçou a vasculhar a sala e ver se não
havia nada escondido. Ela enviou uma ligação frenética para Jodda, quase derrubando
o curandeiro em uma parede com a força da convocação. Tudo o que ela podia fazer
era esperar.
Keleios ficou ao lado de Poula e ajoelhou-se cuidadosamente, colocando a
espada em juncos limpos à mão. O capacete de pássaro, ela tirou e colocou ao lado da
espada. Ela afastou os cabelos grisalhos e tocou a máscara, mas seus dedos não
conseguiram encontrar um pulso na garganta. O peito de Keleios se apertou, sua
garganta se fechando em torno das lágrimas não derramadas. Ela não choraria, ainda
não. Fidelis também havia feito isso?
A carne ainda estava quente. A ferida sangrava devagar, mas não havia
começado a coagular. Pelo ângulo e tamanho, ela julgou a arma do crime uma faca,
direto para o coração. Nem todo mundo podia matar alguém pelas costas e golpear o
coração; você tinha que saber exatamente por onde entrar.
Ela resistiu ao desejo de segurar o corpo; nada deve ser perturbado. Curandeiros
estavam chegando, mas já era tarde demais.
Lágrimas brilhavam à luz das velas. Quem quer que tivesse vindo, tinha
precisado de luz, tinha sido recebido, tinha traído Poula.
A luz brilhou em algo – um pequeno espelho oval que estava apoiado na mesa
de Poula. Por que uma mulher cega precisava de um espelho? Keleios embainhou a
espada e foi para o espelho. Um envelope estava em frente a ele, selado com cera e
com o nome de Keleios.
Ela hesitou. Onde estava Jodda? Keleios pegou o envelope; na parte de trás
estava escrito: “As respostas estão lá dentro”. Ela reconheceu a caligrafia longa e
floreada: Fidelis.
Keleios quebrou o selo e encontrou uma folha de papel.
“Meio-Elfo, se você quiser saber como e por quê, repita as palavras escritas 102

abaixo. O espelho responderá todas as suas perguntas.


A feiticeira."
Havia um feitiço escrito na metade inferior do papel. Keleios reconheceu isso
como um feitiço desencadeador; fale as palavras, adicione um pouco de feitiçaria e
pronto, mágica.
Keleios tinha que fazer, tinha que saber. Ela colocou as mãos em ambos os lados
do espelho e falou:
– Espelho, me ouça. Painel de vidro, vidente oval desta sala, me ouça. Eu te
encanto. Eu te adorno com magia. Mostre-me o que preciso saber.
Nada aconteceu a princípio, então a superfície clara ficou nublada como se sua
respiração estivesse embaçada.
Jodda entrou na sala com dois curandeiros a reboque. Tobin estava atrás deles, e
ele chegou perto de Keleios e ficou olhando o espelho. A névoa desapareceu como se
sugada, deixando uma imagem no espelho da sala. Os juncos no chão não foram
perturbados, nenhum corpo estava na imagem.
Tobin chamou o viajante Feldspar.
– Precisamos de duas testemunhas para isso.
Jodda aceitou a permissão e o curandeiro zairdiano ficou de pé e observou as
imagens. Fidelis passou à vista carregando uma bandeja com chá. Poula a encontrou
dizendo:
– Uma nova mistura de hortelã. Vou tentar, mas acredito que já tentei todas elas.
Então, o murmúrio silencioso de suas vozes; o chá estava bom, mas Poula tinha
algo parecido. A voz de Fidelis em seguida, admirando a perfeição das estantes de
ervas de Poula.
– Posso pegar uma pitada de raiz de tarrow seca emprestado?
– Certamente – Poula, sendo cega, tinha um sistema diferente para saber o que
havia nos frascos, então, ela mesma tinha que pegar.
Elas apareceram, Poula caminhando para as prateleiras de ervas, de costas para a
mulher. Fidelis tinha uma adaga que brilhava na luz. Keleios sussurrou:
– Poula, Poula, por favor, veja, por favor. 103

A mulher alta e esbelta se aproximou, espiando por cima do ombro.


– Como você sabe onde está tudo? – Fidelis estava quase encostando na mulher.
Um braço prendeu-se torno do peito de Poula, a adaga brilhando acima. A coluna de
Poula ficou rígida e tudo congelou por um instante. A luz das velas tremeluzia sobre
a cena. A mão de Poula se estendeu para fora como se estivesse procurando algo, sua
coluna dobrada para trás, sua máscara de couro. O vestido cinza de Fidelis brilhava
como seda, o rosto enterrado nos cabelos soltos de Poula. Então ela deu um passo
atrás e puxou a faca.
Poula ficou em pé por um momento, o sangue do coração bombeando pelas
costas, preto e cheio de vida, depois caiu para a frente. Ela mal lutou. Fidelis se
ajoelhou e afastou os juncos dela, fazendo a luta parecer pior.
A mulher sumiu de vista, depois voltou com a bandeja de chá e saiu.
Jodda veio silenciosamente atrás deles, os olhos no espelho, e disse:
– Não posso fazer nada por ela.
Keleios não reagiu por um momento e depois se virou devagar.
– Você não pode reanimá-la?
– Não, houve uma maldição sobre a arma usada. Quem morre por ela está morto
de uma vez por todas.
– Um devorador de almas?
– Eu não sei.
– Ela está morta então?
– Sim.
Keleios passou por ela e se ajoelhou junto ao corpo. Lágrimas deslizaram
silenciosamente pelo rosto dela. Ela acariciou os cabelos e disse:
– Poula, juro que você vai descansar com Fidelis ao seu lado.
Uma voz falou na sala:
– Keleios Incantare.
Ela olhou para cima e encontrou o rosto de Fidelis olhando para ela do espelho.
Keleios se levantou e foi até lá.
– Fidelis?
O rosto sorriu. 104

– Para você, meio-elfo, um presente, do seu velho amigo, Harque. – Fidelis se


afastou do espelho e voltou a rir. – E meu, é claro. Uma faca no escuro, meio-elfo.
O espelho quebrou. Keleios jogou um braço na frente do rosto e se virou.
O espelho explodiu em uma chuva de vidro. Keleios cambaleou e se viu de pé
em um anel de lascas de vidro, como se feito por uma chuva forte. Por um momento
ela ficou atordoada, entorpecida; pensou ter escapado ilesa, então dois pontos de dor
aguda a tocaram. Um pedaço de vidro na bochecha esquerda e no lado esquerdo do
pescoço. O ferimento no pescoço cobriu os dedos com sangue.
Jodda tocou seu ombro.
– Keleios, deixe-me remover o vidro...
Os dedos gentis do curandeiro removeram as lascas. Keleios ofegou com a
ferida no pescoço. Foi profundo. Apenas um toque mais profundo e poderia tê-la
matado, mas a armadura e Luckweaver a protegeram.
– Você falhou, Fidelis – ela sussurrou.
Jodda deu um pequeno gemido e deixou cair o último pedaço de vidro. Ela
estava segurando sua mão.
Bolhas cobriram seus dedos. Ela olhou para Keleios, olhos azuis arregalados.
– Veneno Dermog. Keleios...
Keleios entendeu. Dermog era um derivado do veneno de demônios; nenhum
curandeiro branco poderia tocá-lo, muito menos curá-lo. Somente um curandeiro das
trevas poderia salvá-la agora. O único curandeiro negro na fortaleza a desafiara para
as areias e esperava matá-la.
– Convoquei Lothor – disse Tobin.
Ela olhou fixamente para o jovem, em sua cota de malha vistosa.
– Não vai ajudar.
– Apenas um curandeiro das trevas pode salvá-lo.
– Lothor espera me matar hoje à noite, Tobin. Por que ele me salvaria agora?
O garoto se mexeu desconfortavelmente.
– Ele respondeu a minha convocação. Está vindo.
Como se conjurado pelas palavras de Tobin, o curandeiro entrou na sala. Ele
estava vestido com uma armadura de aço completa, negra como a noite, lisa e sem
adornos. Apenas o capacete exibia dois longos chifres como decoração. Seu machado 105

de batalha de duas cabeças, Gore, estava amarrado ao seu lado. Ele era um feiticeiro
em todo o seu poder e tinha atrelado a própria alma ao machado.
– Como posso ser útil?
Keleios olhou para ele.
– Tobin não contou a você?
Ele assentiu, o capacete preto se movendo levemente.
– Então por que perguntar?
Seus olhos prateados se destacavam como jóias no ébano de seu capacete.
– Pela coroa de Zardok, vocês dois, vamos logo com isso! Cure-a, Lothor.
Tobin olhou de um para o outro.
Keleios engoliu em seco. As feridas estavam começando a queimar, como se
alguém tivesse empurrado um pedaço de metal em brasa em sua pele. Sua voz saiu
ofegante.
– Talvez ele tenha vindo me ver morrer.
– Lothor? – Tobin disse. Ele deu um passo em direção ao homem, depois ficou
indeciso.
Lothor tirou as manoplas.
– Eu não vim assistir você morrer, Keleios. – ele caminhou sobre o vidro
quebrado, moendo-o sob os pés. Sua voz sussurrava, suave por trás do capacete. – E
se eu não a curasse, a menos que você prometesse se casar comigo?
A queima estava se espalhando em seu peito. Cada respiração estava se tornando
dolorosa. Ela respirou fundo o máximo que pôde e disse:
– Então eu morreria.
Ele riu baixinho e colocou longos dedos brancos em seu pescoço.
– Eu pensei que você diria isso.
Um frescor calmante se espalhou das mãos dele pela pele dela. Ela respirou
fundo. A queima foi expulsa pela magia de cura. Houve duas pequenas ondas de
calor quando ele curou as feridas externas também.
Keleios olhou para ele.
– Obrigado, curandeiro das trevas.
– Disponha – a mão dele permaneceu no pescoço dela, e ela foi forçada a dar um
passo fora de alcance. 106

– Por que, curandeiro? – ela perguntou.


Ele vestiu as manoplas.
– Por que eu te salvei?
– Sim.
– Tenho meus motivos.
Ela podia sentir o peso do olhar dele nela, um toque quase físico. Keleios
estremeceu antes que pudesse parar.
– Que motivos?
Uma explosão soou longe, abafada. Keleios cambaleou quando uma feiticeira
viajou através de sua mente:“Carrick pede a todos que tomem seus postos. Estamos
sob ataque. A torre de comunicações acabou de ser destruída.”
Keleios piscou e encontrou Tobin olhando para ela. Ele recebera a mesma
mensagem. Jodda estava pálido. Feldspar murmurou uma oração para a Mãe Blessen.
Apenas Lothor se pronunciou:
– O que foi essa explosão?
Keleios respondeu:
– A torre de comunicações – ela pegou o capacete onde estava ao lado do corpo
de Poula. – Eu matarei Fidelis por você, Poula, eu juro. – a lâmpada nadava em
lágrimas.
Keleios colocou o capacete e se levantou. Não havia tempo para chorar, mas
Keleios ficou satisfeita por poder usar o capacete como máscara. Ela saiu pela porta,
com Tobin atrás dela.
Lothor chamou:
– Onde você está indo?
– Para nossos postos, para defender esta fortaleza – ela chamou de volta.
Lothor os alcançou.
– Vou te ajudar.
Ela olhou para ele.
– Fique à vontade, curandeiro das trevas, mas se você nos atrapalhar de alguma
forma, se tornará inimigo.
– Claro.
Keleios liderou o caminho para os porões. Uma porta estreita estava quase 107

perdida na parede pelo dormitório dos meninos. Uma teia de aranha estava pendurada
no topo e Lothor a afastou. Ar fresco e úmido subia as escadas contra eles. As
escadas permitiam que dois passassem, mas por pouco. Chegaram ao corredor
inferior, estendendo-se na escuridão fria.
Na primeira esquina, a escuridão se estendia aveludada e completa. Uma
segunda explosão soou e o castelo estremeceu acima de suas cabeças. Por um
momento Keleios pôde sentir o peso do castelo em cima dela, deixando o ar obsoleto
e o peito apertado. O sentimento passou, como sempre. Um elfo no subsolo no escuro,
que piada de anão maravilhosa. Keleios desembainhou a espada e liderou o caminho
pela escuridão.
CAPÍTULO 06: JURAMENTO DE SANGUE

TOBIN CONJUROU UMA LUZ AZUL de bruxa. Ele balançou logo atrás de
Keleios para não arruinar sua visão noturna. Eles vieram por aqui antes, na prática.
— Onde estão os outros guardas? – Perguntou Lothor.
— Não há outros –, disse Keleios.
— Nós três para defender todas as partes inferiores do castelo. Você está louca?
Keleios olhou de volta para ele.
— Você é livre para voltar. 108

Tobin disse:
— Os trechos mais baixos são projetados apenas para um feiticeiro e um
encantador guardar. Uma ala de cristal guarda tudo nos lugares mais baixos. Se
alguém se atreve a cavar ou vasculhar as áreas mais baixas, isso os mataria.
— As alas de cristal são muito raras –, disse Lothor. – É realmente a proteção
definitiva.
Tobin assentiu.
— É por isso que somos apenas nós dois. Alguém deste lado teria que remover a
ala de cristal para que alguém pudesse entrar.
— E o que impede alguém de fazer exatamente isso? – Perguntou Lothor.
— Ninguém trairia essa fortaleza –, disse Tobin.
Keleios percebeu o que ele queria dizer um momento antes de Tobin dizer:
— Fidelis, mas mesmo ela não trairia toda a fortaleza.
— Mãe Blessen nos salve –, sussurrou Keleios.
Um grito quebrou o silêncio. Congelou-os por um piscar de olhos, e Keleios
xingou:
— A forja de Urle, eles não poderiam ter rompido. – Eles começaram a correr,
armas seguradas perto e apontando para baixo e para baixo.
O som de muitos homens veio de cima, e Keleios diminuiu a velocidade,
acenando para eles voltarem. Ela seguiu em frente, desejando não ser vista. Não era
mágica, e, portanto, não detectável, uma habilidade dos elfos de se misturar com o
ambiente para ser simplesmente ignorada. Ela chegou à enorme porta que dava para o
porão principal. A luz brilhava dele, brilhante e dourada, luz de lamparina e luz de
tochas. Keleios espiou pela beirada da porta e encontrou um mar de homens. Eles
ficaram em silêncio como bons soldados, mas suas roupas falavam do mar. A
armadura era quase inexistente entre eles. Cinco homens do grupo não se encaixavam.
Eles estavam vestidos de preto. A luz das tochas tremulava no dispositivo costurado 109

no peito: um crânio em decomposição com olhos verdes. Era o símbolo de Verm,


deus da corrupção, irmão gêmeo de Loth. Todos os cinco emitiam uma aura mágica e
eram curandeiros negros. Se ela não tivesse visto a traição de Fidelis, ela poderia ter
acusado Lothor de ser cúmplice. O pensamento veio a ela de que ele ainda poderia
ser.
Lutando nas garras de um dos mantos pretos estava Melandra. Keleios mordeu o
lábio para não gritar. Ela não perderia Melandra também. Um cesto de cenouras
estava derramado aos pés da menina. Melandra era a favorita dos cozinheiros e era
frequentemente responsável pela equipe da cozinha. Três outros estavam capturados
com ela. O garoto alto estava com os braços amarrados atrás dele. A garota menor
estava chorando e se aconchegando contra uma garota de cabelos pretos. Keleios
deveria conhecer a garota zairdiana, mas não conseguiu identificar o nome.
A curandeira sombria empurrou o braço de Melandra, mas ela não gritou. Ela
passou anos sofrendo muito pior que isso. Keleios forçou as mãos a relaxar. A raiva
não os ajudaria; planejamento o faria.
Keleios levantou-se e procurou na sala alguma maneira de salvá-los, mas três
não conseguiriam lutar contra cem. Tudo o que eles podiam fazer era impedir que os
combatentes ganhassem as áreas superiores. Eles não podiam correr, salvar as
crianças e deixar esses homens passarem. Ela tinha que defender seu posto, defender
essa fortaleza, não importa o custo. Seu dever era claro, mas ela o amaldiçoou.
Um curandeiro sombrio em particular parecia reluzir incrivelmente brilhante. Se
ele fosse tão mágico quanto aparecia, eles descobririam o quão poderosas as defesas
dos alcances inferiores eram.
O único caminho era derrubá-los no caminho – o único caminho – para os níveis
mais altos e esperar que eles não matassem os prisioneiros. Keleios pegou uma das
bolsas do corpo de bombeiros e as borrifou levemente na frente da porta. Ela enviou
uma oração silenciosa a Urle para que ela permanecesse invisível. Dois homens
foram despachados para ver se aquele lampejo de movimento tinha significado
alguma coisa. Eles atingiram a enfermaria quase ao mesmo tempo e o fogo rugiu ao
redor deles. Seus gritos perseguiram Keleios de volta para os outros.
Ela sussurrou suas descobertas para Lothor e Tobin, depois as afastou na
escuridão, longe dos gritos. 110

Keleios olhou para Lothor em sua armadura negra.


— Pensei em matar você, príncipe. E se eu descobrir que você nos traiu, ainda
posso.
— Por que eu deveria te trair?
— Cinco abaixo são curandeiros negros ou estão vestidos como tal.
Ele ficou tão calado que Keleios sabia que estava escondendo alguma coisa.
Quando ele falou, isso não o ajudou.
— Velen ganhou.
— Quem é Velen?
— Meu irmão. Não há tempo para mais agora. Mas não traí esse castelo.
Ela se afastou dele porque não havia tempo.
— Eu montei um quartel de bombeiros que deveria mantê-los ocupados por um
tempo –, mas como se suas palavras o tivessem amaldiçoado, uma explosão sombria
soou. – A forja de Urle, a enfermaria está em baixo. – Eles correram de volta pelo
corredor.
— Essa não é a única ala. Sinta – disse Tobin.
O formigamento da ala principal da fortaleza se foi.
— Lothor, coloque uma proteção do outro lado do corredor, algo prejudicial.
Tobin, coloque uma segundo logo atrás dele; faça a sua discreta.
— Se eles se fundirem...
— Você poderia ser morto, eu sei. Mas vai funcionar, e eu não tenho a
capacidade de fazê-lo. Meu controle de proteção não é bom o suficiente para isso.
Tobin já tinha visto o suficiente de suas aulas para saber que era verdade.
Lothor perguntou, parado do outro lado de sua ala brilhante:
— E o que você fará enquanto ele arriscar sua vida? – Sua ala era perfeita,
grande e vistosa, como ela sabia que seria. Eles não podiam perder. Ela ignorou o
insulto e simplesmente respondeu:
– Algo que só eu posso fazer.
Ela se virou e pressionou o corpo contra a parede esquerda. Os feitiços estavam
lá, nas próprias paredes, esperando para serem ativados. Ela chamou o encantamento
primeiro, e foi um bem-vindo peso familiar da magia. Então ela chamou feitiçaria
para ela também, e era uma mágica leve, como um raio enjaulado. Ela os enrolou 111

juntos em uma única corda ou poder. Os criadores do feitiço pretendiam que duas
pessoas o chamassem, pois encantamento e feitiçaria eram uma combinação rara em
uma pessoa. Keleios conhecia sua própria magia como conhecia sua própria mão ou
rosto no espelho. Se ela falhasse, seria a feitiçaria que a trairia. Se você falhou no
encantamento instantâneo, simplesmente não encantou o item.
O feitiço fracassado poderia atacar o lançador de feitiços, e essa possibilidade
era o por quê ela não combinava seus talentos com frequência.
Parecia o arrepio de feitiçaria, mas mais silencioso, mais forte, controlado.
Ela sussurrou para as pedras:
— Paredes, ouçam-me; faça como eu ordeno. Pare os ímpios, ajude os bons,
protejam sua própria segurança e os que estão lá em cima. Sejam meus braços fortes
para este dia.
Keleios se afastou da parede e a tocou gentilmente. As pedras zumbiram de
encantamento.
Ela se virou para a parede da direita e fundiu seu poder com ela também.
O suor escorreu pelo seu rosto, mas ela sorriu. O feitiço era uma combinação do
encantamento dos braços fortes de Bellarion e o feitiço de viagem de Venna. Mestre
Tally e Zeln, o Justo, haviam inventado isso juntos.
Keleios voltou sua atenção para Tobin. Ele estava pressionado a centímetros do
brilho branco da primeira ala. Ela podia ver sua feitiçaria traçando para fora, delicada,
possuindo uma restrição que o curandeiro das trevas nem mesmo entendia. As linhas
de poder amarelo-ouro se espalharam para fora emolduradas por paredes, piso e teto.
Sua ala era um fantasma, perdida contra o brilho de Lothor.
Ela sorriu com o sorriso aliviado e orgulhoso de Tobin.
— Eu sabia que você conseguia–, ela sussurrou, e apontou para os dois mais
adiante no corredor.
A segunda barreira de fogo foi derramada ao longo do chão.
Keleios decidiu que a proteção da dor ocorreria pouco antes da curva para a
escada, mas ainda não. Havia reconhecimento a ser feito.
Uma segunda explosão sombria veio, seguida por gritos.
— Como eles estão rompendo estas barreiras tão rapidamente?
Lothor disse: 112

— Você mostra desprezo pela minha feitiçaria porque falta delicadeza. – Ela
olhou para ele, pois os pensamentos eram dela. – Mas somos ensinados a usar a força
bruta para superar qualquer obstáculo.
— Então todos vocês são ensinados da mesma maneira?
Ele assentiu.
Ela começou a ter uma ideia.
Quando a seguir, ela observou, apenas dois dos curandeiros das trevas
caminhavam na frente.
Andando a cavalo na frente deles estava um prisioneiro. Keleios não poderia
colocar um nome para a garota loira. Ela tinha seis ou sete anos e estava na aula de
feitiçaria de ervas de Fidelis. Seus olhos azuis se destacavam em um rosto muito
pálido.
Ela parou, incerta, olhando para seus captores em busca de segurança. Um na
frente, o capuz preto jogado para trás para mostrar a ele tão loiro e de olhos azuis
quanto ela, fez um sinal para a frente.
Keleios quase podia sentir o pulso da criança acelerando.
Keleios deu um passo para longe da parede para avisar a criança, mas um
soldado entrou no encantamento.
Braços de pedra dispararam das paredes. Eles agarraram o homem e começaram
a esmagar.
O curandeiro das trevas de cabelos amarelos impediu que os lutadores se
apressassem. Ele levantou os braços e atirou magia em direção às paredes.
Keleios se encolheu com o poder da dispersão. Se tivesse sido apenas feitiçaria,
teria funcionado, mas encantamento era algo mais robusto.
O soldado ficou mole e ensanguentado. O homem tentou novamente dissipá-lo
como se não pudesse acreditar que havia falhado.
Sua próxima tentativa foi de destruição, e poder como um raio vermelho tocou
ao longo do corredor.
A criança, esperando sozinha, tropeçou de volta no susto e caiu na parede de
fogo. Chama rugiu por suas pernas, abafando seus gritos. Seu pequeno corpo estava
envolto em fogo. Apressada para fora uma folha de chamas, morte laranja. Encheu o 113

corredor com cheiro de queimado.


Quando o fogo se acendeu, os homens ficaram intocados. A garota havia
cumprido seu dever. Ela partiu da ala com eles fora de alcance. Seus ossos estavam
retorcidos e pretos, um monte de carvão.
O usuário de magia tentou mais uma vez, e desta vez Keleios se encostou na
parede. Foi a feitiçaria que tropeçou no encantamento como uma corda em uma
armadilha. Ela estendeu a mão através da pedra fria em direção àquela feitiçaria.
Keleios não tinha certeza de como absorvê-la, então ela a segurou por vontade bruta.
Os braços de pedra do lado esquerdo desapareceram.
O lançador de feitiços loiro sorriu satisfeito consigo mesmo.
Eles entraram no caminho limpo, a parede da direita esticando atrás deles.
Quando o maior número possível estava lá, Keleios liberou seu controle. Os braços
dispararam e agarraram. Metal gritava na pedra com pouco efeito.
— Você teria usado isso em mim?
Keleios girou, a espada subindo pela bainha. Lothor ficou lá e repetiu sua
pergunta.
— Você planejou usar essa parede de fogo em mim, não foi?
— Você me desafiou para a arena. O que você esperava? E o que você está
fazendo aqui?
— Você tinha saído há muito tempo.
Eles se afastaram, deixando os homens para o massacre das pedras.
Keleios derramou a proteção da dor na curva para as escadas.
Lothor disse calmamente:
— Conheço o usuário de mágica que os lidera.
— Quem é ele e quão poderoso?
— Tranisome o Risonho, e muito.
— O Risonho - o que isso significa?
— Se os deuses não estiverem conosco, você verá em breve.
— Você é o príncipe dele. Você pode falar com ele?
Lothor considerou.
— Talvez, mas duvidoso.
— Duvidoso é melhor do que enfrentar setenta a oitenta homens e um feiticeiro 114

poderoso.
Mais uma vez Keleios avançou e os espionou. Outra criança andou diante deles.
Dessa vez, Keleios poderia colocar um nome para ela.
Ela era Bella, filha de um conde zairdiano. Ela tinha onze anos e era uma
feiticeira de alguma promessa. A garota andou para frente nervosamente, afastando
longos cabelos negros do rosto, os olhos concentrados no chão. Bella estava bem.
Ela parou e se encolheu; ela tinha visto. A garota olhou para trás e lambeu os
lábios; ela estava planejando algo.
Tranisome apareceu e a chamou:
— Garota, continue com isso.
— Eu... encontrei um.
Bella deu um passo para trás. Ele se aproximou e olhou para a linha de pólvora.
Ela estava logo atrás dele, e era um pequeno problema dar um pequeno empurrão. A
ala brilhou mais e desapareceu, seus gritos ecoando no corredor. Bella passou
correndo por ele na ala agora inútil.
Tranisome se contorceu no chão e gritou:
— Mate-a!
Dois guardas se moveram para obedecer e Keleios simplesmente apareceu
diante deles. Luckweaver cortou o pescoço de um e levou o outro para o lado. A
lâmina se soltou com um som de quebra de espinha, e Keleios subiu as escadas
correndo atrás de Bella.
Os lutadores estavam em plena perseguição. Havia algo que eles podiam lutar,
algo para sangrar e matar.
Keleios deixou sua espada ainda ensanguentada cair nos degraus e tocou a
parede. Havia uma barreira de destruição nas paredes; tudo o que precisava era de
uma centelha de feitiçaria. A proteção piscou no lugar. Dois lutadores atingiram
segundos depois.
Um raio explodiu em um fogo branco ofuscante. Ele levantou os cabelos da
cabeça e dos braços como um vento secreto. O raio ardia na escada. Homens gritaram,
correram, queimaram e morreram.
Tranisome ainda estava se contorcendo e gritando:
— Idiotas, eles querem que vocês os persigam! 115

O cheiro de carne queimada era forte e Keleios passou por ela. Fumaça ondulou
dos corpos. Não era a incineração completa de um incêndio, mas como se um grande
chicote de relâmpago os tivesse rasgado.
Tranisome pediu que o menino fosse trazido até ele. Keleios conhecia este
também, brevemente. Tobin exclamou:
— Brion!
Alguns dos lutadores olharam na direção deles. Keleios entendeu a frustração, o
horrível desamparo de tudo.
Brion era um viajante, um feiticeiro e um lutador. Suas mãos estavam amarradas
atrás das costas, e o forçaram a se ajoelhar diante do curandeiro das trevas que se
contorcia.
Keleios sussurrou para Lothor:
— O que ele está fazendo com o garoto?
— Se curando.
— Como o garoto o ajudará?
Lothor não disse nada, apenas olhou para a cena abaixo.
Bella estava silenciosamente enjoada em um canto, o cheiro de cabelo e carne
queimando era demais para ela.
O curandeiro colocou as mãos nos ombros de Brion e o menino começou a gritar.
Keleios engoliu em seco, lutando contra o enjoo. Ela sabia o que ele estava
fazendo agora.
— Ele está usando-o como um curandeiro cinza usa um animal, mas o garoto
não pode sofrer tanto dano.
— Sua força vital, não; o cadáver dele, sim.
— Isso não é cura, é assassinato.
Ele escolheu não discutir.
Os gritos do garoto pararam abruptamente e ele caiu no chão. Tranisome nunca
perdeu contato com ele. O corpo estremeceu, depois ficou imóvel. Mas foi muito
tempo depois que Tranisome liberou o corpo. Então ele se levantou e olhou para as
escadas, sorrindo.
Lothor ficou na frente do brilho nu da ala sem o capacete e esperou. Era a última
ala fixada nas próprias paredes. Depois disso, seria apenas a mágica deles. 116

Tranisome andou devagar, deliberadamente, através dos corpos e parou do outro


lado.
O sorriso se espalhou por seu rosto. Era grande e alegre, mas nunca alcançou
seus olhos.
Eles permaneceram pálidos e vazios como os de um cadáver.
Ele curvou o pescoço, ainda sorrindo.
— Seu irmão, Velen, envia saudações, meu príncipe.
— E o que são essas saudações, Tranisome?
— Morte, meu príncipe. Ela deve morrer.
— Então, na minha ausência, a mente de meu pai mudou.
O sorriso se iluminou.
— Você esperava que fosse diferente, meu príncipe?
— Não. – Lothor olhou para ele por um momento e perguntou: – Também devo
morrer?
— Lamentavelmente, meu príncipe.
— E você vai fazer isso, Tranisome?
O sorriso aumentou e diminuiu, os olhos nunca mudando.
— Há um bônus por sua morte. Alguém o reivindicará antes do amanhecer.
Keleios entrou na cena:
— Mas não será você, Risonho.
Tranisome pareceu surpreso.
— Estou lisonjeado por você ter falado de mim, príncipe. – Seus olhos azuis a
olharam do elmo dourado à armadura de couro e ao cabo da espada brilhante.
— Ah, essa deve ser... sua pretendida.
— Sim.
— Estou honrado, mas essa proteção não vai me impedir de matar você. – Ele
olhou ao longo dela. – É forte, mas não forte o suficiente.
Ela disse:
— Vamos testar o quão forte é. – Ela colocou as mãos na superfície. Brilhava e
reluzia através de seu corpo quando ela se conectou a ele. Tobin ofegou. O que era
um teste infantil de vontades na sala de aula pode ser mortal em combate. Embora o
controle de Tobin fosse melhor, Keleios não podia pedir que ele fizesse esse teste. 117

Era dever dela ter sucesso ou falhar.


Um sorriso de puro deleite moldou os lábios de Tranisome, mas deixou o resto
do rosto intocado, como uma máscara parcial.
Lothor também entendeu e ficou horrorizado.
— Keleios, não.
Tranisome falou, um toque na sua voz.
— Oh, que bônus eu farei esta noite. – Ele combinou as mãos nas dela.
O mundo se estreitou para uma parede brilhante e mãos que ela quase podia
sentir pressionada contra a sua. Ele usaria muita força contra ela, era com isso que ela
estava contando.
A primeira onda veio. Testando a força da ala e dela. Era uma cuidadosa faixa
de poder, pura e concentrada. O sorriso dele aumentou, pois ela não havia aumentado
a força. Ela se recusou a desperdiçar energia contra qualquer coisa, exceto ataques. O
suor começou a escorrer por seu rosto. Ele tinha mais controle do que ela gostaria que
ele tivesse.

Ele tentou novamente, uma mera finta. Ele disparou poder através da proteção,
forçando-a a colocar poder nela para se manter. Keleios sentiu que ele reunia forças,
e ela reuniu as dela para responder. No último momento, com feitiçaria quase
brilhando no ar, ela jogou, não para fortalecer a ala, mas para queimar Tranisome.
Sua força atingiu a ala sem controle e desapareceu com um estrondo abafado.
Por um momento suas mãos se encontraram. Seus olhos se arregalaram e ele
começou a queimar. Quando o fogo subiu e o consumiu, ele gritou:
— Mate-a!
Ao passar, ele incendiou os corpos parcialmente queimados. A escada logo se
encheu de fumaça acre sufocante. Seus próprios homens começaram a correr, pois ele
não queimou como deveria, mas continuou a tropeçar escada abaixo enquanto ele
tocava.
— Por que ele não está morto? – Keleios perguntou em um sussurro.
— Ele está se curando enquanto queima. Se ele morre ou não, vai depender se o
seu fogo causa mais dano do que ele pode curar.
Keleios engoliu em seco, bile ameaçando subir. 118

— A cura branca é estranha o suficiente, mas isso, isso é abominação.


— Ele pode viver através disso; seus curandeiros brancos já devem estar mortos.
Os lutadores lá embaixo estavam se afastando dele; alguns começaram a correr.
O lutador que agarrou o braço de Melandra começou a puxá-la de volta com ele. Ela
lutou, tentando se libertar, e ele lhe deu um golpe nas costas. Ela cambaleou e foi
arrastada.
Keleios sussurrou:
— Melandra.
Ela foi atrás deles, seguindo os gritos do homem em chamas. As pedras
estremeceram sob seus pés. Keleios fez uma pausa e depois seguiu Tobin e Lothor.
Tranisome não queimava mais, e dois homens o arrastavam. Seu cabelo amarelo
tinha desaparecido de um lado da cabeça, bolhas e pele enegrecida cobriam seu rosto,
suas roupas se transformavam em cinzas em alguns lugares. Ele gemeu, mas não
gritou mais.
Tobin disparou um raio de força e outro. Dois homens desceram e não se
levantaram novamente.
Keleios chamou sua própria feitiçaria e sentiu o cabelo arrepiar com a
proximidade.
Um raio atingiu um homem pelas costas. Gritos de "ataque, ataque" e os homens
se viraram para encará-los.
Arcos foram trazidos para a frente e Keleios se achatou no chão. Tobin correu
para ela, levando-a para trás de seu grande escudo.
Lothor, sem escudo, caminhou na direção deles. Ele apontou a lâmina do
machado para eles, e um rugido estridente de energia vermelha derramou. Flechas
ricochetearam em sua armadura de ébano, e as ondas vermelhas cortaram faixas de
morte em suas fileiras. Uma bola redonda rolou em sua direção e explodiu em uma
espessa fumaça cinza. Quando a fumaça se dissipou, eles se foram. Lothor liderava o
caminho agora.
Houve um som de assobio e Keleios chamou a atenção deles. Tobin viu uma
pequena faísca em um lado do corredor; seu gêmeo brilhava em frente a ele.
Lothor gritou: 119

— Voltem, corram!
Eles correram. Bella, esperando no pé da escada, saiu do esconderijo para
questionar o que estava errado. Uma explosão balançou as pedras e as jogou para
frente. Eles subiram e correram quando a segunda explosão ecoou a primeira, e as
paredes começaram a desmoronar.
O mundo estava cheio de pedras caindo, e não havia ar para respirar. Keleios
sentiu-se ensurdecida pela força que corria, sua cabeça vibrando com o estrondo.
Era impossível ficar de pé, e ela se arrastou pelo chão curvado. Rochas saltaram
sobre ela, machucando seu corpo. Ela não sabia onde estavam os outros; ela estava
sozinha no mundo em colapso.
O mundo terminou em pedra irregular, e ela não conseguiu mais rastejar. Ela
tentou se proteger, usando os braços e curvando o corpo, mas as pedras caíram. Ela
tentou se aconchegar debaixo do escudo, mas o mundo estava cheio de pedras caindo.
Lentamente, a esmagadora cacofonia de som se acalmou. Keleios estava
enterrada em um espaço escuro e sufocante. Rocha a tocava, a envolvia. Não havia ar.
Ela entrou em pânico, braços lutando entre as rochas. O escudo dela enterrou o braço
esquerdo, prendendo-o. Ela se acalmou o suficiente para abaixar o braço até
encontrar as tiras que prendiam o braço ao metal.
Keleios soltou as tiras e cuidadosamente puxou seu braço livre. Mais pedras
caíram em cima do escudo, enterrando-o. Ela lutou contra a rocha e se libertou até a
cintura, meio sentada, mas ainda presa na rocha. Ela podia respirar; nada estava
quebrado. Ela ficaria bem, a menos que mais pedras caíssem.
Uma névoa de poeira cinza pairava no ar. Um segundo monte de entulho estava
na frente dela e parcialmente bloqueva a passagem. Pelo que ela podia ver, não havia
passagem deixada para trás.
Ela começou a se mover com cautela, com medo de derrubar mais pedras. A
força encantada lhe permitiu empurrar os pedaços maiores para longe dela. Um bloco
quase do tamanho do seu corpo repousava contra a perna direita. Uma mão a mais e
ela poderia ter perdido a perna.
Um brilho vermelho apareceu no monte à sua frente, e Lothor se arrastou à vista.
Sua luz de bruxo brilhava em algo metálico. Ele disse: 120

— Não consigo encontrar o príncipe Meltaaniano ou a garota.


Ela engoliu, sua garganta subitamente apertada.
— Eu vi um brilho de metal lá. – Ela apontou e Lothor deslizou para investigar.
Ele limpou um ombro em uma armadura reluzente e parou.
— O que você está esperando? Ele vai sufocar – ela apertou as mãos no grande
bloco de pedra e começou a empurrar. Suas costas pressionaram contra outra pilha de
escombros e pequenas pedras deslizaram por ela. Ela parou, preocupada em se
enterrar novamente. Ela precisava de mais influência para algo tão grande.
— O que você está esperando? Desenterre-o.
— Acho que estou recebendo uma resposta.
— Do que você está falando?
— A resposta que eu estava procurando semanas atrás.
Ela olhou para ele:
— Você tinha sua resposta.
— Estou perguntando novamente.
— Certamente haverá um momento mais apropriado para discutir isso.
— Mas este é o momento perfeito, Keleios. A fortaleza cai hoje à noite, como
você previu. Não tentarei negociar com sua própria vida, mas com a vida de seu
amigo, com o qual negociaremos.
— Curandeiro das trevas, estou avisando –, ela pressionou as costas na pilha de
escombros e empurrou, xingando suavemente entre os dentes. Rochas começaram a
deslizar mais rápido, caindo em cascata sobre seus ombros e cabeça.
— Não, quando você se libertar e arrastá-lo para a superfície, será tarde demais.
Eu posso curá-lo.
A pedra mudou para o lado errado enquanto os detritos se moviam embaixo dela.
Agora ela estava segurando-o apenas para evitar que rolasse em cima dela.
— Pedra amaldiçoada. Vou me teleportar com ele.
Ele parecia despreocupado com a situação dela.
— Para onde? Você não tem idéia de onde está a luta ou quanto da fortaleza
ainda está de pé. Você pode se teletransportar para uma pilha de entulho.
Ela pressionou a testa contra a rocha arenosa. 121

— Curandeiro das trevas, eu chegaria mais perto de matar você do que casar
com você. Os costumes de Loltun são muito severos. Eu daria a minha vida por
Tobin, mas não a minha alma e as almas dos meus nascituros.
— Seja minha consorte então.
— Verm amaldiçoe você e esta rocha! – Ela chamou o poder para as mãos.
Poder demais e ela poderia derrubar o resto do corredor, mas pelo menos Lothor
também estaria enterrado. A feitiçaria atingiu a rocha e a quebrou. Quando a poeira
baixou, Lothor estava olhando para ela, suas mãos abertas, prontas para a batalha, se
ela quisesse.
— Só eu posso curá-lo a tempo, Keleios.
Ela ficou com cuidado, mãos prontas, feitiçaria borbulhando logo abaixo da
superfície:
— Se Tobin morre, você morre.
— E você vai morrer me matando. E todos estaremos mortos, incluindo a
menininha.
Keleios amaldiçoou baixinho:
— Fogo sagrado de Urle, sangue de Loth! Você sabe que não posso deixá-los
morrer.
Lothor se permitiu um pequeno sorriso.
Ela olhou para ele.
— Saiba disso, curandeiro das trevas, se barganharmos, você pode conseguir o
que deseja, mas eu tornarei sua vida um inferno.
Seus olhos ficaram frios.
— Eu esperava nada menos que isso.
Keleios continuou:
— Não serei sua consorte, mas você é meu. Pela vida de meu amigo e filho,
você é meu consorte, de acordo com as leis astrantianas.
Ele assentiu.
— Se nosso filho for menino, ele vai comigo; uma menina, ela fica com você.
— Não, criamos a criança juntos de acordo com meus costumes, ou pelo menos
não com os costumes de Loltun.
— Isso não é aceitável, Keleios. Se for uma menina, não terei utilidade para 122

isso.
— Mas terei um uso para meu filho, homem ou mulher.
— Será meu filho também.
— Se você continuar me lembrando disso, vou deixá-los morrer antes de eu
consentir.
Um estrondo soou muito longe, e Lothor se mexeu nervosamente.
— De acordo. Serei seu consorte e criaremos a criança juntos.
Ela acrescentou:
— E não de acordo com os costumes de Loltun.
Ele assentiu.
— Não de acordo com os costumes de Loltun. Você deve jurar, Keleios
Nightseer, jurar que seremos consortes depois que escaparmos. – Ele sacou uma
grande faca de caça. – Quero um juramento de sangue por isso. Dessa forma, você
não pode me matar sem se destruir.
Ela começou a discutir, mas o próprio chão estremeceu.
— Concordo, mas continue com isso. E lembre-se, esse juramento cobre toda a
nossa barganha; você não pode fugir com o nosso filho se jurarmos isso. Você estará
tão amarrado quanto eu.
Ele tirou a luva esquerda e cortou a palma da mão. Ele olhou para o sangue
vermelho brilhante e cortou sua mão direita. Eles apertaram as mãos, e ele falou
devagar:
— Pelo nosso sangue misturado vamos jurar, e se mentirmos, que os deuses
tomem cuidado com isso. Que os cães de Verm e os pássaros de Loth nos circulem se
prestarmos juramento falso.
Com algumas palavras simples, eles foram amarrados.

123
CAPÍTULO 07: BORDA DO DEMÔNIO

UM PEQUENO FLASH DE CURA parou o sangue, mas deixou uma cicatriz


rosa fresca. Ela olhou para ele. Ele respondeu:
– Um juramento de sangue sempre deixa algo para trás, não importa quem o
cure.
Ele começou a tirar a terra do reluzente pedaço de ouro. Lothor colocou a forma
imóvel no chão rachado e voltou a entrar no buraco. Bella apareceu chorando.
Quando ele a colocou no chão, ela ofegou, se apoiando na perna direita. Lothor a 124

colocou na posição sentada e voltou-se para o príncipe inconsciente.


Ele removeu o capacete rachado do garoto, expondo um rosto terrivelmente
pálido. O sangue escorria de um corte profundo. Lothor removeu suas próprias
manoplas e elmo, colocando-as cuidadosamente ao lado do corpo. Ele espalmou as
pálidas mãos de dedos longos sobre a ferida. A cura era uma magia mais silenciosa
do que a maioria, e quase não afetou o sentido mágico de Keleios.
Ela mesma tinha apenas hematomas. Luckweaver a sustentara bem.
Lothor sentou-se em meditação enquanto Tobin piscava na escuridão. Ele
estava confuso, desorientado. Ela se ajoelhou ao lado dele.
Ele perguntou:
– O que aconteceu?
– Eles destruíram o túnel com algum tipo de feitiço. O telhado e uma parede
caíram em cima de você.
Keleios hesitou e disse:
– Lothor curou você.
O sangue escorria pela pele branca de Lothor e lentamente a ferida começou a
fechar. Seus olhos prateados se abriram e ele a encarou por um momento; ela não
desviou o olhar. Ele piscou e limpou o sangue do rosto. Ele se virou para Bella e
colocou as mãos em seu tornozelo. Ele respirou fundo quando tocou o ferimento dela.
Não era necessário meditar sobre um osso quebrado.
Ele disse:
– Não foi um feitiço que derrubou os muros.
–Então o que foi?
– Um pó explosivo.
– Um o quê?
Ele começou a dizer mais, mas ela o silenciou. Um chamado esvoaçou em sua
mente, aguardando permissão para entrar. Era um dos viajantes. Keleios se abriu.
*Carrick diz: “Onde você está, garota? As regiões mais baixas são seguras? Se
sim, suba aqui agora. Precisamos de mais magia. Você tem uma resposta?*
*Sim, as áreas inferiores estão seguras, desmoronadas, na verdade. Estarei lá
o mais rápido possível.*
O contato se rompeu, e Keleios se virou para contar aos outros. Ela se perguntou 125

como uma viajante teria terminado como feiticeira reserva para os homens de Carrick.
A garota era apenas uma feiticeira de primeira viagem. Keleios se perguntou quantos
já estavam mortos.
Tobin foi quem expressou, enquanto eles se arrastavam sobre os escombros.
– E Melandra?
O estômago de Keleios se contraiu, mas o que ela poderia fazer? O túnel estava
completamente bloqueado e Melandra estava do outro lado. Não havia como chegar
até ela, nada que Keleios pudesse fazer, mas subir e ajudar Carrick. Não pôde salvar
Poula, não pôde salvar Melandra, não pode salvar sua própria mãe. Inútil. Não.
Keleios empurrou os pensamentos de volta com uma onda quase física de raiva. Ela
poderia ajudar a salvar essa fortaleza. Ela poderia salvar outras vidas.
Não estava desamparada, não por muito tempo. A voz de Keleios saiu uniforme,
nem um indício de sua raiva ou tristeza.
– Ela está perdida para nós, por enquanto. – Keleios prometeu a si mesma: – Eu
vou te encontrar, Melandra. Eu juro.
Eles chegaram ao topo da escada e não ouviram barulho de espada batendo em
espada, mas, no entanto, era guerra. O som de flechas chovia sobre eles e tinha
voltado. Os gritos dos feridos, a quietude dos mortos, enchiam o corredor até onde os
olhos podiam ver.
Carrick andava atrás de seus arqueiros. Ele usava armadura de couro e cravejada
de metal. Um grande escudo protegia seu braço direito, a espada na mão esquerda.
Postes compridos estavam apoiados ao longo da parede para empurrar as escadas dos
invasores. Jodda ajoelhou-se sobre os caídos; três aprendizes ou curandeiros
ajudaram-na. Ela era uma poça branca de calmaria no meio da dor.
Keleios experimentou o que nenhum outro curandeiro poderia fazer, uma onda
de cura calma cobria a mente a uma certa distância do curandeiro branco.
Carrick gritou:
– Prontos? Soltem as flechas.
Os arcos zumbiam por toda parte.
– Para baixo, todos para baixo.
Os arqueiros se esconderam atrás dos muros, abaixando a cabeça. Até Carrick se 126

ajoelhou atrás de seu escudo. E quando as flechas retornaram, elas ardiam em chamas.
Onde atingiram o chão de pedra, a rocha queimava. Uma feiticeira viajante, uma
garota ruiva, venceu as chamas, mas o suor a encharcou.
Sem olhar, Keleios podia sentir o mal se espalhando, a louca alegria da
destruição. Um demônio estava do lado de fora dos muros.
Keleios sentou Bella ao lado da curandeira, dizendo à garota para ajudar e ficar
fora do caminho. Ela foi adiante com Carrick.
– Estou aqui, mestre de armas.
– Keleios, o que é esse fogo mágico que come pedra? Você pode fazer algo a
respeito?
– É ilusão.
Ele olhou para ela.
– Ilusão? Mas queima. Ilusões não fazem mal.
– É uma ilusão de demônio, Carrick. Se você acredita, pode causar danos reais.
O viajante caiu de joelhos, ofegando.
– Não é ilusão, não parece, pelo menos.
Keleios se ajoelhou junto à garota.
– Confie em mim. Já lidei com demônios antes. É ilusão.
A garota balançou a cabeça teimosamente. Os curandeiros vieram e levaram o
feiticeiro exausto, ainda protestando.
Keleios voltou para Carrick.
– Você não deve acreditar no fogo. As flechas provavelmente são reais, mas não
o fogo. Nenhum fogo, mesmo fogo demoníaco, queima pedra.
Ela podia sentir o medo deles. Um corpo jazia contra uma parede, a pele
enegrecida pelo fogo. Uma mulher encostou-se na parede oposta com um braço
coberto de bolhas. Carrick ordenou que recuassem. Eles se agacharam e se
esconderam. Keleios observou a chama comendo a pedra, acumulando-se em poças
que se espalhavam. O fogo realmente se alimentaria da crença dos guardas. A crença
deles tornaria real. Poderia fazer buracos através das pedras, destruir toda a fortaleza,
se pessoas suficientes acreditassem.
Keleios respirou fundo e se arrastou para a poça de fogo mais próxima. Ela
sentou-se sobre ela, intocada. Ela podia sentir como um vento frio em sua pele, o 127

toque de um fantasma. A ilusão sempre foi uma mágica fria. Um guarda gritou:
– Está tudo bem para você, feiticeira, mas não temos mágica para nos proteger.
– É ilusão; sua descrença irá protegê-lo.
Mas ela chegou tarde demais para respostas simples. Não era fácil deixar de crer
em algo que você sentiu e viu matar. Keleios olhou para Carrick enquanto ela estava
sentada no fogo.
– Eu sou a feiticeira mais poderosa em que você pode pôr as mãos agora?
Ele se agachou ao lado dela.
– Sim.
Ela não perguntou o que havia acontecido com os outros. Ela sabia o que tinha
acontecido com Mestre Draeen e Poula. Fidelis, e por trás deles, Harque, fizeram um
ótimo trabalho.
Malditos fossem os dois.
Tobin se agachou ao lado deles. Ele deslizou a mão pela chama. Sua luva
apareceu através dela, como se fosse vidro laranja.
– O que você está planejando? – ele perguntou.
– Eles têm que deixar de crer ou a fortaleza está perdida.
Ele sussurrou:
– O controle da mente sem permissão não é permitido.
– Devo deixar tudo ser destruído por causa de uma regra?
Tobin abaixou a cabeça e depois olhou para ela. Seus olhos cor de âmbar eram
muito sérios.
– Não. Você quer que eu faça isso?
Ela sorriu.
– Você é melhor em enfermarias, mas eu sou melhor em controlar mentes.
– Tudo bem, mas tenha cuidado. – Ele se afastou dela, para deixá-la invocar sua
magia.
Keleios invocou o poder de dentro de si mesma, uma centelha vinda de si. Às
vezes, ela pensava que a feitiçaria, mais do que qualquer outra magia, se baseava no
poder da alma do que a lançava. Ela conjurou calma, destemor, segurança, uma
profunda respiração, e o pensamento de que aquilo era ilusão. Ela martelou sua
própria descrença em algo quase tangível e a jogou para fora até os confins do 128

corredor. Os guardas gritaram e um, com o braço ainda enegrecido pelo fogo, disse:
– Ilusão, é ilusão.
Keleios caiu no chão, suor escorrendo pela testa.
Tobin se ajoelhou ao lado dela. Ele sussurrou:
– Como se sente?
– Eu ficarei bem em um momento. O demônio fica incapacitado sem sua ilusão.
Valeu a pena.
Quando a próxima chuva de flechas chegou, o fogo ardeu por um tempo, mas foi
ignorado e desapareceu com a mesma velocidade que surgiu.
Quando Keleios se sentiu bem o suficiente para se mover, ela foi até Carrick.
– Como eles estão atirando flechas? Por que o pátio não foi afetado? – O pátio
foi projetado para que qualquer feiticeiro pudesse tocar e pronunciar as palavras,
transformando as pedras se tornarem um poço.
Se era ou não sem fundo, seria um ponto de longo debate.
Carrick passou a mão no queixo.
– Não podemos ter um feiticeiro perto o suficiente para derrubar as pedras
abaixo. Três viajantes foram e morreram. É o demônio. Ele os vê, invisíveis ou não.
Não temos como protegê-los.
– Eu irei, mas preciso ver que tipo de demônio é esse, primeiro.
Ele assentiu e ela foi até a janela. O demônio flutuou com suas asas de penas
pretas ao nível das janelas. Seu corpo era coberto de pêlos; sua cabeça era de leão,
com uma crina escura meia-noite. Mãos com garras seguravam um grande chicote,
que girava em torno de si.
Seus olhos estavam queimando em vermelho. Uma espada curta balançava ao
seu lado, prateada piscando, um pequeno dweomer mágico nela. Seus cascos eram
entalhados como os de uma cabra. Do outro lado da barriga esculpida havia uma
cicatriz branca lívida. O estômago de Keleios deu um nó e gotas de suor escorriam
por seu corpo. Um Cavalo Negro como aquele foi um de seus atormentadores quando
Harque, a Bruxa, a capturou seis anos atrás.
Os demônios poderiam se curar sem deixar cicatrizes, então não poderia haver
dois Cavalos Negros com a mesma ferida. Ele foi forçado a carregar uma cicatriz
como sinal de fracasso. Ela tinha uma marca dele por outro tipo de fracasso. 129

Ela se afastou da janela.


