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Cadernos de Estudos Estratégicos 2

Cadernos de Estudos Estratégicos


Cadernos de Estudos Estratégicos
n. 01 /2021
Os Cadernos de Estudos Estratégicos
Irregular são publicados de forma irregular
pela ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA,
ISSN 1808-947x do Rio de Janeiro. Edição Eletrônica.
Circula em âmbito nacional e
1. Cultura. 2. Relações Internacionais. internacional.

3. Modernidade. 4. Axiologia. 5. Praxiologia.


6. Polemologia. 7. Cratologia. 8. Segurança

Comandante da ESG
Tenente-Brigadeiro do Ar Luiz Roberto do Carmo Lourenço

Subcomandante da ESG
General de Divisão Adilson Carlos Katibe

Diretor do Campus RJ da Escola Superior de Guerrra


Contra-Almirante Cassiano Marques

Diretor do Centro de Estudos Estratégicos Marechal Cordeiro de Farias


Contra-Almirante (RM-1) Guilherme Mattos de Abreu

Editor Executivo
Coronel (R/1) Ricardo Alfredo de Assis Fayal

Conselho Editorial
Coronel (R/1) Ricardo Rodrigues Freire
Coronel (R/1) Antônio dos Santos

Organizador
Prof. Ronaldo Gomes Carmona

Os artigos publicados pela revista são de exclusiva responsabilidade de seus autores, não expressam, portanto, o
pensamento da Escola Superior de Guerra.
Cadernos de Estudos Estratégicos 3

Sumário

Prefácio ................................................................................................................................................ 4

Absolutismo ilustrado e formação do imaginário imperial brasileiro no Antigo Regime (1750-


1820) .................................................................................................................................................... 6

Brasil Potência .................................................................................................................................. 18

Brasil – potência: origens, conceito e atualidade de um Destino ................................................. 31

Geopolítica com lentilhas: uma interpretação do pensamento do general Golbery do Couto e


Silva ................................................................................................................................................... 39

Therezinha de Castro .......................................................................................................................................... 47

O pensamento de Meira Mattos e o projeto de Brasil potência ............................................................ 55

Anexo ........................................................................................................................................................................... 67
Cadernos de Estudos Estratégicos 4

Prefácio
A geopolítica brasileira, como área de conhecimento científico, completa o seu centenário
nesta terceira década do século XXI, se tomarmos como referência os primeiros escritos do Prof.
Everardo Backheuser e na sequência, a contribuição seminal do livro Projeção Continental do
Brasil, do então Capitão Mário Travassos.
Mas foi a criação da Escola Superior de Guerra, em 1949, que proporcionou um salto à
geopolítica verde e amarela, ao conjugá-la com o projeto brasileiro de desenvolvimento, como
indicam os princípios fundamentais da ESG, republicados nesta edição do Caderno de Estudos
Estratégicos.
A presente publicação apresenta os registros do Seminário sobre a Geopolítica brasileira,
realizado em junho de 2021, em homenagem a um dos seus principais intérpretes - o General Carlos
de Meira Mattos -, que atuou nesta Escola por muito anos. Foi o General Meira Mattos quem, em
1961, atualizou os desafios discriminados três décadas antes por Travassos, ao publicar o livro
Projeção Mundial do Brasil, que espelhava o periodo de desenvolvimento nacional que então
ocorrera.
O Seminário de junho de 2021, do qual aqui se publicam os anais, consistiu de duas mesas. A
primeira, tratou da atualidade do projeto brasileiro de potência, abordado pelo Professor Ronaldo
Carmona, desta Escola, organizador do seminário, e pelos ilutres Professores convidados: Professor
Darc Costa, da UFRJ, com passagem por esta Escola, onde foi Diretor do Centro de Estudos
Estratégicos; e Professor Christian Lynch, renomado intelectual, vinculado ao Instituto de Estudos
Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).
A segunda mesa tratou, especificamente, da tríade de pensadores que estão entre os maiores
geopolíticos que passaram pela Escola: o General Meira Mattos, apresentado pelo Professor
Guilherme Sandoval, da ESG; o General Golbery do Couto e Silva pelo Professor André Martin, do
Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP); e a Professora Terezinha de Castro,
pelo Professor Eli Alves Penha, da UERJ, o qual teve oportunidade de conviver com ela quando jovem
pesquisador.
Finalizando, registro as nossas homenagens ao Professor Severino Cabral, muito querido por
todos nesta Escola, onde, ao longo de duas décadas, legou grande contribuição ao desenvolvimento
do estudo da geopolítica. Este Seminário contaria com a sua participação na primeira mesa, mas a sua
presença foi cancelada devido a uma delicada cirurgia, da qual não se recuperaria. Infelizmente, nos
deixou em 20 de julho. Que descanse em paz!

Rio de Janeiro, julho de 2021


General de Divisão Adilson Carlos Katibe
Subcomandante da ESG
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Apresentação
A presente edição do CADERNO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS, elaborado pelo Centro de
Estudos Estratégicos Marechal Cordeiro de Farias, da Escola Superior de Guerra, tem como
base os Anais do Seminário sobre GEOPOLÍTICA DO BRASIL, realizado em 24 de junho de
2021, junto ao Curso de Altos Estudos em Política e Estratégia (CAEPE) da Escola.
O Seminário foi aberto com uma homenagem ao General Carlos de Meira Mattos, que consistiu
em uma alocução pelo Sr José Carlos Silva de Meira Mattos, filho do homenageado.
Em seguida, a primeira das duas mesas do seminário abordou o tema: “O projeto de potência
no pensamento social e na geopolítica luso-brasileira”, que contou com três palestrantes, o Prof.
Dr. Christian Lynch (IESP-UERJ), o Prof. Dr. Darc Costa (IE-UFRJ) e o Prof. Dr. Ronaldo
Carmona (ESG). Seguiu-se uma sessão de debates com a audiência.
A segunda mesa do Seminário, teve como tema “A tríade geopolítica brasileira: General Golbery
do Couto e Slva, Profa. Terezinha de Castro e General Meira Mattos”, enfocando os três autores
clássicos da geopolítica brasileira. Foram ministradas, respectivamente, pelo Prof. Dr. André
Martin (DG-USP), Eli Alves Penha (DG-UERJ) e CMG (RM1) Prof. Dr. Guilherme Sandoval (ESG).
Da mesma forma que na primeira mesa, seguiu-se um período de debates com os
participantes.
O encerramento do SemInário contou com a presença do Subcomandante da ESG, General de
Divisão Adilson Carlos Katibe.
A presente publicação inclui os textos-base das seis palestras proferidas e enviadas a
posteriori pelos autores, bem como texto relativo aos Princípios Fundamentais da Escola
Superor de Guerra, documento histórico que se relaciona ao escopo do Seminário aqui
apresentado.
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Absolutismo ilustrado e formação do imaginário imperial


brasileiro no Antigo Regime (1750-1820)
por Christian Edward Cyril Lynch*

Até o início do século XVIII, a homogeneidade da herança cristã e feudal conferira à Europa
uma comum concepção do mundo, com suas sociedades de ordens, o regime de servidão, um direito
geral herdado do romano e um complexo sistema de tributos e jurisdições. Entretanto, a aceleração
do desmonte das estruturas medievais, o surgimento de novas tecnologias e a expansão dos poderios
militares logo projetaram a Grã-Bretanha e a França no concerto europeu. Essa projeção veio
acompanhada pela divulgação dos ideais iluministas, embutidos em uma filosofia da história como
progresso técnico e científico elaborada no seio de uma nova sociedade de índole comercial. A
sensação de retardo, perda de centralidade e vulnerabilidade percebida pelos demais monarcas
europeus - como Catarina da Rússia, Frederico da Prússia, Maria Teresa e José II da Áustria e Carlos
III da Espanha - levou-os a adotarem políticas tendentes a corrigir aquela rota de estagnação ou
decadência. A política do chamado despotismo esclarecido ou do absolutismo ilustrado, preconizada
na França por Voltaire, Helvécio e Diderot, recomendava a secularização da vida social e o
fortalecimento da monarquia como condição para a modernização das estruturas sociais e econômicas,
a partir do exemplo deixado por Luís XIV. Tratava-se de uma via de desenvolvimento nacional que
se propagava “de cima, como um esforço pedagógico de difusão das luzes” 1. Por conseguinte, a
política do absolutismo esclarecido passou a ser vista, na generalidade dos países do sul da Europa,
como a melhor forma de governo e esperança de realização de reformas racionais2.
Foi por esse tempo que a cultura hispânica que caracterizava a identidade cultural portuguesa
começou a ser modificada pelo influxo da francesa, passando a se perceber como europeia. O principal
agente da segunda “revolução monárquica” portuguesa, deflagrada sob o signo das luzes, foi o
primeiro-ministro de dom José I, Sebastião de Carvalho e Melo, conde de Oeiras, depois marquês de
Pombal (1699-1782). Pombal estava persuadido de que a recuperação de Portugal dependia de um
estilo novo de governação, que minasse o imperialismo britânico e Igreja católica. A situação de
Portugal por volta da metade do século voltara a ser periclitante: a produção aurífera brasileira entrara
em declínio e o terremoto de 1755 devastara o país. Os níveis do comércio externo decresceram e a
produção agrícola brasileira estagnara, devido à preferência conferida durante as décadas anteriores
ao cômodo extrativismo dos metais preciosos. A agricultura metropolitana também experimentava
dificuldades e sua indústria não se desenvolvia, devido à concorrência das manufaturas britânicas,
francesas e holandesas. Para modernizar o reino, portanto, Pombal precisava entender as origens da
superioridade comercial e militar da Grã-Bretanha e da fraqueza econômica, política e militar de
Portugal, assimilando as lições dos países mais desenvolvidos. Uma política de regeneração nacional
dependia de uma “revolução monárquica” de caráter ilustrado, que racionalizasse a administração,
enfraquecesse a aristocracia e o clero, e proclamasse o caráter absoluto da monarquia. A
desorganização provocada pelo terremoto de 1755 seria aproveitada para reconstruir o país conforme

*Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e da
Universidade Veiga de Almeida (UVA). Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(FAPERJ). Sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e presidente do Instituto Brasileiro
de História do Direito (IBHD). Editor da Revista Insight Inteligência
1
GUERRA, François-Xavier. Modernidad y independencias: ensayos sobre las revoluciones hispánicas. Madrid,
Ediciones Encuentro, 2009, p. p.126.
2
WEHLING, Arno & WEHLING, Maria José. Direito e justiça no Brasil colonial: o Tribunal da Relação do Rio de
Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro, Renovar, 2004, pp. 38-40. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto
nobiliárquico e aristocracia. In: MATTOSO, José (org.). História de Portugal. Quarto volume: O Antigo Regime.
Lisboa, Editorial Estampa, 1998.
Cadernos de Estudos Estratégicos 7

os princípios ilustrados da razão de Estado, do absolutismo e do mercantilismo. Cinco foram as


políticas de caráter modernizador implantadas pelo absolutismo ilustrado de Pombal.
Em primeiro lugar, práticas regalistas voltadas para reafirmar o controle do Estado sobre o
clero secular e neutralizar as ordens religiosas, vistas como focos de resistência aos valores da
Ilustração, entraves ao progresso econômico e instrumentos de ingerência papal nos assuntos
portugueses. Entre as medidas regalistas adotadas, a mais importante foi a expulsão dos jesuítas,
acusados de conspirarem contra a monarquia e o progresso do reino. Pombal também favorecia o
aperfeiçoamento burocrático, substituindo o velho sistema de ofícios que distribuía prebendas e
sinecuras hereditárias à nobreza pela ampliação dos setores profissionais da burocracia, com seus
cargos preenchidos pelo critério do mérito entre as faixas emergentes da sociedade. Em terceiro lugar,
Pombal favorecia o fomento econômico, estabelecendo uma legislação voltada para estimular a
produção agrícola ou manufatureira, seguindo práticas ainda mercantilistas, nas quais já se
insinuavam, todavia, elementos da economia política fisiocrata e até liberal. Em quarto lugar vinha a
reforma legislativa, voltada para substituir antigas normas jurídicas que cristalizavam privilégios e
isenções3. Para construir o Estado pelo alto, quatro medidas eram necessárias: primeiro, o primado do
poder do príncipe sobre o pluralismo jurídico das corporações e estamentos; segundo, o do direito
positivo (o “direito nacional”) sobre o direito romano e canônico (o “direito comum”); terceiro, o da
lei como fonte do direito em relação aos costumes e jurisdições senhoriais; por fim, o da vontade do
legislador soberano – o rei - sobre a doutrina como critério supremo de interpretação das normas
jurídicas. Em quinto e último lugar, vinha a reforma educacional, operada pelo repúdio dos
regimentos jesuíticos nos cursos superiores e pela introdução de um conteúdo programático que
aproximasse os portugueses das transformações científicas acumuladas em países desenvolvidos
como a Grã-Bretanha e a França. As novas instituições criadas ou reformadas por Pombal - a Escola
de Comércio, o Erário Régio, o Colégio dos Nobres e a Universidade de Coimbra - forneceriam
funcionários uma elite de homens habilitados para uma atuação prática de intervenção do domínio
social, em que a ciência entrava como aliada do reformismo.
Como se percebe, a secularização da vida social portuguesa, longe de ter sido “natural”, foi
imposta de cima pelo Estado monárquico conforme os preceitos do absolutismo ilustrado. As
consequências da adoção desse método de apressar o progresso se refletiram na forma seletiva por
que as autoridades se apropriaram do repertório iluminista. Porque voltado para o fortalecimento da
autoridade sobre uma sociedade atrasada, o reformismo pombalino recepcionava o ideário técnico-
científico da modernidade, mas se opunha a admitir sua parte politicamente mais adiantada, que
grassava na Grã-Bretanha e na França. O Iluminismo que entronizava a liberdade como valor central
da ordem política era um Iluminismo que Pombal não desejava: o Iluminismo da “revolução
oligárquica”. Para garantir o ambiente propício às ideias de fortalecimento da autoridade monárquica
contra aquela porção indesejável da Ilustração, Pombal criou em 1768 a Real Mesa Censória,
incumbida de selecionar os livros e periódicos que poderiam circular no império. Entre os livros
proibidos estavam todos aqueles identificados com a política emancipatória inglesa e francesa, desde
Locke até Rousseau, passando por Montesquieu. Teóricos políticos, só os alemães e italianos
comprometidos com o absolutismo, como Hobbes, Pufendorf e Heineccius. Em síntese, ,a Ilustração
não estava em Portugal a serviço do “momento oligárquico”, como na Grã-Bretanha, nem da
“revolução oligárquica”, como na França: ele estava a serviço da “revolução monárquica”, voltada
para a construção ideológica do Estado monárquico. Como explicou José Murilo de Carvalho, “esse
Iluminismo [português] era essencialmente reformismo e pedagogismo. O seu espírito não era
revolucionário, nem anti-histórico, nem religioso, como o francês; mas essencialmente progressista,

3
MAXWELL, Kenneth. Marquês do Pombal: paradoxo do Iluminismo. 'Tradução de Antônio de Pádua Danesi. 2a.
edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, p. 79.
Cadernos de Estudos Estratégicos 8

reformista, nacionalista e humanista. Era o Iluminismo italiano: um Iluminismo essencialmente


cristão e católico”4.
Depois que dona Maria I subiu ao trono em 1777 e Pombal caiu em desgraça, correu pelo reino
a notícia de que, profundamente católica e ligada aos adversários do marquês, a nova soberana
promoveria uma reconciliação da Coroa com o nobreza e clero. O receio ilustrado de retrocesso não
se concretizou. A reabilitação da velha nobreza não tinha como desafiar os interesses consolidados
pelos empreendimentos pombalinos, já arraigados na sociedade portuguesa; além disso, permanecia
a necessidade de reformas e de homens tecnicamente aparelhados para assessorar o Estado e garantir
sua prosperidade5. O reinado de dona Maria I apresentou uma versão mais moderada do absolutismo
esclarecido denominada reformismo ilustrado, cujos grandes cenáculos foram a Universidade de
Coimbra reformada por Pombal e a Academia de Ciências de Lisboa, fundada por Sua Majestade em
1779. Na academia de ciências, reuniam-se intelectuais e estadistas interessados na aplicação prática
de princípios mercantilistas, fisiocráticos e liberais e pelo estudo metódico da natureza e da geografia
do império. Desejavam contribuir para o desenvolvimento econômico de Portugal, considerado
condição para que o país progredisse em outros campos do conhecimento. Em suas expedições
científicas, os ilustrados davam vazão ao seu interesse pela natureza das possessões ultramarinas,
identificando, nomeando e classificando produtos e materiais para posterior análise de seus potenciais
de exploração comercial 6 . A economia política de Adam Smith ocupava um lugar especial na
discussão sobre o grau adequado de intervenção estatal no processo de geração de riqueza. A maioria
dos ilustrados preferia um Estado coordenador, fomentador e reparador das assimetrias que o mercado
não conseguia corrigir7. Na sequência da Academia de Ciências foram fundadas instituições análogas
em composição e propósitos, como a Biblioteca Real e o Museu de História Natural8.
O estadista mais identificado com o reformismo ilustrado foi um afilhado de Pombal, dom
Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), que assumiu a secretaria de Marinha e de Ultramar (1796),
e depois as pastas dos Negócios Estrangeiros e da Fazenda. O futuro conde de Linhares era um nobre
culto e inteligente, que passara quase vinte anos como diplomata no reino do Piemonte e da Sardenha
absorvendo o Iluminismo de Gianbattista Vico, Cesare Beccaria e Antonio Genovese. Foi a partir de
Turim, igualmente, que dom Rodrigo conheceu a Europa e seus grandes intelectuais ilustrados. Na
França de Luís XVI, Coutinho conversara com o abade Raynal sobre os problemas da administração
colonial e admirara os esforços de Necker para instaurar o sistema representativo no país 9. Homem
de seu tempo, admirador do despotismo ilustrado de José II da Áustria, discípulo de Pombal, dom
Rodrigo defendia um sem número de reformas, como a substituição dos ofícios hereditários da
nobreza por cargos providos por mérito; a correção dos abusos clericais e o esvaziamento dos
conventos; o combate à ociosidade e o incentivo a uma cultura de trabalho; a tolerância religiosa no
lugar do fanatismo católico; o fomento econômico e a modernização fiscal e administrativa10. Do
ponto de vista econômico, embora não rompesse com a política mercantilista, ele estava disposto a
testar algumas das fórmulas econômicas de Adam Smith, reduzindo impostos e combatendo
monopólios. Dom Rodrigo se movia por uma orientação fisiocrata que associava o despotismo
esclarecido ao liberalismo econômico. O que lhe parecia fundamental, como antes a Pombal e a dom

