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O ESTABELECIMENTO DE UMA PRIMEIRA CERTEZA A PARTIR DO EXERCÍCIO DA DÚVIDA

Sabemos que afirmações como:

1. Esta mesa é retangular

2. Os corpos são extensos

podem ser falsas, porque, dada a suposição do génio maligno, não podemos acreditar
plenamente nem no testemunho dos sentidos nem na evidência intelectual pelas quais, nos
exemplos dados, afirmamos que a mesa (esta) é retangular ou que os corpos (em geral) são
extensos.

Mas será que afirmações como:

1.1. Eu penso que esta mesa é retangular

2.1. Eu penso que os corpos são extensos

Poderão ainda ser falsas pelas mesmas razões que nos levam a duvidar da verdade de 1 e 2?

Note-se que a expressão "eu penso que…" não significa qualquer coisa como "eu sou da
opinião que…" ou "eu julgo que…". A expressão "eu penso que…" não diz respeito a uma
atitude tomada relativamente ao conteúdo proposicional do membro "que p" (por exemplo:
"que a mesa é retangular") e aos objetos que são referidos na proposição p ("a mesa" ou "os
corpos em geral"). Se a expressão fosse assim interpretada, 1.1 e 2.1 diriam apenas que não
estamos certos de que as coisas nelas afirmadas sejam verdadeiras. Sendo entendida deste
modo, a expressão "eu penso que…" exprimiria apenas uma tomada de posição relativamente
ao que está dito, ou seja, relativamente ao conteúdo das afirmações 1 e 2. Nesse sentido, a
anteposição do "eu penso que…" nada adiantam, portanto, relativamente à situação a que nos
havia conduzido a dúvida (…).Mas o sentido desta expressão é completamente diverso. Ela não
é a afirmação de uma opinião minha sobre determinados conteúdos proposicionais ("que a
mesa é retangular", "que os corpos são extensos") e sobre se há ou não objetos a que eles se
refiram (a mesa, a figura, os corpos, a extensão). O que se passa com a expressão "eu penso
que…" é antes a afirmação da existência de um pensamento meu a respeito dessas mesmas
proposições e dos objetos a que se referem. Ora, por mais duvidoso que seja que esta mesa
exista e seja retangular, por mais duvidoso que seja a existência de corpos, da extensão e do
mundo no seu todo, é no entanto verdade que eu penso isso (que está dito nas proposições) a
respeito de todas essas coisas e que jamais poderei pôr em causa a existência atual deste meu
pensamento. Há boas razões para supor que desta evidência poderemos retirar uma afirmação
que será indestrutível por qualquer argumento cético. É justamente esse o desígnio de
Descartes. Na verdade, se duvido que a mesa existe, então é porque penso na mesa e, se nela
penso, é porque eu próprio existo enquanto sujeito dos meus pensamentos. De facto, se não
existisse, como poderia, então, pensar na mesa ou em qualquer outra coisa e duvidar da
verdade de tudo aquilo em que penso? Pelo argumento do génio maligno, poderei sempre
duvidar que o pensado seja verdadeiro. Mas não poderei jamais duvidar da verdade de que
penso. A proposição que o afirma, a proposição eu penso, logo existo será, então,
absolutamente certa e indubitável, mesmo que todos os meus pensamentos acerca das coisas
diferentes de mim possam ser duvidosos ou mesmo inteiramente falsos.
P. Alves, Os Princípios da Filosofia de Descartes, Colibri, 2012, pp. 26-27.

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