– É um Cavalo Negro, um dos mais poderosos demônios de nível inferior.
Continue como antes; não faça nada especial para me proteger. Se eu precisar que
você me salve, será tarde demais.
Lothor aproximou-se dela.
– Você não vai sair. – Ela olhou para a mão que segurava seu braço. – Você vai
se voluntariar?
Ela se aproximou e sussurrou para ele.
–Você sentiu a dor do chicote dele? Você gritou na Terceira Escuridão?
Ele se afastou dela.
– Vá, então, mas tome cuidado.
Ela olhou para ele por um momento.
– Você não esteve lá, não é? – Sua voz soou a surpresa que ela sentiu. – O
grande príncipe negro, herdeiro do trono dos demônios, nunca nem provou de seu
chicote. Muitas delícias esperam por você, além disso.
– Não é aconselhável falar dessas coisas com ele tão perto.
– Verdade. – Havia perguntas que ela queria fazer, mas não havia tempo. Ela se
virou para Carrick. – Vou sair pelo portão escondido, sem mágica. Vou soltar as
pedras, mas isso não vai parar o Cavalo Negro. Faça o que puder com isso depois que
eu tiver sucesso.
– Contra um demônio, podemos fazer pouco.
Tobin se aproximou.
– Como você vai ficar escondida sem mágica?
– Ocultação élfica.
– Claro, é uma coisa útil para saber. Por que não posso fazer isso?
Ela hesitou e depois riu.
– Eu não sei; você usou toda a que tinha.
Carrick a saudou e voltou a ordenar seus homens.
Lothor veio atrás dela.
– Você pensa em escapar da nossa barganha se suicidando não é?
Ela começou a descer as escadas antes de responder.
– Não é minha ideia de prazer, mas dificilmente é um destino pior que a morte, 130

especialmente nas mãos de um demônio que já provou meu sangue.


Ele tentou tocá-la, então, mas ela se afastou. Ele se moveu para alcançá-la.
– Se ele já teve seu sangue, então tem certos poderes sobre você.
– E eu tenho certos poderes sobre isso.
– Você pode saber seu nome verdadeiro, mas isso faz com que você volte e isso
cause problemas.
– Se houver tempo.
O portão principal se erguia diante deles, barrado e seguro. Era de Bellenore ou
do capitão a essa altura. Ela avançou.
– Keleios, você vai tentar?
– Sim.
– Que os deuses sorriam para você.
– E tudo mais dentro desta fortaleza hoje à noite.
Bellenore sinalizou para os dois homens se afastarem do portão principal e
Keleios se aproximou da parede.
Lothor chamou atrás dela:
– Keleios.
Ela hesitou. Havia um peso frio no estômago e a boca estava tão seca que ela
não conseguia engolir. O demônio lá fora a torturara por semanas. Não era algo que
se pudesse esquecer.
– Keleios.
Ela balançou a cabeça e não olhou para trás. Ela fez um rápido exercício de se
acalmar e afastou todo seu medo. Você pode ter medo, mas ele não pode correr por
sua pele como o vento. O medo pode atrair demônios. Keleios construiu um muro ao
redor de seu medo. O portão escondido se abriu e ela saiu, os dois homens
empurrando freneticamente para fechá-lo atrás dela.
Keleios estava no último degrau que dava para o pátio. Ela era élfica e
atravessou as pedras; ninguém a viu. Não havia espaço vazio ou feitiço para
confundir os homens por que eles não conseguiam olhar para aquele determinado
local. Ela desceu, serpenteando pelos homens que trabalhavam para bater na porta
principal. Eles não a tocavam, pois eram necessárias coisas mágicas para abrir a
porta. 131

Homens estavam vestidos com armaduras de couro, ou sem armadura. Eles se


agruparam atrás de escudos esperando pacientemente pelo grupo de curandeiros das
trevas lhes darem passagem. Mesmo agora, os magos lançavam feitiços sobre o aríete,
tendo finalmente reconhecido a necessidade. O aríete estava nas pedras no chão do
pátio, e quase um punhado de homens estava ao redor. Ela evitou um homem com
uma argola de ouro na orelha. Quatro guardas estavam nos degraus, com espadas e
adagas prontas. Ela teria que lutar com eles se conseguisse e se o demônio lhe desse
tempo.
Enquanto examinava o pátio, notou um casco enegrecido como um pequeno
pedaço de carvão, só podia ser um cavaleiro. Por seu tamanho, era feminina; os
dragões estavam caindo. Um dragão selvagem nunca teria acreditado na ilusão, mas o
sentido mágico era embotado nos dragões de guerra mais mansos. Sem os dragões, o
ar pertencia aos demônios. Ela foi para o último passo.
Ajoelhou-se, perto o suficiente para cheirar o suor dos magos enquanto
lançavam feitiços. O aríete era um volume escuro ao seu lado. Ela colocou as mãos
nas pedras do pátio e falou uma palavra.
Um som de trovão estremeceu pelo pátio, e o barulho parou, todos os olhos
procurando o perigo. O pátio desabou.
O aríete sumiu de vista; homens caíram gritando em uma escuridão mais
profunda que a noite. Como ela previra, o demônio voou para o ar, grandes asas
abanando a noite. Ela era visível para os quatro homens atrás dela.
Eles congelaram por tempo suficiente para ela ficar de pé, depois caíram sobre
ela para descarregar raiva e choque em algo feito de carne e sangue. O primeiro a
fechou rápido demais. Ela abaixou e o arrastou para dentro do poço. Ela veio
cortando a barriga do segundo e passando a espada na garganta do outro. O último
tentou correr, e ela se afastou, colocando uma faca entre as costelas dele. Ele caiu
para a frente e tossiu sangue até morrer. Ela pegou sua faca e olhou para cima.
O demônio flutuou logo acima dela, as asas paradas, levitando. Sua voz era de
um tenor, musical e ainda uma surpresa para os ouvidos, mesmo quando preparada.
– Nightseer.
Suas asas se abriram, os braços flexionando, e um sorriso exibiu dentes brancos.
Ela inclinou a cabeça e o cumprimentou. 132

– Barbarros.
Ele abanou a noite com as asas e o vento empurrou os fios soltos dos cabelos
dela.
– Então você não me esqueceu. Que lisonjeiro.
– Barbarros, nunca o esquecerei, sua magnificência negra, sua mão magistral
com chicote ou espada.
Ele voou mais alto, recebendo os elogios, e parou para flutuar quase ao lado dela.
– Nightseer, não serei enganado por mera lisonja. Com um sacrifício,
poderíamos conversar.
Ela olhou nos olhos vermelhos dele com o fogo frio deles.
– Que sacrifício você tinha em mente, Barbarros?
Ele tentou sorrir e fez um rosnado de queixo preto e presas de marfim.
– Ora, você, Nightseer.
Ela respirou e ficou tensa. Ela dissera seu nome três vezes, ele também. Fosse
qual fosse a proteção que ela ganhara com isso, ele a retirou silenciosamente. Pois,
embora Nightseer não fosse um nome de nascimento, era um nome de poder e seria
suficiente. Ela conseguiu sorrir de volta.
– Querido Barbarros, isso não é algo que estou disposta a dar.
A cabeça dele se aproximou e ela sentiu o cheiro do rico enxofre almiscarado do
demônio.
– Os melhores sacrifícios não estão dispostos, a princípio. – E ele riu. Voou no
arco onde ela estava, saltando pelas paredes. O riso morreu repentinamente,
ameaçadoramente. Ele voou mais alto, flutuando acima dela como um deus das trevas.
– Você se lembra da dor, pequena elfo?
Ela sussurrou.
– Sim.
Ela lembrou depois de seis anos; ainda era um pesadelo frequente: estar
amarrada na barriga, o chão frio e duro contra a bochecha, o som de um pano rasgado
quando suas costas estavam à mostra, e ele serpenteando o chicote pelo chão,
farfalhando, vivo. A primeira mordida ardente, pequenos ganchos mordendo a carne
e arrancando, de novo e de novo e de novo. A sensação de sangue, seu sangue fluindo,
lavando-lhe as costas. Dor tão forte que percorreu seu corpo inteiro, em uma onda 133

sangrenta ofuscante. Keleios fechou os olhos e respirou.


Eu estou no controle. Eu estou no controle. Isso não pode me prejudicar; não
pode me prejudicar. Ela abriu os olhos para encontrar o demônio ainda no mesmo
nível dela. Ele a enganara com os olhos. Ela teve o cuidado de não olhar para eles
uma segunda vez.
Ele assobiou e balançou no céu, pairando.
– A dor lembrada não é a mesma. A dor real é sempre melhor.
Keleios jogou um feitiço de escudo em volta de si mesma, mas havia uma
sensação de desesperança. Foi um feitiço simples, e ela fez bem na aula. Mas ela
esteve desprotegida contra o demônio por semanas. Ela sabia que, ao tentar se
proteger, não podia fazer isso. A dúvida, é claro, era sua ruína e a vantagem do
demônio.
Ele estendeu uma mão com garras e flexionou os dedos.
Keleios gritou quando as cicatrizes se abriram e ficaram vermelhas. O sangue
encharcou o couro de sua armadura como uma inundação, todo o sangue que ela
havia perdido em semanas se esvaindo. Ela caiu de joelhos, uma mão se apoiando nos
degraus. Um grito longo e irregular após outro foi arrancado de sua garganta; ecoou
no espaço, zombando dela.
Os gritos se transformaram em uma palavra.
– Não! – Ela olhou para a coisa e gritou: – Barbarros, vá embora, ahhhh!
Do nada, um raio de poder vermelho o atingiu no peito. Ele girou para trás no ar,
batendo asas para recuperar o equilíbrio. Um segundo raio o atingiu e mãos se
fecharam sobre Keleios por trás.
Uma voz disse:
– Keleios, é Bellenore. O lutador a pegou debaixo dos braços, mas quando suas
costas colidiram contra Bellenore, ela gritou.
O demônio gritou e mergulhou atrás deles enquanto eles se arrastavam pelo
portão. Um raio vermelho o fez cair do mergulho, e ele rosnou com raiva para o céu
noturno quando o portão se fechou atrás deles.
Ela ficou deitada por um minuto, ofegando no chão frio de pedra, e sussurrou:
– Um dia eu vou matar aquele filho da puta.
Martin, o único curandeiro branco que a fortaleza podia se gabar, ajoelhou-se ao 134

lado dela, seu rosto quadrado e barbeado, franzindo a testa para ela. Seus cabelos
castanhos estavam presos por uma tira de pano. As mãos dele a tocaram gentilmente
e saíram manchadas de sangue.
– Tirem essa armadura.
As mãos se moveram para obedecer e Keleios disse:
– Seja gentil, essa armadura levou muito tempo para ser fabricada.
Alguém riu e Bellenore se aproximou.
– Feiticeira ou não, você tem a preocupação de um guerreiro com suas
ferramentas.
O segundo em comando ajudou pessoalmente a remover a armadura. O esforço
deixou Keleios ofegante no chão. A camisa de linho embaixo estava grudada nas
costas e Martin a levantou devagar. Keleios tentou não gritar. Ele rasgou as costas e o
curandeiro que ajudava Martin ofegou. Ele advertiu o viajante por demonstrar tanta
falta de tato, mas seu rosto também estava pálido.
– Cia, nos preserve. Keleios, suas costas em farrapos.
Lothor estava ao seu lado, raspando o elmo quando ele o colocou no chão.
– É assim que essas feridas se curam.
Martin olhou para ele com desprezo óbvio.
– Você sabe algo desse tipo de ferida?
– Eu sou um curandeiro das trevas. Quer você goste ou não, isso me torna um
especialista em feridas causadas por demônios.
O desafio deixou o tom do curandeiro branco.
– Não deixarei minha paciente sofrer pelo meu preconceito. O que pode ser feito
por ela?
– As feridas são comuns o suficiente, mas tenha cuidado. Não sei se curandeiros
brancos podem curar feridas demoníacas com impunidade. O pior é a perda de
sangue e a fraqueza resultante. Será mais difícil de curar.
– Eu acho que posso curar qualquer coisa que um curandeiro das trevas possa. –
Um “e bem mais” não foi dito, mas pairava no ar.
Lothor sorriu, um sorriso agradável e apertado, e disse:
– Fique à vontade, curandeiro branco. Você não precisa de nenhum conselho 135

meu.
Lá fora, o demônio pairou e mostrou o rosto sobre a fortaleza.
– Não serei enganado desta vez, Nightseer. Não serei enganado de novo!
Martin colocou as mãos nas costas dela, procurando o dano. Ele sibilou e se
afastou dela.
– Tanta dor, tanta dor, como você pôde suportar isso?
Keleios respondeu com uma voz estranha e distante.
– Não era tortura como pensamos. Eles não queriam nada de mim. Nenhuma
palavra, pensamento ou coisa que eu pudesse fazer ou dar a eles teria me libertado.
Eles simplesmente pediram que eu resistisse. É simples suportar algo quando você
não tem outra escolha.
– Mãe de todos nós, a maior curandeira que já existiu, me ajude a curar esta
mulher. – E ele a tocou novamente.
O sangue encharcou sua túnica branca, aumentando as muitas manchas, agora
secas. Espalhou-se lentamente, e finalmente ele se retirou e recostou-se em profunda
meditação.
Seu rosto tinha a paz completa que era a única coisa que ela invejava dos
curandeiros brancos. Ele abriu os olhos para inspecionar seu trabalho e franziu a testa.
As feridas haviam cicatrizado e se transformado em cicatrizes diante de seus
olhos. As cicatrizes desapareceram, deixando as costas lisas e limpas, exceto uma.
Era longa e fina, estendendo-se logo abaixo do ombro esquerdo até o topo da direita.
No final, como uma flor retorcida, havia uma explosão de cicatrizes.
O curandeiro apalpou-lhe as costas gentilmente, como se tivesse medo de
prejudicá-la ainda mais. Antes que alguém pudesse detê-lo, Martin colocou a mão em
cada extremidade da cicatriz.
Lothor gritou:
– Não é uma cicatriz; é uma marca demoníaca!
Uma onda de vermelho explodiu nas costas de Martin e ele gritou. Keleios
gritou com ele, mas suas mãos permaneceram presas nas costas dela enquanto ele
balançava e lutava contra a dor.
Keleios gritou: 136

– Tire-o de cima de mim, tire-o de cima de mim!


Lothor segurou os pulsos tensos de Martin, mas o viajante tentou detê-lo.
– Se você quebrar a concentração dele, poderá matá-lo.
– Se eu não quebrar a concentração dele, ele morrerá.
O garoto recuou, ainda incerto, mas não protestou quando Lothor puxou o
curandeiro.
Uma grande força quente segurou as mãos para baixo e outra força, não tão
quente, também segurou. Ele foi forçado a erguer um dedo de cada vez, uma mão de
cada vez. O curandeiro caiu sobre seu corpo. Lothor levantou o curador inconsciente
e o colocou contra uma parede. O viajante colocou as mãos nele, timidamente.
– Ele mal está vivo, mas sua mágica está tentando curá-lo.
Ele rasgou o manto branco das costas de Martin. Keleios teve que se virar.
Lembrou-se de cada chicote que suas costas mostravam, até as pequenas mordidas de
ganchos de metal.
O garoto perguntou:
– Como podemos ajudá-lo? Você disse que era uma marca demoníaca.
– Sim, parece apenas uma cicatriz ou ferida. Nenhum curandeiro, seja ele branco,
das trevas ou cinzento, pode curá-lo. Seu curandeiro branco deve ser muito forte para
continuar vivo.
O garoto o tocou, com lágrimas nos olhos.
– O Mestre Martin é.
Keleios respirou fundo e esperou a dor, mas com o contato interrompido, ela se
sentiu curada. Como seis anos atrás, ela não conseguia pensar na dor. Sua mente se
esquivou, tentou se convencer de que era seguro.
Lothor voltou para o lado dela.
– Ainda dói?
– Não.
Tobin a ajudou a se levantar. Ela arrancou a própria roupa sem pensar e pegou
sua armadura. Os olhos prateados de Lothor encaravam seus seios nus, e ela se viu
cobrindo sua nudez com a armadura. Ela resistiu à vontade de cuspir nele, mas 137

lembrou que em breve, se eles vivessem, ele veria bem mais do que seus seios nus.
O pensamento a salvou de vergonha. Ela olhou para ele e começou a vestir a
armadura com a ajuda de Tobin. O olhar em seus olhos disse a Lothor para nem
pensar em oferecer ajuda.
Seus olhos encontraram a bainha da adaga em seu pescoço, e ela se perguntou
pela primeira vez se alguma barganha a impediria de enfiar uma adaga nele em uma
noite escura.
O feiticeiro ficou tenso e quase oscilou.
– Eles foram superados. A ala sul cairá, a menos que venha ajuda. – Ele ficou
tenso novamente. – Carrick ordena metade dos homens neste nível para a ala sul. Se
Keleios estiver bem, ela também deve ir, e Tobin vai com ou sem ela.
Keleios se levantou, flexionando os músculos e se tocando casualmente para
garantir que todas as armas estavam no lugar.
– Estou pronta.
Bellenore parecia ter dúvidas, mas escolheu os homens rapidamente. Ela
colocou Davin, um guarda sênior, no comando. Ele era confiável, sem muita
dificuldade para liderança. Eles estavam na ala sul logo em seguida.
Os sons da batalha estavam por toda parte. Gritos, o choque de metal contra
metal, o cheiro de ozônio de feitiçaria pairava pesado no ar. Davin enviou Keleios e
um jovem guarda loiro, chamado Torgen, para as janelas para vigiar. O muro sul era
o único que não era guardado por encantamento. As pedras não se abririam aqui e a
batalha foi travada nas pedras do pátio, não pelas janelas.
O pátio estava cheio de corpos, formas escuras que brotavam na sombra a cada
explosão de raio ou fogo. Allanna ficou quase sozinha, o fogo branco se formando
em suas mãos, lavando toda a cor de seus cabelos amarelos e pele pálida. Seu vestido
azul estava escurecido pela luz crescente. Seu cabelo mudou e estalou por causa de
seu próprio poder, tão perto.
A mulher vaidosa se foi; era Allanna em seu poder - alta, mortal e maravilhosa.
Ambas suas mãos avançaram, e a bola brilhante disparou para pousar em uma
forma escura. Um segundo Cavalo Negro gritou e abanou o ar com suas grandes asas
escuras. O fogo branco explodiu como uma rede de raios, e o demônio começou a 138

cair na terra. Allanna, porém, caiu de joelhos. Uma flecha se arqueou em sua direção
e um guarda saltou para frente, colocando o escudo diante dela. Os guardas restantes
formaram uma cunha em volta dela e seguraram seus escudos em posição de defesa.
Uma pequena figura escura ajoelhou-se ao lado do demônio cheio de raios. Da
janela, Keleios podia sentir o poder. O fogo do céu sumiu e caiu sobre o homem.
Keleios teve um breve vislumbre do rosto pálido antes de ela e Torgen voltarem para
dar notícias.
Davin os levou até a porta mais próxima, a porta leste. Levou para o jardim de
rosas. Keleios e Torgen novamente olharam adiante através das rosas farfalhantes. As
videiras espinhosas enroladas os alcançaram, mas pararam pouco antes de amarrá-los.
Era como se as plantas animadas pudessem farejar a diferença entre amigo e inimigo.
Eles entraram e se moveram o mais rápido possível. Torgen agarrou nervosamente
suas armas enquanto as sebes cresciam para bloquear seu caminho, depois se
separaram quando quase às tocou. Em todos os lugares havia um farfalhar de vinhas
agarrando, enrolando. No jardim de ervas, encontraram vegetação cortada e dois
intrusos mortos quase cobertos de folhas.
Do lado de fora do portão da ala sul estava o dragão macho prateado. Metade de
seu corpo esmagou as plantas relutantes do jardim dos curandeiros, forçando um
buraco através da cerca.
O pátio e as corridas de dragões estavam visíveis através da cerca quebrada. A
batalha brilhava como uma tempestade multicolorida contra a noite.
A cavaleira do dragão, uma garota de cabelos escuros, tinha caído da sela,
curiosamente reta. Keleios fez um sinal para que Torgen voltasse a esperar pelos
outros antes de seguir, e ela continuou. Ajoelhou-se na sombra do dragão e não
encontrou luz nos olhos dele, morto. Ela voltou-se para a cavaleira e descobriu por
que ela estava tão reta. Flechas fixadas na perna esquerda; o braço direito e o cabo
quebrado de uma lança fizeram da cavaleira e do dragão um só. Keleios se ajoelhou
na sombra de sua morte e lutou contra o desejo de gritar aos deuses. Se Verm podia
enviar seus demônios, de onde viria a ajuda dos defensores?
– Que A Mãe fique com vocês dois. – Ela puxou uma flecha da perna da
cavaleira, sentiu o cheiro e a jogou no chão. Ela sussurrou: – Maldição do dragão. –
Confie num Loltun para cultivar algo com apenas um propósito. 139

Não havia necessidade de batedores agora. Davin os levou para o pátio. Os


arqueiros se prepararam para ajoelhar-se e dar espaço aos feiticeiros. Davin
encarregou os quatro feiticeiros com Keleios. Eles formaram uma fila dupla de trinta
homens, metade da força da ala norte. O demônio subiu ao ar mais uma vez e atacou
com um chicote de várias pontas. Voou para o punhado de guardas agachados ao
redor de Allanna. Cercou a cabeça e o pescoço de um homem; ele não havia se
escondido o suficiente atrás de seu escudo. O homem gritou, e o demônio riu quando
ele arrastou o homem para frente. Os guardas se fecharam em fileiras através do
buraco e esperaram.
O homem foi levantado no ar até que o demônio o segurasse. A coisa riu com
uma voz profunda e estalou o pescoço dele. Davin sussurrou uma ordem para os
arqueiros mirarem no demônio. Keleios o deteve.
– Flechas comuns nem sequer o acertam. Você tem de matar quem o controla.
– Mas qual deles?
Lothor falou perto de seu ombro.
– É o homem baixo, de túnica preta, logo abaixo do demônio.
Ela olhou para ele.
– Como você pode ter certeza?
– Não posso, mas é o meu melhor palpite.
Eles aceitaram isso, embora Keleios não tivesse certeza do porquê. Davin deu
suas ordens. Flechas se arquearam no céu noturno e atingiram sua marca, mas
saltaram inofensivamente contra um escudo invisível.
Keleios disse:
– Todos comigo em seus escudos, agora!
Cinco linhas de poder se estendiam para fora, uma destruição multicolorida. O
escudo deu um estalo alto. A morte voou pelas costas deles. O outro demônio voou
para eles, quebrando sua concentração, derrubando a maioria de joelhos. Dois
artífices apareceram, arranhados por garras.
Barbarros rondava, quase perdido contra a escuridão, mas ele voltaria. O
segundo Cavalo Negro serpenteou seu chicote para fazer outra tentativa.
Keleios se ajoelhou no chão e se recusou a olhar para cima.
– Eu não posso lutar contra dois deles. Não podemos lutar contra dois deles. 140

Tobin se ajoelhou ao lado dela.


– Keleios, e o feitiço de convocação de demônios? Não poderia outro demônio
lutar contra eles?
– Você não entende. O feitiço não foi projetado para criar um demônio mais
forte. E se eu pudesse fazê-lo, não poderia controlá-lo, não aqui sem um círculo
protetor, sem encantos. Terminaremos com três contra nós, em vez de dois.
A voz de Lothor veio suave como seda.
– Use o livro. Desnude sua mão e use o livro.
– Que livro? – Tobin perguntou.
A parede de escudos se despedaçou quando os guardas fugiram loucamente do
feitiço pelo medo que o demônio irradiava.
Tobin estava tremendo ao seu lado, mal conseguindo ficar na presença dele.
Lothor se ajoelhou e encostou a cabeça no chão. Barbarros e os outros homens negros
também se ajoelharam, olhando para a coisa. Parecia um inseto que orava, mas com
as mãos onde as garras da frente estariam e um grande machado de guerra nas mãos.
A coisa tinha mais de três metros de altura. Girou os olhos como um inseto, de um
lado para o outro, virando sua cabeça triangular quase completamente redonda. Sua
voz rolou para fora de seu corpo magro como um zumbido.
– Quem me convoca?
Keleios disse:
– Eu.
– Que tarefa você quer que eu faça?
– Derrote os demônios que os invasores mandam contra nós.
– E qual o meu pagamento por esta tarefa?
– Nada. Você está sob meu comando, Nezercabukril.
Ele assobiou, partes da boca estalando.
– Nada! Você ultrapassa seus limites, mulher.– Ele se aproximou, elevando-se
acima dela. – Você está sem círculo e sem encantamento. É você quem é minha.
– Não, Nezercabukril, pelo livro que o convocou, estou protegida.
Ele balançou o grande machado branco com seu cabo de osso, e o cravou no
chão ao lado dela.
Seus olhos se fecharam, mas ela não se mexeu. Ela agora estava sozinha diante 141

dele. O demônio puxou seu machado do chão e disse:


– Estou sob seu comando, por enquanto. – levantou o machado, e ele brilhou na
luz da lua. – Você virá a mim em breve; então eu serei pago.
Ela respondeu:
– O futuro é feito apenas de possibilidades, Nezercabukril; faça o que eu mandar.
– o grande demônio branco, aparentemente esculpido em osso, virou-se para o
primeiro Cavalo Negro. – Saia e não volte esta noite.
O demônio desapareceu.
Barbarros rastejou diante dele:
– Mestre, por favor, conceda-me uma morte antes de me mandar embora.
– Diga.
– A mulher, ela é uma Nightseer. Por duas vezes fui enganado com sua morte;
que não sejam três vezes, mestre dos ossos.
– Isso é algo que não posso conceder esta noite.
Barbarros gritou, rangendo os dentes e desapareceu.
O chão tremeu e o demônio branco olhou para baixo.
– Eu fiz sua tarefa. Me envie de volta.
– Eles trarão mais demônios. Eu vou precisar de você.
O demônio riu profundamente em sua garganta.
– Não haverá mais demônios aqui esta noite.
– Estou avisando, Nezercabukril, não minta para mim.
Ele riu:
– Avise. Você me comanda hoje à noite, mas não deixe que isso lhe iluda com
grandeza. Eu não minto. – o chão tremeu de novo, as pedras dobrando no pátio.
– Onde diabos vão, demônios não vão. Liberte-me.
– Diabos? O que você quer dizer?
O pátio explodiu em uma grande torre de chamas. O rosto malicioso de um
demônio despontou nas chamas e começou a formar um corpo a partir delas.
Nezercabukril disse:
– É isso que eu quero dizer.
Ela sussurrou: 142

– Saia.
O demônio fez uma reverência zombeteira e disse:
– Obrigado, e que você aproveite as atenções do meu mestre, pessoalmente.
Com isso ele desapareceu.
CAPÍTULO 08: A ADAGA BRANCA

A COLUNA DE FOGO RUGIU para cima no escuro. Cinzas alaranjadas se


arqueavam para fora como fogos de artifício, chiando e estalando no pátio. A base
torcia e se contorcia, cordas flamejantes de laranja, amarelo e branco. Nas chamas, os
rostos tremeluziam, gritando e sendo consumidos infinitamente pelo fogo. Braços
estendidos para fora, pequenas chamas ardiam em volta e os engoliam. Um lamento
agudo ecoou sobre o rugido das chamas. Um vento quente e seco parecia soprar a
coisa. Roubou o que tocou no fogo. Secou a esperança e deixou apenas o terror para 143

trás – corra, corra e se esconda. Mas não havia mais lugar para se esconder.
Lothor chamou-a por cima do barulho:
— Esconda o livro. Vai chamá-lo como um sinal de incêndio.
Ela o encarou por um momento, meio estupefata com o barulho e a presença da
coisa.
Ela enfiou o livro dentro da bolsa, apagando as chamas negras. Keleios apertou
os cordões com força e olhou para Lothor.
Ele se aproximou dela.
— Keleios, você está bem?
Ela não respondeu, mas estava vagamente consciente de Tobin de joelhos, os
olhos fixos no demônio atrás dela. Acima de tudo, havia o som de queimada em um
canto sombrio em sua cabeça. Ela levantou a mão esquerda; nunca coçara tanto,
exigia ser usada. Ela a levantou devagar, como se não pudesse parar. Lothor pegou o
pulso esquerdo logo antes de tocá-lo.
— Keleios?
O demônio falou. Sua voz era um vento ardente, uma floresta em chamas.
— Quem ousa me chamar?
Lothor apertou Keleios, puxou Tobin e começou a andar rapidamente, mas não
muito rápido, para o abrigo questionável do dragão.
Eles, como o ferreiro, foram protegidos. Eles acertaram a magia com um arrepio
de pele, mas não havia barulho de dragões para cumprimentá-los. Os dragões
estavam mortos.
Quando eles colocaram um edifício entre eles e o demônio, Lothor deixou Tobin
deslizar no chão. O garoto começou a vomitar. Lothor agarrou os pulsos de Keleios e
a sacudiu.
— Keleios!
Ela o ouviu distante sobre a música em seu sangue, em sua cabeça, de sua mão.
Cantava morte, poder e escuridão mais negra do que qualquer noite. Ele a
empurrou para trás, batendo-a no celeiro duas vezes.
Tobin rastejou na direção dele e disse:
— Deixe-a ir. 144

Ele chutou Tobin com força suficiente para jogá-lo no chão. O garoto não se
levantou, mas ficou gemendo. Lothor balançou Keleios contra a parede até que ela
lutou para fugir.
Ela olhou para ele:
— O que, pelas garras vermelhas de Loth, você está fazendo? – Ela se livrou
dele e ele deu um passo atrás.
— Você não me respondeu. Eu pensei que algo tinha possuído você.
Ela tentou se lembrar e encontrou a música ainda borbulhando em seu sangue.
Sua mão esquerda coçou, e ela teve que se forçar a não tocá-la ou esfregá-la contra si
mesma.
— O livro prometeu poder. E eu ouvi. – Ela olhou para ele, o medo apertando
seu peito. – Eu escutei.
— Não é sua culpa que isso te chame; você não escolheu o mal.
Ela assentiu, mas não ficou convencida. Ela pegou sua luva de couro e começou
a prendê-la no lugar. Ela havia perdido uma articulação do dedo na lua de couro ao
cortar o nó, mas serviria.
Quando estava presa com segurança, ela foi para a forma encolhida de Tobin.
Ela afastou o cabelo molhado de suor e disse:
— Tobin, você pode falar?
Sua voz estava rouca de emoção:
— Eu nunca tive tanto medo. Eu não conseguia pensar ou me mover. O Lothor
teve que me arrastar para me cobrir.
— O demônio exala uma aura muito poderosa de medo. É uma das armas dele.
Você ficou ao meu lado quando todos os outros correram. Tenha orgulho disso.
Ele assentiu.
Ela o ajudou a ficar de pé, depois liderou o caminho para dentro do prédio. Não
era muita proteção, mas era melhor do que estar ao ar livre. Espalhado no corredor
estava o corpo de um homem. Ele tinha sido arranhado e mastigado ficando quase
irreconhecível. Apenas seus cabelos loiros e seu corpo permaneciam.
Lothor falou em voz baixa.
— Os invasores? 145

Ajoelhou-se na serragem manchada de sangue.


— Não, ou pelo menos acho que não. Parece que algum tipo de animal fez isso.
– Ela olhou para Lothor. – Que tipo de animais de estimação os curandeiros das
trevas mantêm?
— Um pequeno demônio, talvez.
— Possivelmente.
Ela cobriu o corpo com um cobertor de sela. As grandes portas duplas do outro
lado estavam abertas. Através deles, o fogo do demônio ainda ardia no céu. Uma
pequena figura de preto, com um rosto pálido e barbeado, olhou para o demônio,
barganhando. Lothor olhou para o demônio e o homem.
— Se alguém pode comandar o Lorde do Fogo, será Velen.
Ele se virou para ela.
— Você deve usar o livro das trevas novamente, Keleios. Devemos conjurar um
demônio para combater este ou tudo está perdido.
— Então tudo está perdido. – Ela se sentou em um fardo de feno e olhou para a
mão presa em couro. Estou muito cansada e com muito medo do livro. Eu não
conseguiria controlar o que poderia chamar. A última coisa que precisamos é de dois
demônios atrás de nós.
— O demônio derrubará a fortaleza.
— Quando encontrar o segredo da magia da fortaleza. Temos um pouco de
tempo.
— Tempo do quê, Keleios? Seja mais forte que ele ou morra. Não existem
outras escolhas.
— Lothor, eu não posso. Fui curada duas vezes esta noite; tem o seu preço. Eu
usei encantamento instantâneo naquelas paredes; tem o seu preço. Minha feitiçaria
ainda é utilizável, mas contra isso não tenho nada. Apenas minha espada permanece e
essa maldita escuridão que escorre da minha mão. A primeira convocação de
demônios foi auxiliada por feitiçaria de ervas, e isso se foi agora.
— Você só precisa do livro e do poder em suas veias. Toque sua metade mais
escura, ou seremos destruídos.
— E se eu tentar e falhar, serei destruída. – Ela começou a rir. – Onde estaria
nossa barganha então, curandeiro das trevas? 146

— Deixe-a em paz –, disse Tobin.


— Você fica fora disso, principiante.
— Pelo meu bem, não lute. Precisamos de um plano, mas não farei o que você
sugere, curandeiro das trevas.
— Não há outra maneira de combater a coisa. – Ele fez uma pausa, – A menos
que...
— A menos que o quê?
— A menos que possamos matar Velen. – Ele deu uma risada abrupta e amarga.
– Se fosse assim tão fácil.
Velen estava caminhando na direção deles, um grupo de guerreiros e clérigos
trevas das nas suas costas.
— Ele sabe que eu estou aqui. Ele sentiu sua magia; ele é sacerdote, feiticeiro e
muito perigoso.
— Quem é ele para você?
— Meu irmão.
O homem era jovem, não tinha mais de dezoito anos, pele macia e pálida, mas
não pálido como gelo. Seu cabelo era como uma asa de corvo, seus olhos de alguma
cor escura, baixos, um homem de todas as formas.
— Seu meio-irmão, eu aceito isso.
— A mãe dele era escrava Zairdiana.
Lothor pegou o lado esquerdo da porta; Keleios, à direita, e Tobin foi pelas
portas traseiras.
Keleios sussurrou:
— Você é próximo do seu irmão?
— Você quer dizer se eu vou ficar com raiva se você matá-lo?
Ela não respondeu.
— Mate-o se puder, Keleios, mas duvido que possa. Ele tem a própria sorte de
Verm em escapar das coisas.
Velen parou apenas fora do alcance das armas de mísseis.
— Irmão, eu gostaria de falar com você.
— Você pode falar daí, Velen.
— Prefiro não divulgar assuntos particulares na frente dos plebeus. 147

Lothor riu.
— Eu não tenho pessoas comuns comigo, Velen.
O rosto do garoto ganhou cor.
— Muito bem. Pai me nomeou herdeiro. Você não teve sucesso em seu plano,
mas não vou falhar. Meu plano é melhor.
— Ainda não falhei. Ela deve ser minha parceira, Velen.
Keleios sibilou:
— Você...
Ele sussurrou:
— Não me faça perder a cabeça, agora não.
Ela se encolheu em seu canto, insatisfeita, mas silenciosa.
Ele falou com Velen mais uma vez.
— Ela é minha; eu consegui.
Velen sorriu, um sorriso lindo.
— Muitas felicidades para você, irmão, mas agora você sabe o que devo fazer?
— Sim, irmão, você deve me matar.
Ele assentiu.
— Estou cansado da indecisão do pai: primeiro você, depois eu e depois de volta.
Seu sucesso pode inclinar as mãos a seu favor, e eu não terei isso.
— Eu não pensei que você faria, irmão querido.
Tobin sibilou:
— Homens se mexendo do outro lado.
Keleios se afastou da frente e se moveu para ficar com Tobin na parte de trás.
Lothor manteve Velen falando para que eles pudessem montar sua própria
emboscada.
Keleios puxou Luckweaver silenciosamente, e Tobin desembainhou sua própria
espada. Ela esboçou um plano breve e esperançosamente silencioso, e ele se agachou
para ficar fora de vista até a hora. Ela murmurou as palavras:
— Não há mágica.
Ele assentiu.
Quatro lutadores rastejaram ao longo da parede, dois de cada lado. Eles
pareciam ridiculamente altos para Keleios. Até Tobin estremeceu quando uma lâmina 148

perdida raspou contra a parede externa. As respirações dos homens eram duras e altas.
Eles murmuraram um para o outro; um do lado de Keleios tropeçou e xingou. Keleios
puxou uma adaga para a mão esquerda e esperou.
Keleios podia sentir o homem do outro lado do muro. Seu corpo estava
pressionado contra as pedras, e inconscientemente ela o espelhou. Ele olhou ao redor
da borda, e ela avançou, adaga mergulhando em seu pescoço. Ela o libertou com um
esguicho de sangue e levou o segundo homem pela barriga e no peito com a espada.
Ele pareceu surpreso.
Ela rolou e deixou a espada em vez de lutar para libertá-la. Tobin levou o
homem da frente com uma barra, abrindo a barriga do homem, mas trocou golpes de
espada com o segundo homem. Keleios mudou o punho da adaga e a jogou. Bateu
com um baque de carne. Tobin terminou o homem tropeçando com um impulso no
pescoço.
Ele se virou para sorrir para ela e seu rosto mudou.
Ela rolou sem esperar pelo aviso. Algo caiu no seu lado esquerdo, parando o
lançamento antes de começar. Uma dor entorpecente tomou seu braço esquerdo.
Keleios jogou um cotovelo para trás e jogou com o corpo e o ombro. O atacante rolou
para frente e ficou de pé.
Ela o encarou de pé, mas seu braço esquerdo estava inútil. A mão direita
segurava a última faca.
O homem era esbelto e parecia rápido. Sua única arma era uma adaga de lâmina
branca que emitia uma aura mágica. Seu cabelo era longo e castanho avermelhado,
preso por uma tira de couro preto. Orelhas com pontas de elfo espiavam pelos cabelos.
Ele sorriu para ela e começou a circular. Em uma batalha normal com um homem
desarmado, ela poderia ter jogado a lâmina, mas ele parecia rápido demais. Ela o
imaginou um assassino e não imaginava desistir de sua única arma sem um plano.
Tobin se aproximou dele.
Keleios disse:
— Não, fique fora do alcance dele. 149

Tobin recuou e embainhou a espada, mas estava claramente infeliz com isso.
Qualquer que fosse a adaga, ela a havia machucado. A ferida era profunda e
limpa de um lado do braço para o outro. Havia perdido o osso e por isso ela estava
agradecida. Ele sangrou muito no começo, mas agora o sangue quase parou, exceto
por uma gota.
Não deveria ter parado. Um frio profundo e entorpecente escorria da ferida pelo
braço e espalhava-se pelo ombro.
Ela fingiu, tentando atraí-lo e testar seu estilo de luta, mas ele ficou fora de
alcance e sorriu. Ele sabia o que a adaga estava fazendo com ela. O frio era uma dor,
não a dor saudável de uma ferida de faca, mas congelando como um toque de gelo.
Tudo o que ele tinha que fazer era ficar fora de alcance e o frio a dominaria, ela podia
sentir. Tobin não era rápido o suficiente, mesmo armado com escudo e espada, contra
o punhal.
Enquanto eles circulavam e colocavam o assassino atrás de Tobin, o garoto
estendeu a mão e disse uma palavra. Uma explosão de luz branca amarelada pegou o
assassino pelas costas. Ele tropeçou para frente e Keleios se lançou. Ele se virou no
último momento, estragando o coração dela. A adaga o alcançou na parte superior do
peito e no ombro. Oscilaram, pressionados juntos.
Keleios lutou por seu coração e forçou a mão esquerda a agarrar sua adaga.
Cortou uma ferida superficial no comprimento de sua mão, do dedo mínimo ao
pulso, e cortou as amarras do couro cru. A luva deslizou para o chão e sua mão
agarrou a mão do homem desesperadamente. Ela enfiou os dedos meio congelados
em sua carne, lutando para manter a lâmina fora dela. A adaga dela se soltou e a mão
dele manteve o ponto longe da garganta.
Um calor começou na palma da mão dela, perseguindo o frio. Como uma brisa
quente de verão em uma tempestade de neve, perseguia o frio, derretendo, dando
esperança.
Seu aperto se fortaleceu, e ela dobrou toda sua força encantada para mergulhar a 150

adaga na garganta dele enquanto o calor se espalhava. Os olhos dele se arregalaram,


surpresos. A ponta do punhal estava quase lá.
O calor atingiu a ferida, o sangue fluiu livremente e doeu como deveria.
A mão esquerda esmagou-se e a adaga branca caiu no chão. Ele começou a
gritar, os olhos olhando para baixo.
Um molde verde cobria a mão dele, abrindo sua manga. Keleios observou-o
subir do colarinho da túnica até o pescoço. Ele entrou em pânico, e ela mergulhou a
adaga. Seus gritos foram cortados em um gorgolejo de sangue.
A doença verde continuou se espalhando quando ele se contorceu e morreu. Ele
comeu a carne enquanto a cobria, ossos brancos nus aparecendo em sua mão onde
havia começado.
Então era assim que se sentia ao usar a marca demoníaca. Era bom, quente,
seguro e poderoso. A maioria dos que passaram pela quinta escuridão tinha apenas
uma cicatriz redonda como prova.
Muito poucos, como sinal de grande favor, receberam o presente. A ferida nunca
seria curada, mas permaneceria crua, cheia de pus, sangue e morte.
O lodo verde quase cobria o corpo. Tobin ficou em frente a ela, olhos incrédulos,
e ele sussurrou:
— Como você fez isso?
Ela levantou a mão esquerda e mostrou a ele a marca do demônio:
— Eu não fiz por vontade própria –, ajoelhou-se na poeira e pegou sua luva de
couro, mas estava arruinada.
Uma substituta teria que ser encontrada, Keleios se perguntou o que aconteceria
se ela tocasse sua própria carne acidentalmente. Uma risada pegou no fundo de sua
garganta e não saiu muito. Ela puxou Luckweaver do corpo morto, limpou e
embainhou-a. Eles voltaram ao prédio devagar. Keleios encontrou um par de luvas de
couro, com os dedos livres para trabalhar. Ela colocou uma cuidadosamente, depois
pensou na adaga. Eles não podiam simplesmente deixar algo assim por aí. Ela foi
cautelosamente, olhando para cima desta vez e também para fora. Ela estava
brilhando na poeira ao lado dos restos de seu manejador.
Houve um grande som de rugido; o demônio havia retornado. Keleios podia ver 151

as chamas alaranjadas se espalhando ao longo da fortaleza, mas um brilho maior


estava do outro lado dos portões do dragão. Ela tocou a lâmina da adaga timidamente
com a mão esquerda. Sua lâmina era a frieza do início do inverno antes que a terra
desistisse da vida. Era suportável, e ela a pegou livremente, carregando-a com a
lâmina para dentro do prédio.
Lothor e Tobin estavam agachados ao lado das portas abertas. Ela ficou atrás
deles, sem tentar se esconder.
O demônio havia se formado da cintura para baixo agora, e seus grandes cascos
fendidos andavam em uma chuva de fogo. Sendo seguradas em suas mãos estavam
Bella e uma criada loira. Bella havia desmaiado, e ele a largou como se não estivesse
interessado em presas que eram imunes ao medo. Ela caiu e rolou como se estivesse
morta, uma corrente de sangue se espalhando por baixo dela. A outra garota lutou,
gritando, tão perdida de terror que rasgou arranhões sangrentos em seu próprio rosto.
O demônio segurou a garota longe de seu corpo e segurou um braço lutando
com seus dedos gigantes e puxou. O braço cedeu no ombro, uma explosão de
vermelho. Como uma criança cruel com uma borboleta, primeiro uma asa, depois
uma perna. Mas as borboletas não gritam.
Keleios avançou, gritando sua frustração, adaga branca mergulhando em direção
ao céu, uma tocha branca de desafio que o demônio achou mais divertido.
Tobin e Lothor se amontoaram em volta dela, tentando arrastá-la de volta.
Lothor olhou para o sangue em sua mão do ferimento dela.
O demônio se virou, sorriu e jogou os restos sangrentos na direção deles. O
corpo voou de ponta a ponta, pulverizando sangue em arcos. Eles se espalharam e ele
caiu no chão com um baque pesado e molhado. Keleios se ajoelhou e atingiu a adaga
contra as pedras. Faíscas como pedaços de neve caíam para cima.
O demônio começou a andar na direção deles. Eles se reagruparam e sacaram
armas; não havia mais lugar para correr.
Enquanto o chão tremia a cada passo, Lothor perguntou:
— Para que eu morra feliz, como você se machucou e como conseguiu essa
adaga? 152

Keleios olhou para a adaga na mão esquerda e Luckweaver à direita.