4
CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem: a elite política imperial. 2ª. Edição, revista. Rio de Janeiro,
UFRJ/Relume Dumará, 1996, p. 57.
5
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas luso-brasileiros na crise do
Antigo Regime português. São Paulo, Hucitec, 2006, p. 106-107.
6
Idem, ibidem, p. 152.
7
Idem, ibidem, pp. 146-147.
8
Idem, ibidem, p. 112.
9
FUNCHAL, Marquês de. O conde de Linhares: Dom Rodrigo Domingos Antônio de Sousa Coutinho. Lisboa,
Tipografia Bayard, 1908, p. 193.
10
POMBO, Nívea. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento e ação político-administrativa no Império português
(1778-1812). São Paulo, Hucitec, 2015, p. 31 e 37.
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Luís da Cunha, era que o reino luso pudesse “viver e existir como os outros europeus”11. O reformismo
ilustrado era a fórmula por excelência para promover a modernização social sem questionar os
fundamentos da ordem absoluta. Do ponto de vista político, embora admirasse os britânicos, dom
Rodrigo não advogava para os lusos uma constituição como a daquele país. Sua admiração pela Grã-
Bretanha se devia antes às técnicas eficientes de administração das riquezas. Em um ofício de 1790,
ele deixaria clara qual era a sua preferência em matéria de ideologia e de forma de governo:

Ninguém é mais apaixonado do que eu por um despotismo luminoso, em que o interesse do


déspota e o da nação é inseparável, em que todos os vassalos são igualmente sujeitos à lei,
todos contribuindo igualmente para a defesa e a segurança do Estado, em que nenhuns corpos
intermediários da magistratura, clero ou nobreza podem, por seus pretendidos privilégios e
pelos seus prejuízos, obstar a execução das ordens reais, sempre dirigidas ao bem público,
porque o interesse do déspota sábio e hábil é inseparável daquele do povo 12.

Para que todas essas medidas surtissem efeitos, cumpria reforçar o Estado para que cumprisse
seu papel de indutor da riqueza pública e privada. Para tanto, dom Rodrigo chamava a atenção para a
centralidade do Brasil e a necessidade que Portugal tinha de reforçar seus vínculos de solidariedade
com as elites luso-brasileiras, caso desejasse preservar seu império americano. As diferenças de
tratamento entre europeus e americanos deveriam ser eliminadas, e os brasileiros talentosos,
aproveitados pela administração imperial. Na sua Memória sobre os melhoramentos dos domínios
portugueses na América (1797), Dom Rodrigo escrevia: “Os domínios portugueses na Europa não
[...] formam senão a capital e o centro das suas vastas possessões. Portugal reduzido a si só seria
dentro de um breve período uma província da Espanha, enquanto servindo de ponto de união da
monarquia, que se estendia às suas vastas possessões, era sem contradição, uma das potências, que
tinha dentro de si todos os meios de figurar entre as primeiras da Europa” 13. Dom Rodrigo desejava
reforçar os laços entre metrópole e colônia, postulando “luminosas reformas executadas por homens
inteligentes e capazes de formar sistemas bem-organizados, e cuja utilidade seja, por todos, sentida e
experimentada” 14 . As reformas por ele preconizadas assegurariam “o sacrossanto princípio da
unidade, primeira base da monarquia que se deve conservar com o maior ciúme, a fim de que o
português nascido nas quatro partes do mundo se julgue somente português; e não se lembre senão da
glória e grandeza da monarquia, a que tem a fortuna de pertencer, reconhecendo e sentindo os felizes
efeitos da reunião de um só todo, composto de partes tão diferentes que, separadas, jamais poderiam
ser igualmente felizes”15. Para favorecer o melhor aproveitamento dos potenciais econômicos dos
produtos e artigos oferecidos pela natureza nos diversos domínios da monarquia, dom Rodrigo
fundaria a Casa Literária do Arco do Cego, chefiada pelo botânico luso-brasileiro Frei José Maria da
Conceição Veloso. A tipografia serviria de centro de integração e proteção dos estudantes da América
Portuguesa em Coimbra. Protegidos por pelo futuro conde de Linhares, os jovens luso-brasileiros se
dedicaram a traduzir textos ingleses e franceses sobre agricultura, manufatura, ciência e arte, criando
em Portugal um modesto equivalente da Enciclopédia de Diderot e d’Alembert16.

11 Idem, ibidem, p. 225.


12
SANTOS, Nívea Pombo Cirne dos. Um turista na Corte do Piemonte: dom Rodrigo de Souza Coutinho e o iluminismo
italiano e francês (1778-1790). Vária História, Belo Horizonte, vol. 25, nº 41, janeiro/junho de 2009, p. 221.
13
In: SILVA. Inventando a nação, op. cit., p. 157.
14
MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a inconfidência mineira. Brasil-Portugal – 1750-1808. 5a. Edição.
Tradução de João Maia. São Paulo, Paz e Terra. 2001, p. 235.
15
LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso Império: Portugal e Brasil, bastidores da política: 1798-1822.
Rio de Janeiro, Sette Letras, 1994, p. 69.
16
Idem, ibidem, p. 154.
Cadernos de Estudos Estratégicos 10

O impacto do absolutismo ilustrado na colônia americana de Portugal exprimiu-se no


desenvolvimento cultural e na expansão da burocracia estatal. Graças aos bandeirantes liderados por
Borba Gato, os metais preciosos tão insistentemente procurados foram encontrados em 1695 na região
onde foi pouco depois criada a capitania das Minas Gerais. A produção de ouro e de diamantes ao
longo da primeira metade do século seguinte fez de Portugal um dos grandes centros comerciais da
Europa. A descoberta desencadeou uma corrida ao ouro que levou levas de gente da costa para o
interior e do reino para a colônia (a ponto de ter sido preciso coibir a emigração). Até eclesiásticos
abandonavam mosteiros e conventos para tentarem a sorte nas Minas. O surto demográfico e urbano
povoou o miolo do sudeste brasileiro e fez da capital da região aurífera, Vila Rica do Ouro Preto, a
mais populosa da América ibérica. A necessidade de escoamento dos metais preciosos para a Europa
criou estradas e movimentou o comércio. O porto do Rio de Janeiro tornou-se o mais importante do
Atlântico sul. Houve um grande desenvolvimento na região da rota do ouro em matéria de serviços e
cultura, principalmente literária e arquitetônica. Surgiu uma elite educada, desejosa de ascensão e
integração no projeto imperial luso-brasileiro esboçado pelo marquês de Pombal e aperfeiçoado pelo
conde de Linhares. As famílias abastadas enviavam seus filhos a Coimbra, onde estudavam, faziam
relações e se deixavam cooptar pela burocracia imperial. Fundaram-se clubes como a Academia dos
Seletos (1752) e a Academia Científica (1772), frequentadas por sacerdotes, militares, funcionários e
comerciantes. Era o eco do Iluminismo português na América portuguesa: autoritário, estatista,
absolutista, preocupado com a divulgação do saber vinculado às ciências naturais e voltado
principalmente para o incremento e maior eficiência da atividade econômica17.
A estratégia do projeto modernizador do absolutismo ilustrado português englobava o
conjunto do império, pensado pelo poder metropolitano como uma unidade harmoniosa de partes
complementares. Seu reformismo incluía medidas que resolvessem gargalos da administração
colonial referentes à extração dos metais precisos e produtos de exportação; à acomodação dos povos
indígenas e o crescente descontentamento dos colonos; o tráfico e a gestão dos escravos; à regulação
do comércio oceânico e à emigração dos reinóis para a América e o monopólio comercial18. A reforma
centralizadora começou pela administração. De prebendas régias exercidas como honrarias, os cargos
adquiriram caráter mais profissional, passando a ser ocupados por letrados remunerados. O corpo de
servidores se expandiu em termos quantitativos e passou a exercer maior controle sobre as relações
sociais. Surgiu uma nobreza burocrática formada por governadores, secretários, juízes, ouvidores,
desembargadores, militares de alta patente, técnicos fazendários e autoridades eclesiásticas. Para
intervir de modo mais efetivo na administração local, a Coroa determinou que juízes de fora
passassem a integrar a estrutura das câmaras municipais. Ao mesmo tempo, a arrecadação dos tributos
deixou de ser atribuição dos vereadores, representantes da nobreza colonial, e passou à alçada das
provedorias de Fazenda, controladas pela nova burocracia monárquica. A criação de uma Casa da
Moeda e de um novo Tribunal da Relação no Rio de Janeiro, para onde foi transferida a sede do vice-
reino, também fortaleceram a autoridade da Coroa, em seus domínios ultramarinos. A nova burocracia
promoveu uma série de alterações na forma de administrar o espaço luso-brasileiro, combatendo as
jurisdições corporativas, abolindo definitivamente as capitanias hereditárias e reenquadrando as
populações indígenas19. Eram os reflexos da “revolução monárquica” do lado americano do império
português.

17 CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. A crise do colonialismo luso na América portuguesa (1750-1822). In: Maria
Yedda Linhares (org). História geral do Brasil. Nona edição. Rio de Janeiro, Elsevier, 1990, pp. 113-119.
18
WEHLING; WEHLING. Formação do Brasil colonial, op. cit., p. 227 e 301.
19
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Famílias e negócios: a formação da comunidade mercantil carioca na primeira
metade dos setecentos. In: João Luís Ribeiro Fragoso; Carla Maria Carvalho de Almeida; e Antônio Carlos Jucá
Sampaio. Conquistadores e negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a
XVIII. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p.230.
Cadernos de Estudos Estratégicos 11

A “revolução monárquica” luso-brasileira causada pela transferência da Corte de Lisboa para


o Rio provocou profundas alterações nas políticas voltadas para o Brasil. O fim do regime colonial
abriu um novo horizonte de expectativas, em que a América portuguesa figurava de potência
emergente. Ocorre que se tratava de uma terra onde a natureza era grande, e o homem, pequeno. Sua
sociedade havia sido modelada para servir de plataforma de sustento de Portugal no contexto europeu.
Era essa orientação colonial que a Coroa precisava agora desfazer, para aproximá-la dos padrões
europeus. Para apressar a mudança dos costumes, dom João recriou no Rio a Intendência Geral de
Polícia, através da qual, dirigindo, moldando e instrumentalizando seus súditos, o Estado absolutista
expandia as fontes últimas do poder político-militar da Coroa pelo aumento populacional, o
enriquecimento dos súditos, o progresso cultural, a colonização de regiões abandonadas, a maior
integração dos indígenas, o surgimento de novas companhias, a disciplina das camadas populares e o
aprimoramento das condições de limpeza e segurança da capital. Estabeleceu-se uma sociedade de
Corte em torno dos paços da Boa Vista, da Cidade e da Santa Cruz, e se construiu no Largo do Rossio
um teatro semelhante ao de Lisboa. Foram distribuídos comendas à nobreza da terra, incluindo títulos
formais. O rei promoveu a aproximação entre os diversos segmentos das elites das regiões que
formavam o reino do Brasil (1816), construindo as bases para a construção de uma identidade política
comum. No domínio econômico, proclamou-se a liberdade de indústria. Para resolver problemas de
crédito, foi fundado o primeiro banco da América ibérica, o Banco do Brasil. Criaram-se fábricas
reais, incentivando manufaturas, pólvora e siderurgia. A agricultura diversificou-se com a introdução
do café e do chá. O governo patrocinou as primeiras levas de imigrantes europeus e sobretaxou a
importação de africanos, a fim de povoar os vazios demográficos e iniciar a transição para o regime
de mão-de-obra livre. A elevação formal do Brasil à condição de reino (1815) coroou esse processo
de descolonização e conferiu à monarquia a grandeza que lhe permitiu integrar o comitê dos principais
do Congresso de Viena, que redesenhou a mapa da Europa após a derrocada de Napoleão.
A transferência da Corte foi interpretada pelo público luso-brasileiro como um momento de
refundação da monarquia semelhante ao da Restauração (1640) e que cumpria as profecias relativas
ao providencial destino que estava destinado ao Brasil desde os primórdios da colonização 20 . O
“imaginário imperial” associado à colônia já era veiculado pelos cronistas coloniais quinhentistas,
empenhados em combater a ideia de que a terra brasileira fosse “a mais ruim do mundo, onde seus
habitantes passam a vida em contínua moléstia, sem terem quietação, e sobretudo falta de
mantimentos regalados, que em outras partes costuma haver” 21 . Em 1618, escrevia Ambrósio
Fernandes Brandão: “A terra é disposta para se haver de fazer nela todas as agriculturas do mundo
pela sua muita fertilidade, excelente clima, bons céus, disposição do seu temperamento, salutíferos
ares e outros mil atributos que se lhe ajuntam”22. E completava: “Não vejo eu nenhuma província ou
reino, dos que há na Europa, Ásia ou África, que seja tão abundante de todas elas, pois sabemos que,
se têm umas lhe faltam outras” 23 . Quase duzentos anos depois, Azeredo Coutinho reiterava a
cantilena: “A riqueza e a abundância que a Providência espalhou por todas as partes, ali estão juntas,
como num centro [...]. O céu, a terra, todos os elementos concorrem à competência para a sua
fertilidade e riqueza. Nada ali falta, tudo só espera pela mão do homem”24. As alusões constantes à
vastidão das terras férteis e águas abundantes, às densas florestas a perder de vista e às majestosas
serras das possessões americanas, a esconder incalculáveis riquezas, desembocou em um imaginário
imperial especificamente brasileiro. No Tratado descritivo do Brasil (1587), Gabriel Soares de Sousa

20
MARTINS, William de Souza. O púlpito em defesa do Antigo Regime: a oratória franciscana na Corte joanina.
Tempo vol.17 no.31. Niterói, 2011, pp. 117-144.
21
BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogo das grandezas do Brasil. São Paulo, Editora Melhoramentos, 1977
[1618], p. 33.
22
Idem, ibidem, p. 32.
23
Idem, ibidem, p. 33.
24
COUTINHO, José Joaquim da Cunha de Azeredo. Obras econômicas de Azeredo Coutinho (1794-1804). São Paulo,
Companhia Editora Nacional, 1966, p. 141.
Cadernos de Estudos Estratégicos 12