— Um assassino, ele era bom, mas não o bastante. Essa era a lâmina dele. Não
gosto de deixar relíquias por aí, então peguei.
A primeira onda de medo os atingiu, e o demônio riu.
— Corram e se escondam, mortais. Vocês não podem me escapar. Vejam. – Ele
estendeu seus grandes braços vermelhos para o céu. Um flash de feitiçaria trovejou
sobre eles como uma tempestade, e se foi.
Por toda a fortaleza, sobre as paredes arruinadas, um brilho laranja se espalhava;
a proteção de um demônio.
— Uma barreira –, disse Lothor.
O demônio rugiu:
— Corram, corram de mim! – Ele deu dois passos gigantes na direção deles,
batendo na pedra. Ela se dividiu em uma fenda que se alargou e se espalhou na
direção deles.
— Corram! – O demônio gritou.
Eles embainharam suas armas e correram. Keleios correu com cuidado, a adaga
nua na mão. Eles escalaram as sebes esmagadas e o dragão morto. Eles correram para
os jardins com sua morte sussurrante, e Keleios os conduziu pelo labirinto vivo de
vegetação. Ela os levara de volta à fortaleza sem pensar nisso. Quando chegaram ao
jardim de rosas, Keleios parou. Ela sentou na beira da fonte e olhou.
O fogo refletia de forma avermelhada na bacia da fonte, brilhando nas janelas e
no teto da fortaleza. O lado oeste da fortaleza estava quebrado, destruído, o fogo era
mais forte lá.
A fortaleza, principalmente de pedra, se mantinha contra o fogo.
Keleios lutou contra a vontade de gritar ou chorar. Não havia lugar seguro hoje
à noite.
Lothor examinou suas feridas.
Ela perguntou:
— Como matamos isso?
— O demônio?
Ela assentiu.
— Nós não matamos. 153

— Como lutamos então?


— Deixe-me ver a adaga. – Ele tocou suavemente. Ela deixou cair dos dedos
para a mão dele.
Ele sorriu e agarrou a coisa.
— Você sabe o que é isso?
Ela balançou a cabeça.
— Não.
— É 'Ice', um dos sete.
— Então é uma relíquia.
Lothor entregou a adaga à mão boa dela e continuou a sondar a ferida.
— Não tenho mais cura, mas posso amarrá-la. O que fez essa ferida?
— A adaga branca.
Ele parou e olhou para ela.
— Ela não poderia ter feito isso.
— Lothor, acredite. A ferida parecia tão fria quanto uma tempestade de gelo no
inverno.
— Então, como está saudável agora?
Keleios hesitou, não querendo compartilhar.
— Isso não é da sua conta.
Ele apertou as ataduras e ela ofegou.
— Keleios, preciso saber se você tem algum poder especial sobre a adaga,
porque isso pode afetar a maneira como a usamos.
A voz de Tobin ficou baixa, mas clara.
— Para aqueles de nós que não são encantadores, o que são os sete e o que é
essa adaga?
Keleios falou enquanto Lothor limpava e enfaixa seu ferimento.
— Há muito tempo, quando Pelrith era apenas um homem e não um semideus,
ele fez sete punhais com a ajuda da magia demoníaca. Cada lâmina foi resfriada em
sangue e carne, e um demônio foi preso em cada uma.
Keleios olhou para a lâmina em sua mão.
— Você diz que isso é 'gelo' dos infernos congelados.
— Sim. – Ele terminou de curar a ferida e pegou a adaga dela. – Com esta adaga, 154

podemos construir um círculo protetor. – Ele franziu a testa. – Mas precisaríamos de


uma terceira pessoa que tivesse sido iniciada pelo menos na segunda escuridão.
— Se tivéssemos uma pessoa assim –, perguntou Keleios, – poderia funcionar?
Podemos controlar isso?
— Eu já vi isso antes com outro desses.
Ela hesitou, mas a imagem da garota passou por sua mente.
— Belor é uma pessoa assim.
— Então devemos encontrá-lo. E você deve me dizer como se limpou.
— Você precisa saber?
— Isso pode fazer a diferença entre sucesso e fracasso.
— Muito bem. – Ela arrastou a luva de equitação, estremecendo quando o couro
pegou no sangue seco.
Lothor sibilou entre os dentes quando viu a palma da mão.
— Nem Velen não tem isso.
— A adaga cortou minha luva, e a marca demoníaca tocou sua carne. Enquanto
eu o destruí com isso, o calor subiu pelo meu braço e me limpou.
Ele falou em voz baixa.
— Magia demoníaca contra magia demoníaca.
Um poder da mente esmagou seus escudos, e Keleios balançou. Mestre Eroar.
Ele está com Belor. Grande perigo, fogo, preso, feitiçaria quase desaparecida, não
aguenta. O diabo quebrou seu domínio no lado oeste. Belor está gravemente ferido.
Keleios abriu os olhos e disse:
— Temos que nos apressar.
Keleios ficou surpresa que os assassinos sentissem falta de Eroar. De todos os
mestres restantes, ele era o mais perigoso. Sua verdadeira forma era um dragão,
Keleios sorriu sombriamente. Talvez os dragões não fossem tão fáceis de matar como
uma bruxa cega.
Keleios olhou para a fortaleza em chamas. Não havia fogo diretamente na frente
deles, mas era apenas uma questão de tempo antes que se espalhasse:
— Podemos querer ter proteção contra feitiços de fogo em mente.
Tobin assentiu, olhos arregalados.
— Vamos –, disse Lothor. 155

Eles subiram os degraus que levavam ao castelo. Lothor hesitou diante das
portas abertas, testando a escuridão. Keleios apareceu um pouco atrás dele. Havia
uma pitada de fumaça sobre tudo, mais forte por dentro do que por fora. Dois guardas
mantinham os mortos perto de um terceiro corpo. Nenhuma coisa viva se movia.
Keleios sussurrou de volta para Tobin:
— Você tem o feitiço de proteção contra fogo pronto?
O garoto fechou os olhos e respirou fundo.
— Sim.
Eles entraram, Keleios assumindo a liderança, seguido por Tobin e Lothor
vigiando a retaguarda. Levou alguma energia para seguir em direção a Eroar, mas
felizmente não muita. Keleios os levou para o oeste e para o cheiro de fumaça. O
duro choque de batalha se aproximou quando eles se aproximaram da biblioteca
central. Keleios parou no corredor antes de chegarem à biblioteca. Algo estava se
movendo pelo corredor principal em direção a eles. Eles se espremeram contra a
parede e esperaram, presos entre os combates nas bibliotecas e quem estava vindo em
sua direção.
A figura apareceu na esquina e encontrou a espada de Keleios no estômago. A
mulher ofegou.
— Jodda! – Keleios assobiou. Ela agarrou o braço da curandeira e a puxou para
o corredor menor.
As vestes brancas de Jodda estavam manchadas de sangue seco e fuligem. Sua
calma curativa estava esticada e quase desaparecida. Os olhos dela pareciam grandes
demais para o rosto e a pele era quase da cor do vestido. Ela se inclinou contra
Keleios com um longo suspiro.
— Jodda? – Disse Keleios.
A curandeira se afastou dela, reta e orgulhosa, mas desgastada nas bordas.
— Estou muito feliz em ver alguém vivo.
— Belor ainda está vivo e Mestre Eroar; estamos a caminho de resgatá-los.
Você ainda tem uma grande cura? 156

Ela assentiu. Uma lágrima deslizou pela terra no rosto de Jodda.


— Porque é que eles estão fazendo isso?
— Jodda, temos uma maneira de parar o demônio, mas precisamos de Belor
inteiro para isso e ele precisa de cura.
Ela assentiu.
— Você quer que eu vá; não posso recusar. É o código.
Eroar, o mago do dragão chamou:
* Keleios, estamos presos entre o fogo e a batalha. Belor está fraco. Não posso
lutar e carregá-lo. *
* Estamos chegando, Eroar. *
* Nós fomos descobertos. *
O contato foi interrompido. Keleios se forçou a não restabelecê-lo por medo de
interromper sua concentração. Ela podia sentir os fragmentos de seu poder se
reunindo.
— Tobin, você pode lançar um feitiço de invisibilidade itinerante?
Tobin sorriu.
— Eu faço esse feitiço muito melhor que você.
Keleios sorriu e quase poderia tê-lo abraçado por ser ele mesmo no meio de
todos esse... caos.
Ele fechou os olhos e nada aconteceu. A coisa mais irritante sobre a
invisibilidade do grupo era que seu grupo não sabia diferenciar. Você só precisava
confiar que estava funcionando. Essa era uma das razões pelas quais Keleios odiava o
feitiço. Ela gostava de ver seus resultados.
Keleios liderou o caminho, com Tobin atrás dela, Jodda no meio e Lothor
protegendo as costas. Enquanto eles não atacassem ninguém, a invisibilidade se
manteria, se é que funcionava. Keleios forçou esse pensamento a se afastar. Ela tinha
que confiar na magia de Tobin.
A grande biblioteca central estava morrendo, prateleiras caídas e jogadas como
brinquedos de criança, livros insubstituíveis espalhados pelo chão. Guardas e
invasores lutavam de arma em arma, encontrando pés traiçoeiros no chão manchado
de sangue e coberto de livros. Era tudo o que Keleios podia fazer para não dar uma
mão, mas se o demônio ficasse sem controle, todos eles morreriam. Como Carrick 157

havia dito várias vezes: "Fique de olho no seu objetivo". Ela rangeu os dentes e os
levou o mais longe possível da luta.
Um par de luta caiu entre Tobin e Jodda. Todos congelaram, vendo os punhais
se aproximarem das duas gargantas. O guarda deu um grito poderoso e mergulhou a
adaga no interior.
Quando se levantou, ele deixou o corpo. Jodda levantou delicadamente as saias
brancas para passar por cima.
Eles entraram no corredor distante, sem contestação. Os sons da batalha os
atraíram mais rapidamente. O muro oeste não existia mais. Um vazio cheio de pedras
rasgadas e vigas de apoio nuas era tudo o que restava. Belor jazia amontoado contra
aquele vazio. Poth estava deitado ao seu lado, ofegante. Ela não estava ferida, mas
Keleios não podia sentir o vazio de nenhuma feitiçaria. Eroar se ajoelhou na frente
dele, o fogo azul derramando de suas mãos para cercar uma figura vestida de preto.
Um homem de malha de ébano se aproximou das costas de Eroar, com uma espada
nua nas mãos. A espada era tão negra quanto a armadura.
Lothor fez um sinal para Keleios que ele pegaria o homem de armadura. Ela
assentiu. Isso deixou para ela o mago. Eles começaram a se mover em direção aos
homens. Tobin ficou para trás para proteger a entrada da biblioteca e se concentrar
em seu feitiço de invisibilidade.
Eroar caiu meio que no chão rachado. Seus braços tremiam quando empurraram
seu corpo para longe do chão. Poth sibilou para o homem de armadura preta. Eroar
deu meia-volta, mas antes que ele pudesse lançar um feitiço, o mago atacou. O
Dragonmage estava envolto em um brilho vermelho.
Eroar gritou.
Keleios hesitou, perto o suficiente para tocar o mago. Lothor puxou Gore da
bainha e assentiu. Eles tiveram que atacar juntos, pois se um deles traísse o feitiço,
todos estariam visíveis. Keleios tirou Ice do cinto e fez duas coisas ao mesmo tempo:
ela agarrou o ombro do homem e enfiou a adaga entre as costelas. A adaga afundou
na carne como se fosse seda.
Lothor balançou Gore em uma grande curva. A lâmina afundou no capacete
preto do outro como se estivesse quebrando um ovo. O machado se enterrou no osso
do ombro do homem, a cabeça dividida em duas. 158

Keleios ficou olhando enquanto o cadáver de armadura preta caía no chão com
um esguicho de sangue, ossos e cérebros. O machado cortara a cota de malha mágica
como manteiga quente.
Lothor olhou para ela por cima do corpo, como se pudesse ler seu desconforto.
Ajoelhou-se e limpou a adaga nas vestes do mago morto. Lothor se aproximou e se
ajoelhou ao lado dela para limpar o machado. Ela olhou para cima e encontrou os
olhos prateados dele. Por alguma razão, Keleios não queria estar tão perto dele. Ela se
levantou e foi ao mestre Eroar.
Eroar, o Mago do Dragão, estava coberto de cinzas, seus cabelos lisos e negros,
a túnica azul royal, a pele escura do rosto toda cinza-branca com a morte da madeira.
Era tudo o que ele podia fazer para manter sua forma humana. A sombra de seu
verdadeiro eu espreitava em seus olhos, asas de couro se estendendo para o céu. Ele
sorriu para ela quando ela se inclinou e pegou Poth. O gato deu um miado fraco.
Ela acariciou o pêlo grosso e perguntou:
— Mestre, como os assassinos sentiram sua falta?
— Eles não fizeram, completamente. – O sorriso dele aumentou. – Mas Eduard
não era o assassino especialista que era necessário.
— Eduard era o viajante de Fidelis.
Ele assentiu e disse:
— Parece que ela ensinou mais do que simples bruxaria com ervas.
Jodda se ajoelhou diante do vazio do muro arruinado; o céu noturno emoldurava
seu vestido branco.
As mãos dela estavam em Belor; ele não se mexeu. Ela recostou-se em profunda
meditação, o sangue escorrendo de seu ombro. Um rastro de sangue estava secando
em sua testa.
— Devemos sair daqui em breve; o fogo está próximo – disse Keleios.
Eroar assentiu.
— Lutei muito e duro para encontrar um lugar sem chamas para me defender.
Quando o demônio apareceu, destruiu as ilusões de Belor, explodiu e disparou a
fortaleza. – Ele respirou fundo e depois tossiu: – Esses pulmões humanos não levam a
fumaça adequadamente. 159

Uma língua de chamas atravessou para a esquerda, um pequeno brilho laranja,


prometendo grandes coisas.
— Precisamos sair daqui. Você pode andar, mestre?
Eroar assentiu e ficou de pé, lento, um pouco instável, mas em movimento.
Jodda piscou para eles como se estivesse apenas acordando.
— Ele ainda não está bem o suficiente para ajudá-lo.
— Cure-o mais tarde; devemos nos manter à frente desse fogo. A fumaça
roubará nossas vidas tão seguramente quanto às chamas.
Jodda se permitiu ser ajudada; Lothor pegou o corpo ainda inconsciente de
Belor.
Um calafrio percorreu a área e Keleios gritou:
— Vá, agora!
Eles correram com ela na retaguarda, Poth agarrado ao peito. O fogo explodiu
para fora, pulverizando a sala com pedras e fogo. Keleios virou as costas contra a
explosão, protegendo o gato. O fogo estava livre e subiu faminto em sua direção.
Os outros ficaram incertos no meio dos destroços da biblioteca. Os guardas
foram derrotados e os invasores circularam em volta do grupo que apareceu de
repente. Lothor soltou Belor para desembainhar o machado. Os homens sorriram; dez
contra um eram o tipo de probabilidades deles.
Keleios apareceu e contatou Eroar.
* Você pode se teletransportar com todos nós para a área do dragão? *
Ele esticou os ombros.
* Não, estou muito cansado. Poderíamos terminar em um muro como nosso
destino. *
Keleios xingou, colocou Poth no chão e puxou Luckweaver. O teto deu um
longo gemido, e todos olharam apreensivos.
Os invasores se mexeram desconfortavelmente, mas um seguiu em frente,
dizendo:
— Quero o curandeiro branco. Eu nunca tive um curandeiro branco.
O telhado suspirou e um brilho laranja apareceu. A fumaça estava começando a
encher a sala como uma névoa cinza sufocante. Keleios entrou em contato com Tobin. 160

* Você pode fazer outro feitiço de invisibilidade em grupo? *


*Acho que sim.*
*Então faça.*
Lothor avançou em direção aos lutadores e Keleios pegou seu braço. Ele se
afastou e os homens disseram:
— Para onde eles foram? Eles simplesmente desapareceram!
Tobin falou.
* O feitiço está pronto. O que agora?*
Lothor virou-se para Keleios. Ela colocou os dedos na frente da boca; se um
deles falasse, os lutadores saberiam que não haviam apenas desaparecido. Eroar e
Jodda carregaram a forma inconsciente de Belor para fora da sala.
Dois lutadores avançaram, ao alcance de um golpe de espada de Lothor e
Keleios. Ela lutou contra um desejo quase esmagador de atacar, mas havia muitos
deles, e o fogo estava chegando. Não houve tempo. Tobin estava no corredor
tentando manter todos à vista. Ele tinha que se concentrar em todo o grupo ou o
feitiço falharia.
Keleios engoliu em seco com a fumaça e um desejo horrível de tossir. Foi
Lothor quem tossiu. Um som pequeno, mas quase na cara de um dos homens. A
espada do lutador bateu para fora e o reflexo assumiu. Lothor pegou a lâmina com o
machado e bateu com o punho no rosto do homem. O homem caiu no chão e não se
levantou.
Keleios cortou o homem mais próximo do outro lado do estômago e gritou:
— Vão para o corredor!
O corredor era estreito e Lothor encheu a porta, golpeando Gore. Keleios ficou
atrás dele fora da luta.
— Mantenha-os ocupados por apenas um minuto.
Ele falou com os dentes cerrados.
— Seja lá o que você vai fazer, faça rápido. – Gore cortou a garganta de um
homem e quase cortou o braço de um segundo. Os lutadores recuaram, cautelosos,
mas não durariam. Oito contra dois eram boas chances.
Tobin estava parado no outro extremo do corredor, com a espada em punho, de
frente para o corredor principal. Uma espada apareceu à vista; Tobin girou a lâmina, 161

cortou para baixo e recuou de volta para a porta. Havia mais de um.
Keleios chamou feitiçaria selvagem, sem concentração, sem modelar um feitiço,
apenas poder bruto e uma oração para que isso não a revelasse. Magia correu ao
longo de sua pele e levantou os cabelos em seus braços; seu estômago torceu com a
força dela. Ela gritou:
— Lothor, saia do caminho!
Ele não perguntou por que, mas caiu sobre um joelho, machado erguido para
desviar um golpe de espada.
O poder branco ofuscante derramou das mãos de Keleios e bateu no rosto do
homem com que Lothor estava lutando. O homem gritou e desapareceu. Keleios
derramou força bruta no teto tocado pelo fogo. Com um grito da madeira moribunda,
o teto desabou sobre os homens.
Fogo entrou na sala. Calor e fumaça levaram Keleios e Lothor de volta pelo
corredor.
Jodda gritou à frente e eles correram em direção ao som. Um homem estava
morto perto da porta. Tobin estava tentando desesperadamente manter a parede
oposta às suas costas enquanto três lutadores o circulavam. Ele bloqueou duas das
espadas, mas a terceira estava entrando em sua garganta e não havia nada que ele
pudesse fazer. Keleios correu em direção a eles e sabia que não chegaria a tempo. Um
grande cachorro branco pulou no braço da espada e o puxou com dentes e peso. O
homem tropeçou, xingando quando Piker cravou os dentes em seu braço. Feltan
correu para frente e enfiou uma adaga na perna do homem.
Tobin aproveitou a surpresa e enfiou a espada no peito de um homem. Sua
espada prendeu e não se libertou. Ele caiu de joelhos e uma espada golpeou o ar sobre
sua cabeça. Keleios estava lá cortando o homem, forçando-o a se virar de Tobin para
ela.
Ela o encarou com Ice na mão esquerda e Luckweaver na direita. O homem
agachou-se atrás de um pequeno escudo, com a espada pronta. Fumaça jorrou do
corredor estreito atrás deles como uma chaminé. Eles lutaram em uma névoa
sufocante. Alguém gritou:
— O fogo está se espalhando. 162

Keleios se inclinou tossindo, a espada do homem cortada em direção ao pescoço


curvado. Ela caiu de joelhos, Luckweaver subindo, dando o golpe. O gelo empurrou
sob a borda do escudo e afundou através da armadura de couro no coração. Quando
ela se levantou, Tobin estava de pé sobre o homem que Feltan e Piker haviam ferido.
A garganta do homem havia sido cortada.
Jodda chamou da entrada que dava para o jardim. Ela e Eroar mantinham Belor
entre eles.
— Apressem-se!
Keleios encontrou Piker correndo atrás dela. Feltan tropeçou e caiu. Keleios
enfiou Ice no cinto e pegou o garoto por um braço, e eles correram. Os outros tossiam
perto da fonte no jardim de rosas, esperando por eles. Piker deu um leve suspiro,
meio espirro, meio cumprimento e acariciou a perna de Keleios. Feltan, com o rosto
manchado de fuligem, atirou-se sobre ela, abraçando-se ferozmente.
— Eu pensei que você estava morta. Eu pensei que todos estavam mortos.
— Não todos. Você achou que eu deixaria você sozinho com esse vira-lata por
companhia?
Ele sorriu para ela, lágrimas brilhando em seus olhos azuis.
Ela acariciou o cachorro e encontrou Lothor olhando para ela.
— Obrigado por sua ajuda lá –, disse ela.
— Você não parecia precisar de ajuda.
Ela começou a discutir, depois parou. Era um elogio? Keleios não tinha certeza.
Eroar disse:
— Vamos para as ruínas de dragões, se for um lugar seguro.
Keleios assentiu.
— O mais seguro que vamos conseguir ficar hoje à noite.
Ela liderou o caminho mais fundo nos jardins, em direção à segurança duvidosa
das ruínas de dragão.

163
CAPÍTULO 09: FOGO E GELO

NÃO HAVIA NADA VIVO entre os jardins e os estábulos dos dragões, nem
inimigo nem amigo. Keleios olhou de volta para a fortaleza, pois as chamas a haviam
reivindicado. Grandes folhas de fogo rugiam do telhado desabado. A biblioteca
estava sendo consumida. Jodda se ajoelhou junto a Belor, colocando as mãos nele
mais uma vez.
Ele se mexeu e gemeu sob o toque dela.
Tobin disse: 164

— Keleios, um dos curandeiros das trevas chamado Velen, está negociando com
o demônio. O demônio está ouvindo.
Ela se virou para Lothor.
— O que seu irmão poderia oferecer a um demônio livre?
— Ele é íntimo de Verm. Até os demônios gostam de ficar do lado bom de um
deus.
— Uma aproximação, seja lá o que isso significa.
Lothor olhou para os gêmeos brilhando no céu noturno. A torre brilhava mais
forte, mas o brilho do demônio rivalizava com isso.
— Alguns dizem que seu pai era Verm.
— Então você e Velen não compartilham mãe ou pai?
— Se Verm é realmente seu pai, não.
— Você realmente não acredita que um deus tenha sido o pai de Velen, não é?
Lothar encolheu os ombros.
— Eu não sei.
Keleios balançou a cabeça, sentindo uma discussão se aproximando.
— Temos pouco tempo. Você pode fazer um círculo protetor com a adaga?
— Eu disse que podia.
— Será muito perigoso incluir todos nós no círculo do poder?
— Pode ser muito perigoso não fazer isso.
Jodda disse:
— Não participarei de criar um demônio por qualquer motivo.
Lothor curvou-se para ela.
— Curandeira branca, você e os jovens estarão dentro do círculo de poder,
protegidos, mas não atraídos. Toda a energia necessária ou usada estará dentro de
uma estrela.
Ele estendeu a mão, agora vazia, e Keleios deu-lhe primeiro o cabo da adaga
branca. Parecia misturar-se com a pele dele, pertencer ao seu alcance. Seu capacete
estava colocado no chão, deixando os cabelos brancos e o rosto livres. Seu cabelo
estava preso em um longo nó, deixando nuas as orelhas pontudas de elfo. Ele
começou a andar em círculos, a adaga branca diante dele equilibrada nas palmas das
mãos estendidas. 165

Belor sentou-se devagar e Tobin se moveu para ajudá-lo. Ele acenou de volta
para o garoto.
— Como chegamos aqui?
Keleios foi até ele.
— Nós carregamos você.
Ele massageou a parte de trás da cabeça.
— Lembro-me de cair das pedras. Algo explodiu minhas ilusões.
— Era um demônio.
— O que…
— Belor, precisamos da sua ajuda para invocar outro demônio para virar ou
lutar contra este, ou todos morreremos.
Ele olhou para ela, a boca levemente aberta.
— Você perdeu os sentidos? Você não conjura demônios sem preparação e
sacrifício, e ainda assim não o faz.
Lothor iniciou seu terceiro circuito, a lâmina apontada para baixo. Quando
Keleios se concentrou, ela pôde ver uma linha de poder fluindo para baixo da lâmina.
— Belor, eu me senti da mesma maneira, mas essa coisa deve ser destruída, ou
vamos morrer; todo mundo vai morrer.
Seus olhos refletiam as chamas.
— Keleios, todo mundo está morto. Eles não conseguiram sobreviver ao fogo, à
explosão.
— Muito poucos estão no castelo agora.
Eles se voltaram para Jodda.
— Os invasores chegaram ao local onde as crianças foram mantidas e as
levaram. Eles sabiam onde esconderíamos as crianças, eles sabiam.
Keleios perguntou calmamente:
— Alguém viu Fidelis desde que isso começou?
Feltan disse:
— Eu vi.
— Onde?
— Pelo portão principal. Ela abriu os portões para eles.
Keleios agarrou o braço dele com muita força. 166

— Você a viu fazer isso?


Ela o soltou, mas ele parecia inseguro diante da raiva dela. Era como se ele lesse
a morte de alguém nos olhos dela.
— Levei Piker para sua última corrida antes de dormir. Eu a vi de pé e os
deixando passar. Ela não tinha medo e eles não tentaram prejudicá-la.
— Onde estavam os guardas na parede externa?
— Eu não sei. Ninguém tentou detê-los. Corri o mais rápido que pude para
espalhar o aviso. – Seus olhos azuis de repente pareciam cansados além dos anos. –
Mas era tarde demais.
Keleios o abraçou.
— Não, Feltan, saiba que você salvou vidas pelo aviso prévio.
Ele olhou-a.
— Verdadeiramente?
— Verdadeiramente.
Lothor entrou no círculo, um brilho fraco em sua pele. O poder tomou conta dela
quando ele ficou perto.
Belor perguntou:
— Para onde eles levaram as crianças?
Jodda balançou a cabeça.
— Desconhecido, mas eles são escravos. Eles tentaram capturar ao invés de
prejudicar as crianças. Suponho que pensaram que o resto seria menos problema
quando mortos.
Eroar usou feitiçaria para traçar um caminho para fora. Deveria haver um rastro
de medo e dor, mas tudo o que ele conseguiu reunir foi um zumbido contínuo como o
crepitar de um grande incêndio.
— É o demônio. Seu poder nubla magia sutil.
Keleios virou-se para Belor.
— Eles estão vivos, seus aprendizes, estudantes, nossos amigos. Podemos ir
atrás deles, rastreá-los se a influência do demônio for purificada dessa área.
Belor disse:
— Podemos escapar e segui-los fisicamente. Certamente um grupo de crianças 167

sob guarda armada deixará um rastro suficientemente amplo.


— Olhe para as paredes, Belor.
O brilho laranja ainda era visível, pulsando contra a escuridão.
— Uma proteção de algum tipo –, disse ele.
— O demônio colocou lá. Nós o vimos fazer isso.
Foi Feltan quem apontou e disse:
— O que é isso?
Eles olharam para onde ele apontou e viram um lampejo de verde. Oscilava
como chamas ao vento, mas movia-se sobre as pedras do canto não queimado. Para
onde se movia, as pedras desmoronavam.
Lothor sussurrou:
— É um lacaio de Verm. Um minion de Velen. Ele trouxe para impressionar o
demônio, e isso irá impressioná-lo. – Ele olhou para Belor. – Estamos correndo
contra o tempo.
O rosto de Belor ficou nublado, lutando dentro de si.
— Eu não quero fazer isso. Mas eu vou ajudar, se precisar. Como fazemos isso?
Keleios explicou brevemente sobre Ice e o livro. Belor se recusou a tocar, a
menos que fosse absolutamente necessário.
Lothor disse:
— Todos nós precisamos ler o livro, tocá-lo, e a adaga precisará provar nosso
sangue.
— Quanto sangue?
— O suficiente para selar um juramento de sangue.
Eroar estava perto da borda do círculo. Jodda, Tobin, Feltan, com os braços em
volta do pescoço de Piker, todos ajoelhados ou sentados ao lado de Eroar. Poth
começou a se juntar aos três que conjurariam, mas Lothor disse que não. Ele retrucou
Keleios:
— Tire esse animal daqui.
Keleios conteve a raiva e disse a Poth para deixar a estrela. O gato teve que ser
levado à força.
Jodda teve que segurar o gato Poth, pois estava decidida a se juntar a sua mestre.
Depois de um tempo, ela resolveu ficar de mau humor nos braços da curandeira. 168

Lothor traçou o pentagrama com o metal branco, o livro preto agarrado na outra
mão. Belor e Keleios ficaram esperando, assistindo. A chama verde deixara um traço
de entulho em seu caminho e agora entrava ilesa nas chamas, devorando-as como
todo o resto.
O pentagrama se fechou com uma faísca, e a magia tocou sua pele. Parecia
arrancar os cabelos do couro cabeludo e sentir arrepios na espinha. Lothor abriu o
livro e colocou a adaga sobre ele usando sua lâmina como uma linha de leitura. Ele
começou o ritual e passou livro e punhal para Belor. O ilusionista leu em sua voz
clara que o servia tão bem nos dias santos, fazendo brindes. Keleios segurava as
relíquias escuras. O canto escuro começou de novo, e um calafrio invadiu sua alma.
A música poderosa do livro cresceu a cada palavra. O frio se tornou um frio profundo
quando eles passaram por eles. O poder ameaçava como uma tempestade que se
aproximava, pesada, próxima e sufocante.
Cada palavra foi forçada a sair pelos lábios meio congelados. As palavras que
eles falavam estavam distantes do canto sombrio do livro. A música alcançou um
crescendo de promessas sombrias. O ar estava tão frio que doía respirar, cada entrada
como agulhas na garganta e nos pulmões. Os movimentos pareciam mais lentos como
se estivessem congelando no lugar. O livro parecia pesado em suas mãos, seus dedos
congelando na lâmina da faca. Ela falou a última palavra, e o frio estalou em seus
ouvidos, silêncio.
Nesse doloroso silêncio, uma voz veio. Ele sussurrou e assobiou como um vento
de inverno.
— Quem ousa me chamar?
Ela não conseguia se mexer ou falar.
Lothor respondeu:
— Convocamos você.
A visão deles era uma parede de neve leve como névoa; uma mecha de vapor,
como se um gigante tivesse respirado, veio do centro.
— Quem são “nós”?
— Príncipe Lothor Gorewielder de Lolth.
— Belor, o criador de sonhos.
Keleios finalmente encontrou sua voz. 169

— Princesa Keleios Incantare de Calthu e Wyrthe.


— Então, dois membros da realeza, o que vocês querem?
Lothor disse:
— Que você lute contra outro demônio.
— E que sacrifício vocês oferecem por esse serviço?
— Oferecemos sangue simbólico e comando por livro, aço e nome, Fraizur.
O vento agitou seus cabelos e os puxou.
— Senti a atração de Ice e do livro. E você me nomeia corretamente. Deixe-me
ver a cor do seu sangue e, se a lâmina não te matar, sou seu para comandar… uma
vez.
Keleios passou o livro, ainda aberto, para Belor. Ela cortou a palma da mão
direita, formando um X com o juramento de sangue anterior. Lothor segurou o livro e
Belor usou a lâmina. Ele ofegou, batendo os dentes e balançando. Keleios o tocou,
mantendo-o de pé quando Lothor pegou a faca. O sangue de Lothor era uma lavagem
vermelha brilhante contra sua mão. Ele colocou o livro cuidadosamente na frente
deles e apertou a mão ensanguentada com Belor. Eles formaram uma corrente ligada,
uma corrente de carne, sangue, frio. Lentamente, um leve calor se espalhou através
deles. Começou nas marcas demoníacas e fluiu para cima, saindo das velhas feridas
até perseguir as costas frias. Eles ficaram ligados no calor. O vento gelado sibilava e
batia em torno deles, crescendo em força. A neve voou para eles em lençóis gelados,
tentando roubar fôlego, calor e esperança, mas eles se mantiveram firmes. No auge da
nevasca, o demônio saiu dela, materializando-se diante deles.
Totalmente formado, ele estava a seis metros, cascos de marfim, olhos branco e
sem pupila, pele como neve recém-caída e um sorriso maligno retorcendo seu rosto.
Suas quatro mãos com garras brilhavam ao luar quando a nevasca desapareceu.
Com a música sombria ainda tocando em sua cabeça, Keleios achou bonito todo
aquele poder branco brilhante.
O demônio do fogo ficou como uma imagem no espelho, toda vermelha e
laranja, com olhos de chamas ardentes.
Os dois demônios se encararam, ambos mantidos fora do círculo protetor.
O demônio do gelo sibilou: 170

— Me comande.
— Matar ou banir este demônio do fogo.
Ele sorriu:
— Com prazer.
Eles caminharam um em direção ao outro, o chão tremendo sob seus degraus.
O demônio do fogo rosnou:
— Não precisamos lutar por esses humanos. Vamos virar e devastá-los.
— Eu sou comandado, coisa de fogo, e eu vou gostar de bater em você.
— Venha e experimente, bola de lama. Vamos ver quem é espancado.
Os gigantes circulavam um ao outro, provocando. O demônio do gelo jogou
primeiro uma nuvem de gelo. O fogo o encontrou, transformando-o em água. A água
encharcou o demônio do fogo e foi congelada nele por uma rajada de ar gelado. A
água escorria por sua pele vermelha, o demônio do fogo explodiu fogo e pegou o
gigante branco. Ele gritou, e o grito reverberou pelos três ainda bloqueados.
O vapor sibilou e o demônio saltou para a frente. O combate foi acompanhado
com seriedade. As garras do demônio vermelho destruíram o fogo do outro, e a carne
vermelha congelou ao toque do demônio branco. Eles rolaram pelo pátio, achatando o
edifício do dragão. Uma nevasca começou a se enfurecer; um incêndio, para
consumir o edifício. As duas forças brilhavam intensamente, até que, através da
névoa do gelo derretido e do brilho do fogo, os demônios desapareceram de vista.
A nuvem branca levantou o vermelho do chão e jogou-o nas pedras. O pátio
esfarrapado gemeu e começou a rachar. O branco saltou sobre o vermelho e uma
grande fenda começou a se abrir, enviando rachaduras menores ao longo da pedra.
Uma dessas rachaduras atravessou o círculo mágico e roubou as pedras sob seus
pés.
Keleios saltou para o lado, perdendo a mão de Belor. Ela rolou e sacou a espada,
para que bem podia fazer, mas os demônios estavam longe demais na batalha para
atender ao vínculo quebrado. Jodda e o resto estavam do lado dela da fissura; Belor e
Lothor, com livro e faca, presos longe deles. As rachaduras continuaram se
espalhando. Eroar foi isolado deles em uma ilha de pedra de balanço. O chão mudou
de posição até Keleios se agachar perto das pedras traidoras e esperar.
Um leque de rachaduras se abriu embaixo do grupo amontoado. Enquanto 171

Jodda tentava protegê-los e Keleios tentava alcançá-los, as rachaduras aumentaram.


Feltan oscilou na beira, depois caiu para trás. Piker saltou atrás de seu mestre. Jodda
hesitou; Keleios gritou para ela voltar.
Keleios embainhou a espada e começou a rastejar sobre o chão pesado. Rochas
forçadas para cima enquanto outras seções se curvavam sob o peso dos gigantes em
combate. Ela ficou pendurada, ajeitando o peso o mais uniformemente possível sobre
os joelhos e as mãos e espiou dentro do buraco.
Feltan estava tentando escalar as paredes escuras de barro; Piker choramingou,
acariciando sua perna. Um homem meio coberto de terra estava perto deles. Ele
parecia ser um escravo que havia sido deixado para trás de alguma forma. Ele se
moveu, e havia o brilho opaco do aço. Era um local muito próximo para uma espada.
Keleios tirou o garrote do bolso escondido e pulou. O homem estava muito perto. Sua
espada levou o cachorro entre as costelas. Ele resmungou com um olhar de satisfação
antes de Keleios pousar nele.
O comprimento do cordão trançado em aço passava pelo pescoço. Ela permitiu
que seu peso o curvasse para trás enquanto enfiava a corda em seu pescoço. O garrote
não tinha caído perfeitamente e ele estava meio virado para ela. Não havia espaço
para manobrar para uma melhor espera. Ele não perdeu tempo arranhando a corda,
mas soltou a espada e pegou uma faca. Se ela o deixasse ir, ela estava sem armas.
Luckweaver nunca seria desembainhada em um espaço tão pequeno. Qualquer
feitiçaria tão perto dos demônios teria que ser maior, e Feltan estava do outro lado do
homem. Ela puxou com mais força, esforçando-se; seu braço ferido protestou,
sangrando de novo.
Ela tentou se esconder atrás do próprio corpo, mas ele era um homem que
conhecia a morte e estava determinado a levar o assassino com ele. Mesmo quando
sua respiração sibilou e ele começou a morrer, a faca bateu para trás, cortando a
armadura de couro como se não estivesse lá.
— Uma faca encantada, muitos itens encantados esta noite –, pensou ela.
A lâmina a levou. Ela ofegou e deu um último puxão. Seja a força da atração ou
a ferida, o mundo girou por um segundo. O homem caiu para trás. Ela o deixou cair
escovando.
A faca grudou na metade do corpo, logo acima da articulação da perna. Ela 172

agarrou o punho, tentando controlar sua respiração, controlar seu próprio medo,
diminuir a frequência cardíaca e o fluxo sanguíneo. Às vezes funcionava; às vezes
não. A lâmina se soltou e ela ofegou por ar como um peixe preso. Sangue derramou
uma lavagem vermelha. Keleios mudou a curta distância até o pescoço do morto. Ela
tentou rir e acabou tossindo. Ela esperava que fosse poeira. O último suspiro quase o
decapitou. Sua garganta era uma ferida aberta. Ela foi forçada a cavar o garrote na
carne rasgada. A garrote não queria vir e ela puxou e causou mais sangramento ao
seu lado. Ela riu e se engasgou novamente. Realmente não importava se alguém
encontrasse o garrote ou não.
Houve um pequeno som. Keleios colocou pressão contra o lado dela e se
arrastou até Piker.
O cachorro estava morto, os olhos vidrados. Sangue preto do coração bombeava
de sua ferida. Ela se levantou e passou por cima do corpo dele para se ajoelhar ao
lado do garoto. Sua mão pressionada ao seu lado estava ficando escorregadia de
sangue. O garoto estava de lado. Ela o virou gentilmente. Seus olhos azuis encaravam
o céu distante sem piscar. Sangue escorria do nariz e da boca.
A morte de seu familiar havia sido demais para ele suportar. Ela procurou o
coração dele, sabendo que era inútil.
Ela gritou seu desamparo durante a noite.
— Nããão!
O som ficou perdido na luta.
CAPÍTULO 10: A ÚNICA COISA MAIS TRISTE

HAVIA UM DRAGÃO TROVEJANDO em algum lugar acima. Uma escuridão


quente e próxima a protegia. Ela abriu os olhos para a sombra suave de um capuz.
Uma barra de luz acinzentada indicava as bordas. Uma mão estava livre da cobertura;
esticou-se hesitante nas cinzas manchadas de cinza e branco. Cinzas? A mão apertou
o material e abriu, manchada com a morte da madeira. Cinzas?
O fedor de fumaça estava por toda parte, acre e amargo. Uma imagem do castelo
envolto em chamas brilhou em sua mente. A torre havia caído na noite passada. Além 173

disso, ela não tinha certeza do que se lembrava. Ela sabia quem ela era, e isso era
uma coisa importante a se saber. Ela murmurou as palavras: “Eu sou Keleios
Incantare, e não estou morta.”
Havia o zumbido da magia por perto – não a sua própria magia, no entanto.
Keleios tinha sido despojada de todas as armas na noite anterior, encantadas ou não.
Ela não tinha forças para magias, e a feitiçaria demorou mais tempo do que o
permitido na noite anterior.
De quem era a magia no ar, então? Ela estava dentro de um escudo protetor, que
podia sentir no ar, forte. Keleios rolou lentamente para um lado, apoiando-se em um
cotovelo. O dia parecia desenrolar-se a brilhar. Os feixes pretos e irregulares se
fundiam com a fumaça crescente em uma névoa intocada pelo sol. A dor voltou
lentamente e, com seu toque, ela se lembrou de mais, Feltan estava morto. Poula – ela
também estava morta.
Morta. Para sempre. Nunca voltará. Essas foram as palavras que ela ouvira há
tanto tempo, sobre sua própria mãe. Ela sussurrou: “Poula”. Sua garganta se apertou.
Ela engoliu em seco contra as lágrimas crescentes. “Não.” Não havia tempo para isso,
ainda não. A dor a deixaria impotente, e não era hora de ficar impotente.
Ela ficou de costas e o céu ainda pairava no pico do verão azul. A última coisa
clara que ela lembrava era estar no pátio com o dragão. Os demônios estavam
brigando. Luckweaver se fora… Sua morte foi uma dor vazia. Era como se uma parte
dela tivesse desaparecido. A magia das braçadeiras havia sido violada; eles não
tinham mais o ruído da magia. Grandes nuvens brancas se moveram acima, e a
fumaça subiu preguiçosamente no céu. Keleios virou a cabeça lentamente. Havia uma
rigidez dolorosa no lado direito do rosto. A certa distância dela estava Tobin. Sua
armadura dourada fora arrancada de um braço, enferrujada com sangue, preta de
fuligem e sujeira. Seu cabelo castanho-avermelhado estava duro com sangue de um
lado, mas era ele. Ele estava de costas para ela, e estava curvado de pernas cruzadas
em uma posição de poder, mas mesmo assim ela começou a sentir seu cansaço.
Keleios murmurou seu nome, mas não ousou perturbá-lo. Ela estava deitada e
flutuava na onda crescente de dor. Estava com medo do quanto podia estar
machucada. Tobin estava quase exausto, e o escudo não estaria pronto se o perigo
passasse. 174