afirmava que, de tão opulento, o “novo reino” permitiria a edificação “de um grande império, o qual
com pouca despesa destes reinos se fará tão soberano que seja um dos primeiros Estados do mundo”25.
Trinta anos depois, Ambrósio Brandão repetiria a ideia que só um pedaço do Brasil bastaria para
comportar “grandes reinos e impérios”26.
Esse imaginário imperial cresceu depois que, finda a União Ibérica (1640), Portugal enfrentou
o torvelinho de problemas que o atormentaram na segunda metade do século. Para conseguir o apoio
da França contra a Espanha, o padre Antônio Vieira já aconselhara dom João IV a oferecer a regência
do reino ao duque de Orléans (pai da noiva do herdeiro do reino) e retirar-se para as colônias da
América27. Com a descoberta do ouro e dos diamantes das Minas Gerais e a recuperação pronta da
economia, ficou clara a dependência da metrópole em relação à colônia. Em sua obra Cultura e
opulência do Brasil (1711), Antonil já a descrevia como “a melhor e mais útil conquista, assim para
a Fazenda Real, como para o bem público, de quantas outras o reino de Portugal conta” 28 . A
necessidade de responder globalmente aos desafios impostos pela descoberta dos metais e pedras
preciosas consolidou a imagem do Brasil como uma unidade geográfica aos olhos dos conselheiros
ultramarinos29. Na segunda metade do século XVIII, o lugar ocupado pelo Brasil foi crescendo de
importância a ponto de designar a quase totalidade do império português. Alguns estadistas voltaram
a martelar a conveniência de transferir a sede da monarquia para a América, onde Portugal deixaria
de ser um camundongo a fugir todo o tempo dos gatos que pretendiam devorá-lo para se tornar uma
potência indisputável. Foi o caso do já referido dom Luís da Cunha, que recomendou a dom João V
que se mudasse para o Brasil e assumisse o título de “Imperador do Ocidente”. O diplomata
argumentava que “o príncipe, para poder conservar Portugal, necessita totalmente das riquezas do
Brasil, e de nenhuma maneira das de Portugal […], de que se segue que é mais cómodo, e mais seguro,
estar onde se tem o que sobeja, que onde se espera o de que se carece”30. Já sob o governo do marquês
de Pombal, diante da ameaça de invasão franco-espanhola (1762), foi preparada uma esquadra
destinada a transportar dom José I em segurança para o Brasil31. O projeto imperial do afilhado de
Pombal, dom Rodrigo de Sousa Coutinho, partia da mesma premissa de que o Brasil era mais valioso
para assegurar o futuro da monarquia do que o pequeno território que ela possuía na Europa.
Reconhecendo que Portugal não era “a melhor, nem a mais essencial parte da monarquia”, ele
aconselhava o príncipe regente dom João a mudar-se para o Brasil32.
Mas o projeto imperial alimentado pelo futuro conde de Linhares também desejava prevenir o
separatismo. As sedições de Vila Rica e de Salvador mostravam que a difusão de obras críticas da
administração colonial e os exemplos dos Estados Unidos e da França podiam mobilizar os luso-
brasileiros contra a Coroa – especialmente aqueles que, em apertos fiscais, desejavam quedar sós no
proveito daquele “império”. A ideia de que a presença da Corte no Brasil impediria a secessão das
capitanias já estava no ar nas últimas décadas do século XVIII, transparecendo no depoimento de um
dos inconfidentes, o cônego Vieira: “Se no tempo da aclamação do Senhor Rei dom João IV, viesse
esse príncipe para o Brasil, que a esta hora se acharia a América constituindo um formidável império;

25
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1938, p.
39.
26 BRANDÃO. Diálogo das grandezas do Brasil, op. cit., p. 60.
27
LYRA, Maria de Lourdes Viana. A transferência da Corte, o Reino Unido e a ruptura de 1822. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, 168 (436), jul/set. 2007, p. 48.
28
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3ª. Edição. Belo Horizonte, Itatiaia,1982, p. 205.
29
SOUSA, Laura Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São
Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 108.
30
CUNHA, Luís da. Testamento político ou Carta escrita pelo grande D. Luís da Cunha ao Senhor Rei D. José I antes
de seu governo, o qual foi do Conselho dos Senhores D. Pedro II e D. João V, e seu Embaixador às cortes de Viena,
Haia e de Paris, onde morreu em 1749. Introdução de Nanci Leonzo. São Paulo, Alfa Ômega, 1976, p. 371.
31
LYRA. A transferência da Corte, o Reino Unido luso-brasileiro e a ruptura de 1822, op. cit., p. 48.
32
SILVA, Inventando a nação, op. cit., p. 98.
Cadernos de Estudos Estratégicos 13

e que ainda seria felicíssimo este continente, se viesse para ele algum dos príncipes portugueses”33.
Quando seu tataraneto, o príncipe regente dom João, afinal arribou na Baía de Guanabara e anunciara
ter vindo à América “fundar um grande império”, era o sonho dos dois Vieiras – o padre e o cônego
– que parecia se realizar. Dom João era ovacionado nas ruas da nova capital como “imperador do
Brasil” e versos laudatórios eram compostos na mesma toada: “América feliz tens em teu seio, do
novo império, o fundador sublime”34. De fato, seguro no Brasil, o príncipe assumiu o protagonismo
político e militar que Portugal nunca tivera na Europa. Ele pretendia apenas pôr o Brasil a par de
Portugal, mas criar uma grande potência que representasse o equivalente meridional dos Estados
Unidos35. A Coroa começou promovendo campanhas de expansão territorial à maneira romana: a
oeste, Portugal declarou guerra aos “bárbaros” (que não eram outros, que os índios botocudos); ao
norte, ocupou território francês (a Guiana Francesa) e, ao sul, o espanhol (a banda oriental), que foi
anexada ao Brasil com o nome de província Cisplatina36.
O reformismo ilustrado enraizou-se assim como fórmula de superação do atraso colonial. As
circunstâncias inéditas de instalação do aparelho de Estado português, representante da civilização
europeia em um território largamente ainda selvagem e cuja escassa sociedade local era percebia
como atrasada em função de um passado de privações derivado da colonização, criaram no Brasil um
ambiente fertilíssimo para a aceitação da agenda do reformismo ilustrado. Na Europa, a Coroa geria
um reino longamente assombrado pela decadência e que, sempre posto em risco pelo apetite dos
vizinhos e pela má-fé dos aliados, explorava de modo precário e predatório suas distantes colônias
para dispor dos recursos necessários à sua subsistência. Na América, ela se via enfim desembaraçada
daquele fardo. Ela deveria agora gerir um território continental no qual a correlação de forças estava
invertida. Na América do Sul, Portugal era a potência hegemônica, e Espanha e França, dois míseros
anões. Essa “metropolização” do olhar da alta burocracia monárquica permitia agora pensar o Brasil
como uma entidade autônoma, destinada a um futuro de grandeza, mas cuja sociedade presente ainda
estava na primeira infância. Em matéria de instrução e difusão intelectual, o reino do Brasil era o mais
atrasado da América Ibérica. Também a população brasileira era percebida pelas elites ilustradas
como mais viciosa que a reinol. A escravidão e a mestiçagem haviam criado uma estrutura social
incrivelmente complexa e hierárquica, que combinava as diferenciações tradicionais entre estamentos
e funções sociais com elementos raciais autóctones: índios aldeados ou não aldeados, negros ladinos
ou boçais, libertos negros ou mestiços, tipo de ofício por eles exercido. O Brasil não parecia ter povo,
mas somente “população” ou “plebe”. Quanto aos costumes, a ideia de que se tratava de terra sem lei
nem virtude era corrente. O próprio Pombal advertia aos seus parentes que nomeava para governar
capitanias do Brasil para se acautelarem, porque “o país influi em quase todos os espíritos na ambição
e relaxação das virtudes”37. Azeredo Coutinho também reconhecia em seus escritos, referindo-se ao
Novo Mundo português, que “um povo que vive em um país fértil e abundante, por isso que vive
farto, entrega-se mais aos prazeres, ao luxo e à ociosidade; cada cidadão vive quase como separado e
independente”38.

33
CÂMARA DOS DEPUTADOS, Autos da Devassa da Inconfidência Mineira. Volume I. Brasília, Câmara dos
Deputados, 1986, p. 158.
34
VIANA. A transferência da Corte, o Reino Unido luso-brasileiro e a ruptura de 1822, op. cit., p. 52.
35
RAMOS, Rui; SOUSA, Bernardo Vasconcelos e; e MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História de Portugal. Lisboa, A
esfera dos livros, 2009, p. 447.
36
MENEZES, Lená Medeiros de. Relações internacionais: mudanças nos dois lados do Atlântico (1801-1821). Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 168 (436), jul/set. 2007, p. 125.
37
POMBAL, Sebastião de Carvalho e Melo, marquês do. Memórias secretíssimas do marquês de Pombal e outros
escritos. Lisboa, Publicações Europa-América, 1984, p. 191.
38
COUTINHO. Obras econômicas, op. cit., p. 112.
Cadernos de Estudos Estratégicos 14

O projeto imperial luso-brasileiro reconfigurado a partir do Brasil partia assim do diagnóstico


de um contraste brutal: de um lado, um imenso território, cuja abundância em riquezas naturais
poderia fazer da monarquia a mais poderosa do mundo. De outro, escassez de população e ausência
de povo, tal como entendido pelos parâmetros europeus. Ao invés de um povo civilizado, uma plebe
ignorante, cheia de cobiça e preguiça. Um diagnóstico como esse, que impelia o estadista à pronta e
contínua superação do passado colonial para atingir o futuro de grandeza inscrito nos destinos do
Brasil, só favoreceu a aclimatação do reformismo ilustrado como fórmula política no Novo Mundo39.
Mais do que a Europa, a América oferecia aos ibéricos “amplas e quase inesgotáveis possibilidades
de uma administração ativa, de um protagonismo ainda impossível nos territórios já controlados pela
tradição” 40 . A atuação vigorosa de um governo ilustrado, conhecedor do território e sensível às
necessidades locais, incumbido de promover o desenvolvimento de um país ainda bárbaro, passou a
ser reconhecida como indispensável ao arranque da civilização. A lógica era de grande simplicidade:
quanto mais concentrado o poder, maiores as chances para o Estado de promover uma “fuga para o
futuro” que reduzisse o hiato entre retardo socioeconômico e as potencialidades do território. Do
ponto de vista constitucional, isso significava apostar nas virtualidades de uma constituição
monárquica, deixando de lado veleidades de aristocracia, democracia ou governo misto, que somente
criariam empecilhos às reformas fundamentais. Quando a Espanha conflagrada pela ocupação
francesa convocou as Cortes de Cádis (1812), o conde de Linhares criticou a medida e apontou o
caminho a ser seguido por Portugal: “Ganhar o afeto do povo com justas concessões”41. Quanto mais
atrasado o país, mais enérgico e esclarecido deveria ser o governo:

Acredito que o maior infortúnio que pode acontecer a uma nação é a revolução; que um
homem justo e honesto jamais a possa provocar, nem mesmo ser o primeiro a declará-la;
quando desafortunadamente quer a opressão quer o choque de opiniões entre os homens
conduzam a semelhantes desolações. Acredito ser a monarquia absoluta superior às duas
formas simples [de constituição], aristocrática e democrática, uma vez que ela é suscetível de
um grande aperfeiçoamento, assim como de produzir a felicidade, uma vez que um príncipe
esclarecido, conhecendo seus verdadeiros interesses, os veja como inseparáveis dos de seus
súditos, e produza então um bem-estar tão considerável e rápido, que nenhuma outra forma
de governo lhe possa ser comparada42.

Os agentes do reformismo ilustrado luso-brasileiro eram principalmente os funcionários


nascidos na América portuguesa. Boa parte dos colaboradores, quando moços, havia sido iniciada por
dom Rodrigo nos mistérios de arte de empregar a ciência a serviço do Estado, traduzindo trabalhos
científicos na Casa Literária do Arco do Cego e criando entre si vínculos estreitos de socialização 43.
Eram homens de letras como José Bonifácio de Andrada e Silva, Mariano Pereira da Fonseca,
Silvestre Pinheiro Ferreira e José da Silva Lisboa. Depois da morte do conde em 1812, como resposta
à pequena “viradeira” que se seguiu patrocinada pela nobreza tradicional, os discípulos do defunto
fundaram a primeira revista luso-brasileira voltada para a publicação de artigos sobre letras, cultura,
artes e ciências: O Patriota. Através da revista, aqueles letrados desejavam mostrar que o legado do
conde sobrevivia; que a verdadeira aristocracia era aquela do mérito e não a do sangue; que a elite
por ele espalhada dos dois lados do oceano não era somente administrativa, mas cultural; e que só ela

39 CARVALHO, José Murilo de. O motivo edênico no imaginário social brasileiro. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, volume 13 nº 38, São Paulo, outubro de 1998.
40
BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e artifício: iberismo e barroco na formação americana. Belo Horizonte,
Editora da UFMG, 2000, p. 267.
41
LIMA. Dom João VI no Brasil, op. cit., p. 139.
42
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. As luzes para o Império: história e progresso nas páginas de O Patriota. In:
Lorelai Kury (org). Iluminismo e império no Brasil: O Patriota (1813-1814). Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2007, p. 74.
43
Idem, ibidem, p. 35.
Cadernos de Estudos Estratégicos 15

poderia difundir o conhecimento indispensável à civilização luso-brasileira44. Os artigos da revista


discorriam sobre matemática, navegação e hidrografia, hidráulica, botânica, agricultura, química,
medicina e mineralogia. Descreviam viagens às províncias mais distantes, relatando histórias e
características das tribos indígenas, salientando a necessidade de estradas para desbravar os sertões e
de civilizar os índios. Reiteravam, assim, o padrão do periférico Iluminismo português que, aos
exercícios de especulação pura dos países cêntricos, preferia se concentrar na produção de
conhecimentos voltados para uma intervenção prática que contornasse os obstáculos ao progresso45.
A apologia do despotismo ilustrado resultava de uma construção lógica. Eles só poderiam dissolver a
política pela instituição de um déspota que servisse de muralha e guardião de uma ordem natural à
qual os homens não estão ainda naturalmente ligados. A função principal do déspota era a de vigiar
para que a política não despertasse. O poder racional dos ilustrados, que pretendia conformidade à
ordem natural, exigia para subsistir a neutralização da política, entendida como lugar da
irracionalidade e de todos os seus males, como o conflito, a desordem e o egoísmo dos interesses
particulares46. No final do período joanino, quase todos eles serviam sob o último primeiro-ministro
do regime, Tomás Antônio Villanova Portugal.
Entre os brasileiros que serviam a dom João com mais intimidade estava o mineiro João
Severiano Maciel da Costa, futuro marquês de Queluz (1769-1833). Em 1819-1820, já gozando do
título de conselheiro e auxiliando o ministério de Vilanova Portugal, João Severiano escreveu uma
Memória sobre a necessidade de abolir a escravidão dos escravos africanos no Brasil (1821). As
epígrafes condenatórias do cativeiro, transcrevendo excertos de Montesquieu e de Melo Freire,
debuxavam patente a reiteração do método pombalino de mobilizar a sociologia das circunstâncias
para os objetivos do absolutismo ilustrado. Ele lamentava que o escravismo e o agrarismo estivessem
tão enraizados que “a opinião quase geral, mesmo de gente instruída, dissentia absolutamente da
nossa”. Entretanto, como bom representante da Ilustração, o futuro marquês estava convicto de que
“prejuízos nacionais não se destroem com a força, senão só com as luzes”47. Ele alegava que, embora
fosse potencialmente um dos maiores impérios da terra, o Brasil ainda estava na sua infância, razão
pela qual o Estado deveria “seguir a marcha que a [ciência] política nos ensina, para elevá-lo à
prosperidade e grandeza que lhe marcou a Divina Providência”48. A memória de Maciel da Costa
constitui um bom termômetro para medir os planos do reformismo ilustrado joanino para seu império
americano, que incluíam a fundação de uma universidade, a promoção da imigração europeia, a
extinção paulatina da escravidão e a industrialização do país. O principal obstáculo ao projeto imperial
luso-brasileiro, na sua opinião, residia no “sistema de trabalho por escravos, o qual ofende os direitos
da humanidade, faz infeliz uma parte do gênero humano, põe em perpétua guerra uns com os outros
homens, e paralisa a indústria, que nunca pode prosperar solidamente senão em mãos de gente livre”.
Era de sumo interesse da Coroa, portanto, dar continuidade ao desmonte do sistema colonial, que
incluía por fim à escravidão, não apenas por questões humanitárias, mas porque ela impedia o
surgimento de um “povo”, prejudicava o desenvolvimento industrial e a segurança do Estado, na
medida em que promovia “a multiplicação indefinida de uma população heterogênea, desligada de
todo o vínculo social, e por sua mesma natureza condição, inimiga da classe livre”49.

44
MOREL, Marco. Pátrias polissêmicas: república das letras e imprensa na crise do império português na América. In:
Lorelai Kury (org). Iluminismo e império no Brasil: O Patriota (1813-1814). Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2007, p. 16.
45 KURY, Lorelai. Descrever a pátria, difundir o saber. In: Lorelai Kury (org). Iluminismo e império no Brasil: O

Patriota (1813-1814). Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2007, p. 142.


46
ROSANVALLON, Pierre. O liberalismo econômico: história da ideia de mercado. Tradução de Antonio Penalves
Rocha. Bauru, EDUSC, 2002, pp. 69-70.
47
COSTA, João Severiano Maciel da. Memória sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no
Brasil; sobre o modo e condições com que esta abolição se deve fazer; e sobre os meios de remediar a falta de braços
que ela pode ocasionar. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1821, p. 8 e 10.
48
Idem, ibidem, p. 6.
49
Idem, ibidem, p. 7.
Cadernos de Estudos Estratégicos 16

A memória de Maciel da Costa era evidência do quanto a abertura de horizontes ocasionada


pela transferência da Corte modificara o projeto imperial baseado em Lisboa. A elite política sempre
pensara o Brasil como mera plataforma de geração de riqueza de Portugal, conforme reconhecia o
ministro Martinho de Melo e Castro em 1772: “Todo o mundo sabe que as colônias ultramarinas,
sendo estabelecidas com preciso objeto de utilidade da metrópole, ou da cidade capital do reino, ou
estado a que são pertencentes, e disso resultaram dessa essencial certeza máximas tão infalíveis e tão
universalmente observadas na prática de todas as nações”50. Esse processo de drenagem da riqueza
da periferia para um centro exigia a colaboração das elites coloniais para funcionar; que elas também
percebessem a própria terra como um lugar periférico, qualitativamente inferior, que existia para gerar
riqueza para fora. Era um olhar que autorizava na colônia um código de conduta de maior relaxação
ou permissividade em relação à metrópole, e que incluía a maior predação do patrimônio natural, a
exploração desumana de mão-de-obra, o contrabando sistemático, a inobservância de certos padrões
morais, etc. Enquanto o projeto imperial original pensava Portugal como centro da civilização e o
Brasil como sua periferia auxiliar, era possível, como fizera Azeredo Coutinho, defender o escravismo
com base em argumentos de razão de Estado: sem escravos a colônia não produzia riqueza, e a
metrópole jazeria no atraso e na ignorância, perigando desaparecer. Entretanto, mudada a Corte para
o Rio de Janeiro, o projeto imperial teve de ser reconfigurado a partir da perspectiva do Brasil como
centro dele. Práticas, comportamentos e instituições antes tolerados ou percebidos como naturais em
uma colônia passaram a ser vistos como indesejáveis perniciosos. Por isso, modernizar a sociedade
brasileira se tornava a razão de Estado por excelência da monarquia; e modernizar significava “vesti-
lo à europeia, para assim nos explicarmos, e modelar sua marcha econômica pela das nações cultas,
salvo o desconto das localidades, deve ser nosso empenho e desvelo”51. Formar o povo se convertia
no principal objetivo dos ilustrados luso-brasileiros, corrigindo os maus hábitos e preconceitos
coloniais.
Enquanto os burocratas ilustrados saudavam o caráter civilizador da monarquia no âmbito das
elites, os clérigos se encarregavam de recordar à população a natureza providencial da transferência
da Corte e os progressos do Brasil desde que ele se tornara “objeto das vistas paternais do mais
benéfico dos príncipes, recebendo de sua munificência favores jamais obtidos por nossos pais”52. Era
o que fazia o frei Francisco do Monte Alverne (1784-1858): “O impulso vigoroso, que impele o carro,
em que o Brasil se mostra doravante, não descobre uma vontade firme e determinada em promover o
adiantamento do Brasil?”. Ele comparava a ação civilizadora e pacífica de dom João àquela operada
por Pedro o Grande ao fundar o Império Russo, ambos apagando “o fulgor da realeza, e instruindo-
se nos mais rudes misteres, a fim de civilizar o seu povo” 53 . O poder absoluto do príncipe era
percebido como natural em uma América ainda barbarizada e selvagem, destituída de uma sociedade
sedimentada como a europeia. Descritos os brasileiros invariavelmente como cordiais, dóceis e
cândidos, os clérigos aludiam à “paternal bondade” do monarca, que reformava sem atropelos.
Quando da elevação do Brasil à condição de reino unido a Portugal, o cônego da Capela Imperial, o
padre Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844), rasgava elogios ao reformismo do monarca, cujo
impulso difundia a civilização e afugentava a barbárie colonial:

50
RAMOS; SOUSA & MONTEIRO. História de Portugal, op. cit., pp. 418-419.
51
COSTA. Memória sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil, op. cit., p. 29.
52
ALVERNE, Frei Francisco do Monte. Obras oratórias. Nova edição. Tomo segundo. Rio de Janeiro, Garnier, 1908,
pp. 272-273.
53
Idem, ibidem, p. 281.
Cadernos de Estudos Estratégicos 17

Estas coisas insensivelmente se fazem diante dos nossos olhos, certamente com gratidão à
augusta presença do senhor D. João VI, com a qual este país, de rude e agreste, vai aos poucos
povoando-se, civilizando-se e embelezando-se, bem como depois de um rigoroso inverno se
anima, reverdece e floresce a natureza com a chegada da risonha primavera. Sim, com a vida
de Sua Majestade para o Brasil, extinguiu-se o antigo sistema colonial, que não permitia aos
brasileiros mais do que a agricultura, o trabalho das minas de ouro e as artes fabris
indispensáveis, sem as quais não podem os homens viver em sociedade. Mas apenas chegou
Sua Majestade, quando logo franqueou o comércio, permitiu a indústria, facultou as artes e
ciências, admitiu os estrangeiros, mandou abrir estradas, facilitou a comunicação dos povos
e, entre outros bens que nos concedeu, promoveu a civilização [...]. Difundindo-se a luz do
centro para a periferia, elas têm chegado até nós, e virão chegando em maior abundância,
removidos os obstáculos que as impediam, pela poderosa mão do senhor D. João VI54.

Conclusão
A essa altura, fica clara a relevância da gestação do ideal de Brasil Potência no contexto do
absolutismo ilustrado, entendido como a ideologia matriz do conservadorismo estatista brasileiro
depois da independência, inaugurado com José Bonifácio. Esse conservadorismo, que identifica
fragilidades na formação social brasileira e aposta no Estado centralizado como motor da segurança
e do desenvolvimento nacionais, encontraria seus sucessivos avatares no “saquaremismo” do reinado
de dom Pedro II, nas obras de estadistas como o visconde de Uruguai, o marquês de São Vicente, o
visconde do Rio Branco e o filho deste, o barão homônimo; no positivismo nacionalista de Euclides
da Cunha e Alberto Torres; no neossaquaremismo de Oliveira Vianna materializado no Estado Novo
e no desenvolvimentismo do regime militar, especialmente sob o governo do general Ernesto Geisel55.
Em todos esses sucessivos avatares do conservadorismo estatista se encontraria, igualmente,
devidamente atualizada, a concepção territorialista de gestão do espaço formulada sob o Antigo
Regime, na forma de uma geopolítica prática orientando políticas públicas no campo militar,
diplomático e infraestrutural. Conhecer as fundações do pensamento geopolítico brasileiro a partir da
experiência fundante do absolutismo ilustrado parece assim lançar luzes sobre um longo percurso de
séculos na formulação da geopolítica que, depois de 1930, se tornaria uma disciplina com
doutrinadores de grande influência no meio militar, tais como Everardo Backheuser e os generais
Golbery do Couto e Silva e Carlos de Meira Mattos.

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54
SANTOS, Luís Gonçalves dos. Memórias para bem-servir à história do reino do Brasil. Livraria Rio de Janeiro,
Editora Zélio Valverne, 1943, pp.580-581.
55
LYNCH, Christian Edward Cyril Lynch. Saquaremas e luzias: a sociologia do desgosto com o Brasil. Revista Insight
Inteligência (Rio de Janeiro), n. 55, p. 21-37, 2011.
Brasil Potência
por Darc Costa*

A primeira menção que pode estar relacionada ao projeto de Brasil Potência foi a manifestada
pelo padre jesuíta Antonio Vieira, em um dos seus sermões, Sermões dos bons anos, pregado no
primeiro dia de 1642, na Capela Real em Lisboa, um sermão do gênero aristotélico deliberativo1 onde
pregava sobre a formação de um Quinto Império2, cujo centro estaria no reinado de Portugal, mas que
para a sua materialização, diz ele, se desse seria peça essencial o Novo Mundo e neste o Brasil e o
Maranhão. Depois de Vieira, outro padre jesuíta que veio a tratar em seus escritos sobre os recursos
disponíveis para fazer do Brasil uma potência foi André Antonio Antonil 3 , onde apresentava a
utilidade que o usufruto do Brasil poderia dar ao reino de Portugal.
Mas no século XVIII, menção especial cabe ser dada a Alexandre de Gusmão na construção
do Brasil Potência. Com profundo conhecimento da geografia ele foi o principal elaborador e
negociador do Tratado de Madri, de 1750, que deu ao Brasil dois terços de seu território. As
penetrações e ocupações dos bandeirantes em terras espanholas poderiam não dar em nada se não
houvesse do lado de Portugal, no momento oportuno, como secretário particular de D. João V (na
prática, quase um primeiro-ministro), uma vigorosa personalidade política. Além de notável escritor.
Alexandre de Gusmão foi igualmente o autor intelectual do Mapa das Cortes, sobre o qual ocorreram
as tratativas finais para a assinatura do tratado e onde, pela primeira vez, o país se apresentou com a
forma quase triangular, ampla, maciça, que hoje nos é familiar. Em meados do século XVIII, a
situação territorial do Brasil era complicada: minas de ouro foram descobertas no Oeste; a Colônia do
Sacramento havia sido fundada no rio da Prata, bem em frente a Buenos Aires; dezenas de missões
de religiosos portugueses foram estabelecidas na Amazônia. Tudo isto se situava muito além do limite
traçado em Tordesilhas. A colônia enriquecia, mas sem fronteiras. O grande feito de Alexandre de
Gusmão foi ter conseguido legalizar um imenso alargamento do território do Brasil. Um acordo dessa
dimensão é sem paralelo na história universal. Poucos fizeram tanto pela grandeza do Brasil.
Outro importante homem público português, que tem significativa presença, no século XVIII,
na formação do discurso do Brasil Potência, foi Sebastião José de Carvalho e Melo, o primeiro
Marquês de Pombal. Coube a Pombal a efetiva ocupação da Amazônia, como propriedade definitiva
do Reino, a extinção das capitanias e a expulsão dos jesuítas, com seus gigantescos feudos. Das ações
de Pombal com relação ao Brasil cabem também citar: a criação das Companhias do Grão-Pará e do
Maranhão e Geral de Pernambuco e Paraíba, a elevação do Brasil a vice-reino de Portugal e a
nomeação do Rio de Janeiro como nova capital da colônia – em substituição a Salvador;
Saindo da fase colonial e com a independência do Brasil há todo um conjunto de pensadores
que forjam a identidade nacional e em todos está sempre presente implícita ou explicitamente o
destino maior do Brasil. Dentre estes, na fase imperial, o primeiro a colocar as possibilidades de um
Brasil Potência, foi José Bonifácio de Andrada e Silva em suas obras vocacionadas a discutir o Brasil.
Dessas cito três obras, uma sobre os indígenas: Apontamentos para civilização de índios bravos do
Império do Brasil, onde aponta problemas e apresenta soluções em 44 propostas para a “pronta e