Depois, nas ruínas, vislumbrou algo verde, em movimento. Movia-se como a


água com pele, fluindo e, no entanto, tremeluzia e mudava como chama. Para onde se
movia, até as tábuas carbonizadas se desfaziam em pó e pedaços de rocha enegrecida
tornavam-se areia. Chamas de corrupção. Ela lembrou que Velen havia trazido a
coisa como um símbolo para o demônio do fogo. O dono se fora, mas seu cão não foi
para casa.
Keleios observou a coisa fluir na direção deles, destruindo tudo em seu caminho.
O escudo de Tobin suportaria contra aquilo? Ela deveria estar aterrorizada,
mortificada, mas a dor era demais para sentir medo. Se o escudo não resistisse, não
havia nada que Keleios pudesse fazer.
Fluiu sobre o escudo, tornando mundo visto através de vidro verde, vidro que
tremeluzia, oscilava e ansiava. Tobin gemeu, e o escudo curvou-se, depois se firmou.
A chama deslizou e voltou na direção que tinha vindo.
Keleios não se lembrava de usar toda a sua feitiçaria na noite passada, mas tinha
acabado. Talvez ela estivesse simplesmente machucada demais para usá-lo. Dado um
dia ou dois de descanso e mais um curandeiro, ela poderiá escapar das corrupções
com feitiçaria. Tobin duraria apenas horas, não dias. O único poder que lhe restava
era bruxaria com ervas. Que ingredientes estavam lá? Cinza, madeira queimada,
sangue seco e, pela sensação, sangue fresco, se ela quisesse. Ela estava deitada em
pedra queimada. Cinza para o círculo, pedra para a base, sangue para os símbolos, ou
talvez fuligem. Isso poderia funcionar.
Ela se levantou e se sentou, segurando a mão e o braço direito. A mão estava
com sangue incrustado; os dois dedos menores pareciam torcidos. Todo movimento
enviou dores agudas através de seu corpo. Ela não precisava de um curandeiro para
lhe dizer que a mão estava muito quebrada. Pequenos pedaços de osso moíam-se um
contra o outro; a mão estava quase esmagada. Por mais que tentasse, não conseguia
se lembrar disso. A carne do braço e da perna, vislumbrada através da armadura
rasgada e enegrecida, estava cheia de enormes bolhas aquosas. A braçadeira no braço
direito estava derretida na armadura e na pele abaixo. Eram um par e, quando um foi
destruído, a mágica se foi. Havia algo errado com o lado direito do rosto, algo
doloroso. Sentia demais a perna e o braço para ser menos do que uma queimadura.
Sua mão boa subiu e depois parou. Mais tarde, haveria tempo suficiente para ficar 175

horrorizada. Se ela não encontrasse um curandeiro, lembraria do falecimento de


Luckweaver em mais do que apenas memória. Sentar-se havia provocado um fio
vermelho de uma ferida superficial na barriga, mas não devia ser tão superficial. O
golpe da adaga foi profundo; ela deveria ter sangrado até a morte. Seus dedos
disseram que o ferimento estava fechando. Devia ter sido Jodda. Ela teve uma marca
queimada em sua pele uma vez. Mas essa era um novo tipo de dor. Era uma coisa
nauseante e que tudo consumia. Ela não podia desistir. Doía tanto ficar quieta quanto
em movimento, então ela poderia se mover, se fosse necessário.
Pelo ângulo do sol, era tarde. Tobin fez muito bem em manter seu escudo. Se o
feitiço tivesse sido apenas contra o mal, não teria sido tão cansativo. Devia ter havido
outros danos além do mal para o garoto desperdiçar tanta energia em um escudo para
impedir aquilo. Ou ele agira às pressas e ficou preso em seu erro. Ela se moveu
cautelosamente apoiando-se no joelho esquerdo; sem tanta dor ainda, aquele lado do
corpo parecia não ter ferimentos. Ela estendeu a mão boa para uma viga meio
queimada e se levantou. Ela gritou e quase caiu quando a perna direita ganhou peso.
O mundo girou, depois se firmou. Keleios estava respirando profundamente,
concentrando-se em cada movimento. Ela sussurrou:“Cia, tenha piedade. Deixe-me
andar neste círculo”.
Ela se afastou da viga de apoio e ficou ofegante, engolindo a náusea de ossos
quebrados e queimaduras. Deu um passo mancando, depois outro e outro. Mesmo
quando ela começou, a ameaça verde fluiu em direção a eles. Ela podia andar no
círculo porque precisava. Keleios caiu de joelhos, deixando o braço esquerdo receber
seu peso. A primeira parte podia ser feita a partir dali. Ela rastejou em volta do
círculo, varrendo cinzas e detritos com a mão esquerda. O lado direito do corpo dela
era uma massa dolorosa. A coisa se aproximou mais uma vez.
O canto e a remoção de cinzas da pedra eram importantes. A chama estranha se
elevou em uma onda e chocou-se em seu feitiço quando ela se levantou, segurando
cinzas na mão boa. Ela começou o círculo de cinzas. O escudo se introjetou, e Tobin
gritou.
O peso da coisa era de uma proximidade pesada acima de sua cabeça. Todos os
pensamentos voltaram-se para continuar a cantar; ela não podia parar agora. A coisa
se enfureceu, alimentando-se da fraqueza de Tobin. Os lados cederam um pouco, e o 176

sol ficou verde quando o monstro envolveu o escudo. O círculo de cinzas se fechou.
Tobin levou vantagem; o escudo fora empurrado para sua forma original.
Keleios se acomodou no centro do círculo, perto de um fio de fumaça. Ainda
cantando, Keleios esfregou o dedo no sangue da barriga e começou o primeiro
símbolo. Havia palavras que podiam ser usadas, mas os símbolos eram mais curtos.
Eram de uma língua antiga. Verdade seja dita, eles não eram comumente usados.
Muitas pessoas haviam morrido por serem incapazes de decifrar corretamente que
tipo de proteção estavam enfrentando.
Ela era mais desajeitada com a mão esquerda e demorou mais do que queria. A
chama pareceu sentir a proximidade do feitiço e subiu contra o escudo. Jogava sua
grande massa contra a fraca luminosidade de novo e de novo. Tobin começou a
gemer com uma voz alta e fina. O escudo começou a desmoronar. Restavam apenas
mais dois símbolos. O desenho do homem era mais fácil, mas o círculo que se
estendia ao infinito era mais difícil. Estava borrado, e ela teve que raspar e tentar
novamente. O teto do escudo ficava a um palmo da cabeça dela, e o peso da chama
fazia com que parecesse mais baixo. Primeiro, a borda externa do círculo. Houve uma
perturbação lá fora, um som abafado retumbante de um dragão. Keleios ignorou; o
terceiro aro foi feito. A chama começou a subir, mas o escudo permaneceu pequeno e
deformado. O sétimo aro era um mero ponto e seria o último. O feitiço entrou em
vigor com uma onda de formigamento na pele. Tobin levantou a cabeça e, com um
pequeno grito desabou, seu escudo desapareceu.
Do lado de fora havia um dragão de cobre, ameaçando soltar chamas. O dragão
voou fora de alcance, mas perto o suficiente para dar esperança e pôr a si mesma em
perigo. Era Brigette, uma das dragões fêmeas de Malcolm, o conjurador-mestre. Ele
era um membro do conselho de Astrantha e o único que falara por Keleios quando
eles tiraram seu posto de mestre. As escamas do dragão brilhavam em arco-íris
marrom-avermelhados. Keleios procurou se medir com o dragão, imaginando se teria
força.
Os astrantianos criavam seus dragões para serem estúpidos e seguros. Eles
mantinham as escamas duras, mas o sentido para a magia e a inteligência, eram
cruelmente abatidos para criar uma fera mais administrável. A mente do dragão era
uma confusão de pensamentos caóticos, a mente de um animal. Tendo tocado a mente 177

de Mestre Eroar, ela soube, pela blasfêmia que era. Keleios projetou uma imagem de
si mesma e Tobin, enfatizando o escudo brilhante; seguiu-se uma imagem de Brigette
deixando o monstro em paz e voando alto e em segurança.
*Brigette, estamos seguros. Obrigada por nos ajudar, mas deixe o monstro em
paz agora, por favor. Eu levantei um escudo.*
O dragão mandou uma imagem de Malcolm sorrindo, depois uma imagem de si
mesma flamejando o monstro, ele morrendo em seguida. Ela mergulhava na chama
verde, depois desviava-se por centímetros da morte. Keleios mandou uma imagem da
besta flamejante devorando rochas, fogo e pessoas. Ela pintou a imagem de um toque
de fogo verde na asa de dragão e o resultado. Keleios estava encharcada de suor
quando terminou. Foi preciso controle e muita concentração para projetar imagens
claras para uma mente tão alienígena. O dragão subiu um pouco mais.
Enquanto o dragão rondava, a sombra dela tremulava no chão. Keleios viu algo.
A coisa piscou novamente quando o dragão sobrevoou, uma garrafa de vidro. Ela se
concentrou e, sim, brilhava com algum encantamento. Apenas uma pessoa fazia
garrafas brilharem assim: Shannie. Ela era uma encantadora camponesa e havia feito
garrafas para conter qualquer coisa, desde o demônio na prateleira de Fidelis até os
feitiços de tempestade. Shannie teria se formado este ano. Keleios mandou uma
imagem da garrafa a Brigette. O dragão reconheceu. Keleios formou uma imagem do
dragão aproximando a garrafa do escudo.
O dragão mergulhou mais baixo. Keleios enviou uma imagem frenética do
dragão voando e voltando depois que a chama verde ia para outro lugar. O dragão
ergueu-se acima da chama furiosa e girou para o leste. Uma asa brilhante mostrava
uma queimadura negra no tecido. Keleios estava suando e começando a tremer com o
contato mental. Era um uso de baixa energia, mas o esforço de se concentrar além da
dor era quase demais. Tudo o que ela queria era deitar-se, chorar e se entregar à dor.
Não, ela não deixaria Tobin morrer com a ajuda tão perto. Ela meio que se arrastou,
meio que rastejou a curta distância dele. Ele estava deitado em uma pilha confusa ao
seu lado, seus cabelos principalmente obscurecendo seu rosto. Keleios tropeçou nele,
pressionando a mão quebrada nas costas dele. Ela gritou e lutou para se apoiar na
mão esquerda. Ela se sentou ao lado dele, respirando grandes correntes de ar. Náusea
e escuridão ameaçavam. A chama verde veio rastejando para ameaçar seu círculo de 178

proteção.
A coisa se aproximou lentamente, mostrando mais inteligência do que ela havia
creditado. Alcançou o suficiente para tocar o círculo e se afastou com uma contorção
que enviou linhas de laranja através da superfície verde. O fogo não poderia matá-lo,
mas poderia detê-lo por um tempo. Keleios não tinha certeza se poderia ignorar a dor
e forçar o feitiço de proteção eventualmente ou não. A coisa esticou-se para cima até
ficar fina como vidro e, em seguida, desceu rapidamente para engoli-los.
Ela viu a onda verde cair. O escudo de fogo aguentaria? Uma oração perpassou
seus lábios. “Urle, deus da chama eterna, mantenha a proteção quente. Deixe que
queime o monstro. Deixe-o suportar sua carga. Que cozinhe seu…” Acertou. Por um
momento, o verde permaneceu na viga mais alta, coberta como uma tenda. Ela
pensou que a magia de Verm era muito forte. Fogo. O mundo estava subitamente em
chamas com um bom fogo laranja. O calor queimava seus cabelos. Ela sentiu em sua
mente que a coisa estava gritando, um som tão alto que parecia o zumbido de um
inseto. As tábuas queimadas voltaram à vida novamente, e Keleios começou a se
perguntar se todos morreriam com o monstro. A coisa rolou para longe e começou a
cair no chão. Mas não morreu. De fato, ela não esperava isso, apenas que os deixasse
em paz.
– Graças a Urle, deus da chama eterna, fomos libertados e por esse feitiço
contivemos o destruidor de Verm.
O corruptor começou a se afastar como se sentisse dor. Evidentemente, havia
decidido que não valiam o esforço. No entanto, Keleios não tinha certeza se a
proteção aguentaria contra outro ataque desse tipo. Toda proteção tinha seu ponto de
ruptura.
Onde estavam todos? Jodda, Eroar, Belor, as crianças? Até o curandeiro negro,
onde eles estavam?
Ela queria se deitar e não fazer nada, apenas descansar se a dor permitir, mas
Tobin precisava dela. Ele ficou terrivelmente quieto e era a cor cinza peculiar que os
feiticeiros ganham quando fazem muita magia de uma vez. Ele tinha uma ferida na
bochecha direita, superficial, nada com o que se preocupar. Havia um segundo
ferimento no couro cabeludo, não tão sério quanto o que Lothor havia curado, mas 179

sério o suficiente. As feridas no couro cabeludo sempre sangravam muito, então


parecia muito pior do que era. Havia uma espécie de curativo em volta do braço
direito. Revelava um ferimento de espada que perfurou seu braço. Keleios não era
uma curandeira para julgar os danos, mas os músculos pareciam rasgados e os ossos
principais do braço haviam sido quebrados. Era o tipo de ferida que poderia privar
um lutador do uso daquele membro.
Keleios começou uma oração a Mãe de Todos quando um grande bater de asas
se pronunciou. Brigette pairou, depois pousou mostrando a garrafa. Ela a pegou com
uma garra enorme, gentilmente. Obediente à imagem anterior, o dragão se aproximou,
arrastando-se sobre três pernas. A garrafa estava inteira, sem danos, completa com
uma rolha. Talvez os deuses tivessem decidido ser gentis. Keleios procurou a chama
verde, mas não estava à vista. Ela testou sua própria força, estendendo a mão para ver
se conseguia. O fato de ela duvidar disso era um mau sinal. Mas ela tinha que fazê-lo,
e isso significava que ela podia. Não significava?
Houve um lampejo de verde arrastando-se sobre as ruínas. Mas estava longe o
suficiente para o que ela havia planejado. Ela removeu o escudo com um sinal nas
cinzas. A criatura devia ter um sentido mágico limitado, porque acelerou seu ritmo.
Keleios usou uma viga de madeira para se levantar, pegou a garrafa da garra do
dragão e removeu a tampa com uma palavra.
A criatura entrou, sem prestar atenção. Brigette voou, mas o monstro estava
concentrado em apenas uma presa. Fluía em direção a Keleios em uma onda de fúria
verde, o cheiro de corrupção subindo diante dela como uma brisa particular. Keleios
se levantou, as pernas apoiadas o máximo possível para se firmar. Ela segurou a
garrafa à sua frente e falou as palavras de aprisionamento. A coisa não diminuiu, mas
se elevou acima dela, uma onda de destruição verde. O fedor fez seus olhos
lacrimejarem e sua garganta se contrair. Keleios sussurrou o feitiço de
aprisionamento mais uma vez entre os dentes. A criatura ficou suspensa por um
momento. Esticado como um vidro, bloqueando o céu, ele esperou. Ela falou as
palavras novamente e, como um zumbido alto no ouvido, a coisa gritou. Pareceu
desmoronar sobre si mesma, dobrando-se para dentro até formar uma estreita faixa de
verde luminoso espesso. A parte superior começou a ser sugada para a garrafa.
Keleios observou a chama entrar na garrafa através dos olhos lacrimejantes. Ela 180

prendeu a respiração o máximo que pôde enquanto a interminável linha verde rolava
na garrafa impossivelmente pequena. A garrafa transparente ficou verde. Keleios
tampou e falou uma palavra de fortalecimento. Ela caiu de joelhos e gritou de dor.
Alguém chamou o nome dela. Ela virou-se devagar, a garrafa na mão boa.
Malcolm, o conjurador-mestre, escalou a pedra quebrada, suas mãos fortes
ajudando-o onde suas pernas anãs curtas não o faziam. Curandeiros o seguiam como
um bando de corvos carniceiros. O rosto de Malcolm era claro como apenas um anão
sem barba poderia ter, mas quando ele sorria, seu rosto ficava lindo. Ele sorriu para
Keleios agora.
– Vim aqui ajudá-la e você nem precisou de nenhuma ajuda.
Ela tentou sorrir, mas o lado direito do rosto não permitiu.
– Eu não sei, Malcolm. Eu posso precisar de uma ajudinha.
Com ela ajoelhada e ele de pé, eles tinham quase a mesma altura. Seus olhos
castanhos brilhavam com lágrimas não derramadas e por um momento seu rosto se
encolheu quando ele olhou para ela. Um rosto sardento e familiar apareceu por cima
do ombro de Malcolm – Larsen, filho de Malcolm, seus olhos castanhos atentos às
feridas dela. Suas mãos eram seguras e hábeis como qualquer curandeiro.
– Desculpe-me, pai, mas se ela puder andar, devemos levá-la para a ala de cura.
O anão assentiu, olhando para o filho alto e muito humano.
– Eu posso andar, mas Tobin… – Ela tentou se levantar, mas sem nada para
segurar, caiu pesadamente e gritou.
Larsen a apoiou e Malcolm pegou a garrafa cheia de verde da mão.
– Não faria sentido largar agora, não?
Ela começou a dizer “não”, mas o mundo girou, a escuridão engoliu o céu de
verão. Quando Keleios acordou novamente, ela estava deitada em um cobertor. O céu
de verão ainda seguia no auge, mas o cheiro de fumaça era muito menor. A dor
acordou com ela. O lado direito do corpo era como se alguém tivesse tirado todo o
sangue de suas veias e derramado fogo derretido em seu lugar. A queimadura parecia
afundar até os ossos. Sem querer, ela torceu o corpo, lutando contra a dor. Alguém
choramingava baixinho, e Keleios descobriu que era ela mesma.
Larsen inclinou-se sobre ela, com o rosto preocupado, mas com aquela alegria
constante da maioria dos curandeiros. 181

– Eu sei que dói, mas tenho uma pomada que ajudará. Você tem muita sorte de
não ter perdido a visão do olho direito. – Ele espalhou um creme branco oleoso em
um linho limpo e aplicou o pano no braço dela até que o membro estivesse enrolado
nele. Colocou uma peça retangular no rosto dela, cobrindo também o olho direito. –
Eu tenho uma poção que irá ajudá-la a dormir.
A pomada aliviou a ardência, dando certo conforto. Os choramingos podiam
parar. Ela achou mais fácil com os dois olhos fechados contra o pano.
– Tobin, como ele está?
– Ele pode perder o uso do braço da espada sem a ajuda de um curandeiro
branco, mas ele viverá.
Ela abriu o olho esquerdo.
– Onde estão os curandeiros da escola de Astrantha?
Sua voz veio à distância. Houve o som de uma tampa sendo levantada e posta no
lugar em seguida.
– O sumo conselheiro os proibiu de ajudar neste desastre.
– O quê!? – Ela virou a cabeça e gritou de dor. Larsen veio e substituiu o pano
caído.
– Por favor, Keleios, sem movimentos violentos.
Ela se deitou ofegante.
– Com prazer. Mas como Nesbit pode proibir os curandeiros brancos de
cumprirem seu juramento?
– Oficialmente, o sumo conselheiro controla a escola, embora já se tenham
passado séculos desde que o conselho interferiu em algo dos curandeiros. Ouvi dizer
que Verrna está mantendo um conselho próprio com seus colegas curandeiros; eles
estão votando.
– E se vierem?
– Significará exílio para eles.
– Toda a escola de curandeiros astrantianos, exilada. Todos os países do
continente vão querê-los.
Ele concordou com ela, desaparecendo de sua linha de visão para mexer nas
panelas mais uma vez. Keleios sentiu um toque onírico – Mestre Eroar. Ela chamou o
nome dele e ouviu um grunhido sonolento, mas nada mais. Larsen voltou à vista. 182

– O mago draconiano está em um sono drogado, na forma de dragão. Ele ocupa


bastante espaço dessa maneira.
Keleios quase sorriu para os braços esticados de Larsen, mostrando quanto
espaço, mas a dor era mais importante do que sorrir.
– Ele está bem, então?
– Breena foi até lá. Ela era a única que sabia o suficiente sobre dragões para vê-
lo.
– Onde . . . Keleios tentou procurar sua amiga – Breena, a Feiticeira, curandeira,
bruxa, guerreira e uma terrível arqueira. Keleios passou a maior parte do verão
tentando ensinar tiro com arco de bruxa. Até que Keleios finalmente desistiu.
Larsen tocou seu ombro bom.
– Não tente olhar ao redor. Breena está ajudando a procurar… corpos.
Houve um som vindo de trás, e ela lutou contra o treinamento de guerreiros
para permitir que alguém fora de vista e aproximasse.
Larsen ficou tenso, exigente:
– Quem é você?
Lothor inclinou-se sobre Keleios. Seu capacete havia sumido e seus cabelos
platinados se soltavam ao vento, espalhando-se pelo rosto como névoa. Ele parecia
esgotado; círculos como contusões estavam sob seus olhos prateados. Sua pele
parecia quase amarela. O sangue seco enrijecera parte de seus cabelos e ainda
grudava em flocos secos no rosto.
– Por favor, diga a ele quem eu sou.
– Larsen Herbhealer, este é Lothor Gorewielder… meu consorte.
Larsen olhou para ela, seu rosto empalidecendo deixando suas sardas presas em
carne pastosa.
– Mas Keleios, ele é um curandeiro das trevas.
– Eu sei. – Ela fechou o olho esquerdo, esperando que isso tornasse as coisas
mais fáceis; não fez efeito. – Ele me curou ontem à noite; e nos ajudou a banir um
diabo – Keleios abriu os olhos e perguntou: – O que aconteceu, Lothor? Qual diabo
venceu?
– O branco, mas Velen havia reagrupado seus soldados restantes, e fomos
superados. – Ele deixou a cabeça cair para a frente, os cabelos escondendo o rosto, 183

depois levantou-o como um homem emergindo de águas profundas. – Velen usou


magia em Belor; ele foi eliminado da luta antes do tempo. Um golpe de espada me
surpreendeu. Ele me deixou quase morto e arrastou o curandeiro.
– Belor?
– Ele o levou também.
Keleios tentou pensar em algo que poderia ser feito, mas a dor não a deixava
pensar com clareza. Precisou lutar muito para não choramingar em voz alta, como
uma criança ou um animal. Larsen disse calmamente:
– Eu devo recolocar essa mão.
– Eu sei.
– Vai doer muito.
– Já dói muito.
Larsen olhou através dela para o curandeiro das trevas.
– Você é como um curandeiro branco, não é?
O rosto tenso de marfim sorriu.
– Parecido, sim.
– Você pode fazer mais alguma cura hoje?
– Eu tive que fazer uma grande cura em mim mesmo; isso me deixa com muito
pouco poder. Poderia curar feridas muito pequenas ou sentir dor, se é isso que você
está pensando.
– Sim, é nisso que estou pensando.
Ela ouviu o curandeiro se afastar e depois voltar. Ele estendeu um pano sobre a
grama e começou a fazer padrões sobre ela.
– Venha para este lado, curandeiro – Lothor parecia cansado e perdido aos seus
olhos. – Agarre-a aqui. – Uma mão pousou em seu ombro logo acima das
queimaduras. Um calor começou a se espalhar, como uma pequena vela contra a
escuridão. Larsen começou a colocar os ossos no lugar. Keleios abriu a boca para
gritar, e a dor vazou para Lothor.
Keleios estava ciente da dor, uma náusea aguda, mas era distante, silenciosa,
como se estivesse acontecendo com outra pessoa. Um suor doentio começou no corpo
de Lothor.
O que estava acontecendo com ela? O livro das trevas, Gelo, ela sentia o que 184

descrevia. Keleios reuniu forças e inspecionou-se, inacreditavelmente fraca. Havia


algo mais, um centro de calor. Por que algo ruim era tão bom?
Larsen se ajoelhou sobre ela.
– Você precisa descansar para se curar.
Keleios fechou os olhos e tentou descansar, mas as queimaduras e os
pensamentos perseguidores não permitiram. Uma voz suave e carinhosa veio através
da escuridão.
– Keleios Incantare, então você sobreviveu.
Seu estômago se contraiu, e o medo subiu por sua espinha. A voz era
inconfundível. Ela cumprimentou sem abrir os olhos. Keleios respirou fundo e forçou
a voz a soar calma. Ali estava um homem que a odiava, e ela estava quase indefesa.
– Mais ou menos, sumo conselheiro Nesbit.
Ela olhou para cima. Ele era alto, esbelto, cada centímetro de um senhor
astrantiano, com cachos loiros ondulados nos ombros, barbeado, o estilo deste ano na
corte. Seu gibão era preto com bordados amarelos e verdes trabalhados nas formas de
animais fantásticos. Um colar quadrado de renda branca caía sobre seus ombros.
Quando ele se ajoelhou, a ponta de sua capa escura varreu a perna de Keleios.
– Fico feliz por estar viva, Keleios. Acredite nisso.
Keleios descobriu que a raiva era mais forte que o medo.
– Acreditar em você? Você deve achar que sou tola.
– Não, acho que você é uma traidora de Astrantha.
– Bem, sumo conselheiro, você conheceria um traidor melhor do que qualquer
um que eu conheça.
Seu rosto ficou vermelho, depois ele sorriu.
– Eu tenho sua vida na palma da mão.
– Não, uma coisa é me matar em um ataque que você escolheu não evitar. Outra
é a execução de uma princesa.
Ela virou a cabeça com um esforço para encará-lo, sufocando um grito. O pano
deslizou de sua queimadura. Ele ofegou e, como todos os astrantianos encaravam a
feiura, desviou o olhar.
– Você realmente não quer guerra com Calthu e Wrythe, não é?
Ele falou sem olhar para ela. 185

– Não me provoque.
Groth, curandeiro dele, estava logo atrás do mestre. Ela perguntou:
– Que tal ser um coelho de novo, Groth? – O homem recuou rapidamente.
Nesbit sibilou para ele:
– Ela está fraca demais para causar algum dano.
Larsen veio e pegou o pano caído.
– Agora está sujo. – Ele o substituiu por um pano limpo e a advertiu para não se
mexer. – Gostaria de lembrá-lo para não perturbar os doentes, sumo conselheiro.
– Você quer ser exilado também, curandeiro?
Larsen ficou muito reto.
– Se este é o cuidado benevolente do conselho, eu estaria mais seguro em outro
lugar.
– Você pode se juntar a alguns na prisão em algum lugar fora da ilha. Não
pretendo que vocês e seus compatriotas sejam incentivo para as massas. Descanse em
paz. Não quero mártires.
Keleios respondeu calmamente:
– Mas você já os tem: todos que morreram no castelo ontem à noite, todos que
foram feitos prisioneiros para serem vendidos como escravos. Em alguns anos, seu
mandato terminará, e é a aristocracia que vota quem entra e quem sai. Se um guarda
pode cair, os outros também podem. Deixe-os pensar um pouco, e terão medo de
você no cargo. Eles buscarão um pastor mais confiável para suas ovelhas.
– Isso é problema meu, não seu.
– Ah, mas é problema meu, sim. – Ela queria olhar para ele, mas o esforço era
demais, então ela falou olhando para o céu nebuloso. – Você fez disso problema meu
quando destruiu esta fortaleza e matou meus amigos e professores. Você me marca
como traidora. Como não pode ser problema meu? Você vai morrer pelo trabalho
desta noite, Nesbit.
– Você está me ameaçando. – Ele riu, jogando a cabeça para trás como um cão
latindo. – Sentirei sua falta, Keleios, mas não me ameace. Eu ainda poderia matá-la.
– Eu não estou ameaçando. – Ela lutou para uma posição sentada, com lágrimas
escorrendo pelo rosto, ofegando e odiando sua fraqueza. – Mas você é um homem 186

morto a partir de hoje. Pode não estar na minha mão, mas alguém fará isso por causa
do que você fez aqui.
– Você profetiza?
Ela pensou por um momento, tentando medir sua dor e seu cansaço.
– Sim, Nesbit, profetizo para o sumo conselheiro de Astrantha. Eu vejo a morte
como uma sombra negra em seu rosto. – Ela gritou quando a visão desapareceu e a
dor retornou.
– Nagosidhe, Nesbit, Nagosidhe – ela desabou na maca.
– Nagosidhe, o que é isso? Faz parte da profecia?
Larsen entrou, forçando-a a ficar quieta.
– Eu devo pedir para você sair; está perturbando-a.
A voz de Lothor veio suave; apenas Keleios podia detectar o cansaço nele.
– Nagosidhe, sumo conselheiro, são guerreiros wrythianos treinados como
assassinos.
Nesbit deixou sua visão e disse:
– O que você sabe dos Nagosidhe, príncipe Loltun?
– Nosso país faz fronteira com Wrythe, conselheiro Nesbit. Perdemos três
senhores para os Nagosidhe antes que meu pai proibisse todos os ataques aos elfos.
– Eu não acredito.
Lothor encolheu os ombros.
– Acredite no que preferir.
– Mas isso fazia parte da profecia? Os Nagosidhe trarão minha morte?
– Eu penso que não. – Ela gritou de dor; sua visão a abandonara. – Chame de
promessa.
– Uma promessa, o que isso significa?
– Isso significa que ela é da realeza élfica e pode invocar os Nagosidhe.
Keleios deu um meio-sorriso. Invocar os Nagosidhe – não, ela não poderia fazer
isso. Somente um elfo de sangue puro poderia chamar os assassinos élficos. E ela
nunca poderia ser uma verdadeira Nagosidhe, pela mesma razão. O Mestre da Morte
de Balasaros achou imprudente que qualquer meio-elfo fosse um Nagosidhe, até sua
própria sobrinha, mas havia outros problemas a serem resolvidos antes que ela visse 187

os reinos élficos novamente. E quando chegou a hora, ela queria ver Nesbit morrer –
sim, era isso que ela queria. Ela não usaria os Nagosidhe. Ela o tornaria sua própria
caça. Keleios falou devagar.
– Onde está Zeln? O que você fez com ele?
Malcolm voltou à luz e respondeu.
– Preso, mas ileso, então nenhuma lei foi violada pelo sumo conselheiro. –
Keleios riu e estremeceu.
– Nenhuma lei foi quebrada, Malcolm.
Ele se ajoelhou ao lado dela.
– Eu sei, Keleios, eu sei.
A voz suave do conselheiro veio:
– Você está obviamente com dor. Deixe Groth ajudá-la, meio-elfo.
A figura vestida de cinza se ajoelhou hesitante, com medo. Keleios se afastou do
cobertor, gritando de dor:
– Afaste-o de mim!
Larsen interveio:
– Sumo Conselheiro Nesbit, como você não nos dará nenhuma ajuda real, eu
chamarei o curandeiro adequado, e peço que você saia. E leve esse charlatão com
você.
Groth fez um pequeno som de protesto. Nesbit o silenciou e disse:
– Muito bem, eu vou embora e levarei meu curandeiro. Mas Groth é a única
ajuda que você terá em solo astrantiano, pois eu proibi qualquer outro.
Uma voz profunda atrás dele falou:
– O sumo conselheiro esquece mais uma vez que ele não é um monarca.
Nesbit girou:
– Garland, como você se atreve?
– Como eu ouso? – Lorde Garland olhou ao redor da devastação que estava ao
redor e virou o rosto de barba branca para Nesbit. – Como você ousa forçar uma
votação no conselho. Eu fui silenciado, mas não mais. – Três curandeiros estavam
atrás dele: um branco, um cinzento e um das trevas. Lorde Garland adorava a Ardath
e não tinha favoritos.
Nesbit virou-se para olhar para Keleios. 188

– Profecia ou não, meio elfo, você estará presa ao entardecer hoje à noite; se
cure rapidamente – ele se virou e desapareceu, levando Groth com ele.
Larsen ajudou Keleios a voltar para a maca e recolocou os panos.
– A poção de cura está pronta para você.
Lorde Garland perguntou:
– Onde meus curandeiros serão mais úteis no momento?
– Seus curandeiros são todos bem-vindos, sumo conselheiro. – Larsen se
ajoelhou ao lado de Keleios com uma xícara quente. Ele apoiou a cabeça dela
enquanto ela bebia, forçando-a a não se mover mais do que o necessário. – Esse
garoto perderá o braço sem uma rápida cicatrização de magia branca. Encontramos
muito poucos sobreviventes. Os outros curandeiros estão ajudando a procurar corpos.
O estômago de Keleios começou a dar um nó e revirar.
– Larsen, eu me sinto enjoada.
– Eu sei, mas a poção ajudará a aliviar você.
– Não é isso… – Sua coluna ficou rígida, arqueando seu corpo grotescamente.
Ela estava olhando o mundo através do vidro fosco e da dor. Um rosto pairou sobre
ela. – Jodda? – Mas os olhos do curandeiro eram castanhos como madeira; seu cabelo
preto, trançado. Não era Jodda, nem ninguém que ela conhecia.
Uma voz estranhamente rouca veio do corpo da mulher.
– Segure-a para que eu possa trabalhar.
Mãos a seguravam, rostos flutuando acima dela. Havia morte em seu estômago,
fluindo em suas veias de uma maneira que ela nunca havia experimentado. Ela sabia
que estava morrendo. Eles não a estavam ajudando.
– Aklan, tac morl, frintic aklan, aklan!
A voz de um homem:
– Curandeiro, o que você deu a ela?
Larsen disse às pressas:
– Uma poção para relaxar, dormir.
– O que havia nela?
– Veldra, hortelã-pimenta, manto de deusa…
– Manto da deusa, também conhecido como erva do diabo?
– Sim. 189

– Você a envenenou.
– Mas não é um veneno.
– Para ela é. Primeiro curandeiro, você deve remover o veneno do corpo dela!
O curandeiro de olhos castanhos não discutiu, mas colocou as mãos no corpo de
Keleios. A coluna arqueada e a rigidez aumentavam gradativamente. Todo som, todo
movimento percorriam seu corpo, sacudiu seus músculos, tornava sua coluna rígida.
Keleios não conseguiria respirar até que seu corpo relaxasse, e cada espasmo durava
mais que o anterior, até que ela não conseguia mais respirar. O calor da cura fluiu
através de seu corpo, perseguindo o veneno. Ela podia senti-lo sendo retirada de seu
corpo.
Ela murmurou, evanecendo, com dor:
– Aklan.
A voz do homem sussurrou:
– Nem ac morl, nem ac morl.
A magia não convidada em seu corpo respondeu às palavras, calmantes.
Alguém tinha entendido; alguém estava ajudando. Keleios estava imóvel e ofegante,
com a respiração alta, o corpo coberto de suor.
Ela piscou para um rosto pálido alinhado com cabelos castanhos; dois olhos
verde-acinzentados a encaravam:
– Quando você estiver descansado, eu gostaria de falar com você em particular.
– Era a estranha voz masculina com a roupa de um curandeiro das trevas.
Keleios tentou falar, mas o curandeiro branco os espantou.
– Eu devo curar suas queimaduras e essa mão. Você parece ter uma pequena
capacidade de se curar. Eu nunca toquei em algo assim. – Ela balançou a cabeça. –
Mas eu vou curá-la, podemos conversar depois.
Larsen estava ao lado dela.
– Keleios, eu não sabia. Eu usei o composto muitas vezes sem causar danos.
Ela respondeu, encontrando a voz rouca.
– Você não poderia saber; fique em paz, Larsen.
As pontas dos dedos frias tocaram sua bochecha, e a magia perseguiu a pele
arruinada. Por um momento a dor ardeu em seu rosto. Keleios gritou e foi ecoada 190

pela curandeira branco. A curandeira fora treinada por Meltaanian. Nenhum


curandeiro treinado por Astranthian teria permitido que a dor aumentasse antes de
desaparecer.
A mulher recostou-se em meditação e Keleios observou as queimaduras
desaparecerem do rosto pálido. A carne enegrecida e cheia de bolhas mudou para
vermelho raivoso, depois desbotou para rosa e desapareceu.
As mãos se moveram para o braço dela. O fogo comeu carne e a dor
desapareceu. A curandeira rompeu o contato e foi meditar.
A mão quebrada de Keleios estava enrolada entre as mãos da curandeira.
Desperta, Keleios lembrou-se da dor – pedras caindo, esmagando, tanto peso, ela
gritando quando a dor a trouxe de volta, depois deixou-se cair na escuridão.
A curandeira sentava-se de pernas cruzadas por vários minutos. Seu rosto
estava pastoso e um suor doentio escorria dela. A perna seria a próxima, com todas as
suas queimaduras.
Quando ela abriu os olhos de sua última meditação, Keleios perguntou:
– Qual o seu nome, para que eu possa agradecer corretamente?
– Eu sou Radella de Crisna.
– Obrigado, curandeira branca Radella de Crisna.
Ela inclinou-se rapidamente sobre o ferimento lateral de Keleios.
– É uma coisa pequena, mas se você for para a prisão hoje à noite, eu não a
mandaria meio curada. – Houve uma explosão de calor e a dor desapareceu. – Você
ficará fraca por algumas horas, mas descanse e se sinta melhor.
Radella se levantou, deixando Keleios se maravilhar com seu corpo devolvido.
A dor se fora; apenas um cansaço doloroso permaneceu. Ela flexionou a mão
direita, maravilhada com a facilidade com que se movia. O braço dela dobrado no
cotovelo, levantado no ombro em uma tipoia; seus dedos tocaram seu rosto, suave
novamente.
O curandeiro das trevas de olhos verdes acinza ajoelhou-se com uma xícara.
Keleios recusou educadamente, uma parte dela respondendo a ele. Ele a tinha salvado.
– Isso fará você dormir profundamente por algumas horas. Você acordará
revigorada e curada. Eu mesmo a preparei, para que não haja mais envenenamentos
inadvertidos. Eu adoraria falar com você sobre os demônios, mas você deve se curar 191

agora.
– Não quero ir para a prisão enquanto durmo.
Ele sorriu.
– Meu senhor Garland trabalhará para que você não precise ir. Mas se você
precisar ir, leve isso para curar-se. Sem isso, pode levar dias para você se fortalecer.
Ela bebeu com cuidado, apoiando-se em um cotovelo. Contra ela, cada músculo
relaxou até que ela afundou de volta na maca. Seu corpo pesava mil unicórnios. Foi
um grande esforço para mover-se. Ela forçou um dedo a se contorcer e parecia tão
pesado e volumoso quanto uma espada de treino. Keleios flutuava à beira de um sono
profundo e sem sonhos.
Alguém a tocou. Keleios forçou os olhos a abrir. O curandeiro das trevas
colocou as mãos sobre ela, verificando sua respiração. O toque era o toque de um
curandeiro branco, saudável e bom. Keleios estava sendo forçada a aceitar que a
única diferença estava nos mestres servidos e no uso de cada dom.
Breena, a Bruxa, entrou na ala de cura. Embora fosse apenas uma curandeira, ela
parecia trazer saúde e coragem. Ela estava vestida com armadura de couro, cabelos
castanhos descendo em volta dos ombros. Ajoelhou-se rapidamente ao lado de
Keleios.
Keleios tentou manter os olhos abertos, mas não conseguiu. Ela ouviu a voz rica
da mulher à distância.
– Não há muitos vivo por aí. – Ela falou um velho provérbio calthuiano. – A
única coisa mais triste do que uma batalha vencida é uma batalha perdida.
Keleios deixou que o sono induzido a envolvesse. A última coisa que ouviu foi:
– Mais dois corpos. Onde você quer que nós os coloquemos?

192
CAPÍTULO 11: CORRENTES

OS OLHOS DE KELEIOS se abriram ao anoitecer. O céu estava sangrando para


a escuridão. A floresta era uma massa negra contra um céu cinza-prateado, onde a
última luz do dia lutava contra a escuridão. Keleios sentiu-se revigorada. A magia
estava lá para o chamado novamente. Seu corpo estava bem, como se ela tivesse
dormido por uma semana. Ela se perguntava o que tinha na poção que o curandeiro
lhe dera, pois se sentia notavelmente bem, melhor do que esperava. 193

Ela podia ver Eroar, o Mago do Dragão, enrolado de cabeça sobre a cauda,
dormindo, profundamente, sonhando no passado.
Ela ficou maravilhada com a verdadeira forma dele. Seria apenas a terceira vez
que ela o via. Suas escamas eram de um azul rico como o oceano, longe da terra. Sua
crista da espinha era negra, assim como suas garras; sua verdadeira forma era
volumosa e assustadora.
Poth estava com um peso quente nas pernas. Keleios ficou imóvel, tentando não
perturbar a gata. Seu pelo preto e branco estava emaranhado e sujo. Ela estava
cansada demais para se arrumar. A gata se mexeu em seu sono, uma orelha se
contraindo como se captasse um som distante.
Keleios sorriu ao ver. A maioria dos bruxos não se importava com os animais
que não ganhavam o sustento como familiares ou trabalhadores. Até Keleios nunca
admitiria o quanto a gata significava para ela.
Breena estava cuidando dos dois fogos, um para cozinhar e outro para preparar
poções. Ela colocou madeira no fogo, o brilho laranja mostrando seu rosto abatido e
cansado.
A cabeça quase careca de Carrick apareceu acima dos cobertores. A ascensão e
queda de seu peito disseram a Keleios que ele estava vivo. Keleios se perguntou se
ele também havia recebido uma poção ou se teria permissão para dormir até ser
curado. Como Carrick odiava poções mágicas.
Dois homens apareceram, vestindo o uniforme do sumo conselheiro, um fundo
preto com um fogo vermelho que cuspia demônios. Breena se levantou e foi
acompanhado pelo curandeiro das trevas de cabelos castanhos.
O mais alto deu um pergaminho enrolado para eles. A bruxa pegou. O
documento parecia rígido, enrugando quando ela o tocou, muito oficial.
O alto falou em tons corretos formais.
— O Sumo Conselheiro Nesbit decretou todos os viajantes ou professores
sobreviventes, traidores. Viemos pedir que você prepare os prisioneiros para a
mudança.
Keleios vira Breena verdadeiramente zangada apenas duas vezes, cada vez feliz
por ter sido dirigido a outro lugar.
— Eu consigo ler. Deixe-me entender que o Sumo Conselheiro de Astranthian 194

ordenou que pessoas feridas e inconscientes fossem presas.


Os guardas se mexeram inquietos, pois era considerado azar interferir com um
curandeiro.
— Por que ele não leva as crianças também?
— Eles são jovens e podem ser recondicionados na escola astranthiana adequada.
— E o mestre de armas, Carrick, ele também deve ser preso?
— Não, ele estava fazendo o trabalho para o qual foi pago. Não há traição nisso.
Keleios procurou com sua mente. Um bloco de teletransporte havia subido pela
área.
O teletransporte não era um dos seus melhores feitiços, mas ela corria o risco de
aparecer dentro de uma árvore ou de outra pessoa para escapar da rede de Nesbit. Um
teletransporte que deu errado era uma maneira muito ruim de morrer, mas as
masmorras do Sumo Conselheiro eram famosas por fazer você desejar a morte,
qualquer tipo de morte. Ela se sentiu forte o suficiente para pegar os dois guardas e se
libertar. Se a magia era inútil, sempre havia aço.
Mais três guardas apareceram.
Breena deixou a mão cair sobre a espada curta.
— Você não os está levando assim, todos sem saber.
— Por favor, curadora, não nos faça lutar com você.
A curandeira das trevas deu um passo à frente.
— Prometi a meio-elfo que ela não iria acordar em cativeiro. – Ele colocou a
capa atrás do ombro e apoiou a mão no punho da espada.
— Eu não estou dormindo.
Todo mundo pulou com as palavras inesperadas e se virou. Keleios sentou-se e
disse:
— Agradeço a ambos por me defenderem, mas sou capaz de me defender. –
Poth, que estava acordada há algum tempo, se espreguiçou e pulou no chão, olhos
amarelos olhando para os homens.
Uma voz profunda e estridente soou.
— Eu também estou acordado.
Os olhos de Eroar pegaram a luz do fogo quando ele levantou a cabeça. Os olhos
brilhavam em laranja e cheios de fogo, e o dragão soprou um suspiro de fumaça. 195

Os guardas se mexeram inquietos, aproximando-se um do outro como crianças


assustadas.
Uma voz suave veio da floresta.
— Não acontecerá nada disso, a menos que você queira me dar uma razão para
matar todos vocês.
Os arqueiros se afastaram das árvores ocultas. Por um motivo, eles matariam
todos os que estavam na clareira, exceto Eroar. Seria um tiro milagroso que penetrou
em sua balança à luz do fogo. O vento mudou, e Keleios sentiu o cheiro forte da
maldição do dragão esmagado. Eroar soltou outro suspiro de fumaça e olhou para os
homens.
Nesbit entrou na clareira. Os arqueiros não se afastaram.
— Seja razoável, Keleios.
— Estou pronta para ser razoável, Nesbit. O que você tinha em mente?
Ele fez um gesto para que um velho camponês se apresentasse. Seus olhos azuis
estavam desbotados em cinza e seu corpo curto se curvara com a idade. Ele segurava
correntes nas mãos. Elas chocalharam e fizeram barulho quando ele atravessou o
chão.
— Você e todos os seus amigos mágicos usam isso enquanto transportamos
vocês para o exílio.
Keleios estreitou os olhos e sibilou:
— Não vou usar essas coisas sujas.
— É isso ou… – Ele deixou a frase inacabada, mas as alternativas eram claras.
Breena perguntou:
— O que há de errado com as correntes?
Lothor respondeu, levantando-se de onde dormira.
— Elas são cobertas com runas de prisão. Nenhuma mágica pode ser usada
contra eles. Se você as usa, fica impotente.
Breena disse:
— Runas de prisão são mágicas proibidas.
Nesbit simplesmente sorriu e encarou Keleios.
— Nesbit, eu não posso; eu sou meio elfo. Essas coisas quase vão me matar.
— Essa é a única maneira segura de transportar semelhantes a você, e você sabe 196

disso.
— Se eu der minha palavra de que não irei escapar, você pode confiar nela.
— Sua palavra não é boa o suficiente; a de ninguém é.
— Nem mesmo a sua.
Nesbit acenou e disse:
— Perdemos tempo. Você concorda em se exilar, ou nós a matamos aqui?
Tobin levantou-se e ficou ao lado de Keleios:
— O que você pede a ela é injusto, e você sabe disso.
— Conheço lendas das velhas esposas; nada mais. – Ele esperou apenas um
momento e disse: – Decida, Keleios, decida agora.
Ela percebeu que ele queria uma desculpa para matar todos eles. Mártires ou não,
ele estava nervoso agora e queria cuidar de uma maneira ou de outra. Talvez ele
tenha ultrapassado seus limites, e outros membros do conselho estavam se rebelando,
outros aristocratas.
— Muito bem.
Nesbit fez um gesto para o velho avançar. Ele chegou cambaleando perto,
carregado de correntes.
Eroar serpenteou seu pescoço, forçando o homem a escovar suas mandíbulas
temíveis.
O velho hesitou, não querendo passar pelo dragão. Nesbit deu uma risada curta.
— Esses joguinhos só perdem tempo. O dragão não vai machucá-lo, velho.
Continue!
O velho avançou, com mais medo de Nesbit do que qualquer dragão. Afinal, os
dragões não torturavam um homem quando você os desagradava.
Keleios cruzou os braços, com medo. As runas da prisão excluíram toda a magia.
Os elfos eram por natureza mágicos, não apenas com feitiços, mas na sua substância.
Nesbit chamou de contos de velhas esposas, mas essas histórias diziam que runas de
prisão poderiam matar elfos.
— Venha, Keleios, você decidiu ou não? Viva ou morra.
Ela estendeu as mãos lentamente, punhos cerrados. As mãos finas de veias azuis
do homem estendiam um conjunto de correntes grandes demais para seus pulsos 197

pequenos. O metal prateado deslizou, fechou-se e Nesbit falou uma palavra. O metal
encolheu para caber nela. Elas se encaixaram no lugar com um segundo feitiço, e
Keleios estava sozinha. Sua magia se foi. Ela ofegou, tentando trazer ar para os
pulmões. A gata gritou. Eroar berrou, e o carregador da corrente tropeçou para trás.
Ele caiu no chão em um barulho de correntes.
— Nós ainda podemos matá-la, dragão, então se controle.
— Eu me controlo, mas chegará um dia, humano.
— Eu acho que não. – Ele observou o homem se levantar e disse: – Algemas.
— Mas, Lorde Nesbit, ela é apenas uma garota.
— Essa garota pode esmagar seu crânio com uma mão.
O velho pareceu duvidoso, mas se arrastou para frente e as colocou no lugar.
Keleios estava ciente disso, mas não importava. Era assim que parecia ser meramente
humano? Não, isso era horrível; isso era uma parte de si mesma desaparecida.
Era como se o mundo tivesse mudado, deixando Keleios para trás. Ela ficou
onde estava e ainda estava longe. O ar estava próximo, pesado e difícil de respirar.
Tobin estava amarrado. Ele olhou para as árvores como se as visse pela
primeira vez. Ele sussurrou:
— É como ser cego.
A voz de Keleios era o mais fraco dos sons.
— Pior.
Lothor deu um passo à frente. Sua pele era de um branco nevado normal; seus
olhos prateados pegaram o fogo como vidro.
— Eu vou com ela.
— Não há necessidade. Você é um diplomata preso em circunstâncias infelizes e
está livre para partir.
— Não posso.
— Como assim, não pode?
— Eu sou o consorte dela. Para onde ela vai, eu vou.
Um olhar de espanto passou pelo rosto de Nesbit.
— Consortes. – Ele caminhou para ficar na frente de Keleios. – Consorte com
um curandeiro das trevas, Keleios, eu nunca teria pensado isso de você.
Keleios se esforçou para responder, tentando se afastar. As runas estavam 198

tentando persegui-la de si mesma.


Ele fez um gesto para o homem colocar correntes em Lothor.
— Você entende minha posição.
— Claro. – Uma gota de suor quebrou na testa do meio elfo quando as correntes
estavam no lugar.
Nesbit voltou-se para Keleios.
— Se eu soubesse o seu gosto por homens, poderíamos ter arranjado alguma
coisa.
Keleios encontrou sua voz.
— Nós nunca poderíamos organizar algo, Nesbit.
— Não tenha tanta certeza. – Ele chegou perto, acariciando um dedo em sua
bochecha. – Tenho certeza de que você seria tão agradável para dormir quanto sua
irmã era.
Ela olhou para ele, olhos castanhos escurecendo de raiva.
— Methia sempre teve um gosto ruim para homens.
Sua mão viajou para baixo e Breena estava lá, empurrando-o para trás. A
espada dele puxou com um silvo de aço, e a dela respondeu.
Malcolm entrou na luz do fogo.
— Eu pensei que você tinha vindo para prender os traidores, não assediar os
curandeiros.
O anão se colocou entre os dois e fez sinal para Breena voltar.
Ela falou com os dentes cerrados.
— Ele estava tocando-a.
Nesbit disse:
— Ela é uma prisioneira.
Malcolm virou-se para Nesbit, com o rosto em branco, muito em branco.
— Nesbit, eu estou permitindo que você a leve sem lutar, mas se eu achar que
você a tocou de alguma forma, eu vou desafiá-lo para as areias.
Ele começou:
— Desafie-me, anão –, e lorde Garland saiu do escuro.
Ele estava nu acima da cintura, coberto de sujeira e carregando um pequeno
embrulho de pano. Seus cães mais perfumados passavam pelas pernas. Garland 199

encontrou poucos sobreviventes.


Ele ficou ao lado de Nesbit e forçou o homem a pegar o embrulho. Nesbit
segurou-o desajeitadamente, a espada ainda livre de seu guarda. O embrulho pendia
desajeitadamente, pesado nos lugares errados, mole e pendurado. Nesbit gritou e
largou, saltando para trás. Ele bateu no chão com um estalido, e os embrulhos de
tecido se soltaram. O rosto de uma criança olhava para fora, olhos azuis
impossivelmente arregalados.
Nesbit largou a espada e estava tentando agarrar seus braços como se quisesse
se purificar. Os astrantianos consideravam muito azar para um feiticeiro tocar os
recentemente mortos. Uma mancha de sangue começou a encharcar o tecido,
espalhando-se até que a criança jazia em embalagens ensopadas de sangue.
— Esse corpo não sangrou enquanto eu o carregava, Nesbit. Você toca só um
momento e ele sangra.
— Não, eu não a matei.
Malcolm disse:
— Os mortos sempre sabem a quem culpar. Eles são muito bons assim.
Pela primeira vez, Nesbit parecia assustado, como se esperasse fantasmas
aparecerem gritando durante a noite.
Se Belor estivesse lá, eles poderiam ter arranjado algo para o Sumo Conselheiro,
mas o ilusionista não estava lá, talvez nunca mais estivesse com ela. Keleios havia
perdido muito nas últimas horas.
Sua raiva se foi, e apenas um conhecimento frio permaneceu. Se ela escapasse,
ela mataria Nesbit. Isso lhe deu um certo conforto.
Nesbit quase gritou:
— Chega disso! – Ele sacou seu autocontrole como uma capa e pegou sua
espada do chão. Passou-a automaticamente pela capa para limpar e embainhar.
Breena já havia revestido a dela.
— Vamos levar os prisioneiros agora.
Seis guardas se reuniram para ele, espadas à mostra e cruzaram em seus peitos.
Eles cercaram os quatro prisioneiros. Quatro entre centenas - eram tudo o que restava?
Poth correu para ficar ao lado de Keleios, e o conselheiro riu e a deixou ficar. Nesbit
levantou-se e levantou os braços. 200

Pela primeira vez, Keleios não sentiu nada além de tonturas e trevas quando
foram teletransportados para longe.
Eles apareceram na rocha cinza nua. O mar correu e sussurrou ao longo da costa
desolada. Espuma branca agitava as ondas como fantasmas pálidos. Árvores
atrofiadas e sopradas pelo vento formavam uma floresta nua no inverno. Não havia
verão nesta ilha. Uma pequena montanha se erguia no centro, mas nenhum edifício
podia ser visto.
Keleios disse:
— Nesbit, você não pode nos deixar aqui.
Ele sorriu agradavelmente.
— Oh, mas eu posso, e vou.
Ela puxou os pulsos, mas sem a força encantada das braçadeiras de ouro, ela não
podia quebrá-las. Eroar rosnou profundamente em seu peito. Ele estava sem roupa,
mas nada mais.
Ele ainda mantinha sua força de dragão. Com uma palavra, Nesbit mandou um
dos guardas treinar uma besta em Keleios.
— Um movimento, dragão, e ela morre.
Lothor perguntou:
— Que tipo de lugar é esse?
Nesbit fez um amplo gesto para incluir toda a ilha.
— Esta é a Ilha Grey, lar de Harque, a Bruxa. Seu consorte pode lhe contar tudo
sobre Harque e a Ilha Grey.
Keleios falou baixinho, lutando para manter o pânico em sua voz.
— Nesbit, você pretende nos deixar aqui, acorrentados, sem mágica ou meios de
nos defendermos?
— Era a minha intenção.
Os guardas se reuniram às suas costas.
— Veja, Keleios, você está certa. Se eu executar você, estarei em guerra com
duas nações, mas se você morrer no exílio, não haverá guerra. Quero você morta,
meio-elfo. Eu vi minha morte nos seus olhos. Não quero você nas minhas costas em
uma noite escura.
Ele sorriu e olhou para o mar. 201

— E há o que vai acabar com você.


A última pincelada do crepúsculo cintilou sobre uma espessa nuvem cinza,
manchada com toques de outras cores. Verde doentio, o roxo dos machucados, um
amarelo fraco e o cheiro doentio e doce da corrupção vieram com ele. Ele rastejou
apenas alguns metros acima do mar, soltando gavinhas e puxando sua massa ao longo
da gaveta, aproximando-se. Parecia estar rastejando por alguma superfície invisível.
O vento estava velho, testando como mãos invisíveis e trazendo o fedor. Um cheiro
como salas de enfermaria fechadas há muito tempo e coisas apodrecidas andava com
o vento.
A luz morreu enquanto eles a observavam no mar. Dois da guarda astranthiana
começaram a vomitar do fedor.
Lothor sussurrou:
— Um moreacstrom.
Tobin perguntou entre tragadas profundas:
— O que significa moreac?
— Significa tempestade da morte. O negócio é um lacaio de Verm.
Nesbit disse:
— Muito bom.
Keleios tropeçou para a frente e caiu na pedra, meio se segurando.
— Nesbit, em nome do que você considera sagrado, pelo menos desfaça as
correntes. Dê-nos a nossa magia e o nosso corpo; nos dê uma chance.
Ele levantou os braços.
— Adeus, Keleios Incantare, Nightseer chamado demônio, não nos
encontraremos novamente.
— Se o fizermos, Nesbit, você é um homem morto.
Ele desapareceu com a guarda. O cheiro da velha morte se aproximou.
— Podemos fugir disso, curandeiro das trevas?
— Não, ele pode caçar sobre terra ou água.
— O que podemos fazer então?
— A única coisa é um círculo de proteção. – Ele puxou as correntes, os olhos
encarando a nuvem quase invisível. – E não vamos conseguir fazer usando isso. 202

A tempestade começou a chover no mar em uma chuva amarela doentia que fez
a água ferver ao passar. Tobin sucumbiu ao vento e começou a vomitar na rocha.
Lothor disse:
— Se não conseguirmos nos libertar, morreremos.
— Isso eu sei, curandeiro das trevas. Diga-me uma coisa que não sei. Diga-me
algo que eu possa usar para nos tirar daqui.
Ele falou baixinho.
— Eu não posso.
CAPÍTULO 12: ALHARZOR

FLASHES DE LUZ ESTRANHA, como iluminação quebrada, se contorciam


através da nuvem. As luzes brilharam através da rocha, perseguindo a escuridão de
volta em rajadas. A doença das correntes tentou entorpecer sua mente, mas tinha que
haver uma maneira.
— Eroar, você pode morder as correntes?
— Elas têm um poderoso encantamento e explodiriam se danificadas.
— Sim, sim, eu sei disso. 203

Poth olhou para Keleios e miou, uma nota longa e melancólica.


— Eu sei, Poth, a tempestade está chegando. – Tinha que haver um jeito. –
Eroar, você poderia quebrá-las entre suas garras?
— O problema persiste. Se eu tocar as runas da encarceramento, elas explodirão.
Ela assentiu.
— Mas se você tocar entre as runas, na corrente nua, elas ficarão intactas. Elas
não vão explodir.
— Eu não posso mais ver mágica. Não vejo onde estão as runas.
— Nem eu. – Keleios olhou para os outros. – Alguém tem uma ideia melhor?
Houve um silêncio. O vento ficou mais forte, trazendo o cheiro da morte antiga.
Ela se virou para Eroar.
— Lembro-me de duas runas por pulseira. – Ela fechou os olhos e disse: – Aqui
e aqui. – Ela tocou o metal acima e abaixo do pulso.
— Você tem certeza? – ele perguntou.
— Não, mas estou disposto a correr o risco, se você estiver.
O dragão assentiu. Ele se inclinou sobre as mãos dela. Suas garras negras, como
facas de ébano, pairavam delicadamente sobre suas algemas. Poth golpeou suas
garras. Ela assobiou, rabo arrepiado, olhos selvagens.
Lothor disse:
— O que há de errado com essa gata?
Keleios olhou para a gata. Ela nunca havia percebido que sua capacidade de se
comunicar com os animais era mágica, mas agora Keleios estava surda e burra,
olhando nos olhos amarelos da gata.
Ela não sabia o que a gata estava tentando dizer.
— Tobin, mantenha-a fora do caminho.
Tobin, ainda agachado no chão, foi em direção a gata. Poth reagiu violentamente,
atingindo-o.
— Poth... – Keleios não conseguia entender isso e não havia tempo para
entender.
O dragão curvou-se sobre as algemas mais uma vez. A gata atacou.
— Poth!
Lothor mergulhou para a gata e a pegou rosnando e cuspindo. 204

A gata continuou a uivar quando Eroar começou a trabalhar nas correntes.


Keleios disse:
— Pare.
O dragão hesitou.
— O que é isso?
— Deixe-a ir, Lothor.
— Não há tempo para isso, Keleios.
— Você não vê, Poth pode ver as runas. Sua visão mágica ainda está
funcionando.
Eroar disse:
— Se ela pudesse ver mágica antes disso, a gata ainda seria capaz de ver as
runas.
Lothor lançou a gata:
— Nossa última chance é a visão mágica de uma gata. Estamos condenados.
Tobin disse:
— Cale a boca, Lothor.
Poth sibilou para Lothor e depois caminhou delicadamente até Keleios. Eroar
tocou as correntes.
Poth o atacou. Ele moveu as garras levemente para a direita. A gata ficou
olhando, cautelosa, mas satisfeita.
Houve um estalo agudo e a algema caiu. As runas eram mágicas emparelhadas.
Com uma pulseira, o feitiço foi lançado. As correntes caíram no chão.
Ela olhou nos olhos amarelos da gata e disse:
— Obrigada, Poth.
Os ferros para as pernas não estavam encantados. Keleios se abaixou e encantou
a fechadura.
Eroar quase anunciou o alívio por estar livre novamente, mas ficou em silêncio e
começou a trabalhar nas correntes de Tobin. Keleios libertou Lothor quase ao mesmo
tempo, e sem discussão eles começaram a correr em direção à floresta atrofiada.
O rugido se transformou em sua jovem forma humana e correu atrás deles. A
nuvem parecia hesitar sobre a terra e começou uma subida trabalhosa sobre a própria
rocha. 205

O vento os perseguia com mãos geladas e famintas, dizendo-lhes que o


moreacstrom ainda estava por vir.
Algo se moveu na borda da visão de Keleios. Ela não virou a cabeça para seguir
o movimento, mas sussurrou para os outros que estavam sendo seguidos.
Pelo menos uma dúzia de coisas se moviam como fantasmas através das árvores,
silenciosas demais até para os elfos.
Flashes de luz pálida começaram a piscar em ambos os lados, vermelho, azul e
verde. As cores pareciam diluídas, como se mal pudessem ser vistas.
Lothor disse:
— São luzes demoníacas. Nenhum dano real por si só, mas eles reportarão
nossos movimentos e não podemos superá-los.
— Eu sei o que são, curandeiro das trevas. Eu já estive aqui antes.
Ela dobrou o passo e eles se moveram para acompanhar, Lothor tendo um tempo
mais fácil que Tobin.
Ela ofegou, tentando não perder muito ar ao falar.
— Há uma clareira aqui perto, onde podemos nos proteger da tempestade e do
que quer que siga as luzes. – Como se conjurassem por suas palavras, eles invadiram
uma grande clareira. Estava sem vegetação e de forma irregular, mas o tempo era
curto. Eles não achariam melhor. Parecia que tinha sido explodido. No centro, havia
um esqueleto em cota de elfo com uma espada ainda embainhada ao lado. Os ossos
eram um mau presságio, mas não havia tempo para ir a outro lugar.
O vento parecia uma verdadeira tempestade, exceto pelo fedor; pedaços de casca
e folhas enchiam o ar.
As luzes doentias pairavam ao redor da clareira, e Keleios lutou contra a vontade
de atacar uma.
— A feitiçaria é rápida, mas desgastante, e facilmente destruída pelos mais
poderosos.
Eroar falou.
— Sim, a bruxaria com ervas é melhor, eu acho, se tivermos as ferramentas para
isso.
O primeiro uivo flutuou longo e solitário no vento da tempestade. Um coro
misterioso se juntou a ela até que a noite tocou estridente. 206

— Os cães de caça.
Tobin perguntou:
— O que você está sussurrando, Lothor?
— O uivo, não são cães de caça; são os cães de Verm.
Keleios empalideceu:
— Não há tempo para terminar um círculo de erva-bruxa. Mestre Eroar, se você
erguer um círculo feiticeiro no limite da clareira, tentarei apoiá-lo com uma bruxaria
de ervas, mas você precisará me dar tempo.
Eroar se levantou e, com um movimento de ambos os braços, um escudo
deslizou sobre eles.
Ela olhou em volta da clareira; apenas rocha nua aparecia - sem cinzas, sem
nada.
— Tobin, você tem uma adaga?
— Sim. – Ele desembainhou e deu a ela. Eram quinze centímetros de lâmina
fina, mostrando o desejo de Meltaanian de decorar demais o punho entalhado.
— O que você vai fazer com a adaga?
— Vou usar sangue para os símbolos; você sempre tem sangue.
Ele agarrou o pulso dela.
— Mas não há nada com o que fazer o círculo. Você desmaiaria muito antes de
ter sangue suficiente para isso.
Lothor chamou:
— Keleios.
Ele estava ajoelhado junto ao esqueleto, a longa espada desembainhada nas
mãos. Ele jogou para ela, e ela pegou o punho primeiro. A adaga de Tobin caiu na
pedra e ela engasgou. A coisa era poderosa. Embainhada, ela nunca a teria visto, mas
nua, brilhava com um poderoso encantamento. As runas em seu punho e lâmina eram
valerianas. Keleios traçou as runas, demônio, dor, morte, prata, elfo e de repente ela
soube que espada ela segurava. Ache silvestri, Dor Prateada, um nome meio-elfo e
meio-demônio, e muito apropriado. Poderia levar a verdadeira morte a demônios
superiores. A coisa pulsou em suas mãos, viva. Embora permanecesse quieta, ela
sabia que era quase poderosa demais para ser usada. Estava escondido agora, 207

esperando um momento de fraqueza para que pudesse controlar. Keleios sabia melhor.
Não haveria um momento de fraqueza, se ela fosse cuidadosa.
Lothor disse:
— Eu tenho meu machado. Pensei que você poderia usá-lo.
Ela olhou para a coisa, paralisada.
— Oh, sim, eu posso usá-lo.
— Eu não vou precisar da sua adaga, Tobin ou sangue para o círculo.
Ele se inclinou e pegou sua arma, mas hesitou em perguntar sobre a espada. Seu
próprio senso mágico via pelo poder que era.
Os latidos vieram e o vento aumentou, correndo para ver quem os alcançaria
primeiro.
Ela juntou o cinto de espada e a bainha, e os colocou nos quadris. Ela segurou a
espada longa, a morte prateada, e falou com ela.
— Sinto muito por usar mal uma lâmina tão fina quanto você, mas preciso de
mágica hoje à noite, mágica forte. Você vai me ajudar? – Ela pulsou uma vez em suas
mãos, uma pulsação fraca, mas concordou.
Ela segurou-a com as duas mãos acima da cabeça e rezou para Urle dar força a
essas duas coisas de sua arte: encantador e encantado. As cores da tempestade que se
aproximava brincavam ao longo da lâmina e pareciam mais brilhantes na superfície
refletida. Keleios mergulhou a lâmina para baixo para se enfiar na rocha. Com um
grito de metal e uma chuva de faíscas azuis, ela e a espada Aching Silver começaram
a fazer um círculo na rocha. Seu canto subiu acima dos sons de espada e pedra. O
círculo se fechou e parecia que uma linha fina de fogo cortara o chão. Ela ficou
incerta, segurando a lâmina a poucos centímetros do rosto.
O vapor subiu da lâmina para o vento frio. Ela se sentou no centro do novo 208

círculo, de pernas cruzadas, e enfiou a espada no chão à sua frente. O canto mudou,
mas permaneceu constante. Ela mergulhou na magia e não registrou o uivo que vinha
sobre as árvores retorcidas. Ela se inclinou para a frente e cortou o braço com força
na espada. Com sangue, ela começou os símbolos. Dois símbolos tinham sido feitos
quando o uivo irrompeu na clareira. Ela forçou as memórias e continuou. O feitiço
era tudo que importava.
O primeiro cão de caça quebrou a cobertura, pálido como a morte. Tinha um
corpo humano nu coberto de sujeira e mofo nas folhas. Sua boca se abriu para uivar
para o céu, expondo uma horda de dentes semelhantes a agulhas. Unhas como
navalhas brancas arranhavam a borda da proteção. Uma dúzia deles veio fungando e
arranhando a clareira, uivando de frustração. Partes de corpos humanos estavam
pregadas na forma de cão de caça como grotescos quebra-cabeças de carne.
Lothor falou em voz baixa com Tobin.
— Observe que suas garras e bocas têm um tom amarelado, muito fraco sobre o
branco. É um veneno mortal para a maioria.
— Para a maioria?
— Sim –, ele parecia relutante em elaborar, e Tobin deixou para lá.
Enquanto Keleios traçava o homem-palito na terra, ela sentiu o puxão da espada
como uma corda invisível de poder, um fortalecimento, uma união. Cada marca de
seu dedo traçava um poder azul, e o brilho permanecia. Ela sentiu a ânsia da espada
de juntar sua mágica à dela. Ela sabia que a espada ansiava pela união com um
encantador, pois todos os encantadores ansiavam por um grande encantamento com o
qual se compartilhassem.
Os cães de caça se acalmaram e ficaram deitados ou sentados ao redor da
clareira, esperando. Os ventos haviam diminuído e o fedor da morte desaparecia a
cada sopro de vento fresco.
Das árvores, surgiu o Mestre dos Cães de Caça.
Ele tinha mais de um metro e oitenta de altura, coberto de escamas vermelhas,
peito de barril, com garras negras nos pés e nas mãos. Um colar de elos de ouro
pendurado em seu pescoço grosso. Três pedras foram colocadas nele – duas
vermelhas que brilhavam como sangue novo e uma preta que não refletia nada. Seu
rosto se abriu em um sorriso cheio de dentes, orelhas de morcego se curvando 209

levemente. O demônio se curvou e acariciou um dos cães com uma orelha de


cachorro vermelho e branco de um lado e do outro o rosto de um garoto.
— Peço desculpas por estar atrasado. Eu tive que raciocinar com aquela nuvem
fedida sem sentido. É uma pegada muito boa para a tempestade. – Ele riu. – Príncipe
Lothor, você está a favor ou fora de favor nesta temporada?
— Bem, Alharzor, meu status é de grande debate este ano.
— Ahhh, alguém se tornou ambicioso, e aposto que é Velen, O Preto.
Lothor reconheceu com um aceno de cabeça.
— Como eu sei disso, preso na ilha esquecida por Deus, atendendo aos
caprichos de uma louca? Porque ele veio aqui. Ele está muito chapado nos olhos de
Verm. Velen dá ordens, e eu escuto.
— Quais foram as ordens dele, Alharzor?
— Matar você e qualquer pessoa com você.
— Você pode achar essa tarefa longe de ser fácil.
— Eu sei, então eu deliberei. – Ele se sentou e dois cães de caça se aglomeraram
perto para se deitar perto dele.
— Harque dá valor a um lacaio de Verm?
— Não, mas seu irmão faz. Ele queria ter certeza de que você morresse, de um
jeito ou de outro. Ele deixa pouco ao acaso. Tema-o, príncipe, pois ele quer te matar.
— Como você planeja me matar em breve, não vou me preocupar com as
ambições de Velen.
O demônio riu.
— Verdade, verdade, do jeito que eu divaguei sobre você, pensaria que havia
uma chance de escapar. Se você me derrotar, há muitos outros esperando a vez deles.
O demônio vermelho estreitou os olhos amarelos e apontou para um dos cães. O
cão lutou e choramingou, mas finalmente se atirou no escudo. Ele foi jogado para trás,
atordoado e queimado, mas não pelo fogo.
— Ahhh –, disse o demônio.
Ele se levantou e parou um pouco antes do brilho do escudo. Ele fechou os olhos.
A concentração em seu rosto era atenta, sua respiração lenta e regular, enquanto ele
inclinava as mãos para o escudo. Ele foi banhado por faíscas de laranja, azul e branco. 210

Ele não soltou o escudo, mas derramou mais poder nele.


Eroar sentou-se calmo, imóvel, rosto plácido, mas seus ombros humanos
tremiam e sua pele começou a suar.
Com um rugido como trovão próximo, o escudo rasgou. Eroar e o demônio
gritaram. Alharzor parou, tremendo e sorriu.
Keleios terminou o último símbolo, e o escudo de bruxa pulsou no lugar.
O demônio fez uma pausa e balançou a cabeça:
— Dilacerações de Verm, será uma noite longa.
A proteção da bruxa havia se encaixado com uma onda de magia. Keleios se
moveu para tirar a espada da terra, mas ela encontrou sua mão, saltando para ela. A
força vital dela formigou em seu braço e enviou poder vibrando através dela. A
espada sofrera anos de desuso e afundava na glória de ser ativa. Ela virou o rosto para
cima e Alharzor a olhou pela primeira vez.
— Ahhh, Nightseer, irmã, isso não será uma tarefa fácil. – Ele olhou
atentamente, apertando os olhos.
— Que tipo de arma você tem aí?
— Ache silvestri, Aching Silver, morte dolorosa, os demônios nomearam isso há
muito tempo.
— Não pode ser.
— As grandes armas se protegem, Alharzor. Ficou nesta clareira por anos
intocados.
— É um pedaço de metal sem valor, nada mais.
— Olhe para isso. Olhe para ela e veja como está.
Ele pressionou perto do escudo.
— Vou ser frito, é uma daquelas armas élficas amaldiçoadas.
A espada pulsou. O sentimento era mútuo.
— Você vem até nós, Nightseer. Você usa uma espada auxiliada por demônios;
você põe em perigo sua alma por seu uso.
— Sua preocupação com o meu ser mortal é comovente, mas você teme esta
arma. Você tem medo disso em minhas mãos.
— Talvez, mas Harque ficará muito satisfeita em encontrá-la em nossa rede. Ela
te odeia, com uma queima pura, como o sol através do vidro. Isso queimou o que 211

restou de seus sentidos, porque sua sobrevivência colocou suas ambições em um


dilema, arriscar a morte por grande poder, ou não. Ela ainda está debatendo se deve
segui-la até o poço. Ela a odeia por lhe oferecer esse poder e culpa você por sua
própria covardia por não o aceitar.
— Ela sempre culpou os outros por suas próprias falhas.
A joia negra em seu colar brilhava. Ele fez uma careta como se estivesse com
dor.
— Ahhh, ai de mim, ela quer todos vocês prisioneiros. Já é difícil o suficiente
matar essa magia, mas prisioneiros. Ahhh, ela é louca.
— Você desobedeceria Velen para obedecer Harque? – Perguntou Lothor.
— Você vê o meu problema, príncipe. Recebi uma ordem direta de um Sumo
Sacerdote de Verm, meu mestre, mas a bruxa me controla por isso. – Ele apalpou o
colar.
— Um colar de obediência.
— Sim, Nightseer, e eu não posso desobedecer aos desejos dela.
— Eles são ilegais em Astrantha agora, pois nada pode quebrar seu poder depois
de ensorcelled. Coisas más de bruxas.
Ele parecia pronto para chorar.
— Nada pode quebrar seu feitiço?
— Há uma maneira. É perigoso e pode não funcionar, mas existe um caminho.
A esperança passou por seus olhos, depois morreu, substituída por uma raiva
cintilante.
— Você procura me enganar; não há escapatória.
— Juro pela chama sagrada de Urle que falo verdadeiramente. Eu conheço uma
maneira de libertá-lo da mentira.
Lothor falou:
— Ela segue Madre Blessen e não mente em juramento.
— Ela pode seguir Blessen, mas ela segura uma poderosa espada movida a
demônios.
Lothor encolheu os ombros.
Keleios assentiu.
— Mas você sabe como eu sou manchada. Você sabe que não foi a escolha que 212

me levou a segurar essa espada. – Ela se aproximou da borda da proteção – Eu era


escrava dela tanto quanto você é agora.
— Eu lembro –, um sorriso maligno curvou seu rosto vermelho e escamado. –
Arranjei um pouco do seu entretenimento na sua última estadia.
— Mas você não teve escolha, assim como você não tem escolha agora. Você
está reduzido a ser um garoto de recados, Alharzor.
A raiva brilhou em seus olhos.
— Estou reduzido em nada. – Enquanto falava, ele parecia crescer mais alto,
estendendo-se para o céu. – Eu sou Alharzor, o demônio vermelho.
Lothor falou:
— Alharzor, ninguém aqui dúvida do seu poder, pois você é um grande demônio
vermelho. Vamos falar e chegar a um entendimento. Vamos negociar.
Ele se encolheu imediatamente, e era como se o outro tivesse sido ilusão, o que
talvez fosse:
— Uma barganha, agora isso é algo para se falar. – Os olhos dele se estreitaram
e ele esfregou as mãos rapidamente. – O que você tem em mente, príncipe?
— Nós o libertaremos do seu encanto, e você nos libertará. Não é uma
pechincha justa?
— Sim, e porque é justo, você sabe que eu não posso aguentar.
Keleios começou a protestar, mas Lothor acenou para ela silenciar.
— Sim, eu sei que você precisará sair um pouco melhor do que nós, é o caminho
do demônio.
— Tão bom lidar com humanos que entendem desde o início, economiza muito
tempo. Agora você quer ser tradicional? Seu primogênito, um quilo de carne, um litro
de sangue ou uma missão. – Ele estalou os dedos e riu um som muito desagradável. –
Eu sei- você matará Harque; essa será sua busca.
— Eu pensei que ensorcellment significava que você nem pensava em
prejudicar seu mestre.
— Não, Nightseer, devo obedecer e pessoalmente não posso prejudicar ou
causar danos, mas eu lhe proponho uma tarefa quase impossível. Eu realmente
acredito que você falhará e, portanto, nenhum mal ocorrerá em Harque. 213

Lothor falou secamente.


— Dobrar um pouco as regras, não é, demônio?
Ele encolheu os ombros enormes.
— Vou deixar vocês em paz para discutir suas opções; meus animais de
estimação, é claro, permanecerão em guarda.
Ele desapareceu.
Tobin falou primeiro.
— Terrivelmente alegre para um demônio, não é?
— Sim –, respondeu Keleios, – ele puxava sua língua enquanto contava a piada
mais divertida sobre um bando de gansos, um demônio menor e uma garota ganso.
— Você deve me contar sobre isso em algum momento em que tenhamos tempo
sobrando –, disse Lothor.
Ela franziu o cenho para ele.
Ele sorriu de volta.
— Nas costas dele, os outros demônios o chamam de Aaah Sorridente. Mas
nunca na cara dele.
— Podemos matar Harque, Keleios? Você a conhece melhor que o resto de nós
– Tobin perguntou.
— Poderíamos, mas seria muito difícil, e Alharzor seria forçado a lutar contra
nós.
— Ele é o demônio mais poderoso a seu serviço?
— Ele era há seis anos, mas as coisas podem ter mudado. – Ela balançou a
cabeça. – Eu não confio nele. Para nos aproximar o suficiente para matar a bruxa, ele
vai querer fingir que nos leva como prisioneiros. Ele será forçado a pegar nossas
armas temporariamente. Se as armas se forem, fingir ser prisioneiros e ser
prisioneiros está muito perto para o conforto.
— Você tem certeza de que pode libertar o demônio da sua condenação?
— Não tenho certeza até explorar o feitiço do colar, mas acredito que sim.
— Você poderia simplesmente matá-lo. Isso o libertaria do feitiço.
— Mas isso quebraria a barganha. Se alguém bancar o traidor, que seja o 214

demônio, não eu.


Ele encolheu os ombros.
— Como você quiser, mas jogar limpo com os demônios é uma vantagem
estreita para caminhar.
— Concordo, mas eu permaneço firme.
Lothor suspirou, mas deixou para lá.
Eles debateram muito e muito, mas finalmente chegaram a um acordo. Quando o
demônio voltou, eles tinham seu plano.
— Bem, meus amigos, vocês já decidiram?
— Sim –, disse Lothor. – Nós vamos com você.
— Esplêndido!
— Se pudermos manter nossas armas.
O rosto dele caiu.
— Oh, meus amigos, isso não é para ser; você não pode ser prisioneiro e guardar
suas armas.
Keleios disse:
— Como anda a verdadeira visão de Harque?
Ele estreitou os olhos.
— Por quê?
— Se a visão dela diminuiu na mesma proporção em que diminuía seis anos
atrás, ela deveria estar quase cega agora. Uma pequena ilusão deve esconder nossas
armas de seus olhos confusos, e você pode suprir isso.
Ele rosnou baixo na garganta. Ele permaneceu em silêncio por um tempo e disse:
— Concordo. Quebre o círculo e venha conosco. Vou preparar uma ilusão.
Eles ficaram em pé, com as mãos perto das armas, e Keleios varreu o sinal de
bloqueio com a ponta da espada. A magia desapareceu e eles saíram cautelosamente
do círculo esculpido.
Alharzor falou.
— Agora veja isso no meu pescoço, para não ter que lutar contra você.
— Vou dar uma olhada e ver que tipo de encantamento te prende. – Keleios
avançou, espada desembainhada em uma mão. Os outros formaram um semicírculo
ao redor dela e do demônio. Os cães de caça caíram aos pés deles, perplexos. Um 215

rosnou aos pés de Tobin.


Lothor chamou:
— Mantenha-os para trás.
O demônio fez um gesto e as criaturas recuaram, choramingando.
Parecia haver calor vindo do corpo do demônio, suas escamas brilhando mesmo
no escuro com a ascensão e queda de seu peito. Keleios lutou para se acalmar, mas
lembrou que o terror avançava. Quando ela alcançou o colar, todos os músculos
zumbiram com a necessidade de lutar ou correr. Os elos de ouro estavam frios como
gelo no inverno; isso fazia parte da armadilha ali. As joias vermelhas pareciam
apenas uma decoração.
— Acredito que não será tão difícil quebrar como eu pensava. – As pontas dos
dedos encontraram a joia negra. Sim, havia algo aqui de poder. Ela o acariciou com
as pontas dos dedos, os olhos distantes, concentrando-se em sua visão interior.
Ela não estava tão profundamente no poder, que não percebesse quando o
demônio se teletransportou com ela. Havia uma sensação giratória, como se o mundo
tivesse mudado um pouco e Keleios percebeu que não podia sentir o vento. O medo
escorria através dela, uma corrente subjacente ao feitiço que ela estava procurando.
Alharzor a traiu. Quão demoníaco da parte dele.
Ela continuou a esfregar a pedra, tentando mantê-lo em segredo, enquanto outra
parte dela procurava sua localização. Paredes de pedra a cercavam. Tochas nas calhas
eram a única luz. Ela sussurrou como se ainda estivesse em transe:
— Eu acho que quase o tenho. – O demônio se inclinou para ouvir. Ela agarrou
a joia preta e os elos firmemente.
— Sim. Sim. – Ela ficou tensa ao empurrar a espada para cima. Ele viu o truque,
mas não conseguiu se libertar do colar. A lâmina de prata o levou através da virilha
com uma chuva de faíscas azuis.
O fedor quente e acre de sangue demoníaco encheu o corredor. Ela enfiou a
espada em seu peito enquanto ele a arranhava. O sangue deles se misturou no chão, e
ela o soltou e recuou. A armadura de couro pendia em fitas nas costas e no lado
esquerdo. Cada marca de garra começou a arder e doer. Se o demônio não estivesse
sob a compulsão de não a matar, ela teria ficado muito pior. O sangue fluía em finas
correntes das marcas das garras. 216

Ele caiu no chão, sangue vermelho-alaranjado bombeando de seus ferimentos.


Houve sussurros no corredor:
— Assassina de demônios, assassina de demônios.
Mas Keleios não viu nada. Alharzor começou a gritar:
— Bem-vindo a casa, bem-vindo a casa.
Seus gritos trariam outros.
A espada sussurrou em sua mente. Queria matar a vida do demônio. Queria a
morte. Ela não viu outra maneira de silenciar o demônio.
— Você tem certeza de que podemos matar o demônio? Pensei que você
precisasse de um portador do mal para cumprir esse dever. – Isso era uma certeza. Ela
surgiu atrás do demônio contorcido, fora do caminho de garras ou garras repentinas.
Ela e a espada alinharam-se para uma fatia do pescoço. A espada correu
ansiosamente, puxando a mão dela. A lâmina cortou certo, a cabeça rolando
suavemente para o lado. Sangue disparou e o corpo continuou a se contorcer e a gritar.
Keleios se afastou do fluxo sanguíneo. Ela estava brava.
— Você disse que poderia matá-lo.
Aquilo tinha lhe assegurado que sim, mas não por métodos simples. Ele
sussurrou suas necessidades.
— Isso é perigoso.
— Mas a única maneira –, sussurrou em sua cabeça.
Ela deu a volta no corpo tenso e montou na cintura fina; o peito era muito largo
para ficar do outro lado. A espada se levantou com um aperto de duas mãos, e
Keleios a derrubou no peito do demônio.
O demônio gritou como se quisesse derrubar as próprias pedras. A espada
comeu a dor, o medo, a força da vida do demônio. Ela tentou se retirar, mas a espada
brilhava em azul. O brilho subiu por seus braços até que ela foi banhada nele. Ela
lutou, mas o poder fluiu através dela, alienígena, doce e doloroso. Tudo o que tinha
sido Alharzor veio para ela e a espada. O brilho desapareceu e ela caiu, sacudindo a
espada com ela. Ela se sentou em uma poça de sangue demoníaco e tentou respirar,
tentou controlar o poder que a atravessava.
Ela perguntou à espada:
— O que você fez comigo? 217

— Ajudei você a matar um demônio.


A espada estava falando alto. Também tinha ganhado poder. Ela se sentou e
tentou entender, mas um som veio do outro lado do corredor. O corredor curvava-se
para a esquerda.
Algo estava se aproximando daquela curva; algo grosso, molhado e pesado
estava sendo arrastado. Ela nunca tinha ouvido um som como esse.
— O que é isso?
— Eu acho que é outro demônio. – A espada se aqueceu com o pensamento. –
Nós podemos pegar outro.
— Não! Eu não aguento outro tão cedo. Você me controlou por um tempo, e eu
não terei isso.
— Se você não me usar, você morrerá.
— Não. – Ela se moveu para limpar a espada, mas o sangue parecia ter
queimado. Ela continuou a avisá-la até que ela a embainhou e a trancou no lugar. O
demônio entrou em sua visão, e ela se afastou. Era preto e não tinha forma real, pois
se movia como lama espessa e aquosa. Uma trilha de lodo brilhava atrás dele. Um
único olho ficou perto do meio de sua cabeça, e esse olho captou a carnificina e a viu.
A gosma preta se partiu para expor uma boca que estava vazia, exceto por uma
grande língua vermelha. A língua estava espetada como uma arma. Ela se arrastou em
direção a Keleios.
Ela não tinha intenção de ficar tempo suficiente para alcançá-la. Keleios pegou o
colar ensanguentado de obediência e procurou com sua mente. Ela havia realizado
dezenas de feitiços de teletransporte na sala de aula. Algumas vezes ela saía viva, não
meio enterrada em uma parede, mas quatro vezes um professor teve que ajudá-la,
salvá-la. Não havia ninguém para ajudar dessa vez, mas se ela pegasse outro demônio
tão cedo, a espada poderia possui-la. A morte era melhor que isso. Ela sussurrou para
si mesma:
— Você pode fazer esse feitiço. – Ela conhecia apenas uma sala o suficiente
para se teletransportar. Uma leve tontura e ela ficou no escritório de Harque. O 218

teletransporte funcionou, ela estava aqui, viva. A bruxa olhou para cima com um
sorriso.
— Eu estava esperando por você, Keleios Incantare.
CAPÍTULO 13: HARQUE, A BRUXA

KELEIOS CONGELOU, ESPERANDO, espada na mão, mas nada aconteceu. Ela


estava perto de um trípode e seu pentagrama esculpido no chão. A sala retangular era
exatamente como ela se lembrava. Harque tinha estado quase cega para a realidade há
seis anos e ninguém mexia nos móveis do escritório de um cego. A bruxa se sentou em
sua mesa ao lado de Keleios.
Harque sorriu em um ponto alguns metros à frente dela, perto das estantes que
219
cobriam toda a parede oeste. Harque continuou a sorrir e falar com o que só ela podia ver.
– Eu sabia que você voltaria para provar novamente do poder do demônio. – Ela riu,
subiu e desceu até que ela soluçou. – Eu sabia que você queria poder. – Ela pareceu
perder o fantasma de vista e semicerrou os olhos ao redor da sala. Seus olhos
encontraram a verdadeira Keleios e a fitaram: – Eu queria poder. Eu queria, mas você
pegou, você o tomou.
Harque tinha sido uma mulher alta e ainda estava à sombra de sua beleza juvenil
quando Keleios aparecera e fracassara anos atrás. Agora ela estava curvada e
incapacitada pela idade. Certamente, apenas alguns anos não poderiam tê-la mudado
assim. A mulher começou a discutir consigo mesma, imitando a voz de Keleios de anos
anteriores. As duas vozes debatiam em círculos bem usados.
– Desisti da minha juventude, da minha beleza, da minha saúde, pelo poder. Do que
você desistiu?
– Arrisquei minha vida, minha alma eterna, e consegui.
– Não!
– Sim, eu fiz o que você temia fazer, e agora você negociou a juventude e a força
que teriam permitido que você me seguisse.
– Mentirosa, você veio pelo poder, você queria ir para o fosso.
– O fosso onde até Harque, a Bruxa, temia ir. Eu era uma criança. Eu estava com
medo.
A bruxa escondeu o rosto nas mãos, mas ainda falava como Keleios.
– Você matou minha mãe. Eu vim por vingança, não por poder. No entanto, eu, que
não busquei, encontrei, e vocês que procuraram por muito tempo, não tem nenhum
resultado para mostrar.
– Não. – Harque começou a chorar e as duas vozes cessaram.
Seis anos atrás, Keleios poderia tê-la matado. Harque era forte, poderosa e malvada.
Agora ela sentia pena quando Keleios pensava que não sentiria nada. Ela embainhou
Ache silvestri e o prendeu no lugar; ele não queria ir. Keleios avançou, silenciosa como
só um elfo pode ser, e espalhou as pontas do colar ensanguentado. Ela entoou
silenciosamente o feitiço de ligação do colar. Deixar Harque viva era um castigo pior. O
colar pairou sobre a cabeça cinza, mas a bruxa se moveu rápido como um raio.
Harque pulou da cadeira e se agachou a apenas alguns metros de distância; o rosto
mudou. Era o mesmo, mas de forma estranha, e os braços ficaram mais longos, com220
garras no lugar das mãos. Keleios abriu a bainha de Ache silvestri, deu um passo para trás
para ter as duas portas da sala à vista e também não deixar de ver o demônio metamorfo.
A porta mais distante se abriu e Harque entrou, ainda alta e orgulhosamente bonita. Seus
olhos estavam cobertos por dois tapa-olhos de couro. Seu vestido era creme com uma
capa cinza suave jogada sobre um ombro, e ela sorriu, dando boas-vindas.
– Keleios, como é maravilhoso nos encontrarmos novamente depois de todos esses
anos.
A segunda porta se abriu e homens entraram com armas. Cada um deles usava a
túnica com capuz dos adoradores das sombras. Eles eram apenas seis, mas a magia
brilhava em suas armas e pelo menos uma das espadas derramava veneno em gotas
pesadas e lentas. O metamorfo de braços longos saltou sobre ela. Ela balançou o colar e
acertou um golpe forte no rosto. Caiu, sangrando e atordoado. Ela deslizou os elos de
ouro sobre seus ombros magros, sussurrou palavras de aprisionamento e disse:
– Ajude meus amigos a me encontrar e não deixe que eles sofram nenhum dano.
Agora vá.
Os homens circulavam com cautela enquanto o pequeno desaparecia. O colar
significava que Alharzor estava morto e isso não era uma tarefa fácil. O próprio quarto
estava preso em uma armadilha e ela não podia se teletransportar para fora. A bruxaria a
trancou aqui, e os adoradores das sombras avançaram.
– Levem-na – A voz impaciente de Harque interrompeu a espera.
Um homem disse:
– Mas ela matou Alharzor.
– Absurdo. Ela é uma feiticeira e quebrou a ligação. Alharzor fugiu para casa e ela
ficou com o colar. Vocês acreditam que uma garota sozinha poderia matá-lo?
Eles não acreditavam e foram tranquilizados, e Keleios não os queria tranquilizados.
– Alharzor morreu porque ela disse a ele para não me matar. Ele poderia ter se
salvado me matando, mas ele estava enfeitiçado e morreu. E... – sua voz mudou, se
aprofundou, enquanto ela girava a espada de prata – Ele não a abandonou completamente.
Seu poder existe aqui dentro de mim. – Keleios podia sentir o poder de Alharzor como
um segundo pulso dentro da espada, e todo esse poder era seu para invocar.
Eles se mexeram nervosamente, incertos. 221

Harque jogou um punhado de pó neles, e os que foram atingidos gritaram.


– Capturem-na viva. Todos aqueles que sobreviverem terão liberdade ilimitada com
as meninas. Juro pela Sombra.
A hesitação se foi. Keleios tentou uma última coisa.
– Nenhuma mulher vale suas vidas.
Aquele que carregava a espada envenenada disse:
– Estas valem.
Eles correram para frente, aquele com a espada envenenada se aproximando
primeiro. A prata rascante cantou em suas mãos, cortando sob a lâmina erguida dele,
encontrando o coração e cortando as costelas como manteiga. Alharzor estava lá, seu
poder forte e vital, pulsando nela e na espada. Uma chama azul fluiu da espada até os
ombros; a cada morte, a espada cantava com mais suavidade. Ele sussurrava em sua
mente como a voz de um amante, mas falava de corte e sangue e tornava essa visão bela.
Os homens de túnica cinza caíam a seus pés, e ela se lembrou pouco da luta após a
primeira morte.
Quando todos estavam mortos, ela respirou como se viesse de águas profundas. A
espada cantou em sua cabeça, não o poder de Alharzor, mas a própria espada. O demônio
estava dentro da espada, e de repente Keleios sabia que a espada poderia engoli-la com a
mesma facilidade. Com uma visão alarmante, ela sabia onde estava o perigo real. Keleios
empurrou todas os feitiços de proteção que tinha dentro de sua cabeça, proteções contra
feitiços de controle da mente. Era como paredes se quebrando, batendo dentro de si
mesma. Ela estava isolada, sem perceber nada além do silêncio repentino dentro de sua
cabeça. Ela abriu os olhos e a mente com cautela.
Harque levou um apito de prata aos lábios. Há quanto tempo ela estava chamando,
Keleios não sabia, mas algo grande se arrastava pela porta próxima. O demônio que
parecia lama ambulante entrou pela porta. A espada cantou uma canção de morte. Nunca
tinha dominado um demônio como este antes. Mas Keleios não queria ter que lutar contra
a espada novamente tão cedo.
A espada reclamou amargamente, mas Keleios apontou a mão para aquela massa
gelatinosa e pensou em fogo. O fogo rugiu, brilhou, produziu suor em seu corpo. Uma
bola de fogo disparou para frente e ricocheteou inofensivamente. Ela precisava de mais
poder do que isso. A espada prometia poder, mas Keleios não se sentia pronta para222
confiar na espada. Ela limpou a lâmina automaticamente antes de recolocá-la na bainha.
Embainhada, a espada era mais silenciosa e ela podia se concentrar em sua própria magia.
O fogo não fez mal àquele demônio, mas talvez o frio fizesse. Frio, frio que queima os
pulmões, racha a pele, frio, gelo. Ela atraiu esse pensamento por suas mãos e direcionou
ao demônio. Um raio branco bifurcado atingiu a coisa, e ela abriu a boca para gritar.
Estava coberto de gelo pela metade, ferido e confuso com uma dor totalmente nova.
Harque soprou o apito, mas ele começou a recuar para fora da porta. Tinha tido o
suficiente para um dia inteiro. Keleios virou os punhos cerrados para a bruxa quando algo
a atingiu por trás. Afundou dentes como agulhas em seu ombro esquerdo nu. Keleios
rolou, a mão fechando em uma garganta que era macia e quente. Garras negras
arranharam seu rosto, procurando seus olhos. Uma cortina de cabelos cor de fogo a cegou,
mas ela apertou, cravando os dedos, procurando. Algo estalou na garganta, mas ainda
assim a coisa lutou. Ela saltou para longe de seu aperto enfraquecido. Era uma súcuba,
um corpo feminino voluptuoso e nu, coberto com asas de morcego de couro, garras
pretas no lugar das unhas. Olhos amarelos procuraram Keleios com ódio. Com a garganta
parcialmente esmagada, o demônio rastejou atrás dela.
A espada gritou para ela:
– Só há uma maneira.
Ela assistiu através da névoa, enquanto Harque cambaleava em sua direção, o pó
escorrendo de sua mão restante. Um machado pareceu flutuar e a cabeça da bruxa sumiu
de vista. O pó voou inofensivamente, cintilando no ar. Os músculos tensos de Keleios
puxaram ela e a espada para trás enquanto se libertava. Ela deixou cair a espada, mas não
fez nenhum som tão alto como o rugido em sua cabeça. Tobin estava ali, ajoelhado,
segurando-a, mas apenas seus lábios se moviam. Não houve nenhum som, a não ser as
vozes surgindo em sua cabeça, o poder da morte e um sussurro sedutor.
O demônio metamorfo estava lá, todo verde e pequeno agora, o colar piscando nas
luzes. Keleios percebeu que não era um demônio, mas um pequeno duende. Nenhum
demônio que se preze aceitaria duendes como parentes, de tão pequenos e fracos que
eram. Ele estava puxando o braço de Tobin. Lothor se curvou sobre ela, mas eles ainda
estavam longe.
Uma frase escapou.
– É a espada... 223

Sim, claro que era. Ela estava tentando assumir, roubá-la de si mesma, a bastarda
sugadora de almas. Keleios tentou abrir escudos dentro de sua mente e expulsá-la, mas
desta vez sua feitiçaria não veio em seu auxílio. Sua cabeça zumbia com a presença da
espada e a essência do demônio que eles tinham acabado de matar. Sua feitiçaria não era
nada antes daquela combinação de poderes. Keleios fez o que tinha que ser feito, aceitou
o poder que fluía ao redor dela e da espada, e engoliu totalmente o mal e as memórias de
rituais que nenhum mortal jamais vira.
Lentamente, o mundo foi sendo ouvido novamente e a espada silenciou, tão perto,
mas não perto o suficiente. Tobin ajudou-a a se levantar e ela tropeçou, percebendo que
estava ferida. O sangue vazou de uma ferida lateral. A luta turva cobrava seu preço.
Lothor limpou e embainhou sua lâmina e prendeu as travas no lugar.
– Onde está Eroar? – ela perguntou.
– Ele está conversando com o verme dourado. –
Ela olhou interrogativamente para ele, e Lothor disse:
– Você veio pelo caminho mais fácil. Tínhamos que passar pelo verme da torre.
– Esse aí – ela perguntou, apontando para o diabinho verde – não ajudou você?
– Sim, seu amiguinho nos ajudou. Mas o verme estava desconfiado, então Eroar
mostrou sua verdadeira forma.
– E os demônios?
– Eles fugiram quando Harque morreu. Você não sentiu?
Keleios podia sentir uma liberdade, uma leveza e, no entanto, havia algo de errado.
O lugar tinha sido maligno por muitos anos; levaria tempo.
Eles varreram a mesa e a colocaram sobre ela. Poth saltou ao lado dela com um
miado questionador, mas Lothor mandou-a descer. Ela o fez.
– Sem mais perguntas até que eu veja essa ferida. – Os dedos delgados de Lothor
exploraram a ferida e seu rosto ficou impassível, sua respiração lenta e superficial. O
calor familiar fluiu por ela, e ele se curvou com a dor de sua nova ferida. Ele curou os
arranhões mais profundos e parou a hemorragia. Ele se endireitou, o suor escorrendo de
seu rosto. – Você vai viver.
– É reconfortante saber, curandeiro. – Ela se sentou, sentindo cuidadosamente o
lado curado. – Devemos libertar os prisioneiros da masmorra. 224

Lothor balançou a cabeça.


– Não há tempo.
– Harque está morta; os demônios fugiram. Há tempo. Não vou deixar ninguém
passar fome nas celas abaixo.
Ele estava com raiva, mas escondeu muito bem e saiu para vasculhar o escritório. O
diabinho verde pulou ao lado dela.
– Eu fui bem, não fui, Mestra, não fui bem?
– Sim, Groghe, você se saiu bem.
Ele inchou o peito magro de orgulho.
– O que você quer que eu faça agora, Mestra?
– Traga-me as chaves da masmorra. – Ele se virou para sair. – Espere. Você pode
nos guiar pela área da prisão? Você conhece bem?
Ele parecia prestes a chorar.
– Não, ah, Mestra, não, eu não.
– Está tudo bem. Traga-me as chaves e veja se sobrou alguém que possa ser um
bom guia. Não traga o guia até nós. Basta olhar para o guia e nos falar dele ou dela. Voce
entende?
– Sim, oh, sim.
– Então vá.
Keleios deslizou para fora da mesa e começou a vasculhar as estantes de Harque.
Tobin se inclinou perto da porta, nervosamente segurando sua espada. Poth se aninhou na
cadeira de Harque em forma de trono, os olhos amarelos observando Keleios.
Lothor deu um passo atrás dela, tirando um traje incrivelmente grande de cota de
malha élfica da bolsa no cinto. Ele o estendeu para ela.
– Aqui. Com isso, talvez você não se machuque tão rápido.
Ela tocou a malha lentamente. Parecia chuva quando os elos se chocavam um contra
o outro.
– É uma oferta generosa.
– Eu simplesmente quero você viva para nossa barganha, e você precisa de algo
mais do que uma armadura de couro destruída.
Ela segurou a corrente, acariciando-a, e foi até a escrivaninha mais uma vez.225
Quando ela começou a tirar os restos de couro, ela percebeu o quão pouco vestia
embaixo dele. Ela se virou para pedir para Lothor olhar para o outro lado, mas ele já
estava sorrindo.
– É o preço pela armadura. Chame isso de uma promessa do que está por vir.
– Forja de Urle... Curandeiro, você nunca se cansa de ficar me atraindo?
– Não.
Tobin olhou para a porta sem ser solicitado.
Keleios lhes deu as costas e começou a trocar a armadura. A maior parte da cota de
malha teria esfolado e arranhado sem o enchimento adequado, mas esta era uma cota de
malha de Valler. Era leve como um pano, tão fresca e suave na pele como seda. Na forma
de armadura élfica, cabia em seu corpo como se tivesse sido feito especialmente para ela.
Keleios prendeu a espada no lugar e se sentiu mais segura.
– Caiu bem em você, Keleios.
– Obrigada, Príncipe Lothor.
Tobin se virou.
– Nunca vi um trabalho tão delicado.
– Nem verá, fora dos reinos élficos.
Algo atraiu sua magia. Algo estranho. O diabinho metamorfo voltou com as chaves
penduradas no pulso. Keleios o elogiou por seu sucesso.
– Eu me transformei em Harque, e o próprio mestre das masmorras me deu as
chaves.
– Você poderia se transformar em Harque e manter a forma?
Ele acenou com a cabeça e começou a mudança.
Mais uma vez, algo a chamava. Sussurrou: “Encontre-me. Me leve com você."
Uma réplica perfeita da bruxa estava diante deles. Keleios contornou o demônio e
foi até um pequeno armário de madeira. Estava trancado. Keleios quebrou a madeira e a
abriu. Dentro havia um pacote quadrado coberto de seda cinza. Ela o pegou e respirou
fundo.
Lothor perguntou:
– O que você encontrou?
– Não tenho certeza, mas me chamou a atenção. Ele não queria ser deixado para trás.
– Keleios, apenas as grandes armas e relíquias cuidam de si mesmas. 226

– Eu estou ciente disso. – Ela colocou o livro sobre a mesa e o desembrulhou


lentamente. A encadernação era cinza. Não havia runas na capa, nenhum aviso, nenhuma
instrução, nenhuma pista. Ela abriu a capa frontal com cuidado e encontrou uma página
estranhamente amarelada com tinta marrom como ferrugem serpenteando por ela.
Keleios deu um passo para trás, esfregando a mão e balançando a cabeça:
– Fui ferida; o livro me atingiu! – O mundo pareceu girar e ela caiu de joelhos,
esperando que aquilo passasse. Quando ela conseguiu ficar de pé, ela disse:
–É o Livro de Gray.
– Mas isso é lenda.
– Assim como Ice era uma lenda, e a espada matadora de demônios.
Ele não respondeu.
– Há muitas relíquias circulando ultimamente.
– Você acha que alguém os está distribuindo como recompensa.
– Ou como armas.
Tobin se aproximou do livro.
– O que é este livro?
A voz de Keleios caiu no padrão cantado do bardo.
– Muito, muito tempo atrás, antes que a Senhora das Sombras perdesse seu nome e
seu corpo, antes de Verm cair em desgraça pelo estupro de sua irmã, quando Loth não era
o deus do derramamento de sangue, os três deuses se uniram. Loth era um feiticeiro; a
senhora, uma bruxa de ervas; e Verm, um feiticeiro. Eles juntaram seus poderes para
criar uma grande obra. Verm e a Senhora colocaram muito de seu poder na fabricação,
pois juntos eram maiores do que sozinhos. Mas Loth apenas encantou, vinculando seus
poderes ao livro, às páginas, páginas feitas com os ritos de Verm e a Senhora das
Sombras. Para as páginas eles arrancaram a pele de seus seguidores mais devotos, das
vítimas em seus altares fizeram uma ligação com sangue e começaram o trabalho.
Finalmente foi feito, mas era uma coisa grande demais e causou inveja entre os
deuses. Verm viu como o livro era poderoso; a essência do mal estava nele, da corrupção,
sua essência. A Senhora depositou nele sua substância, suas mentiras, seu poder. Fora
feito em uma tentativa de obter maior poder, mas agora cada um olhava para o outro com
medo. Pois o livro poderia trazer a ruína do outro. Eles haviam se permitido muitos
desvios para criá-lo. Certa noite, Loth roubou o livro e jurou que nenhum dos dois o teria227
por medo de se voltar contra o outro. A princípio, temeram que Loth viesse contra eles,
mas isso não aconteceu. O livro foi perdido. Até agora.
O demônio-Harque disse:
– Precisamos nos apressar, Mestra. O mestre da masmorra pode vir à procura da
bruxa.
– Ele está certo. Lothor, você e Tobin vão e libertem os prisioneiros. Eu não posso
deixar este livro. E eu não sei se ele vai me permitir tocá-lo novamente.
– Eu irei se você prometer não ler enquanto estivermos fora.
Keleios riu.
– Eu não estou tão ansiosa para ter minha mente destruída. Eu não vou ler, você tem
minha palavra.
Eles partiram, seguindo a falsa Harque. Eroar apareceu na sala momentos depois.
– O Verme Guardião foi mal servido pela bruxa. Um olho infeccionou, quando uma
pequena limpeza o teria evitado. O covil está imundo.
– Veremos o que podemos fazer antes de partir.
Ele sorriu, sua forma humana bonita com dentes brancos perfeitos.
– Eu prometi a ela que conseguiríamos.
– Ela?
– Sim. – Ele a desafiou a fazer algo com isso. Ela deixou para lá.
Poth estava cheirando o corpo sem cabeça de Harque e deu um assobio baixo. A
carne começara a escorregar dos ossos da mão; os ossos eram verdes. Keleios ajoelhou-
se ao lado da figura.
– Maldição de Verm, doppelganger enfeitiçado. Harque está viva. Os demônios não
fugiram; eles estão se escondendo. Temos que avisar os outros.
Eroar estendeu a mão, mas não conseguiu passar. O escudo protetor estava de volta
e a sala era uma armadilha mais uma vez.
Com uma onda de magia, uma revoada de súcubas apareceu na sala. Como
borboletas maníacas, elas desceram, algumas com armas, outras com garras e dentes.
Keleios puxou a prata dolorosa de sua bainha. Eroar enviou um guarda-chuva de gelo
sobre os demônios, e eles se quebraram, gritando em vozes agudas. As súcubas fugiram.
No silêncio, uma mulher falou. 228

– Bem-vinda, Keleios Incantare, filha de Elwine eu espero que tenha se divertido.


Harque estava perto deles, longe de qualquer porta. Ela era alta, imponente e bonita.
Onde antes seus olhos estiveram, agora brilhavam joias facetadas vermelhas.
– Como sempre, bruxa, não houve nada de enfadonho na nossa estadia.
Harque sorriu:
– Estou tão feliz. Você ficará feliz em saber que minhas amigas aladas desceram
para visitar seus companheiros. – Ela caminhou ao redor da sala para ficar na frente do
armário destruído. – Vejo que você encontrou o livro.
– Sim.
– Bem, pequena feiticeira, desejo-lhe melhor sorte do que eu. Fiquei muito louca
por vários anos depois de decifrar alguns dos feitiços menores.
Seu sorriso era melancólico.
– Pagar tanto apenas por conhecimento... – Ela olhou para Keleios, e a meio-elfo
viu a vida brincar por trás dos olhos de joia. Harque estava lá, as joias refletiam seu
humor como olhos reais.
– E que preço você pagaria pela liberdade para você e seus amigos?
– Quanto você cobra?
– Nossa, como você mudou; aprendeu a ter cuidado. Mas seis anos é muito tempo
para alguns.
Ela continuou a andar pela sala, tocando objetos com uma leve carícia.
– Meu preço? Você ser minha segunda quando eu for para a arena.
A surpresa passou pelo rosto de Keleios antes que ela pudesse conter.
Harque deu uma risadinha.
– Sim, fique surpresa. Negociaremos, Keleios Incantare, ou lutaremos?
Eroar falou baixinho:
– É perigoso?
Keleios disse:
– Sim, mas não extremamente, se a pessoa que está passando for obstinada. Você
tem força de vontade agora, Harque?
– Estou pronta para passar com meu poder. – Keleios franziu a testa com a frase.
Uma almofada de veludo estava em cima do gabinete destruído e sobre ela estava
um globo polido de cristal. Harque pegou a bola de cristal. 229

– Aqui, veja seus amigos; talvez isso a ajude a decidir.


Imagens como névoa rolaram ao redor da esfera, mas Keleios procurou Tobin e o
encontrou. Ele estava nu e perdido no abraço de duas súcubos. Ele não sentia o perigo, e
Keleios seguiu em frente rapidamente.
Harque riu, sacudindo o globo e depois se acalmou.
– O curandeiro das trevas é o próximo.
A palavra desenhou a imagem no cristal. Lothor estava em uma cela e se afastava de
uma súcuba de cabelo cobre. Ele estava lutando pelo controle, mas seu machado estava
do outro lado da sala. Outro demônio o tocou, e ele recuou, com medo. Ele virou as
costas e começou a bater na parede, cavando buracos na pedra.
– Aquele viu o que as súcubas fazem. Ele teme muito e é obstinado. – Harque deu
um sorriso adorável; as joias em seu rosto refletiram a luz por um instante.
– Uma súcuba pode drenar um homem até a morte se não for controlada.
Ela recolocou o cristal em sua almofada.
– Existem outros demônios e pessoas que desejam visitar seus companheiros,
muitos outros. – Ela sorriu radiante para eles. – Mas você sabe disso melhor do que a
maioria, meio-elfo.
– Sim, Harque, eu me lembro. Liberte-os e eu irei apoiá-la.
– Não, vou libertá-los depois de passar pela arena.
Keleios a encarou de frente, a mão segurando o punho; a espada começou uma
música suave.
– Harque, sua jornada será longa. Com o tempo, podem ocorrer grandes danos. Não
vou negociar por homens destroçados cujas mentes e corpos foram corrompidos.
– É verdade, é verdade, mas se eu os libertar, você não vai negociar de forma justa
comigo.
– Então não podemos fazer nenhum trato.
Eroar interrompeu.
– Talvez, se os demônios não tivessem permissão para machucá-los durante o tempo
que Harque levaria para atravessar o fosso.
– Não, Eroar, a ideia de dano de um demônio é muito estranha. Eles não
prejudicaram nenhum deles ainda, pelo menos não em sua maneira de raciocinar. –
Keleios avançou para ficar a apenas dois passos da bruxa. – E se eu fizer um juramento?230
Você vai libertá-los antes de cruzar o fosso?
– Dependeria do juramento.
– Vou jurar pelos cães de Vermel e pássaros de Loth.
– Um juramento estranho para um seguidor de Cia.
– Estes são tempos estranhos. Está combinado?
Harque puxou um apito de ouro e o tocou nos lábios. Uma succubus ruiva apareceu.
– Liberte os homens depois que ela fizer este juramento.
A demônia ruiva fez beicinho.
– Isso não vai ser bem recebido. Elas estão na fila para o de cabelos brancos. Já se
passou muito tempo desde que nos deparamos com um príncipe de sangue real de Lolth
ou Meltaan.
– Por que elas fazem fila pelo de cabelo branco?
– Ele é muito habilidoso com demônios.
Harque acenou para o globo e ele girou para dar imagens de Lothor com três
Súcubas. Keleios desviou o olhar, a raiva e a vergonha passando por ela. Harque riu.
– Ele não teme o abraço amoroso; ele teme sua própria perversão. Ele parece
bastante feliz.
A súcuba disse:
– Não, mestre, ele não tem em nós o prazer irracional que a maioria dos homens
sente. Ele tem um desempenho maravilhoso, como um animal bem treinado, mas ele não
gosta de verdade, não como o príncipe meltaaniano.
Uma careta deformou os lábios de Harque.
– Não importa, ele não está mais angustiado.
– Angústia é uma questão de definição – disse o demônio.
– Fique quieta!
O demônio abaixou a cabeça e não disse mais nada. A bruxa se lembrou que tinha
plateia e sorriu.
– Eles estarão seguros por alguns dias.
– Não, esse não foi o trato.
– Não acredito que pudesse persuadir minhas meninas a desistir de brinquedos tão
satisfatórios tão rapidamente.
– Então não há barganha. 231

– Ah, acho que sim. – As luzes apagaram-se. A escuridão cegou Keleios e, mesmo
assim, não era escuridão de forma alguma.
Eroar gritou:
– Keleios!
As luzes piscaram novamente. Onde Eroar estivera havia um buraco, muito escuro,
através do qual soprava um vento quente. A espada de prata saltou para sua mão.
– Não, meio-elfo, eles vão morrer se você me ameaçar. A vida deles depende de
suas ações.
Keleios tremeu, lutando contra a ânsia da espada e sua própria raiva.
– Ponha a espada na mesa. Talvez você não acredite em mim. Devo matar um deles
para provar minha sinceridade?
Keleios tocou a espada com a mente, dizendo para ser paciente, que eles ainda
beberiam o sangue do demônio. Estava prateada e adorável sobre a mesa. Keleios alisou
as mãos na cota de malha, forçando-se a relaxar.
– Bom, agora olhe para o seu dragão.
Um movimento chamou a atenção de Keleios. Poth rastejou pela sala. Uma chance,
ainda havia uma chance.
– Mostre-o para mim e pronto, bruxa.
– Ah, então a velha Keleios ainda se esconde dentro daquela mesma fachada de
calma. Eu vou mostrar o seu dragão.
Ela voltou seu olhar para o cristal mais uma vez, e Keleios a seguiu.
Eroar ainda em forma humana estava afundado até os joelhos em lodo preto. Meias
formas estranhas se aglomeraram em volta até parecer que a própria escuridão se
contorceu. Uma delas disparou muito perto, um raio de gelo o fez correr de volta para os
outros. Keleios tocou a mente de Eroar com cautela. Harque não pareceu se importar.
* Eroar, você pode se teletransportar para mim? *
* Não, alguma magia me prende aqui. *
A imagem desapareceu e Keleios piscou para a bruxa. Poth se agachou em cima da
estante, esperando. Harque deu meia-volta em direção à prateleira e Poth saltou sobre ela.
Ela gritou quando as garras arranharam seu rosto. Poth era uma fúria que cuspia,
arranhava e mordia.
A espada perguntou: 232

– Agora, agora?
– Agora. – A lâmina saltou para sua mão e Keleios avançou.
Harque tirou Poth de cima dela e virou o rosto ensanguentado para Keleios.
– Maldita seja. – A lâmina deslizou no ponto certo, procurando seu coração.
Keleios enfiou a espada mais fundo enquanto a bruxa caía de joelhos. Elas se
ajoelharam cara a cara, e Keleios observou a vida cintilar nos olhos de joias. Harque
sussurrou: "Maldita seja, maldita seja". Mas, não havia magia nisso. Keleios viu a vida
escapar de seus olhos, como havia escapado dos olhos da mãe de Keleios há tantos anos.
O sangue do coração jorrava da ferida, salpicando a cota de malha de prata com
sangue coagulado quase preto. Keleios sacou a espada de sua bainha de couro. O corpo
se ajoelhou por um momento, então lentamente deslizou para o lado. Estava amarrotado e
vazio no chão de pedra.
A espada sussurrou em seu ouvido:
– Nós trazemos a morte e a vingança.
Anos atrás, ela viera em busca da morte da bruxa e encontrou dor e derrota. Desta
vez, ela viera como um sacrifício para encontrar vingança. Foi o suficiente para os dias
de sofrimento que sua mãe suportou? Não. Ela limpou sua espada em uma ponta da capa
cinza de Harque. Não, não era o suficiente, mas serviria, bastaria.
CAPÍTULO 14: UM SOM DE CORNETA

ELA EMBAINHOU A ESPADA, mas não colocou as trancas e se ajoelhou ao


lado de Poth. A gata ficou atordoada, mas seus dedos não encontraram ossos
quebrados, e Poth se queixou de nada além de contusões. A gata começou a lamber o
sangue da bruxa de suas garras e definir seu pêlo novamente. Se ela estava
interessada em se cuidar, estava bem.
Um pedaço de corda boa estava encostado na parede oposta com vários pacotes
vazios. Parecia que Harque estava planejando uma viagem. 233
Keleios foi para o poço em que Eroar caíra e se ajoelhara nas profundezas
negras. Um vento quente e frio soprava dele. Ela tentou contato mental e o alcançou.
Estava escuro e quente.
As criaturas estavam ficando mais ousadas.
* É a fome que os atiça? *
*Eu acredito que sim.*
*Tenha cuidado. Vou enviar um dos corpos para baixo, depois enviarei um
pedaço de corda. *
Keleios selecionou um corpo perto do poço e o agarrou por baixo dos braços de
túnica cinza. Ela levantou-se dos joelhos e sentiu a tensão nas costas. Ela havia
trabalhado o suficiente sem as braçadeiras mágicas para conhecer sua própria força
natural, e ela era boa para uma semi-elfa feminina.
Mas um homem de duzentos quilos é um homem de duzentos quilos, e ela
estava suando quando o jogou na escuridão.
Keleios pegou o rolo de corda e amarrou uma ponta na perna da mesa. Ela testou
o nó e a própria perna. Quando ficou satisfeita, abaixou a corda. Ela rezou em
silêncio para Urle para que a corda chegasse.
* Eroar, eles estão consumindo o corpo? *
* Sim, vorazmente. É uma prévia desagradável, receio. *
* Você pode alcançar a corda? *
* Não nesta forma. Por favor, jogue outro pedaço enquanto estico meu alcance.
*
Ela arrastou um guarda um pouco menor pelo manto dele e o jogou dentro.
Alguns segundos depois, a corda ficou esticada sob as mãos dela. As mãos que
subiam ao topo eram enormes e não as que haviam caído. Ela se afastou do enorme
rosto barbudo que sorria para ela quando se afastava do poço.
— Eroar?
— Sim.
— Isso foi irritante.
— Eu tinha que ser mais alto; esta forma é mais alta.
Poth veio espiar dentro do buraco e depois se afastou, assobiando. 234

— Concordo plenamente com você, senhora Poth, não é um lugar agradável.


— Você está machucado?
— Não. Onde estão os outros?
— Nas masmorras; devemos nos apressar. – Ela começou a puxar a corda para
cima. – Eu pensei que você não poderia fazer mágica lá embaixo.
— A mudança de forma é uma habilidade inata, não uma mágica aprendida.
Quando a última corda caiu no chão, o poço começou a fechar, a ilusão ficou
mais sólida quando Keleios recuou a corda.
Eroar voltou para a forma humana mais familiar e se esticou.
— Passo mais tempo nessa forma do que na minha; é bastante confortável.
Em sua necessidade de chegar aos outros, ela ordenou ao dragão:
— Coloque o cristal da videira na mesinha e o livro no chão. Há embalagens
vazias por lá.
Ele ficou muito quieto, mas não se mexeu. Ela percebeu seu erro. Mesmo na
forma humana, havia um orgulho, uma grandeza, que nenhum humano jamais tocou.
— Perdoe-me, mestre Eroar, mas o tempo é curto se quisermos salvar os outros.
Você poderia, por favor, pegar o cristal de observação e o livro enquanto eu enrolo
essa corda? Podemos precisar de todos eles.
Ele ficou lá teimosamente, com as mãos cruzadas sobre o peito. Ela enrolou a
corda mecanicamente e tentou manter a calma.
— Mestre Eroar, se Tobin morrer porque você nos atrasou, eu vou te ver nas
areias.
Ele quase riu, mas o olhar nos olhos dela o deteve.
— Você morreria.
— Essa é uma possibilidade –, eles se encararam. Ela podia sentir a magia dele
chegando até ela. Era uma coisa poderosa e arrepiante, e ele ainda não havia lançado
um feitiço. Tudo morre, até dragões, e ela não vacilou. Foi ele quem rompeu o
contato, movendo-se para fazer o que ela pedia. Ele tocou o livro e ofegou:
— Ele pulsa como se um coração batesse por dentro.
— Ele pulsa com o mal e é muito perigoso para deixar largado por aí. Mas
respeitosamente, Mestre Eroar, peço que, faça o que fizer, não tente ler.
Ele não disse nada, mas embrulhou o livro no pano branco da mesa e colocou-o 235

em um pacote vazio. O cristal que ele colocou sobre a mesa.


Keleios deslizou a corda ao lado do livro e depois colocou o cristal ao lado deles.
Ela colocou a mochila no ombro, sem se incomodar em perguntar ao dragão se ele
queria uma parte de sua carga.
Não havia mais tempo para atrasos.
Keleios se viu segurando a espada de prata, lâmina nua e com fome. Era melhor
economizar magia se a espada o fizesse. Eroar abriu a porta devagar, mas o corredor
estava vazio. Keleios assumiu a liderança. Ela pensou que Eroar protestaria, mas ele
permaneceu em silêncio e a seguiu. Poth vagou adiante, silenciosa; poucos se
incomodariam em atacá-la.
Keleios lembrava-se dos corredores do escritório de Harque até as masmorras,
pois ela andou quase diariamente por um mês. Eles encontraram um pequeno
demônio do vapor que estava procurando a biblioteca. Ele teve que encontrar a
biblioteca sem ajuda da magia.
— Também estamos em busca –, disse Keleios. – Procuramos dois homens: um
elfo alto, esbelto e muito pálido, parte gelo; o outro, baixo, com cabelos
avermelhados e jovem.
— Um homem alto e magro, eu não sei, mas o garoto está no coração da
masmorra e está sendo atormentado por muitos demônios.
Keleios suspirou profundamente.
— E nossa tarefa é resgatá-lo.
— Você está em um entretenimento, então? – Ele assentiu com simpatia.
Ela continuou com uma voz triste:
— Sim, você está perto da biblioteca. Simplesmente siga este corredor e vire à
esquerda no segundo cruzamento. A biblioteca será a enorme porta dupla com alças
de latão no lado direito do corredor.
— Oh, obrigada. Um dos demônios é um seguidor das trevas muito
desagradável, então tome cuidado.
Flutuou pelo corredor, vibrando com ansiedade.
Enquanto continuavam o caminho, Eroar perguntou:
— Ele não vai nos denunciar?
— Não, nós dois estamos em uma tarefa. Nós entretemos; ele assume que os 236

responsáveis sabem o que estamos fazendo.


— Como é esse entretenimento?
— Isso foi algo que eu nunca entendi.
— Por que um demônio seria uma vítima?
— Grandes demônios escolhem demônios menores; é o caminho das coisas.
— Você aprendeu muito em uma estadia curta.
— O tempo é o que você faz. Essas escadas levam às masmorras. Deveríamos
encontrar Lothor lá embaixo, também, mas em uma cela. Apenas Tobin está correndo
livremente.
Groghe apareceu no corredor bem na frente deles. Keleios teve que lutar contra
a espada de prata por sua vida.
— Groghe, não apareça assim. Você vai se matar.
— Sinto muito, mestre, mas eu escapei, pois eles não estavam interessados em
mim. Eles sempre podem me atormentar mais tarde. – Ele retumbou com o colar. –
Eu ainda sou seu.
— Você pode mudar para Harque e nos guiar?
— Não, os outros demônios suspeitam e estarão me procurando.
— Então siga-nos invisivelmente e não nos atrapalhe.
— Não, mestre. – Ele piscou. Suas garras arranharam a pedra como ratos à noite.
As escadas eram largas, mas íngremes. Três homens grandes poderiam ter
caminhado lado a lado, mas a altura e o passo dos degraus não eram formados para o
passo humano.
— Harque não construiu isso, certamente –, disse Eroar.
— Não, estava aqui esperando por ela. Somente os deuses sabem quem a
construiu.
Eles chegaram a um corredor que bifurcava de três maneiras. A marcha de
muitos pés veio da esquerda. Um grito veio da frente; à direita estava o silêncio.
— Desapareça.
Eroar simplesmente se tornou invisível, pois não possuía a habilidade dos elfos
de se misturar com o ambiente.
Uma tropa de guardas de manto cinza veio da esquerda e passou pelo corredor
silencioso à direita. 237

Ninguém olhou para as escadas; ninguém notou uma sombra que continha outra
escuridão.
Eles esperaram o espaço de cinco batimentos cardíacos depois que o último
manto desapareceu de vista.
Eroar reapareceu e Keleios simplesmente saiu da ocultação. Poth não estava em
lugar algum.
— Nós vamos direto.
— Em direção ao grito.
Ela assentiu.
O corredor se estendia em uma curva suave, alinhada à tocha. Seria muito difícil
se esconder no meio daquele corredor. Eles foram adiante cautelosamente. Ela fez um
gesto para Eroar pegar o lado esquerdo das celas e pegou o direito. As três primeiras
celas estavam vazias. A quarta segurava um homem, enrolado em uma pequena bola.
Ela não esperou para ver se ele se mexia. Keleios tentou examinar as celas sem
pensar no que havia dentro. Pouco antes de contornar a curva, ela encontrou a
armadura de Tobin. Ela estava amontoada ao lado de um palete em uma cela estreita.
A espada dele também estava lá. Onde quer que estivesse, estava nu e desarmado.
Um grito veio da frente e um riso levemente estridente.
Ela sussurrou para Eroar:
— Eu acredito que Tobin vai querer isso de volta. – Ela continuou: – Se você
conseguir enfeitiçar a porta. Vou examinar a situação de Tobin.
— Eu estava destrancando portas antes de você ser chocada.
Ela escolheu não lembrar ao dragão que a eclosão não era pertinente. Ela se
afastou para que ele pudesse atirar na fechadura e tirou o cristal. A pedra era lisa, fria
e sem falhas.
Ela se concentrou no rosto de Tobin. A visão veio de repente,
surpreendentemente clara. Ele estava lutando contra um demônio muito grande, de
escala verde e marfim. O demônio jogou-o para outro, que era esbelto e branco, com
uma cauda espetada, e o jogou no demônio do pudim preto que pegou com uma
mecha de gosma e cobriu o garoto com ela.
Tobin lutou contra ela, mas desapareceu dentro do pudim. Os outros demônios 238

começaram a argumentar que ainda não era hora de comê-lo e era melhor ele cuspir.
Ele cuspiu com relutância. Tobin se arrastou para longe do pudim, vomitando e
ofegando por ar. Sua pele tingida de ouro brilhava com lodo. Ela limpou o cristal.
— A porta está aberta. Nós deveríamos...
— Nós devemos nos apressar.
Ela saiu sem esperar para ver se ele o seguia. Eroar fez uma careta, mas juntou a
armadura, roupas e espada em seus braços e a seguiu.
Ele a alcançou em alguns passos.
— Três demônios estão com ele: um de gelo, o lodo preto que vimos
anteriormente e um demônio em escala verde que eu não reconheço.
A espada ergueu-se a uma curta distância de sua bainha.
— Eu sei. O demônio que absorvemos anteriormente sabe.
— Diga-me então.
— É um demônio da peste. Na batalha, se assim o desejar, seu toque traz a
temida doença que se espalha.
O diabrete invisível emitiu um pequeno som estridente.
— Oh, Mestre, ele é ruim, muito ruim.
— Apenas fique fora do caminho, pequeno. – De todos os demônios para
seduzir, ela conseguiu um dos mais fracos. Além da mudança de forma e da feitiçaria
limitada de toda a humanidade demoníaca, ele poderia fazer pouco.
— Esse deve ser retirado à distância, então. Podemos atingir o lodo com frio, e o
demônio do gelo com fogo, mas o verde...
A espada levantou uma mão de prata da bainha.
— Nós podemos destruí-lo.
— Com segurança?
Ela quase podia sentir a espada encolher de ombros.
— Tão seguro quanto pudermos. Não posso garantir sua segurança.
Ela agarrou o punho da espada, testando se realmente podia fazer o que dizia.
— Sim. Se você não tiver objeções, Mestre Eroar, poderá jogar uma bola de
fogo no gelo e distrair o lodo. Eu lutarei contra o verde. Se o demônio verde morrer,
eu o ajudarei com o lodo.
— Se o demônio não morrer? 239

— Terá que morrer.


Seu olhar era eloquente.
— Sei que não é um plano maravilhoso, mas não tenho tempo para nada melhor.
Se você, Mestre Dragonmage, tiver um plano melhor, eu vou ouvir.
Ele não respondeu, mas fez sinal para que ela avançasse:
— Vamos pegar o garoto.
Eles esperaram logo dentro do túnel. Eroar colocou os pertences de Tobin no
chão, cuidando para que o metal não batesse. O gelo e o lodo estavam à direita e o
verde à esquerda.
Havia uma prateleira perto deles e Tobin agachado no chão perto do dispositivo
de tortura. A gata Poth estava agachada sob o próprio dispositivo. Eroar assentiu que
a viu e saiu, enviando uma bola de fogo de tamanho médio para o demônio do gelo.
O verde avançou para ajudar. A espada cantou em suas mãos, ansiosa. O
demônio não era muito mais alto que Keleios. Chifres de marfim suaves adicionados
à sua altura. Tentou passar por Keleios em direção a Eroar, como se sua espada
desembainhada não fosse nada. Ela teve que pisar na frente do demônio e trancar o
caminho antes que ele olhasse para ela.
— Saia, pequena fêmea.
— Levante-se e lute, maldito seja –, disse ela.
O demônio suspirou.
— Muito bem. – Os olhos amarelos sem pupila se voltaram para ela. – Eu vou te
matar primeiro.
Ele bateu nela com garras de marfim e Ache Silvestri encontrou a mão e a cortou.
A outra mão do demônio surgiu do nada e bateu na lateral da cabeça de Keleios. Ela
caiu atordoada. Ela ouviu o demônio curvando-se sobre ela. A espada gritou:
— Levante-se!
Keleios tentou, mas as mãos agarraram seus pulsos e a empurraram na vertical
antes que ela pudesse se mover.
O movimento repentino fez a sala girar. Algo estava esmagando seu pulso e ela
abriu a mão com um pequeno suspiro. Ache Silvestri caiu no chão.
— Você pode me ver, pequena mulher? 240

Keleios piscou nos olhos amarelos do demônio. Ela estava de joelhos com os
pulsos presos entre as mãos escamosas do demônio.
— Tarde demais para chamar magia, tarde demais para usar sua linda espada. –
Ele se inclinou para perto do rosto dela e sacudiu uma língua bifurcada. – Hora de
morrer. – A pele começou a coçar onde as mãos dele a tocou, depois a queimar.
Uma ferida verde, como mofo, apareceu em sua mão direita. O demônio a soltou,
empurrando-a para trás. Memórias da morte do assassino passaram pela mente de
Keleios. De sua carne derretendo. Ela olhou enquanto o mofo verde crescia sobre
seus dedos, queimando, comichão, mas sem dor, ainda não. Fluía sobre sua pele
como água e não havia nada que ela pudesse fazer para detê-la.
A palma da mão esquerda estremeceu, como se um músculo tivesse espasmo. A
doença parou de derramar sobre sua mão. Não foi embora, mas parou de se espalhar.
Eroar estava de costas para a parede. Uma barreira de fogo mantinha o demônio
do gelo à distância, mas o lodo começou a deslizar através do fogo como se não fosse
nada. O demônio da peste ficou parado, de braços cruzados, de volta a Keleios.
Um calor, quase um calor de fogo começou na palma da mão esquerda sobre a
marca demoníaca. O calor subiu pelo braço esquerdo e desceu pelo direito, até que a
mão direita parecia estar pegando fogo. A propagação verde começou a desaparecer,
como se a pele a estivesse absorvendo, da mesma maneira que um curandeiro curava
feridas. Quando o último pedaço de doença se foi, a queimação começou a
desaparecer e fluir de volta para a mão esquerda. Magia demoníaca contra magia
demoníaca, era o que Lothor chamava.
Mas não havia tempo para se maravilhar com sua carne curada. Eroar estava
pressionado contra a parede, afastando-se dos demônios. Eles não estavam dando a
ele tempo suficiente para chamar outro feitiço, e como ele poderia chamar? Um temia
fogo, o outro frio.
Keleios pegou Ache Silvestri do chão e correu para frente. O demônio verde a
ouviu e se virou com um sorriso no rosto.
— Bem, pequena fêmea, você não está morta ainda? – A lâmina o levou através
das costelas e subiu no peito. O sorriso morreu em seu rosto e ele ficou paralisado
enquanto o brilho azul tomava conta de seu corpo e subia o punho nas mãos de 241

Keleios. Ela não lutou desta vez; ela o acolheu, bebeu o poder, deixou-o passar sobre
ela e a espada. Ache Silvestri gritou:
— Trazemos a morte aos nossos inimigos.
O corpo do demônio afundou no chão com a espada ainda presa no peito.
Keleios virou-se para os outros demônios com tufos de fogo azul ainda agarrados às
mãos dela. Se ela não lutasse contra isso, engolir a essência de um demônio não
demoraria muito.
Eroar estava lutando contra os dois demônios e sendo forçado a recuar. Keleios
enviou uma rajada de frio para o pudim, que começou a tremer em sua direção. Ela
juntou as mãos, tocando levemente as pontas dos dedos e a base da mão, e pensou em
frio, o frio que entorpece, que congela o ar nos pulmões até queimar. Ela atraiu puro
frio em sua mente – nem neve, nem gelo, apenas frio – até que a dor começou a
penetrar em suas mãos. O pudim estava a poucos metros de sua frente quando ela
abriu as mãos como um broto de flor, até que apenas a base de suas mãos se tocasse e
o frio chegou. Fluía como um vento gelado para o demônio. Ele diminuiu a
velocidade e o deteve. Quando o demônio percebeu o perigo, ele tentou escapar, mas
estava com frio, muito frio. Ele não conseguia pensar, não conseguia se mexer. Ainda
veio o frio.
Foi Eroar quem quebrou o feitiço, cortando o frio.
— Está morto. Solte o seu feitiço.
Keleios piscou para ele, quebrou o feitiço com rigidez e ficou surpresa ao
descobrir que tinha caído de joelhos. O lodo ficou como uma coluna de gelo sujo na
frente dela.
— O demônio do gelo está morto; vamos resgatar os outros e partir.
Ela se levantou e começou a flexionar o corpo. Ela nunca tinha ficado tão rígida.
Houve um som como um gemido ou um grito silencioso. Tobin rastejou em direção a
eles. Seu corpo tremia como se estivesse com febre.
Keleios ajoelhou-se ao lado dele, alisando os cabelos, dizendo:
— Você está seguro agora, Tobin.
Ele não disse nada, mas seus olhos estavam assombrados quando a olharam. Ele
caiu com um grito e se agarrou a ela por um momento, depois se afastou e se
endireitou. Keleios podia senti-lo passando por seus exercícios de controle. “Sou 242

príncipe de Meltaan; Sou um feiticeiro viajante, um visionário; Eu sou Tobin”. Ele


ficou ereto e orgulhoso e disse:
— Eu sei onde está o Mestre Lothor.
— Muito bom, leve-nos.
Foi então que ele pareceu notar sua nudez ou talvez ele tivesse se recuperado o
suficiente para se preocupar com isso.
Eroar pegou a armadura dele e, enquanto se vestia, eles se voltaram para outros
problemas.
Ela andou sem a ajuda de Eroar, mas custou.
— A forja de Urle, mas estou instável. – Ela ficou de pé sobre o demônio verde
morto. A ponta da espada de prata apontava para o peito. Keleios inclinou-se para
recuperar a espada, ela se libertou e levantou a mão dela.
Estava livre de sangue mais uma vez, o vapor ainda subia da lâmina onde o
sangue fora aquecido. Ela embainhou Aching Silver, mas deixou a trava.
Tobin estava completamente vestido e amarrou a espada no lugar. Poth saiu de
baixo do rack e um pequeno som de deslizamento disse que Groghe também.
Ela perguntou a Tobin:
— Lothor está no corredor distante?
— Sim.
Ela fez sinal para ele liderar, e eles partiram.
Eles se aproximaram do corredor distante em silêncio; Tobin havia assegurado a
eles que havia mais demônios por perto. O corredor mais distante era curto, reto e
revestido de celas. Keleios olhou ao virar da esquina e congelou quando uma súcubo
apareceu e entrou pela porta aberta de uma cela.
Ela voltou, encostada na parede.
— A súcubo ainda está no jogo. O que devemos fazer? Eles podem estar
comendo sua alma.
A espada balançou em sua bainha.
— Se eu puder sugerir, eu tenho um demônio maior em mim. A súcubo o 243

obedeceria.
— Sim, mas você mantém a alma dele, ou a essência, não ele.
— Mas você é meu manejador. Se você desejar, pode ter o conhecimento dele, o
poder dele por um tempo.
— Como?
— Você simplesmente o chama como se ele fosse um feitiço.
— Eu não entendo.
— Eu ouvi falar dessas coisas –, disse Eroar. – Encantos que comem almas às
vezes podem emprestar essas almas a outras pessoas por um tempo e um preço.
Ela olhou para a Dragonmage. Seu rosto escuro permaneceu impassível; ele
poderia estar falando do tempo, em vez de usar as almas de demônios maiores.
— Quão seguro é isso?
— É como a maioria dos feitiços: o sucesso ou fracasso depende da força de
vontade da pessoa que chama a magia.
Tobin disse:
— Mas ela está aceitando a... essência de um demônio. O sucesso também não
depende da força de vontade do demônio?
— Sim –, disse Eroar.
— Não faça isso, Keleios –, disse Tobin.
— Eu tenho de fazer alguma coisa. É apenas uma questão de tempo até que algo
pior do que a súcubo visite essas celas ou elas descubram os corpos.
Eroar perguntou:
— E se esse Alharzor ganhar o controle de você?
Uma sensação de frio começou na boca do estômago.
— Então você deve me matar e fazer o melhor que puder para resgatar o
príncipe das trevas.
Tobin protestou:
— Não, Keleios.
— Tobin, se o pior acontecer, não atrapalhe o mestre Eroar. Se a espada me
levar, estou perdida e melhor morta.
Ele assentiu, mas franziu o cenho.
Ela respirou fundo, recuperando o controle, e o cansaço recuou um pouco. 244

— Venha para mim, matador de demônios.


A espada pulsou sob sua mão, batendo poder como sangue através de sua
estrutura. A raiva de Alharzor surgiu em sua mente, queimando. Sua magia rugiu
através dela como fogo diante de um vento. O poder comeu ao longo de sua pele,
derramando por sua mente. Por um momento ela pôde sentir Alharzor, a espada e ela
mesma se misturarem, tornarem-se um só. Então a espada não estava lá, e eram
apenas ela e o demônio.
Poth recuou, cuspindo, capaz de ver o poder que a atravessava e ia para fora dela.
Alharzor estava determinado a vencer, a controlar. Ele lutou por seu corpo, e ela
lutou para usar sua alma.
Keleios aceitou o demônio em si mesma, como duas mãos dentro da mesma luva,
mas foi sua mente que moveu a mão. Seus olhos se arregalaram e sua respiração
diminuiu, aprofundou-se. Ele estava seguro dentro dela com a ajuda da espada. Ela
puxou o poder da espada, deixando-a gotejar pouco a pouco até que tudo estivesse
contido dentro dela.
— Fique escondido, Groghe.
O demônio invisível disse:
— Sim, mestre.
Eroar olhou para ela e ela disse:
— Toque-me e procure rapidamente.
Ele avançou e colocou a mão no ombro dela, e seus olhos encontraram os dela.
Sua magia passou como um vento sobre ela.
— Você fez isso, você tem poder agora.
— Devo apelar para vocês dois, para que pareçam prisioneiros.
Embora não fosse o que eles queriam, nem lutaram contra ela. Seus olhos
vidraram e seus rostos ficaram em branco.
— Sigam-me –, disse ela, e eles fizeram.
Keleios entrou no corredor, mão no punho da espada, os homens seguindo atrás
dela obedientemente. Ela os fez esperar no topo do corredor; eles obedeceram
perfeitamente. Ela parou na porta da cela aberta. O meio elfo jazia sob um monte de
demônios, suas asas flexionando como borboletas sobre uma poça de chuva.
Keleios retirou parte de Alharzor da segurança do controle e deixou fluir através 245

dela. Ela castrou a súcubo.


— Saia dele.
Eles viraram os olhos furiosos e olharam quando viram o corpo ordenando que
eles saíssem da porta.
Um se levantou e começou a caminhar em direção a Keleios.
— E quem é você para nos pedir?
— Aaah, Filia, veja com algo diferente de seus olhos pela primeira vez.
Um segundo se juntou a ela e um terceiro; todos pararam. A carne de Lothor
apareceu. O mais baixo disse:
— Alharzor, como você conseguiu esse corpo?
— Um presente de nossa senhora bruxa.
— Mas eu pensei que ela tinha planos para esse corpo.
— É a primeira vez que ela muda de idéia?
O demônio riu.
— Não, suponho que não.
Quase todos os súcubos se juntaram para espetar e cutucar o novo corpo.
— Nada mal, isso deve ser capaz de acompanhar por um tempo.
Uma risada profunda veio do corpo de Keleios.
— Ooh, não na sua velocidade, mas talvez na minha.
Lothor estava nu. Correntes o amarravam no pulso e no tornozelo. Seu corpo era
de uma cor marfim pura. Pequenos arranhões e mordidas estragavam a pele
impecável. Elas eram marcas de paixão e não de dor. Uma súcubo de cabelos ruivos
se curvou sobre ele. Ela acariciava seus cabelos e de vez em quando o acariciava.
Seus olhos prateados estavam fechados; o rosto dele se afastou dela.
Keleios se perguntou se sua mente estava intacta.
Ela estava olhando, e os demônios notaram. Um alto, de cabelos flamejantes,
cutucou seu braço.
— Ela ainda está aí? 246

— Aaah, sim, eu pensei que ela poderia gostar de ver seus amigos. – Uma risada
de garotas enchia a sala. Uma série de comentários brutos se seguiram.
— Nós poderíamos colocá-lo em seus passos ou fazer com que ela se juntasse a
nós. – Essa sugestão foi recebida com grande entusiasmo.
— Ah, meninas, desculpe, mas Harque os quer todos lá em cima, agora. – Um
coro de protestos e lamentos começou. – Eu tenho que devolver o corpo depois de um
tempo.
O demônio de cabelos ruivos deixou Lothor com relutância, as mãos persistindo
nele.
— Ainda não o quebramos –, disse ela. – A vergonha disso, Alharzor, temos que
romper seu controle.
— Eu entendo meninas, mas não há tempo. A bruxa tem alguns planos
interessantes para todos eles.
— O que, oh, nos diga.
— Aaah, um geas2.
— Isso não parece muito divertido.
— Depende de onde os geas os forçam a ir, minha beleza de cabelos flamejantes,
e o que os obriga a fazer.
Elas fizeram beicinho.

2
Geas: Uma geas pode ser comparada com uma maldição ou, paradoxalmente, um dom. Se alguém sob uma
geas violar o tabu associado, o infrator sofrerá desonra ou até mesmo morte. Por outro lado, acredita-se que a
observação de suas geas traga poder. Muitas vezes são as mulheres que colocam geas sobre os homens. Em alguns
casos, a mulher acaba por ser uma deusa ou outra figura de soberania.
— Ainda não parece divertido.
— Um geas para a ilha de Pelrith.
Elas trocaram olhares. Ajoelharam-se ao lado do corpo acorrentado de Lothor e
passaram a mão pelo comprimento pálido.
— Uma pena que não tenhamos outra chance com esse.
Keleios sabia com a memória de Alharzor que a Ilha de Pelrith era um lugar que
a succuba nunca tinha visitado. O semideus da ilha era muito perigoso. Um homem
sendo perigoso demais para um súcubo – isso era algo para se pensar.
Keleios se ajoelhou ao lado de Lothor. Keleios passou os dedos pela bochecha e 247

abriu os olhos.
Os olhos dele a encararam, inteligência intocada. A esperança apareceu em seus
olhos por um segundo, desapareceu rapidamente. Ela se levantou.
— Faça com que ele se vista, e talvez limpe-o primeiro.
Uma súcubo ruiva alta perguntou:
— Ela está angustiada por ver o amigo assim?
— Aah, muito.
— Aposto que eles eram amantes – , disse outra.
— Não, Bettia, apenas amigos. – A súcubo sorriu. Keleios deu de ombros e
parou na porta da cela.
Uma súcubo voou com baldes de água e pairou.
— Você está bem?
Alharzor zombou.
— Ela está com vergonha, vergonha de ver o elfo de gelo nu.
A súcubo riu por muito tempo e rico.
— Ela o quer, então?
— Aah, sim, ela faz.
— Arranje tempo para montá-los, por favor.
Ele pareceu pensar nisso por um momento e sorriu maliciosamente, depois
suspirou.
— Simplesmente não há tempo. – Keleios encostou-se à porta da cela e a súcubo
deu um tapa nela. A súcubo suspirou. – Que pena. – O demônio levou a água para a
cela de Lothor.
Keleios entrou e levantou o machado.
— Vou levar isso para você, meio elfo. Você não vai precisar disso. – Sua risada
profunda ecoou com as risadas estridentes da súcubo.
Sorrindo um sorriso desagradável, Keleios saiu para ficar no corredor.
Ventos de riso vieram quando a súcubo começou a liberar e limpar o prisioneiro.
Keleios, com as memórias de Alharzor batendo nela, estava no corredor. Seus olhos
se voltaram para uma grande cela no final do corredor. Tinha sido sua casa durante os
meses que ela ficou aqui. Já era espaçoso o suficiente, mas úmido e desanimador,
uma cela muito pequena. 248

Alguém sussurrou o nome dela, alguém que estava nas barras daquela cela. Seus
cabelos e pele dourados brilhavam agora mesmo através da sujeira e da barba. A
barba era um rico ouro avermelhado como chama. Ela se aproximou e, quando olhou
nos olhos castanhos dourados, sabia quem era.
O nobre Meltaanian, conhecido como Gabel, amante de si mesmo, encantador,
feiticeiro e assassino de seu mestre ferreiro, Edan. Ele o havia queimado até a morte
diante dos olhos de Keleios. Ela ainda podia sentir o horror e a raiva daquele
momento como bile queimando sua garganta. E de alguma forma essa raiva se
traduzira em feitiçaria. Keleios havia chamado seu primeiro feitiço de feiticeira: fogo.
Fogo que Edan usara para moldar metal, fogo que queimava sob uma panela para
derreter ervas para feitiços, fogo que brilhava no chalé para aquecer a comida e
manter o frio à distância, fogo selvagem e correndo pela floresta em um estalido seco.
Algo se abriu em sua mente que estava trancado e selado até então. Keleios viu
o fogo, fogo verdadeiro, a chama. Ela o puxou para a mão e apontou para o feiticeiro
sorridente. Ela tinha chegado muito perto de matá-lo.
Nenhum outro nobre Meltaanian tinha uma cicatriz tão grande. Era uma cicatriz
de queimadura esbranquiçada que ondeava e perfurava o lado direito de sua raça. Um
olho estava quase perdido, e o tecido da cicatriz formava uma crista torcendo a
pálpebra de maneira errada. Keleios havia lhe dado essa cicatriz. Poderia ter sido
curado, mas o duque de Cartlon decidiu que Gabel usaria a cicatriz como punição.
Como apenas os fisicamente perfeitos podiam governar em Meltaan, Gabel
perdeu um reino. Keleios foi despojada de sua posição de mestre porque tinha uma
nova magia para domesticar. Feitiçaria aos vinte anos de idade. Era algo inédito.
— Gabel. – Foi um silvo.
Ele não se encolheu com o ódio na palavra, pois o sentimento era bastante
mútuo, mas se amontoava perto das grades.
— Keleios Incantare, leve-me com você quando for.
Uma grande risada masculina escapou de seus lábios.
— Mas Keleios não vai a lugar nenhum que ela quer ir.
Ele recuou, perplexo.
— Alharzor?
Mas Gabel, o que quer que ele fosse, era um feiticeiro e encantador, e era bom 249

em cada um deles. Ele não precisava de feitiços para ver encantamentos quando o via.
Ele falou com ela em um sussurro.
— Alharzor não possui você; a espada o possui. Leve-me com você quando for,
ou eu lhes direi o seu engano.
Conhecendo Gabel como ela conhecia, Keleios não perdeu tempo chocada ou
dizendo "Você não faria isso", porque ele faria.
Ela olhou para Eroar e Tobin, que estavam esperando pacientemente. Ela ficou
na porta e escolheu a mente do demônio para o feitiço na porta. Foi
surpreendentemente simples. A fechadura se desfez em sua mão como uma flor.
Keleios sussurrou para Gabel:
— Se você nos trair ou nos causar algum dano, eu o matarei.
Ele assentiu.
— Qualquer coisa para ficar longe daqui.
Um súcubo alto questionou:
— Por que você liberta esse?
— A bruxa se cansou dele e deseja fazer dele um exemplo para os outros.
Ela concordou que ele havia se tornado cansativo.
Uma garota espiou as barras de uma cela à esquerda de Keleios. Ela era loira e
de olhos azuis, mais parecida com os pescadores do que com uma Astranthian. Ela
era jovem, quinze anos no máximo. Outrora viajara para a bruxa Harque. Ela havia
sido presa por falhar com muita frequência. Keleios queria levar a garota com eles,
mas as súcubos não acreditariam nela se todos os prisioneiros fossem subitamente
libertados. Os deuses haviam abençoado seus truques como eram.
Keleios deu as costas aos olhos da garota e enredou Gabel no mesmo feitiço que
segurava Eroar e Tobin.
— Vá ficar ao lado dos outros.
Ele se moveu sem uma palavra.
A súcubo riu.
— Um feitiço maravilhoso para acalmar aquele. Ele até fala quando está no cio.
Quando Lothor foi trazido, ela também o enfeitiçou. Seus olhos prateados
olharam nos dela por um momento antes de ficarem em branco pacificamente. Havia
uma raiva terrível naqueles olhos. 250

Eles a seguiram silenciosamente em fila única. Uma guarda súcubo voou ao


redor deles para ofegar na carnificina na área de tortura. Keleios / Alharzor explicou:
— Aaah, eu não sei o que começou essa carnificina, mas um demônio de gelo
desconhecido para mim matou o demônio verde e Slucba, o demônio da terra. Eu o
surpreendi e ele lutou comigo. Eu fui forçado a matá-lo. Foi lamentável.
— Sim, demônio vermelho, lamentável. – A voz era baixa, mas
desafiadoramente feminina. Uma grande súcubo entrou na sala. Ela usava uma
espada e um cinto de ouro nos quadris e uma adaga em uma bainha de pulso no braço
direito. Dois chifres retos de marfim erguiam-se de seu crânio, e seus cabelos eram da
cor de um bom rubi, vermelho sangue de pombo.
— Explique-me o que aconteceu aqui.
— Elvinna, quando eu tive que explicar alguma coisa para você?
Seus lábios carnudos recuaram, expondo os dentes de marfim feitos para tirar
sangue.
— Desde quando você conseguiu matar outros demônios sem perguntar
primeiro à bruxa? – Os olhos dela se estreitaram, sem pupilas e amarelos. – E onde
está o seu colar de obediência? – Sua espada escapou de sua bainha. – Impostor. –
Ela assobiou.
Keleios quebrou o feitiço sobre os homens, deslizou o machado de Lothor na
direção dele e começou a forçar Alharzor a voltar à espada. Eroar explodiu Elvinna
com um raio de poder que a surpreendeu, pois a maioria dos homens humanos não
podia atacá-la. Mas Eroar não era humano e Lothor havia sido treinado para resistir.
Apenas Tobin ficou desamparado.
Lothor gritou para Eroar:
— Não a deixe chamar os guardas. – Lothor pegou o machado de batalha do
chão e começou a atacar a súcubo. Eroar não fez perguntas, mas disparou feitiço após
feitiço na súcubo. Os guardas eram incubus e heróis do sexo masculino que a
adoravam em vida e eram muito perigosos. Mas Elvinna precisava de pelo menos
alguns segundos para chamá-los, e Eroar não estava dando tempo para ela.
Keleios não tinha a feitiçaria para um bloco que derrotaria um semideus, mas ela
tinha uma espada que matava demônios. A espada engoliu Alharzor ansiosamente,
liberando-se para mais derramamento de sangue. Keleios chamou Eroar: 251

— Vou distraí-la; você coloca uma barreira mental.


A deusa demoníaca zombou da espada de prata e da delicada atacante. Suas
lâminas encontraram um grito metálico em uma chuva de faíscas azuis e vermelhas.
A barreira de Eroar subiu, formigando na mente de Keleios enquanto a lâmina de
ouro buscava sua vida. As armas se reconheceram, sua consciência pulsando pelas
mãos. Quando as lâminas se tocaram, foi como um choque.
Keleios tropeçou em um pedaço de gelo derretido, e o demônio saltou para a
frente, cortando para sua cabeça. A espada de prata saltou para bloquear com um
choque que entorpeceu o braço da espada de Keleios no ombro. Ela foi forçada a
desenhar mais sobre o encantamento da espada para atacar e recuperar seus pés. A
canção da morte da espada soou em seus ouvidos, música doce, e ela sentiu a ânsia
como sua própria.
Alguém gritou quando ela enviou o demônio de volta com uma enxurrada de
ataques. Keleios não entendeu as palavras e então se concentrou, deixando a espada
lutar por um momento.
— Keleios, afaste-se dela.
Era Lothor. Ela enfiou a mão na espada, forçando-a de volta, forçando sua
vontade sobre ela. Ele lutou, quase lhe custando o braço da espada. Keleios simulou
um golpe na barriga desprotegida e rolou por cima da prateleira para ouvir a espada
de ouro morder profundamente a madeira. Espada para cima, pronta para o ataque,
ela ouviu um chiado e um grito hediondo. Ela olhou cautelosamente ao redor da
prateleira para ver Lothor com o machado apontado para fora. Um ruído crepitante de
um raio branco veio de seu final e prendeu a deusa demoníaca na parede. Ela se
contorceu, brilhando com calor e luz.
Lothor abaixou a arma e a luz parou. O demônio afundou no chão e começou a
desaparecer, rosnando:
— Eu me lembrarei disso, curandeiro das trevas e de você, meio elfo – Ela se
foi, espada e tudo.
Lothor disse:
— Vamos rapidamente; outros virão. Não sei quanto tempo levará para ela
coletar energia suficiente para atacar novamente – dois dias, se tivermos sorte. 252

Tobin tinha sido incapaz de atacar os demônios porque não possuía uma arma
mágica. A magia da deusa demoníaca era demais para ele, como havia sido para
Gabel. Tobin sussurrou:
— Então era Elvinna. Agora eu sei que todos os meus amigos em Meltaan
estavam mentindo; eles nunca montaram isso.
Keleios disse:
— A morte de Harque retardará a perseguição. Ela sempre foi tão ciumenta com
seu poder. Os demônios ficarão desorganizados por um tempo. Precisamos sair da
ilha antes que eles encontrem um novo líder.
Ninguém discutiu com ela. Ela os conduziu para fora, conhecendo a localização
da fortaleza, mas insistiu que, se Gabel fosse atrás dela, Lothor manteria uma arma
nele.
Tobin se ofendeu com isso.
— Por que você pediu ao curandeiro das trevas e não a mim?
— Porque se Gabel se mover para nos trair, eu o quero morto. Você, querido
Tobin, não mataria alguém só porque eu lhe disse. Lothor faria.
Houve o som de sinos de cobre, levemente desafinados, e o pequeno demônio
verde apareceu.
— Eu te avisei primeiro, Mestre, eu avisei primeiro.
Keleios olhou para o demônio agachado.
— Sim, Groghe, você me avisou primeiro. Venha comigo.
Keleios pegou emprestado o conhecimento de Alharzor e tomou corredores
grossos de poeira. As tochas que haviam retirado da área das masmorras queimavam
constantemente no ar viciado. Eles chegaram a uma ramificação de três túneis. No
centro, moveu um único conjunto de pegadas. Keleios se ajoelhou, testando a largura
contra a mão dela.
— Um humano, sapatos macios, uma mulher provavelmente.
Eroar perguntou:
— Harque?
— Muito fresco. – Ela ficou de pé, tirando o pó das mãos. – Precisamos ir para 253

a esquerda.
Gabel perguntou:
— Mas e se encontrarmos a coisa no corredor do meio mais tarde?
— Então veremos, Gabel, mas não vamos atrás de problemas.
Eles se moveram para a escuridão. Por fim, um sopro de vento sacudiu suas
tochas, e Keleios fez um gesto para extinguir as luzes. Ela se agachou na boca do
túnel, olhando para uma grande caverna. A entrada daquela caverna mostrava luz
solar intensa, de modo que os cães de caça de Verm não seriam um problema.
Enrolado perto daquela saída havia um verme de ouro.
Keleios nunca tinha visto escamas tão grandes, cada uma tão grande quanto o
escudo de prática de um cavaleiro.
A circunferência do próprio verme era grande demais para que os olhos
percebessem tudo de uma vez.
Keleios sussurrou de volta:
— Como você passou por isso?
— Simpatia –, veio a resposta.
— Bem, traga Eroar aqui em cima.
O homem-dragão passou pelo resto para se agachar ao lado de Keleios.
— Sim.
— Como podemos superar isso?
— Mantendo nossa promessa de tratar o olho infectado.
Keleios respirou fundo.
— Eu nunca vi um verme tão grande. Fale com isso, Eroar, e eu vou ajudá-lo a
tratá-lo.
Eroar levantou-se do resto e entrou na caverna. Ele parecia explodir para cima e
para fora, tornando-se dragão novamente. Ele era um animal poderoso, um monte
vivo de safira e ébano, mas ficava pequeno ao lado do grande verme de ouro.
O verme se mexeu e levantou um olho para olhá-lo. A borda do olho roxo estava
inchada.
Pus leitoso escorria de um canto. O esconderijo da coisa era uma rocha imunda e
nua, sem um conforto para ser visto. 254

Keleios sentiu raiva de que alguém pudesse tratar um animal inteligente dessa
maneira. Ela quase riu. Com tudo o que Harque havia feito, isso era uma coisa
pequena. Ele ergueu sua enorme cabeça franjada para olhar com seu bom olho e
esfregou Eroar. Eles conversaram por um momento em comum dragão. Eroar virou-
se e apontou para a frente com o rabo em escala azul.
Gabel ficou para trás. Lothor empurrou-o, tombando, ladeira abaixo para
aterrissar aos pés de Eroar. O dragão sibilou para ele. A voz profunda disse:
— Posso quebrar minha regra para você, Meltaanian.
Ele tremeu:
— Que regra?
Keleios respondeu:
— Eroar estabelece como regra nunca comer seres humanos. – Ela olhou para
ele, olhos castanhos distantes. – Cuidado com o seu passo, amante de si mesmo, ou
você morrerá de um jeito ou de outro.
Depois de um pouco de persuasão, o verme baixou a cabeça enorme para
Keleios. Ela falou com o pequeno demônio verde.
— Groghe, me traga um pouco de água morna e alguns panos limpos. – Ele
assentiu vigorosamente e desapareceu.
Keleios notou a carranca no rosto de Gabel e perguntou:
— Qual é o seu problema, amante de si mesmo?
Ele sorriu torto, a metade esquerda do rosto imóvel.
— Estamos arriscando nossa liberdade para curar um verme.
— Nossa palavra foi dada.
Ele encolheu os ombros.
— Então?
— É claro que você não entenderia o que a palavra de uma pessoa significa.
— Não, mestiça, eu só entendo a autopreservação.
— Então saia. A entrada da caverna fica logo ali.
— Não, eu vou ficar com você. Você sempre teve sorte fenomenal, mesmo antes
de ter a Luckweaver. – Ele deu um passo à frente e disse: – E onde está sua espada?
Keleios não disse nada.
— E sem braçadeiras de ouro. Você é apenas uma mulher novamente. Talvez eu 255

possa mostrar como é estar sob o homem cheio de cicatrizes. Só meu rosto está
arruinado, tudo funciona perfeitamente.
Lothor colocou a mão no ombro do homem e disse:
— Basta.
— Deixe-o ir –, disse Keleios.
Lothor estava relutante, mas fez o que ela pediu.
Keleios tirou Aching Silver de sua bainha e se aproximou primeiro do ponto
encantador.
— Você sabe o que é isso?
— Uma espada mágica do artesão Varellian.
— E o que isso faria com um homem?
— Você é minha professora agora, Keleios?
— Responda-me, o que faria se usado em um homem?
— Isso destruiria sua alma. É um comedor de almas.
— Muito bom.
O metal frio descansava em seu pescoço nu, e ele podia sentir a ansiedade fluir
dele. Ele quase podia ouvir a música que cantava. O medo e a raiva dançavam em
seus olhos.
A espada cantou para ela de vingança, e ela deixou um sorriso cruzar seus lábios.
— Se você chegar perto de mim novamente, eu vou usar isso em você.
— O que sua deusa, Cia, diria sobre isso?
— Temos um entendimento quando se trata de você.
Uma gota de suor escorreu por seu rosto.
— Fico lisonjeado.
Ela embainhou a espada em um movimento rápido.
— Não fique.
Ela lhe deu as costas e foi até os dragões.
Keleios investigou o olho inchado sob a orientação de Eroar. Garras de dragão
não foram feitas para um trabalho tão delicado, e o verme precisava da garantia da
forma do dragão. No canto onde o pus leitoso pingava estava a cabeça e parte do cabo
quebrado de uma lança.
— Eroar, pergunte a ela por que ela não pediu que a lança fosse removida. 256

— Ela pediu, mas Harque riu e disse que lhe ensinaria uma lição por quase
falhar.
— Mas como ela poderia manter uma fera como guarda quando deve odiá-la?
— Feitiços. Não tem para onde ir, pois os feitiços impedem sua saída da caverna.
— Bem, Harque está morta. Os feitiços desaparecerão e o verme estará livre
para sair ou permanecer em alguns dias.
— Ela é muito grata.
Keleios tirou uma pomada de sua bolsa não-mágica. Breena tinha dado a ela
como um presente de despedida. Tinha sido fabricado por Breena e tinha muitos usos,
um dos quais era combater infecções. Groghe voltou com uma panela de cobre
fumegante de água e toalhas sobre a cabeça e os braços. Ele colocou o pote no chão
com um pequeno pingo.
— Aqui está, mestre, exatamente como você pediu.
— Muito bom, Groghe, muito bom.
Através de Eroar, ela avisou que iria doer e agarrou a lança quebrada. Quando
puxou, ela caiu para trás. O verme empinou sobre ela, gritando de dor. Uma
inundação de fluidos imundos misturados com sangue fluiu da ferida. Os outros se
afastaram do animal assustado.
Eroar acalmou o verme depois de um tempo, e permitiu que Keleios se
aproximasse novamente, mas era cautelosa. Ela umedeceu um dos panos na água e
começou a limpar a ferida. Doeu, mas também acalmou. A fera deixou Keleios seguir
seu caminho sem muita dificuldade. Quando o olho estava o mais limpo possível, ela
aplicou uma pomada apenas na ferida.
— Diga a ela para não raspar isso. O inchaço diminuirá se ela não esfregar
contra as paredes.
Eroar transmitiu a mensagem e o verme concordou em seguir as instruções.
— Eu gostaria de ter curativos para esse olho. – Keleios balançou a cabeça e
sorriu. – Mas seria preciso um depósito de roupas para fazer isso.
Os homens abriram o caminho para o sol. Eroar acenou adeus ao verme. Groghe
pulou ao lado de Keleios. Poth deu um passo delicado, sem ter chegado perto do
verme.
Os arbustos tremulavam folhas verdes pálidas ao vento. Quando eles sentiram 257

que havia distância suficiente entre eles e a fortaleza de Harque, eles falaram em voz
baixa, ainda alerta para a perseguição.
— Harque negligenciou seu verme –, disse Eroar.
Lothor perguntou:
— Como?
— Ele poderia ter ficado cego daquele olho se não tivéssemos aparecido. Os
vermes gigantes não são naturais, mas criados magicamente e são suscetíveis a
muitas doenças por causa disso. Um pouco de cuidado extra, e o verme teria ficado
bem.
Eles se libertaram das árvores e começaram a rodear a praia em direção aos
barcos. Harque tinha vários barcos atracados na ilha. Usando o conhecimento
atualizado de Alharzor, Keleios sabia onde poderia ter uma embarcação confortável,
mas administrável. Um cachorro estava parado na areia cheia de pedras. Era um cão
de caça de tamanho médio, branco com manchas marrons. Ao se aproximarem, viram
que uma das orelhas estava faltando, não mastigada em uma briga, mas como se
tivesse nascido sem ela.
Mais dois cães se juntaram a ele, um todo branco, um preto e branco.
Keleios sussurrou:
— Protejam-se. Eu não gosto da aparência deles.
Eles passaram perto dos cães agora. O preto estava sem um olho e o branco
tinha um pé torcido. Eles olhavam com malícia brilhando em seus confiantes olhos
castanhos.
Tobin perguntou:
— O que são eles?
Lothor respondeu:
— O dia os forma nos cães de Verm. E seus olhos não são enganados pela
mágica.
Gabel disse:
— Coisas monstruosas.
Keleios perguntou:
— Você foi a presa em uma caçada durante o dia?
— Eu experimentei muitas coisas maravilhosas desde que nos conhecemos. 258

— Pobre Gabel, fui caçado por esses bosques aos dezessete anos.
— Bravo mestiço.
Lothor disse:
— Chega. Os poderes dos cães de caça são limitados à luz do dia, mas se eles
alertarem os outros, podemos falhar ainda.
Eles começaram a trotar sem dizer mais nada. Um anel de cães cercava o barco
encalhado. Eles rosnaram seu descontentamento, e um grande e amarelo ameaçou
com pêlos levantados e dentes à mostra.
Lothor avançou.
— Abra caminho para seus apostadores. – Ele falou uma palavra que ninguém
ouviu direito, gutural e sibilando ao mesmo tempo. O cão recuou rosnando e o resto
caiu a uma distância segura.
Keleios disse:
— Rapidamente, vamos empurrar a água.
Lothor perguntou:
— Mas para onde iremos em um barco tão pequeno?
— Os pescadores viajam de ilha em ilha em barcos como este, Loltun. Pressa.
O mar estava calmo e vazio. Ondas suaves lambiam a costa. Keleios colocou as
mãos no barco.
— Empurrem.
Poth e o diabrete verde saltaram a bordo. Tobin e Eroar, em forma humana
novamente, inclinaram-se para o barco. Gabel levantou-se e não ajudou. Keleios
falou com os dentes cerrados.
— Os cães levarão outros a nós. Apressem-se.
Ela olhou para o encantador ocioso e disse:
— Gabel, se você não ajudar, você nada.
Ele se juntou ao resto, colocando os ombros e os braços para puxar e empurrar o
barco ancorado na água. O cão amarelo enviou um uivo flutuando na luz, e ao longe
havia uma buzina.
— Empurrem, empurrem por tudo o que vale. – O barco cedeu de uma só vez,
atirando na água, enviando-os a afundar. Lothor caiu e a água escura o engoliu. Os
outros subiram ao lado. Keleios amaldiçoou suavemente enquanto puxava os remos 259

nas fechaduras.
— O curandeiro das trevas sabe nadar?
— Acho que não –, respondeu Tobin.
— Pela forja de Urle, por que ele não aprendeu? – Logo antes que ela pudesse
mergulhar atrás dele, uma mão coberta de manoplas agarrou a lateral do barco,
seguida pelo rosto do príncipe Loltun. Tobin ajudou-o, e Keleios teve que advertir:
— Tenha cuidado ou você vai nos jogar todos na água.
Lothor estava deitado no fundo do barco, ofegando como um peixe
desembarcado.
Keleios começou a remar. Ela fez Tobin pegar o outro par de remos e eles
começaram a se mudar para o mar. A buzina tocou novamente.
Gabel parecia quase chorando.
— Por que eles simplesmente não se teletransportam?
— A mente dos cães não pode dar uma imagem clara o suficiente, e nem mesmo
um demônio pode se teletransportar sem ter uma idéia de onde e o quê.
Keleios sussurrou uma oração baixinho.
— Ellil, deusa do mar eterno, filha das mentiras e da humanidade, você me
conhece. Pesquei, nadei e confiei em meu corpo muitas vezes. Grande Ellil, dê-nos
um vento para navegar em segurança. – Seus ombros e braços esticaram os remos. –
Remem, remem como vocês nunca remaram antes.
Lothor sentou-se com cuidado.
— Eu vou remar.
— Não. – Saiu afiado, e seu rosto ficou nublado de raiva. – Tobin sabe usar
remos; você não. Não há tempo.
Se o vento não ajudou, também não os prejudicou. Ellil era tão capaz de destruir
a vela quanto enchê-la. Ela era o mar e não totalmente confiável.
Eles remaram. Tobin não se virou para olhar para trás; mas Keleios olhou.
Na praia, um grupo de seres podia ser visto, escamas brilhando como jóias à luz
do sol.
Verde, vermelho, azul e branco, os demônios brilhavam à luz. Um deles levou
uma trompa de bronze aos lábios e tocou uma única nota. O som era claro, bonito e 260

amedrontador.
Um vento soprou, cheirando a morte e podridão. A tempestade da peste se
elevou da ilha e começou a rastejar na direção deles. Eles remavam, mas não
conseguiam se distanciar. A espada levantou-se da bainha.
— Mestre, Alharzor pode se teletransportar; ele ainda está fresco.
— Não –, disse Keleios, – estou cansada demais.
— Mas Alharzor não está cansado.
Ela balançou a cabeça.
— Eu posso me teletransportar, Keleios –, disse Eroar.
Ela olhou para o dragão.
— Quantos?
— Também estou cansado. Três, mais eu.
Keleios suspirou:
— Fiz um teletransporte hoje, não posso fazer outro, mas com o poder de
Alharzor posso transportar eu, Poth e o demônio.
Gabel perguntou:
— Mas para onde? O que está ao alcance?
— Cale a boca, Gabel. Deixe-me dar uma imagem a Eroar.
Para se teletransportar sem terminar em parte de uma cadeira recém-movida,
você precisa conhecer suas coordenadas.
Keleios sabia apenas de uma coisa que seria exatamente a mesma. Ela imaginou
peça por peça a gota da cabeça do unicórnio enquanto se inclinava para comer do
sangue de dragão que crescia baixo, o garanhão de pé sobre uma rocha cinza
observando intrusos, um arbusto curto com um coelho escondido embaixo. Ela já
havia usado isso como prática antes. Ela perguntou a Eroar:
— Você tem isso?
— Sim.
Ela deixou o barco à deriva e atraiu magia demoníaca para dentro mais uma vez,
mas estava dolorosamente cansada. 261

Keleios sentiu como se estivesse nadando contra uma corrente forte, mas essa
água era fogo e queimou sua pele. Alharzor estava lá, zangado, poderoso e nem um
pouco cansado.
Eroar saiu com os três homens. Groghe pulou de costas e segurou Poth nos
braços.
A gata cuspiu no diabrete e ele sibilou para ela.
Alharzor lutou contra ela, tentando controlar, para levá-los aonde ele queria ir. A
nuvem da morte se aproximou, o ar cheirando a seu cheiro. Keleios lutou contra o
demônio e respirou pela boca, lutando contra náuseas. Poth deu uma rajada. Keleios
disse:
— Se você continuar lutando comigo, nós dois vamos morrer.
— Eu já estou morto –, Alharzor assobiou. – Você me matou.
Keleios não podia discutir com ele, mas ela teve que detê-lo. Alharzor era um
demônio vermelho; isso significava fogo. Ela pensou em frio - gelo para apagar o
fogo, frio para afastar a raiva dele.
Alharzor recuou diante da onda de magia do inverno, gritando. Ela o manteve
em uma prisão de gelo. O metal da espada congelou em sua mão, mas o núcleo de
fogo que era Alharzor pulsou através dela. Ela o tinha. Keleios estendeu a mão com
seu poder. A nuvem pairava sobre o barco, e Keleios olhou para cima uma vez. A
concentração caiu. Pedaços de algo uma vez vivo flutuavam na nuvem; a nuvem fluiu
sobre o barco.
CAPÍTULO 15: A ILHA DO GUARDIÃO

KELEIOS APARECEU AO LADO dos outros. Ela meio que caiu em uma cama
que foi empurrada muito perto da parede. Uma mão tocou a parede e o rico peso da
tapeçaria do unicórnio. A maior parte da vinda deles havia arrastado a cama torta.
Uma menina pequena estava sentada encolhida na cama, olhando para eles com
grandes olhos verdes. Groghe caiu dos ombros de Keleios e deu um salto mortal pela
criança. A garota soltou um pequeno grito. Poth saltou livre para o tapete trançado 262
que cobria o chão. A ama, Magda, estava defendendo sua carga com uma vassoura. A
mulher havia apoiado os homens em um canto longe da cama.
Lothor chamou Keleios:
— Diga a esta mulher que somos amigos antes que eu desperdice magia nela.
Keleios começou a vomitar, tentando ofegar em ar puro. A fala estava além dela.
Groghe, por mais diabólico que fosse, sabia como atormentar a ama. Ele rastejou
atrás dela e levantou as saias. Ela gritou e deu um tapa nele com a vassoura. Ele era
rápido demais e ela atingiu o ar vazio. O demônio logo a fez girar como um top,
golpeando com a vassoura como se ele fosse um rato verde gigante.
Keleios lutou contra a náusea, respirando o ar limpo e fresco. Ela tirou o capuz,
ainda ofegante. Ela conseguiu sussurrar:
— Magda.
Mas a mulher estava quase histérica pelas travessuras do pequeno demônio.
Keleios chamou bruscamente:
— Groghe, deixe-a.
O diabrete deu um último golpe nas saias cheias e depois se afastou
rapidamente e sentou-se.
Ele sorriu para ela, mostrando dentes compridos e pontudos.
A mulher, ofegante e quase chorando, encarou Keleios.
— Você é real, ou alguma ilusão demoníaca?
— Eu sou real, Magda.
A mulher avançou hesitante. Ela falou com a criança de olhos arregalados.
— Você se lembra da sua tia Keleios, Llewellyn.
A garota olhou para a figura envolta em sangue na frente dela. O rosto branco,
os cabelos castanhos emaranhados e os olhos, os olhos eram assustadores. Mas ela foi
criada adequadamente e conseguiu um fraco:
— Olá, tia Keleios.
— Tia? – Lothor disse do outro lado da sala.
Keleios franziu o cenho para ele.
— Saudações, sobrinha Llewellyn. – E conhecendo algo de crianças, Keleios
acrescentou: – Fui eu quem trouxe a parte superior de metal que gira e canta.
O rosto da criança se iluminou. 263

— Ainda canta para mim. Isso foi um bom encantamento.


Keleios sorriu.
— Obrigado. – A porta se abriu para dentro e dois guardas entraram vestidos de
branco e prata da libré do Guardião. Espadas curtas vieram de bainhas à vista do
grupo heterogêneo. Magda disse:
— Guarde isso. Você não vê que Lady Keleios chegou em casa com alguns
amigos?
Os dois guardas pareciam duvidosos, mas Magda os expulsou da sala.
— Vá acordar à Guardiã.
Com isso, eles pareciam ainda mais incertos. Um deles disse:
— É muito cedo para a Guardiã estar de pé.
— Não importa, a irmã dela está aqui. Agora faça o que você quiser.
Eles foram embora e a enfermeira fechou a porta atrás deles. Magda olhou
Keleios de cima a baixo e estalou a língua.
— Que bagunça. Tenho certeza de que há uma boa história para acompanhar
essa aparição repentina, mas, por enquanto, cuidarei de todos os quartos, comida e
roupas limpas. – Antes que Keleios pudesse falar, Magda continuou: – Vou ver se a
roupa de alguns homens, ou melhor, de meninos, está incluída na sua.
— Obrigado, Magda.
A mulher embrulhou a criança em um cobertor.
— Venha, animal de estimação, deixaremos o quarto para sua tia até que outras
providências possam ser tomadas.
Llewellyn deu um tímido adeus por cima do ombro de Magda, e eles foram
deixados sozinhos no quarto.
O sol da manhã atravessava uma cama quente e comprida. Os revestimentos
rosa-escuro, quase vermelhos, pareciam tingidos de ouro. Fatias de calor dourado
invadiram as janelas estreitas que corriam ao longo da parede leste.
— Onde estamos? – Tobin perguntou.
— Ilha dos Guardiões.
Eroar deu um passo à frente.
— Você quase nos fez materializar dentro dessa cama. 264

— Eu não sabia que a cama estaria tão perto da tapeçaria.


Os olhos do homem dragão se estreitaram.
— Você não sabia?
— Já faz mais de um ano que eu visitei. Além disso, havia muito espaço.
— Você nos teletransportou para um ponto que não via há um ano, um ponto
tão móvel quanto uma tapeçaria? Poderia estar em qualquer lugar.
— Mas não era apenas em algum lugar; era bem aqui. – Ela não estava com
vontade de brigar com o mago hoje.
Gabel disse:
— Eu disse que a sorte dela era boa.
Keleios se sentou cansada na cama, ignorando o que o sangue estava fazendo
com a roupa de cama. Poth havia se encolhido em uma cadeira de balanço que ficava
no canto esquerdo da sala. A gata bateu a almofada gorda, as garras de invólucro e
desprendimento no tecido rico e, quando satisfeita, deitou-se. Ela se enroscou em
uma bola preta e branca, a cabeça escondida sob a cauda espessa.
Groghe descobrira um cavalo de balanço. As mãos de garras verdes agarraram
as alças do bebê na cabeça de madeira, e seus pés largos não tocavam o chão. Ele
balançou a garupa para cima e para baixo no cavalo de madeira, dando uma risada
sibilante.
A tapeçaria do unicórnio sempre estava pendurada no berçário. Uma manada de
unicórnios correu de uma caçada organizada. Cães gritavam nos calcanhares e, mais
atrás, os caçadores cavalgavam. Os unicórnios eram as grandes belezas brancas de
Calthu, as flores e plantas meticulosamente exatas. As árvores eram verdadeiramente
a floresta Calthuiana. Keleios se perguntou, como sempre, por que, com toda a
atenção aos detalhes, eles o estragaram fazendo os unicórnios correrem em um
rebanho como cavalos.
Gabel descansou em uma cadeira almofadada perto das janelas. A luz do sol fez
sua cicatriz parecer quase do mesmo ouro que o resto do rosto. Seus olhos estavam 265

fechados e um sorriso estranho tocava seus lábios.


Keleios meio que desejou tê-lo deixado na ilha. No barco, os demônios já
sabiam.
Não havia nada para chantageá-los. Ela balançou a cabeça. Até Gabel não
merecia morrer nas mãos de demônios. Ele merecia?
Ela encontrou Gabel a observando. Eles se entreolharam, testando vontades. Ele
se virou com uma meia risada.
Keleios observou Lothor observando os dois.
Houve sons na porta. Os guardas entraram primeiro. Estavam em ambos os
lados da porta, com espadas nuas seguradas perto do peito.
O da esquerda era alto e bem musculoso, mas surpreendentemente magro. Seu
cabelo era preto e ainda caía sobre os olhos cinza-azulados. Ele disse incerto:
— Princesa Keleios. – Seus olhos estavam voltados para o demônio no cavalo
de brinquedo gritando "Yippee".
— Trask, voltei para casa, embora inesperadamente e com companheiros
estranhos. É uma longa história. – Keleios se lembrava dele como um dos valentões
que atormentavam Belor quando eram jovens.
Ele abriu a boca para dizer mais, mas uma figura surgiu atrás deles. A figura
estava vestida com a capa verde de uma mulher que ficou comprida, dando apenas
breves vislumbres de uma saia pálida enquanto ela caminhava. O capuz estava baixo
e amarrado, de modo a esconder efetivamente o rosto. Ela passou pelos guardas e
disse a eles:
— Abaixem suas armas. – Eles fizeram como ordenado.
Fios de ouro brilhavam ao longo da capa quando ela entrou na luz do sol. A
mulher encapuzada estava diante de Keleios. Elas se enfrentaram em silêncio por um
momento e depois se abraçaram.
O capuz da capa foi empurrado para trás para revelar uma juba espessa de
cabelos castanhos, um rosto triangular de ossos finos com olhos que se inclinavam
levemente nos cantos e eram do mesmo verde dourado que a capa.
Exceto pela cor dos olhos, ela era um espelho de Keleios. Keleios olhou para sua
irmã gêmea, imaginando que tipo de saudação ela receberia.
A voz era formal. 266

— Bem-vindo em casa, irmã.


Keleios respondeu do mesmo modo.
— É bom estar em casa, irmã.
— E quem são seus companheiros?
Ela fez um sinal para Tobin avançar.
— Methia, duas vezes real, minha irmã, apresento o príncipe Tobin de Meltaan,
herdeiro da província de Fenian, feiticeiro viajante e visionário.
A mulher estendeu as pontas dos dedos em um gesto astranthiano de boas-
vindas. Tobin devolveu o toque levemente e curvou-se.
Methia hesitou diante da armadura preta e do rosto pálido de Lothor, uma
sobrancelha erguida:
— Irmã, posso apresentar o príncipe Lothor Gorewielder, às vezes herdeiro de
todos os Lolth, feiticeiro e meu consorte prometido.
A mulher disse calmamente:
— Você, como o resto dos príncipes de Loltun, também é um curandeiro das
trevas?
Lothor curvou o pescoço.
— Eu sou, irmã da minha prometida.
Ela pareceu estremecer no final e perguntou:
— Aquele que possui Gore, quem é Gore?
A mão de Lothor acariciou o machado ao seu lado com um sorriso frio.
Ela disse simplesmente:
— Entendo.
Gabel era o próximo, mas Keleios disse apenas:
— Ele me chantageou para resgatá-lo. Ele é o Gabel que matou meu mestre
ferreiro Edan.
O olhar severo que veio aos olhos de Methia era muito parecido com o de
Keleios.
— Assassinos não são bem-vindos na Ilha dos Guardiões.
— Fui punido pelos tribunais de Meltaanian.
Keleios se aproximou dele.
— Você ainda vive. Edan está morto, e você ainda vive. Isso sempre me 267

incomodou.
Ele disse:
— E sempre me incomodou que eu não tivesse o prazer de matá-la, mestiça.
Methia fez sinal aos guardas para a frente. Eles ficaram ao lado de Gabel.
Ele sorriu torto.
— Fui julgado e sentenciado. Você não pode fazer isso uma segunda vez; essa é
a lei.
Methia disse:
— Eu sou a lei aqui.
Ele não vacilou.
— Mas você também segue a Cia. Você não vai me matar a sangue frio. Fui
punido e não cabe a você me prejudicar ainda mais.
Methia não disse nada. Ela se virou para os guardas.
— Leve-o embora e guarde-o. Não quero que ele seja deixado sozinho a
qualquer momento.
Os guardas se curvaram e o levaram para fora. Gabel havia aprendido algo de
diplomacia, pois não protestou. Ele parou perto da porta.
— Espero vê-la mais tarde, Keleios.
— Tenho certeza de que algo pode ser arranjado.
Methia disse:
— Não, absolutamente nenhum duelo na minha ilha. Eu o proíbo, Keleios.
Keleios deu de ombros.
— Você é a guardiã.
Gabel disse:
— Outra hora, talvez.
Keleios assentiu.
Os guardas levaram Gabel embora.
Methia assentiu para Eroar.
— Não há necessidade de apresentações entre nós, Eroar.
— Não, Methia, sem apresentações. – Apertaram as mãos e Methia foi até Poth.
A gata bocejou, mostrando as presas, depois se esticou sob as mãos experientes da
mulher. – E Gilstorpoth, vejo que você sobreviveu. 268

Methia virou-se para o demônio verde, agora simplesmente sentado no cavalo


de balanço.
— E o que é isso?
Keleios fez um gesto. O pequeno demônio pulou no chão e se arrastou para
ficar agachado ao lado dela.
— Este é Groghe, um demônio muito menor, a quem eu domestiquei. Ele ajudou
em nossa fuga da Ilha Grey.
Methia empalideceu.
— Ilha Grey. Ouvi apenas que você estava exilada. Nesbit enviou você para lá?
Keleios assentiu, observando o rosto da irmã com cuidado. Methia escolheu
ignorar a traição de Nesbit por algo mais imediato.
Methia ficou em linha reta.
— Eu preferiria que um demônio não estivesse neste castelo.
— Entendido. – Keleios se ajoelhou ao lado do demônio. – Groghe, eu vou
pegar o colar de volta e libertar você. – Seus olhos se arregalaram de medo e ele se
afastou, garras segurando o colar de ouro no peito ossudo.
— Oh, não, Mestre, não me liberte.
— Você é um demônio, pelo menos diabinho. Você não deve gostar de servir.
— Eu não gosto, mas se você me libertar, serei forçado a voltar ao lugar ruim.
— A Ilha Grey, você quer dizer?
Ele assentiu vigorosamente.
— Por que é um lugar ruim para um demônio? Harque está morta; você é livre.
— Não, Mestre, a menos que a maioria de nós tenha sido enganada para sempre.
– Ele rastejou aos pés dela, as mãos envolvendo os joelhos. – Não me deixe voltar lá,
mestre. Não quero mais ser entretenimento.
Keleios colocou as mãos no ombro dele e se concentrou.
— Há um gea nele, leve, mas forte. Ele será forçado a voltar para lá. Ela
arrancou o pequeno demônio dela.
— Groghe, não vou libertá-lo por enquanto.
— Oh, obrigado, obrigado, mestre. – Ele tentou lamber as mãos dela, o que era
um sinal de grande desgosto entre a humanidade demoníaca. 269

— Isso não é necessário, Groghe.


Ele parecia um filhote de cachorro ansioso.
Methia disse:
— Bem, faça com que ele fique fora de vista, pelo menos.
— Ele vai ficar.
Methia puxou uma corda pela porta e os criados vieram quase instantaneamente.
— Os criados lhe mostrarão seus quartos, levarão comida, roupas limpas e
banhos.
Methia falou com uma garçonete loira, que se afastou apressadamente. Methia
deixou claro que desejava ficar sozinha com Keleios, e os outros foram conduzidos.
A porta se fechou e elas estavam sozinhas. Elas ficaram olhando uma para o
outra em silêncio. Methia quebrou o silêncio.
— Você está horrível.
Keleios olhou para a armadura manchada de sangue. Ela passou a mão pelos
cabelos emaranhados e riu.
— Ainda é a mesma Methia. Andar pelos corredores encoberta em vez de deixar
alguém vê-la despreparada.
Methia sorriu, mas não alcançou os olhos.
— Eu sou a mesma, mas você não é.
— Oh, eu não sei. Não foi assim que cheguei em casa: blindada, espada na mão,
sangrenta?
— Não.
— Não. – Keleios começou a se sentar na cama, mas viu a irmã estremecer e se
levantou. – Eu também preciso de um banho e de roupas limpas.
— Eu gostaria de falar com você.
— Eu sei, mas podemos conversar mais tarde.
— Muito bem, eu me juntarei a você no seu quarto quando você estiver limpa e
vestida. Teremos comida trazida até nós.
Keleios assentiu e Methia foi embora. Ela não queria conversar com Methia,
nem sobre Lothor, nem sobre demônios, nem nada. Mas quando se chega em casa,
sempre há perguntas a serem respondidas. 270

Ela saiu pela porta, deixando Poth dormir e Groghe para brincar com uma das
bonecas de Llewellyn. Seu rosto estava amassado, franzindo a testa, concentrado,
enquanto tentava desfazer os minúsculos botões.
As piscinas corriam em linhas precisas de mármore. Era uma extravagância
mágica mantê-las mornas e puras, mas o encantamento havia se estabelecido quando
o castelo foi formado. Não mostrou sinais de ceder. Tobin já estava molhado, os
cabelos escorrendo em linhas quase vermelhas sobre os ombros. Duas garotas
ajudavam-no, e havia muita risada das três.
Lothor estava sentado no banho mais quente, o vapor subindo ao seu redor. Seu
cabelo estava penteado e completamente desgrenhado. Ele varreu uma cortina branca
por mais tempo que a de Tobin, como se fosse a de uma mulher. As pontas dele
flutuavam na água. Ele fez uma careta para ela e disse:
— Eu pensei que este fosse o banheiro masculino.
Keleios respondeu:
— Nós mantemos os costumes astrantianos aqui, assim como Meltaan. As casas
de banho atendem a ambos, e não há espaço ou mágica para separá-los.
Ele se curvou na água, afastando-se das duas servas. Ele tentou se esconder com
uma toalha. Ela teve que rir do desconforto dele. Duas outras servas vieram ajudá-la
com sua armadura.
— Além disso, Lothor, as criadas são mulheres; eles vêem você.
— Mas elas são servas.
Keleios entendeu o que os servos significavam para a realeza. Eles ficavam
invisíveis até que fizessem algo errado:
— Se você ficar mais confortável, irei para mais longe.
Ele não disse nada, mas olhou para ela com um olho prateado perdido em uma
névoa de cabelo platinado. As criadas a seguiram, e ela deslizou na água um pouco
mais fria do que queria. Keleios não queria antagonizá-lo ainda mais. Se quisessem se
juntar, pelo menos precisariam de alguma aparência de amizade.
O calor da água infiltrou-se em seu corpo cansado, embebendo contusões e
pequenos cortes pequenos demais para a cura. Uma criada loira começou a pentear os
emaranhados dos cabelos compridos de Keleios.
Keleios virou a cabeça para olhar para Tobin. Ele estava ocupado tentando 271

puxar uma garota rindo na água com ele. Keleios perguntou:


— Tobin, onde está o mestre Eroar?
O garoto parou de provocar as meninas tempo suficiente para responder.
— Ele disse que queria limpar sua forma real e foi para as piscinas de dragões lá
fora.
Keleios se recostou e deixou as mãos de outra pessoa aliviarem os emaranhados
e as dores. As risadas e salpicos começaram mais uma vez na piscina de Tobin.
Mãos firmes e fortes ensaboaram seu cabelo, e ela permitiu, fechando os olhos e
afundando-se contra o lado.
A água quente caía em cascata de uma jarra para limpar o sabão dos cabelos.
Dedos fortes começaram a amassar os músculos de seus ombros. Apenas um par
de mãos estava ensaboando seu braço, um par de mãos.
Ela se sentou, afastando-se das mãos, o cabelo caindo na água. Lothor se
ajoelhou ao lado da piscina. Havia sabonete em uma das mãos e as mangas de sua
túnica limpa estavam puxadas para trás, expondo antebraços musculosos. As duas
servas se ajoelharam a uma curta distância, observando a todos com olhos nervosos.
Ela resistiu ao desejo de se cobrir e o encarou diretamente, olhando-o fixamente.
Keleios nunca o tinha visto vestido com nada além de preto - preto, a cor da
realeza em Lolth, a cor de seu deus. Ele estava vestido em um azul prateado com fios
metálicos entrelaçados nos ombros e braços. Isso suavizava o estranho prateado de
seus olhos e trazia um toque de cor à sua pele branca.
— O que você quer, Lothor?
— Qual é o problema, minha amada? Desconfortável?
— Existem regras nos banhos que devem ser observadas. A regra um é não tocar,
exceto pelas servas. Se essa regra não for observada, seremos reduzidos aos dias em
que apenas os homens podiam tomar banho.
— Ah, mas não conheço esses costumes. Me perdoe.
Ela olhou para ele.
— Agora você sabe, então saia.
Ele colocou o sabonete em seu prato e mergulhou as mãos na água para limpá-
las.
Ela bateu com o punho na água, respingando nele. 272

— Saia.
Ele se levantou e os joelhos cinza-azulados estavam úmidos de tanto se ajoelhar.
Ele começou a desenrolar as mangas e olhou para ela, completamente vestido e de pé
enquanto ela se sentava nua na água.
— Há algo que devemos discutir.
— O que?
— Gostaria de pedir que marcássemos uma data para nossa união.
— Então pergunte.
Ele franziu a testa para ela, confuso, e disse:
— Muito bem, peço que marquemos uma data para nossa união.
Keleios suspirou e olhou para a água.
— Você sempre tem que me fazer perguntas quando estou em desvantagem?
Ele sorriu.
— Mas minha adorável princesa, eu gosto muito disso.
Ela olhou para ele. Se os desejos pudessem se tornar realidade simplesmente
por pensar neles, ele teria evaporado na hora.
— Você tem o direito de perguntar. Vou falar com Methia e ver quando os
preparativos para o banquete podem ser feitos. Agora, afaste-se de mim.
Ele fechou as mangas e disse:
— Não quero apressar você.
— Sim, você quer, mas eu fiz um juramento e vou mantê-lo. Eu tenho pouca
escolha.
Ele hesitou por um momento, então disse suavemente:
— Você é muito bonita. – Ela procurou por aquele sorriso zombeteiro, mas não
o viu. Havia uma melancolia em seu rosto. Ele se virou e foi embora sem esperar pela
reação dela.
O banho estava estragado. Ela enxotou as servas de volta e terminou
rapidamente. Enquanto ela se secava, uma serva ergueu um vestido para ela colocar.
Keleios teve que sorrir. Sua irmã ainda não tinha desistido de ser uma senhora
adequada. Magda teria tentado conseguir as roupas de seu filho, mas Methia era a
Guardiã. Quando o governante da terra sugeria algo, naturalmente se pensava que era
uma boa ideia. 273

Ela encolheu os ombros. Provavelmente caberia, e ela precisava de um vestido


para a cerimônia.
— Vou usar isso por enquanto, mas, por favor, mande encontrar roupas
masculinas de montaria para mim.
Elas se olharam perplexas. Ambas eram jovens demais para se lembrar muito de
Keleios. A mais velha disse:
— Como desejar, Lady Keleios.
Ela recusou a maior parte das roupas íntimas, levando apenas o suficiente para
que o vestido se ajustasse corretamente. Pelo menos os sapatos não tinham salto alto
ou bico fino. Eram chinelos de cor creme utilizáveis. O vestido era feito de seda cor
de creme. As grandes mangas bufantes foram cortadas e o tecido de ouro apareceu. O
pescoço se transformou em um triângulo bastante ousado. Uma meia capa havia sido
trazida e habilmente drapeada e presa com alfinetes. O pano era de um marrom suave
com fios dourados passando por ele. A capa estava presa ao vestido no quadril e no
ombro. Não acrescentava nada para evitar o frio, mas era o auge da moda. Uma rede
de ouro foi enviada para afastar o cabelo do rosto. Era o compromisso de Methia. Ela
sabia que Keleios nunca consentiria com o penteado elaborado que era popular. A
rede costumava ser usada por meninas muito novas para prender o cabelo. Ela
permitiu que eles fizessem uma trança grossa, completa com uma fita creme, como
uma meia coroa na cabeça.
Keleios permitiu que pegassem a armadura para limpá-la, mas manteve Aching
Silver com ela. Normalmente não havia maneira de prendê-la sobre o vestido, então
ela a carregou embainhada e presa no lugar.
As servas a conduziram de volta ao berçário. Uma empregada disse:
— O quarto não é exatamente como a Guardiã gostaria. Se estiver tudo bem,
você deve ficar no berçário até que seu quarto esteja pronto.
Keleios disse que tudo bem. Ela se perguntou o que, pela forja de Urle, Methia
poderia estar colocando em seu quarto.
Poth estava deitada em uma barra de luz do sol, deitada de lado. Apenas a ponta
espessa de sua cauda tremeu em saudação. Groghe conseguiu despir a boneca e
estava com todas as roupas espalhadas pelo chão. A boneca agora usava um vestido
de baile vermelho. 274

Ele a cumprimentou com:


— Por que o brinquedo tem tantas roupas?
— Porque há dinheiro para comprar tantas. Pegue tudo antes que minha irmã
chegue.
Ele lutou para obedecer, enrolando o pano caro.
— Cuidadosamente.
Ele tentou, mas a ideia de um demônio cuidadoso deixou algo a desejar.
Alguém bateu na porta.
— Quem é?
Silêncio e, em seguida, cuidadosamente neutro:
— É Methia.
Keleios colocou a espada e a bainha debaixo da cama e disse:
— Entre.
Methia entrou trazendo uma bandeja de prata cheia de queijo, frutas e carnes
frias. Uma garrafa de vinho também foi incluída.
— Não é vinho Astranthian, mas é uma boa safra local. – Ela colocou a bandeja
em uma pequena mesa e puxou duas cadeiras de espaldar reto. Sorrindo
brilhantemente, ela disse: — E senhora Gilstorpoth, seu café da manhã espera por
você na cozinha. – Ela segurou a porta para a gata.
Poth fez uma pausa incerta e miou para Keleios.
— Vá em frente, Poth, desça as escadas, passe pela grande sala de jantar e vire à
esquerda. – A gata se esfregou contra suas pernas e foi até a porta. Ela olhou para
Methia por vários momentos com seus olhos amarelos e depois saiu. A porta se
fechou.
— Não acho que ela goste de mim.
— Ela não gosta de ser eliminada. A maioria das pessoas não pensa em pedir a
uma gata para ir embora.
— Mas eu não sou a maioria das pessoas.
— Não. – Keleios sentou-se e teve problemas para alisar a saia cheia para baixo. 275

Ela fez sinal para que sua irmã se sentasse também.


Methia encheu dois copos de vinho.
— Conte-me sobre esse futuro consorte –, os olhos de Methia fixaram-se na
parede oposta, e ela engasgou com o vinho. — Se a gata foi embora, aquela coisa
também vai.
Keleios se virou para ver Groghe guardando as últimas roupas da boneca.
— Vá para os jardins; fique fora da vista e do mal. – Ele acenou com a cabeça
com entusiasmo e desapareceu.
Keleios pensou no que poderia não considerar uma travessura, mas se acomodou
para enfrentar a inquisição.
Methia repetiu sua pergunta.
— Sobre o seu futuro consorte?
Keleios mordeu um pedaço de queijo azedo, pesando suas palavras.
— Ele é da realeza, ele é meio-elfo, ele é encantador e uma espécie de
curandeiro. Achei que era uma obrigação que eu iria cuidar.
— Agora, com a fortaleza destruída, você exilada de Astrantha, e tantos mortos
ou desaparecidos da fortaleza. – Ela tomou um gole de vinho e pegou uma fatia de
maçã. – Parece um momento estranho para uma união. E se você engravidar
imediatamente? Você não pode me dizer que não planeja procurar seus amigos
desaparecidos. Não seria normal não ser heróica.
Keleios encolheu os ombros, concentrando-se na comida. Methia estava vestida de
azul hoje, a cor de centáureas, clara mas rica. A única decoração do vestido era um
lance de rico azul esverdeado, com alfinetes de ouro no ombro e na cintura. Isso fazia
com que seus olhos parecessem azul esverdeado como água do mar rasa sobre as
rochas.
— Não minta para mim, Keleios. Somos toda a família que nos restou.
Keleios ignorou o lance de culpa. Isso era o que motivava Methia, não ela mesma.
— Tudo bem, eu fiz um juramento de tomá-lo como consorte.
— Na última vez em que conversamos, você disse: “Eu não me casaria com ele 276

nem se ele pudesse me tirar dos sete infernos”. Você tinha certeza.
Keleios suspirou e contou a Methia sobre a queda da fortaleza, um corredor
ameaçado de incêndio e um caminho percorrido.
— Um juramento feito sob coação não é válido.
Keleios bebeu vinho e provou a carne. Era boa; a comida sempre era boa aqui.
— Foi feito e é válido.
Os olhos verdes brilharam, tornando-se verdes mais escuros, como boas
esmeraldas.
— Como você pode honrar um juramento forçado a você?
— Por causa da natureza do juramento.
— Eu não vejo...
Keleios estendeu a mão direita, expondo a nova cicatriz da palma.
— Um juramento de sangue, mas mesmo eles podem ser quebrados com
segurança.
— Esse não.
— Mas...
— Deixe-me terminar, Methia. Juramos pelos cães de caça de Verm e pelos
pássaros de Loth.
Seu rosto empalideceu, seus olhos brilharam perigosamente.
— Isso é quase inquebrável.
— É inquebrável, exceto com a morte de um dos jurados. – Ela conhecia sua irmã
e avisou: – Eu não quero que nada aconteça a Lothor enquanto ele estiver aqui, irmã.
— Eu nunca faria uma coisa dessas.
— Não, mas essas pessoas são leais a você, e se por acaso mencionasse sua
antipatia, alguém poderia tentar matar.
— Ele é tão difícil de matar?
— Talvez, mas ele será meu consorte, não eu dele. Nunca precisamos cruzar a
fronteira de Loltun. E eu crio qualquer criança, homem ou mulher, como achar
melhor.
— Como você conseguiu que ele concordasse com isso?
— Eu não juraria o contrário, pela vida de Tobin ou qualquer outra coisa.
— Tem que haver uma maneira de quebrá-lo. 277

— Não há. Methia, eu conheço as realidades desse juramento tão bem quanto ele.
Eu não fui às cegas.
Methia se levantou e foi até as janelas.
— E suponho que seu conhecimento do demonlore seja minha culpa.
— Eu nunca culpei você por não ir atrás de Harque. Tínhamos dezessete anos;
nenhuma de nós deveria ter feito isso. Você mostrou bom senso. Quase custou a vida
de Belor porque ele era leal e foi comigo. Sua presença não teria nos salvado.
Sem se virar, Methia disse:
— Lamento não ter ido. Eu não acho que poderia ir, mesmo agora, mas sinto muito.
— Não há nada para se desculpar. Todos nós temos nossos medos, mas se você
precisa de perdão, perdoe a si mesma. Eu te perdoei há muito tempo. Venha sentar-se
e não tome pequenas referências ao coração.
Methia se sentou com um alisamento nervoso de pano, suas mãos correndo ao
longo do rico brocado e tocando os alfinetes de ouro, tanto quanto Keleios tocava
suas armas para se tranquilizar.
— Do que você está sorrindo?
— Oh, diferenças e semelhanças.
— Você não pode se juntar a ele; ele é um curandeiro das trevas.
— Você se juntou ao vereador Nesbit. Ele segue os mesmos deuses que um
curandeiro das trevas adora. E ele me deixou acorrentada com runas de ligação na
Ilha Gray, carne para qualquer coisa que aparecesse.
— Não, ele não faria isso.
— Ele fez isso. Há quanto tempo ele não vê Llewellyn, sua própria filha?
Methia se virou.
— Já se passaram mais de dois anos, Methia. Ele não vai voltar, tudo por causa dos
olhos dela mudando de azul para verde-elfo, porque ele acha que ela parece uma
mestiça e nenhuma filha dele poderia ser isso.
— Mas ele não é um curandeiro das trevas. Ele não pode trazer dor e morte com
seu toque. Lembro que foi a cura negra que matou nossa mãe, a cura negra que a
apodreceu diante de nossos olhos. O que mamãe diria sobre sua união?
— Mamãe já morreu há muito tempo. Duvido que ela diga alguma coisa.
— Isso foi cruel. 278

— Assim como manter sua memória nova em seu coração. Você já ficou de luto
por tempo suficiente. Deixe ir.
— Quem é você para me dizer por quanto tempo lamentar? Eu me lembro de tudo.
Não sou profeta, mas continua como um sonho profético, vívido e horrível.
Keleios se afastou da irmã, sentindo-se cansada e com raiva
— Eu me lembro, Methia, mas não me atormento. Você acha que eu profano a
memória dela ao me juntar a um curandeiro das trevas?
— Sim, não é?
— Tudo bem, Methia, você quer brigar. Vamos brigar. Você não acha que eu
lamentei por ela por tempo suficiente, que minha tristeza de alguma forma não é tão
grande quanto a sua, porque eu não lamento ainda por isso.
— Sim, que a Cia me perdoe, sim.
— Meu luto foi a vingança. Eu busquei isso e fracassei quando tinha dezessete
anos. Pedi que viesse comigo, mas você recusou. Você disse que matar Harque não
traria mamãe de volta.
— Bem, nem o luto dura para sempre.
— Devo desistir da minha tristeza porque é inútil?
— Não. Deveria desistir porque é um desperdício de energia e força.
Methia se levantou.
— Vejo que não conseguiremos nada aqui hoje. – Ela se virou para a porta, mas
Keleios a deteve. Methia ficou tremendo, mas não tentou se livrar das mãos
restritivas.
— Eu vi a luz morrer nos olhos de Harque. Eu assisti a vida fluir dela em um
riacho carmesim. Ela morreu pelas minhas mãos e isso me satisfez. Não vai desfazer
o que aconteceu, mas foi o suficiente. Ponha para descansar, Methia. Harque pagou
com a vida, com a alma. Deixe ir.
Sua voz, quando veio, era tensa e formal.
— Você vai se unir a ele de qualquer maneira.
— Sim.
— Quando?
— Assim que os preparativos para o banquete puderem ser feitos. 279

Methia riu e soou amargo.


— Não, já está preparado um banquete. Hoje é festival de verão. Sim, teremos uma
procissão de tochas. Eu verei você acasalada em bom estilo, irmã. Que seja esta noite;
a escuridão será melhor para isso. – Ela sacudiu as mãos de Keleios e saiu.
Keleios sentou-se para terminar o café da manhã, descobrindo que seu apetite não
era o mesmo.
CAPÍTULO 16: UMA QUESTÃO DE MAGIA

ELES CHEGARAM AO DEPÓSITO de armas próximo do crepúsculo. O velho


Barrock segurava a tocha em sua mão enrugada. Seu longo cabelo branco era uma
coroa macia em torno de sua careca. Seus olhos azuis ainda eram do mesmo azul
claro, como águas profundas onde os peixes correm com força. Keleios disse:
– As armas estão em boas condições.
Ele empertigou-se um pouco com o elogio.
280
– Eu tento, embora ninguém volte para buscá-los. Eu me certifico de que
possam levá-los, se voltarem.
Empilhadas e penduradas ao longo das paredes estavam todas as armas de todos
os fugitivos que receberam refúgio ao longo dos séculos. Se alguém pretendia ficar
na ilha, não havia necessidade de nada além de facas. A magia brilhava aqui, viva e
esperando. Keleios entrou na escuridão suavemente carregada com a sua espada em
mãos. Sua saia comprida ficou presa em um pedaço de vara e ela puxou o vestido,
tentando não o rasgar. Ela conseguiu e usou uma das mãos para segurar todo o
vestido mais perto de seu corpo. Barrock encontrou um lugar vazio para pendurar
entre um machado de batalha e uma enorme espada de duas mãos. Keleios pendurou
a espada no lugar com cuidado, acariciando o fino acabamento.
– É uma pena que tenha sido tocada por demônios.
– Ah, é um belo trabalho. Um dos melhores que eu já vi, e já vi muitos.
Eles se viraram para ir embora. Algo caiu retinindo na escuridão. A longa
espada estava no chão.
Keleios a pendurou mais uma vez, verificando se estava segura. Através da
bainha ela podia sentir o pulso, a vida batendo no metal. As vidas de tudo o que ela
consumira percorriam sua forma prateada. Ela puxou e ele permaneceu.
No meio do caminho para a porta, caiu novamente. Ela impediu que Barrock
voltasse para pegá-lo e disse:
– Deixe-a lá, ela só quer fazer joguinhos infantis.
Eles subiram as escadas. Keleios quase tropeçou na espada quando ela apareceu
no degrau à sua frente. Ela passou por cima, enviando Barrock na frente. Reapareceu
dois passos à sua frente. Keleios agachou-se ao lado dela, puxando as saias para trás.
– Por que você não fica no depósito?
Sua voz veio abafada e indistinta. Ela a agarrou com cuidado. A espada ergueu-
se a meia lâmina de comprimento de sua bainha.
– Eu esperei por alguém como você por muito tempo para desistir tão fácil.
– Gosta de mim?
– Eu sou um trabalho élfico que precisa de uma mão élfica. Eu sou movido por
demônios, preciso da mão de um demônio. Eu sou mau e preciso de uma mão
maculada. Meu criador procurou me controlar colocando restrições sobre quem
poderia me manejar. Ele era um elfo que havia passado pelo fosso e sobreviveu; isso 281

mancha o sangue.
A espada subiu mais até que Keleios segurou seu punho para impedi-la de cair.
Ela pulsou e bateu em seu braço, cantando uma canção de tristeza e eras passadas.
– Você é um meio elfo que passou pelo fosso e sobreviveu. Você sabe como isso
é raro? Eu não vou desistir de você.
Keleios embainhou a espada novamente e prendeu as travas no lugar.
Barrock disse:
– Minha senhora, o que você fará?
– Vou encontrar outra maneira.
À tarde, Keleios cavalgou em direção ao mar. A égua branca correu rápida e
segura ao longo da estrada do penhasco. Alguém, provavelmente Methia, havia lhe
dado o nome de Bola de Neve. Keleios escolheu chamá-la de Viajante das Nuvens.
Keleios saiu da estrada quando estava perto de Gull Cove.
Era o melhor lugar para encontrar conchas, pequenas, mas boas. Ela encontrou o
caminho íngreme e estreito que descia e instou o cavalo a segui-lo. As roupas de
montaria não eram exatamente o que Keleios queria. Toda a roupa era de veludo azul,
muito grande e desesperadamente elaborada, mas se alguém não se importasse que
uma boa roupa fosse arruinada, ela a usaria. Suas próprias botas, agora limpas,
tinham sido mantidas.
A areia que se estendia diante dela era branca e refletia a luz em milhares de
cristais estrelados. A Mirlite pulverizada fora usada para fazer a maior parte da areia,
e cada grão era um prisma minúsculo. Ela deixou o cavalo caminhar ao longo da
praia como bem entendia, as rédeas balançando na areia.
Ela sentiu o chamado desde que começou a tentar pensar em um presente de
união para Lothor. Era um costume dar algo de si mesmo, de sua própria magia.
Sendo uma feiticeira, não havia tempo suficiente, mas sendo uma feiticeira élfica,
poderia haver.
Keleios caminhava logo acima da linha d'água. As ondas vinham em um verde-
esmeralda escuro, coroadas com espuma branca. As algas marinhas cavalgavam as
ondas em fios marrons. As ondas batiam na areia e a maré subia pelo chão e recuava
como se fosse puxada para trás. Uma moita de algas marinhas do tamanho de um
homem grande tinha sido empurrada para a costa. Keleios caminhou pela areia 282

molhada e se ajoelhou ao lado das algas. As ervas eram marrons e pesadas. Ali,
aninhada em suas gavinhas molhadas, estava a concha. Era pequena, não maior que a
ponta de seu dedo médio. Ela se enrolava em uma espiral perfeita e era branco-
marfim com tons de ouro delineados por todo seu comprimento rodopiante. A ponta
que conduzia para dentro de suas profundezas sussurrantes era de um rosa pálido,
ruborizado e lindo. A concha se comunicava com ela como metal bruto. Dizia que
aqui estava algo do poder do mar. Aqui estava um pedaço de magia dado, não feito.
Com um pouquinho de poder, seria o que ela quisesse.
A água girou sobre suas botas e molhou a parte inferior de suas calças. Ela se
levantou e cuidadosamente colocou a concha em uma pequena bolsa que trouxera
para a ocasião. Viajante das Nuvens veio quando ela chamou, bufando e mordiscando
o gosto salgado de suas mãos. Ela conduziu-a de volta ao topo do penhasco,
pensando enquanto caminhava. A concha seria um encanto para permitir que Lothor
respirasse debaixo d'água, por um tempo. O encantamento instantâneo não era fácil
nem para um meio-elfo e, com tão pouco tempo, não seria permanente. Ela sorriu ao
pensar no curandeiro das trevas ofegando no fundo de um barco. Um adulto que não
sabia nadar – era impensável. O sorriso desapareceu. Este era um presente de união, e
esta noite eles iriam para a cama juntos. Ela estremeceu, meio de medo e meio por
algo que ela não conseguia identificar.
De repente, o vento ficou frio no topo do penhasco.
Ela largou as rédeas e deixou a égua pastar. Keleios caminhou até a beira do
penhasco. Ela desafivelou o cinto da espada, desenrolou o cinto da bainha e segurou-
o por um momento, ouvindo os murmúrios distantes da espada. Ela pulsava e
prometia poder e sucesso na batalha e na magia. Keleios a ignorou. Ela invocou sua
feitiçaria e começou a construi-la em sua mente. Ela colocaria um escudo entre a
espada e ela mesma. Um escudo para cercá-la, uma prisão para mantê-la longe dela.
– Eu a expulso; eu a abandono. Deixe as ondas levarem-na. Deixe que elas
aprisionem você bem longe de mim. – ela reuniu todas as suas forças e jogou a
espada embainhada sobre a água. Um leve gemido soou em sua cabeça. Ela girou de
ponta a ponta, brilhando ao sol, e desapareceu sob as ondas.
Quando ela voltou, finalmente foi autorizada a entrar no quarto que Methia
preparara para ela. A cama estava coberta e coberta com véus e seda. As penas de 283

ganso eram tão macias que engolfavam e seguravam seu corpo quando ela se deitava
sobre elas. As cobertas foram feitas em tecido dourado e preto mais pesado. Era a cor
do luto.
Por que Methia sempre conseguia irritá-la, sempre? Então Keleios encolheu os
ombros e riu. Talvez o preto fizesse Lothor se sentir mais em casa.
Tapeçarias e cortinas caras cobriam as paredes. As cenas eram todas de batalha,
morte, amor fracassado: o amor fracassado de Gynndon e Pestral, seus horríveis
suicídios ilustrados em cores lívidas; a batalha da colina Ty-gor com seus montes de
mortos e moribundos. Um homem em particular parecia sair de cena, implorando por
ajuda, uma mão estendida para fora, implorando, os olhos cheios de horror e a
escuridão que se aproximava. A parede oposta estava pendurada com uma cena de
caça. O grande veado caía de joelhos, o sangue espumando em seus lábios. Os cães
rugiam para rasgá-lo.
Methia tinha a astúcia da corte. Ela tinha feito tudo corretamente, mas de uma
forma indireta.
Ao cair da noite, Keleios ficou olhando pelas muitas janelas estreitas. O vestido
creme estava de volta, e ela até consentiu na maioria das roupas íntimas, exceto o
espartilho. Estava tão apertado que ela poderia ter desmaiado durante a cerimônia.
Ela havia deixado o vestido simples, sem a meia capa. Um véu de renda dourada
estava sobre a cama. Seu cabelo tinha sido escovado até brilhar, ondulado e espesso,
a luz da vela pegando notas de ouro escuro nele. Duas tranças finas, uma de cada lado
do rosto, estavam entrelaçadas com fios de ouro. Era a maneira que uma elfa
wrythiana usaria seu cabelo para um casamento. Ninguém além dela saberia, mas era
ela quem estava se casando. Todo conforto era necessário.
Ela se afastou das janelas com um farfalhar de saias de seda. Poth assobiou e
atacou as saias. Keleios se abaixou, quase derrubando uma mesinha com o vestido
cheio. O gato assobiou e recuou, o pelo arrepiado.
– Poth, está tudo bem; ainda sou eu. – Ela se sentou desajeitadamente no chão e
persuadiu o gato para que viesse até ela. Poth veio, cheirando a mão dela antes de se
permitir ser acariciada.
Ela tentou se convencer a aceitar. Ele era jovem, bonito, meio-elfo. Ela poderia 284

ter procurado mais longe e encontrado coisas piores, mas ele era mau. Keleios estava
começando a perceber que ela mesma não era totalmente boa. A espada Ache silvestri
era má e preferia a ela que a Lothor. Ou talvez a espada não quisesse enfrentar o
machado de Lothor. No entanto, Lothor a prendera nessa união. Ele a capturara como
um animal. Bem, restava mais uma mordida para este animal capturado.
Ela aninhou Poth no rosto.
– Não, eu não posso lutar contra ele. Eu quebro o juramento se lutar. Mas eu não
posso simplesmente deixar que ele me leve – O gato ronronou suavemente, tentando
confortar, mas havia pouco conforto para ser obtido.
Ela tentou se levantar, se enroscou no vestido e foi forçada a colocar o gato no
chão ao tentar se erguer usando a cama. Lá na cama estava a espada, a própria morte
dolorosa. Estava em cima da cama bem arumada; nenhuma perturbação, mas a
espada estava lá.
Houve uma lufada e crepitação de chamas do lado de fora. Postes de tochas
foram colocados ao longo da estrada para iluminar a procissão. Eles ardiam agora,
lançando sombras vermelho-douradas na noite.
A espada estava fria ao toque. Ela desabotoou as fechaduras lentamente e
desembainhou a espada. Ela brilhou e se tornou cor de ouro pálido na rica luz das
velas. Ela pulsou suavemente e falou.
– Eu sou sua para sempre.
– Você está amaldiçoada, uma espada amaldiçoada.
A coisa riu, um som estranho, sem pulmões para segurá-la. Se é que era possível,
a risada reverberava em torno do metal, dando-lhe um som oco.
– Amaldiçoada, bem, depende de como você vê. – e deu outra gargalhada.
Ela enfiou a lâmina na bainha e a trancou, seu riso ainda vindo abafado e
metálico. Ela jogou a bainha de volta na cama.
Groghe apareceu com uma flor que desabrocha à noite em sua garra. A coisa era
branca e tão grande quanto a mão estendida de Keleios. O cheiro era inebriante e
exótico. Methia estava usando magia da terra para fazer flores tropicais crescerem no
clima arruinado pelo inverno. Era algo que sua mãe nunca faria, dizendo que as
plantas não ficariam tão felizes.
– Um presente para você, Mestra, um presente. 285

Ela se abaixou e pegou a flor.


– Obrigado, Groghe, é linda.
Uma batida soou na porta com um: “É hora de se vestir, Lady Keleios."
– Entre.
Duas criadas entraram, gritando quando viram o pequeno duende. Keleios
acenou para que entrassem, repentinamente cansada.
A baixinha de cabelos castanhos começou a escovar as rugas da saia, fazendo
esticões. Keleios podia ouvir o farfalhar do véu dourado. Ele foi levantado sobre sua
cabeça e elas começaram a prendê-lo no lugar com grampos de cabelo. Caiu um
pouco além dos joelhos, mas estava no meio das coxas na frente. Elas puxaram e
afofaram e finalmente disseram:
– Princesa Keleios, você está linda.
Keleios se aproximou do espelho oval com hesitação. Ela não reconheceu a
criatura que a encarou de volta. Essa pessoa era incrivelmente delicada, toda em
renda de ouro e seda. Os olhos castanhos brilharam nas chamas das velas. Ela se
virou lentamente, tentando ver as costas do vestido. As serventes trouxeram um
segundo espelho e o posicionaram. Esta não era ela. Alguém tinha vindo e a raptara e
deixara esta... esta mulher... no lugar. Keleios tinha um consolo: havia uma faca no
cabo da coxa por baixo de todos os enfeites. Não que ela pudesse ajudar em alguma
coisa, mas era reconfortante.
Ela flexionou o músculo, sentindo o aperto familiar da bainha. Ela não se fora
ou tinha sido arrastada; Keleios Incantare, chamada de Nightseer, ainda estava lá
embaixo em algum lugar. Seu único comentário em voz alta foi:
– Vai servir.
As criadas trocaram olhares, mas não lhes cabia criticar. Groghe se aproximou e
fez um gesto mostrando as garrinhas:
– Cintilando – ele disse. – Cintilando.
Ela sorriu para o diabinho.
–É isso.
Keleios ergueu a flor da lua da mesa.
– Por favor, coloque isso na água – A ajudante de cabelos castanhos curvou-se e
a pegou. Methia entrou pela porta usando o mesmo vestido azul que ela havia usado 286

antes.
– Está na hora.
– Groghe, você fica no quarto enquanto eu estou fora.
Ele acenou com a cabeça e saltou sobre o cavalo de balanço.
– Eu farei o que você diz, Mestre.
Keleios seguiu Methia com as garotas servindo atrás, não querendo ficar sozinha
com o demônio.
Keleios disse:
– Foi muito generoso da sua parte colocar o cavalo de balanço no meu quarto.
Groghe está muito feliz com isso.
Methia fungou.
– O duende não o deixava em paz. Encontrei Llewellyn e aquela coisa brincando
juntos. Pode ficar com o cavalo de balanço, desde que fique longe da minha filha.
Keleios sorriu por trás do véu dourado.
Em frente ao castelo havia quatro cavalos. Dois eram totalmente brancos. Um
era preto com uma mancha branca no rosto e uma pata branca. O último cavalo era
cor de creme dourado claro com a mesma mancha branca no rosto e uma pata branca,
também. O garanhão creme tinha uma sela lateral, assim como um dos cavalos
brancos.
Tobin desceu. Sua túnica era de tecido dourado e refletia a primeira luz das
tochas em reflexos acobreados. Seu cabelo castanho parecia vermelho-dourado esta
noite. Atrás estava o curandeiro das trevas. Os fios de prata em sua túnica refletiam a
luz. Seu cabelo caía longo e livre sobre os ombros, e brilhava com uma luz própria.
Um diadema de prata simples como a coroa de um príncipe adornava sua cabeça.
Tobin e Methia ficaram de lado, e Lothor pegou a mão de Keleios. Uma grande
alegria emanava das pessoas alinhadas ao lado da tocha. Ele a ajudou a montar o
garanhão creme, então montou em seu próprio cavalo preto. Tobin e Methia
montaram nos cavalos brancos e a procissão começou. O povo gritava e exclamava
sobre a beleza das princesas e do exótico, mas bonito, futuro consorte.
O templo de Urle ficava a leste da aldeia. O cortejo parou e desmontou de seus
cavalos. Lothor ajudou Keleios a descer. Se ele sentiu sua relutância, não disse nada. 287

Eles caminharam com a mão esquerda dela colocada levemente sobre sua direita e
entraram pela porta do templo. A única luz era uma fogueira na extremidade oposta
da sala central escura.
O farfalhar da seda e o ruído das botas ficaram altos quando eles se
aproximaram do sacerdote. Ele era alto, tinha ombros largos e uma barba castanha
cheia com mechas grisalhas. Seus olhos eram azuis, mas ele não era natural da ilha.
Ele usava uma vestimenta de sacerdote que caía sobre seus pés. Era laranja com
enfeites marrons, as cores de Urle. Na frente havia uma chama bordada e um martelo
sobre ela.
– Quem os trouxe a esta união?
Methia e Tobin responderam em uníssono:
– Nós.
– Cumpriram seu dever, podem ir.
Lothor e Keleios se levantaram, sem se tocar na frente do padre, e ele sorriu para
eles.
– É esta é uma união desejada?
– Não.
– Sim.
Eles se encararam. O padre disse:
– Vocês desejam se unir?
Ambos responderam que sim. Ele desceu e ficou de lado, expondo o poço de
chamas que rugia.
– Como o fogo é fortalecido por cada chama, deixem-se fortalecer um pelo outro.
Como duas peças de metal são forjadas em uma e tornam-se mais fortes, que assim
seja com vocês dois. Como o martelo martela sua mensagem para o aprendiz sem
necessidade de palavras, deixe que vocês dois ouçam o que o outro realmente quer
dizer. É hora de dar seus presentes.
Keleios desenrolou a corrente de ouro de seu pulso direito e a estendeu para o
sacerdote, a concha pequena e adorável pendurada nele. Lothor estendeu um anel de
algum tipo. O sacerdote pegou os dois e orou:
– Que esses presentes sejam uma alegria. Abençoe-os unindo estes dois, Urle, 288

nosso deus, como dois de seus seguidores se unem. Que esses presentes sejam um
símbolo de seus votos um para o outro. – Ele estendeu a corrente para Keleios e ela a
pegou. Lothor teve que abaixar-se para ela deslizar sobre sua cabeça.
– Isso permitirá que você respire embaixo d'água por um tempo. Ele agradeceu e
pegou seu próprio presente do padre. O anel era tecido com seu cabelo platinado;
como joia, havia um ponto vermelho claro de seu sangue. Ela engasgou quando ele
deslizou por seu dedo e olhou para ele. Ele colocou sua vida nas mãos dela. Com
esses totens, uma bruxa das ervas poderia roubar a vida de um homem.
– Meus cabelos e meu sangue para provar que eu nunca vou machucá-la
voluntariamente.
– Deem as mãos. – Eles o fizeram, e ele os fez se ajoelhar. Então ele amarrou
suas mãos com uma tira de couro. Se fosse um casamento, teria sido uma corrente. –
Levantem-se; estão unidos.
Ele desamarrou suas mãos. Eles saíram ainda de mãos dadas, pois a multidão
esperava por isso. A multidão deu um grito poderoso, e eles foram separados pelo
aglomerado de pessoas. Duas poltronas vieram de algum lugar e foram carregadas
nas costas da multidão em direção à festa. Os camponeses sempre tiveram mais
liberdade ali na ilha. Havia pessoas na multidão que conheciam Keleios desde bebê.
Eles se lembraram de quando ela e Belor saíram por aí emboscando os valentões da
ilha pelo que eles fizeram ao ilusionista iniciante em um outono. Eles gritavam piadas
obscenas e sugestões para a noite que viria. Keleios teve um vislumbre do rosto
indignado de Lothor sobre a multidão. Pelo menos ele segurou a língua e não os
insultou por sua imprudência.
As mesas foram dispostas na grama fora do castelo, e toda a vila veio para
festejar e dançar. A multidão os carregou para a área de dança. Estava amarrado com
fita brilhante e marcado por postes pintados de branco. O solo estava bem pisoteado e
quase sem grama. Durante todo o dia, enquanto Keleios e seus companheiros
dormiam e se lavavam, tinha havido festa.
A multidão estava meio bêbada e já bem alimentada. Havia tido muito para
comprar e ver hoje. Houve sacrifícios dos melhores frutos do campo, a melhor
colheita do dia. Agora, a multidão gargalhante colocava o casal recém-formado no
campo de dança e gritou por música. Quando veio, era uma melodia assustadora, uma 289

série de notas crescentes que puxavam a mente, mas não os pés.


Lothor franziu a testa. Ele foi forçado a gritar no ouvido dela para ser ouvido.
– Eu não sabia que teria que dançar. Eu não sei dançar.
– Isso não importa; você não conheceria esta dança.
Ela pegou sua mão esquerda e o levou para a pista de dança. Ela disse a ele:
– Pense nisso como uma luta. Siga meus movimentos, me imite.
Ele a seguiu rigidamente, toda a graça e velocidade de uma luta de alguma
forma refletida em seu desconforto. Foi uma dança de dedos e beijos cheios de
promessas. Ele sorriu de alívio quando a dança terminou. Keleios riu, um som do
fundo da garganta. Ele parecia confuso até que uma senhora se aproximou dele e o
arrastou para outra dança. Um homem agarrou a mão de Keleios e ela também entrou
na dança. Esta era uma noite para os camponeses dançarem com os príncipes. Muitos,
como um sacrifício para a Mãe de Todos, perdoaram velhas dívidas, velhos rancores.
A Mãe faria uma colheita de almas tão feliz quanto uma colheita de terra.
Lothor rodopiou por entre as multidões risonhas de saias e vozes de camponeses.
Keleios foi agarrada por mãos avermelhadas de puxar corda e lançar redes. O ferreiro,
sem um grama de magia, envolveu-a em um aperto como o ferro com o qual
trabalhava, ainda cheirando levemente ao fedor de queimado da forja. Keleios viu
tudo através de uma glória de manchas douradas. O véu balançava sobre seu rosto,
estranhamente quente e próximo. Finalmente, eles se sentaram para a festa. As mesas
gemiam sob a luz das tochas. Podia haver gente suficiente para comer toda a comida,
mas Keleios duvidava muito.
Lothor estava sentado ao lado dela. Um fino brilho de suor fez sua pele brilhar.
Como um polvo humano muito pálido, ele ficava vermelho com o esforço. Sua pele
pálida ficou rosa, e seus olhos brilhavam por baixo de sobrancelhas brancas quase
invisíveis. Ele a pegou olhando para ele e olhou para ela. Keleios não desviou o olhar.
Ele sorriu, meio malicioso, e disse:
– Vamos nos recolher para aproveitar a noite, minha princesa.
Ela olhou para ele por mais um momento, então acenou com a cabeça. Um nó de
tensão começou em sua barriga e subiu, ameaçando sufocá-la. Ele ofereceu-lhe o
braço, mas ela recusou. Eles caminharam juntos sem se tocar, e quando a multidão 290

percebeu seu destino, uma grande ovação subiu.


Quando Keleios tropeçou na saia longa, ele segurou-a e ela não se afastou.
Vivas bem humorados e piadas barulhentas os seguiram até os cavalos. Ela permitiu
que ele a ajudasse a montar na sela lateral. Ela socou o monte de tecido da saia com
raiva. Ele ergueu uma sobrancelha e sorriu para ela.
– Tremores, minha amada?
Keleios optou por não responder, mas empurrou o cavalo para frente, sem
esperar que ele montasse.
Ele galopou até ela, rindo.
– Você está bêbado – disse ela.
Ele riu um pouco mais.
– Ora, minha amada, acredito que você esteja nervosa.
– É tradicional antes de ir para o leito nupcial.
Seu rosto ficou sério e ele agarrou as rédeas do cavalo dela.
– Keleios, você já esteve com um homem antes?
Ela se desvencilhou dele e galopou para o castelo.
Ela o ouviu murmurar:
– Sangue de Loth, uma virgem.
Ele não a perseguiu. Ela correu pelos portões elevados e jogou as rédeas para
um escudeiro que esperava. Em algum lugar da corrida, o véu dourado foi perdido.
Keleios pegou as saias volumosas, correu para o quarto dela e parou. Ele estaria lá
eventualmente. Ela tinha jurado levá-lo para a cama. Realmente não havia como
voltar atrás. No entanto, uma parte dela ainda estava lutando com a ideia. Até a
cerimônia de união, sempre havia esperança de fuga, mas agora, agora não havia
nada a fazer a não ser se submeter.
– Não vou, não vou. Eu vou vê-lo morto primeiro, custe o que custar.
Alguém saiu das sombras. Foi Magda. Ela abriu os braços e disse
– Keleios, minha garotinha guerreira. – Keleios foi até ela e permitiu que os
braços a segurassem contra o busto rechonchudo de Magda. Ela alisou o cabelo da
garota. – Todos esses anos brincando com meninos e morando com os guerreiros e
você nunca esteve com um homem
Keleios se afastou dela e se endireitou. 291

– Não.
– Toda a conversa sobre você ser selvagem quando jovem, mas eu sabia que
diziam isso por inveja, inveja do seu poder, da sua posição e da sua beleza.
Ela sussurrou:
– Magda, o que devo fazer?
– Você vai fazer o que as mulheres tem feito através dos tempos. Você vai
seguir em frente.
– Mas como? Estou tão irritada. Ele me prendeu e não consigo me livrar dessa
vez. Nenhuma espada ou feitiço vai me ajudar agora.
– Pobre Keleios, você nunca teve que aprender a arte feminina da paciência.
– Eu aprendi a ter um pouco de paciência.
– Mas você é como um homem acostumado a agir e controlar seu próprio
destino. Juntar-se a qualquer homem teria sido difícil, mas agora...Você deve fazer o
seu melhor.
– Mas qual é o meu melhor?
A mulher passou o braço pelos ombros dela.
– Vou lhe dar alguns conselhos, minha querida, conselhos de uma mulher que
teve cinco filhos e criou mais alguns.
Keleios sorriu para ela. Elas caminharam pelos corredores com a voz baixa de
Magda sussurrando contra as paredes de pedra.
Magda foi e levou os criados com ela. Keleios esperava sozinha no quarto. O
duende se foi como ela ordenou que fosse. Ela esperava que ele realmente ficasse
fora de problemas esta noite. Um roupão branco se arrastava pelo chão enquanto ela
caminhava. Deixava seus braços nus, mas escondia todo o resto. Keleios decidira
levar a sério o costume calthuiano. Fora o conselho de Magda, pois ela era calthuiana.
Seria uma busca pelo corpo sob o tecido voluptuoso. Ela não precisava ficar nua
diante dele, a menos que desejasse.
Keleios se sentia tensa. Seu nervosismo e raiva se traduziram em feitiçaria.
Coisas pequenas levitavam perto dela. Ela era como uma aprendiz novamente,
tentando controlar poder e emoções fortes como aquela.
Lothor entrou com uma leve batida na porta. Ele parou logo na entrada. O ar
estava carregado, uma espera no ar como uma tempestade que se aproxima. 292

– Você pretende me fazer uma travessura?


Ela riu, e a risada tinha um tom selvagem. Um espelho de mão flutuou para fora
da mesa de cabeceira. Ela disse, quase ofegante:
– Estou no limite esta noite, Lothor. Não brinque comigo.
Ele sorriu um sorriso perfeitamente angelical.
– Eu, brincar com você? Nunca.
– Lothor.
– Minha amada, estou um pouco bêbado, mas não tanto a ponto de testar muito a
sua paciência. Afinal, esta é a noite em que iremos para a cama.
Ela cerrou o punho e o espelho caiu, estilhaçando-se.
– Forja do Urle.
– Permita-me. – Ele acenou com a mão e o vidro quebrado desapareceu.
Ele também tinha tomado banho e se vestido. Usava uma camisola branca, não
mostrando mais dele do que o dela. Até seus braços estavam escondidos. Ele se
curvou e puxou o vestido pela cabeça em um movimento fácil. Ele estava nu por
baixo.
– Lothor! – Ela lhe deu as costas.
– Sim – disse ele suavemente.
– Você não está vestido.
– Não, eu sou Loltun. Não vamos para as nossas camas presos em panos.
– Bem, eu sou meio calthuiana. Nós vamos.
– Uma diferença de opinião tão cedo... Lamentável.
Ela se virou para encará-lo e rapidamente se virou.
– Keleios, seja razoável. Você já me viu sem roupa antes.
– Mas não no meu quarto.
– Não foi por falta de tentativa da minha parte.
Ela deixou escapar um som exasperado e um pequeno vaso se atirou perto dele e
se espatifou na parede.
Ele disse:
– Se você quiser jogar pesado, podemos.
– Meu controle não é o que deveria ser esta noite.
– Estes últimos dias cansaram a todos nós. 293

– Sim, eu estou cansada.


– Então vamos para a cama. – Ela o ouviu se jogar na cama. Ela se virou
timidamente, mas ele se deitou em cima das cobertas. Ao vê-la espiar, ele sorriu e
deslizou sob o monte de cobertores.
Ela ficou indecisa, as mãos abraçando os cotovelos. As cobertas farfalharam e
uma mão tocou seu braço, como tentativa.
– Só um feiticeiro pode levar você para a cama esta noite. Sua pele se arrepia
com magia. – O aperto aumentou. – Sinta minha magia, Keleios, sinta minha
feitiçaria.
Ela fez. A magia se incorporou, e o poder crepitava silenciosamente entre eles.
Ele a puxou suavemente para a cama, e onde ele a tocava, a magia se fundia e crescia.
Ela engasgou e disse:
– Magia.
– Será sempre uma questão de magia para nós, Keleios. Não é mero cio, não
importa o que você já ouviu sobre os homens Loltun.
Havia um leve cheiro no ar. Keleios perguntou:
– Você sente cheiro de enxofre?
Ele provou o ar.
– Sim.
Eles se entreolharam e rolaram para fora da cama, ele de um lado e ela do outro.
Um flash de luz cegante, e através dos olhos nublados, eles viram algo na sala.
Era mais alto que um humano, mas não muito. Conforme a visão de Keleios
clareou, a coisa tomou forma. Não havia tempo para armas enquanto a Deusa
Demônia Elvinna perseguia Lothor. Ele previu o perigo, mas seus olhos não estavam
claros. Sua mão estendeu-se e um raio de energia saiu dela. Ele foi atingido e caiu
chiando em uma tapeçaria.
Ela avançou, a espada dourada erguida. Sua voz era baixa e melodiosa.
– Eu sempre mantenho minhas promessas, meio-elfo.
Keleios fechou os olhos com a distração de sua visão arruinada e começou a
construir um feitiço. Ela invocou sua magia, e Lothor gritou:
– Keleios!
Ela caiu no chão e sentiu o calor subir acima de sua cabeça quando uma onda de 294

fogo consumiu a parede atrás dela. O feitiço estava arruinado por enquanto, mas sua
visão estava de volta, um pouco turva, mas boa o suficiente. Raios de energia
dispararam do outro lado da sala.
A súcuba gritou quando alguns acertaram em cheio, mas uma coluna da cama
desabou com um golpe de sua espada. Lothor caiu perto da porta. Uma onda de
chamas subiu antes que ele pudesse alcançá-la.
Keleios rastejou para longe da tapeçaria em chamas. O fogo, sendo mágico,
consumiu a tapeçaria, mas não se espalhou. Ele estalou e morreu quando seu alvo foi
consumido. Keleios ajoelhou-se e tentou algo mais simples, mas mais perigoso. Ela
invocou a magia com as mãos sem antes formá-la em seus pensamentos. Foi mais
rápido, mas muito mais perigoso. Ela bateu às cegas com força, sem ter certeza do
que faria. Um raio irregular de luz atingiu o lado do demônio e o jogou para trás.
Keleios seguiu com outro, deixando o raio derramar-se de sua mão como água. Isso
deu a Lothor tempo suficiente para alcançar seu machado. Um encantamento ligado à
alma nunca poderia ser realmente separado de seu criador. Ela precisou apenas de um
momento para invocá-lo. O fogo subia pelo teto avidamente. Um raio branco e
irregular explodiu da ponta de seu machado e fez o demônio cair de joelhos. Ela
gritou e se enfureceu com ele. Uma mão em forma de garra o atingiu. Pequenos raios
verdes doentios dançaram ao longo do corpo de Lothor, e ele gritou.
Keleios havia desenhado seu feitiço completo na mente, controlado e completo.
Tendo internalizado a natureza da súcubo, ela entendia agora. Ela sentia frio, não dos
ventos de inverno, mas do homem. A frieza de uma cama vazia, um quarto solitário.
O vendaval de inverno uivando lá fora e a solidão de dentro. Sem braços para lhe
abraçar, ninguém para cobiçá-la, sozinha. Sem seguidores para adorar você. Quando
ela lançou o feitiço, não havia nenhum raio de gelo, apenas um brilho fraco ao redor
do demônio.
Elvinna gritou. Ela jogou a cabeça para trás e uivou. Ela se esqueceu de atacar o
homem. Ela esqueceu tudo menos a solidão. Seus gritos ecoaram enquanto ela
desaparecia. Com ela saindo, as chamas mágicas começaram a morrer, deixando
ruínas carbonizadas para trás.
Lothor ficou de joelhos, balançando a cabeça, seu machado ainda frouxamente
agarrado à sua mão. 295

Keleios se ajoelhou ao lado dele, tocando seu ombro suado timidamente.


– Você está bem?
Ele balançou a cabeça e disse roucamente:
– Qual foi o último feitiço?
– Era algo contra a verdadeira natureza de uma súcuba.
– Como você saberia a verdadeira natureza de uma?
– Eu matei uma com Ache silvestri e a absorvi.
Ele sorriu, uma versão pálida de seu olhar malicioso usual.
– Você absorveu a natureza de uma súcuba. Isso deve adicionar tempero ao
nosso quarto.
Ela ficou surpresa ao sentir um rubor subindo por suas bochechas. Houve uma
batida na porta.
A voz de Madga gritou:
– Keleios, Keleios, não o mate. Vai destruir todo o lugar.
A batida das botas dos guardas eram altas no corredor.
Alguém perguntou:
– Onde está a chave?
Keleios olhou em volta dos destroços da sala. Todas as tapeçarias foram
queimadas, e um, em ruínas esfarrapadas. A cama estava meio desabada e o fogo
arruinara quase tudo.
O sorriso dele se alargou.
– Se dormir com você é sempre tão emocionante, não vou viver até o verão.
Ela sorriu e uma risadinha escapou de seus lábios. Seus próprios lábios
tremeram. E eles começaram a rir. Era uma risada boa e saudável, e borbulhava de
ambos. A tensão fluiu com o som de uma risada. Keleios pensou o suficiente para
entregar a Lothor sua camisola para cobrir seu colo, e a porta se abriu.
Os guardas entraram correndo e não encontraram nada para lutar. Methia entrou
e quase gritou quando viu a sala.
– Wyrms de Verm, irmã, como confiar que você não vai destruir todos os
cômodos que eu lhe der?
Lothor se levantou e tentou explicar, mas a camisola caiu no chão e o deixou nu. 296

Methia gritou:
– Cubra-se!
Lothor disse:
– Não há razão para gritar. – Keleios entregou a Lothor sua camisola, os olhos
brilhando com o riso reprimido. Ele começou a explicar, e Methia, a gritar. Keleios
puxou um pedaço da coluna carbonizada de dentro do vestido, e a risada borbulhou
até a garganta. Lothor e Methia se viraram quase ao mesmo tempo.
Methia gritou:
– Do que você está rindo?
Lothor piscou para Keleios, atrás dela. Keleios caiu de costas no chão cheia de
cicatrizes e riu até chorar.

FIM

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