* Professor de pós-graduação em Economia Política Internacional na UFRJ e foi coordenador do Centro de estudos
estratégicos da ESG até 2002. É presidente do Instituto da Brasilidade.
1
Um sermão que prega sobre algo que virá no futuro. Os dois demais gêneros de sermões do gênero aristotélicos
jesuíticos são os sermões judiciais, quando julgam personagens ou fatos passados e os sermões epifíticos quando
celebram ou atacam personagens ou fatos presentes.
2
Os anteriores seriam o assírio, o persa, o grego e o romano.
3
Em sua obra Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, publicada em1711.
Cadernos de Estudos Estratégicos 19

sucessiva civilização dos índios, que a razão e a experiência dos índios têm ensinado” e conclui: “Se
quisermos, pois, vencer estas dificuldades devemos mudar absolutamente de maneiras e
comportamentos, conhecendo primeiro o que são e devem ser naturalmente os índios bravos, para
depois acharmos os meios de os converter no que nos cumpre que sejam”. Outra obra de Bonifácio
diz respeito a escravidão dos negros no Brasil, em que propõe o seu término de forma progressiva
seguido de uma reorganização da vida no Império em todas as suas formas em sua Representação à
Assembleia Geral Constituinte Legislativa do Império do Brasil. Coloca nessa obra que resolvida a
questão dos índios, já por ele apresentada, os escravos seriam inúteis unindo assim um projeto ao
outro e os colocando como os maiores problemas a serem solucionados além da própria Constituinte.
Diz ele: “É tempo, mais do que tempo, que acabemos com tráfico tão bárbaro e carniceiro, é tempo
também que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para
que venhamos em formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos
verdadeiramente livres, responsáveis e felizes. É da maior necessidade ir acabando tanta
heterogeneidade física e civil”. Trata-se de uma ode a mestiçagem e ao mundo no futuro, que ele já
via no Brasil. Bonifácio foi o primeiro dos que pensaram o Brasil a vislumbrar a ideia de um Projeto
Nacional em sua obra Projetos para o Brasil.
Contudo, Bonifácio foi afastado do convívio de D. Pedro I, proclamador da Independência do
Brasil e seu primeiro imperador, de quem foi inicialmente conselheiro, mas que com o passar do
tempo viu muito de suas proposições rejeitadas e assistiu à solução inadequada da questão de
Província Cisplatina que levou a criação do Uruguai. Após essa perda, isolado, D. Pedro I abdica, em
1831, em favor de seu filho, então com cinco anos. A elevação de Pedro II ao trono imperial neste
ano com um período de regência levou a um período de crises, um dos mais conturbados da história
do Brasil. Foi criada a regência para governar em lugar dessa criança até que ela atingisse a
maioridade. Neste período disputas entre facções políticas resultaram em diversas rebeliões e levaram
a uma situação instável. Em 1840, com quatorze anos, D. Pedro II é coroado Imperador. Nos trinta
anos que se seguiram, a elite do Brasil exerceu seu poder por uma política bipartidária em que
contrapunha o Partido Conservador ao partido Liberal. Os Conservadores eram conhecidos por
saquaremas pelo fato de vários de seus membros residirem no município fluminense de Saquarema,
que passou a ser também local de reuniões do partido. O apelido de luzias dos Liberais decorre dos
fatos conturbados ocorridos na vila mineira de Santa Luzia4, durante a Revolta Liberal de 1842. Os
dois partidos eram em essência iguais, pois concordavam com a manutenção da monarquia e da
escravidão do Brasil e no plano externo pouco viam além da projeção de poder na Bacia do Rio da
Prata. A origem dos dois partidos foi comum, já que surgiram a partir do antigo “Partido Liberal” que
existiu até a Regência de Diogo Feijó, quando houve uma cisão interna que opôs os regressistas aos
progressistas. Mas havia diferenças que eram apresentadas quando um ou outro se encontrava no
poder. Os Conservadores vindos dos regressistas, tinham em suas fileiras principalmente os
burocratas do Estado, os grandes comerciantes e os fazendeiros ligados às lavouras de exportação.
Posicionavam-se a favor de uma maior centralização política em torno do Poder Executivo,
minimizando a autonomia das províncias. Os Liberais eram oriundos dos progressistas, eram
chamados de luzias e eram formados por profissionais liberais urbanos e agricultores ligados ao
mercado interno. Os Liberais defendiam uma descentralização política, pretendendo maior autonomia
para as províncias em um modelo federativo, colocando-se ainda contra o Poder Moderador do
Imperador e ao Senado Vitalício. Os dois partidos alternaram-se no poder legislativo durante todo o
Segundo Reinado e não viam o amplo potencial do Brasil. O exercício do poder ocorria através da
ocupação do Conselho de Estado, órgão do poder político-administrativo do Império, diretamente

4
Os liberais protestavam de armas em mãos na cidade contra o fechamento da Câmara liberal de Santa Luzia por D.
Pedro II. A eleição para essa Câmara ficou conhecida como “eleição do cacete” em virtude do recurso a atos de violência
ocorridos durante o pleito.
Cadernos de Estudos Estratégicos 20

controlado por D. Pedro II. Na monarquia parlamentarista brasileira, não era o Imperador que ficava
subordinado ao parlamento, mas o contrário, o parlamento que estava submetido ao monarca.
Nessa fase imperial, do segundo reinado, merecem ser mencionados Francisco Adolfo de
Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, com suas obras sobre a História do Brasil, que além de
construir a primeira narrativa histórica da formação do Brasil discorre sobre a geografia, o clima, a
fauna e a flora do espaço brasileiro e Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, pela sua ação
destacada no comando das forças que se opuseram aqueles que buscavam o esquartejamento do Brasil
durante a regência e nas guerras da Bacia do Prata. Outro a ser citado é o Irineu Evangelista de Souza,
o Visconde de Mauá, que em sua obra Exposição aos credores, apresenta o insucesso de suas
incursões no mundo empresarial apesar do potencial imenso do Brasil, algo que atribui a subserviência
dos gestores do Estado aos ditames do capital internacional, que construíram e mantem a ideia que na
periferia os riscos só devem serem adotados pelo capital público como exposto por um ato imperial,
em 1854, que o levou a falência. São estes últimos, citados por Mauá, os subservientes ao capital
internacional, aqueles que sempre internamente se opuseram a ideia de Brasil Potência. Outro
personagem, ainda do segundo reinado, foi Capistrano de Abreu tendo publicado entre suas obras a
História Colonial onde no seu Capítulo XI, Três Séculos Depois, demonstra que não é mais Portugal
que comanda o projeto de Brasil e sim a sociedade que aqui se formou e que tem a vocação de
constituir um projeto próprio.
A dualidade partidária do Segundo Império iria acabar apenas na década de 1870, quando a
crise do modelo escravista no Brasil levaria parte dos latifundiários, com o apoio de camadas sociais
urbanas, a defenderem a abolição e a formar o Partido Republicano. A crise do modelo escravista no
Brasil pode ser colocada como tendo seu início acompanhando a crescente prevalência das ideias
positivistas5, no meio intelectual do país, na metade final do século XIX. O positivismo penetra no
contexto histórico do Brasil da segunda metade do século XIX, marcado por ideais republicanos,
pela luta para a abolição dos escravos, pelo ecletismo e pela ascensão de uma burguesia urbana, que
vai ser decisiva na transição do império para a república. Trouxe consigo também a constatação da
grandeza do Brasil fornecendo os primeiros elementos para a constituição da ideia do Brasil Potência.

5
O positivismo foi uma corrente filosófica que nasceu na França, no início do século XIX, derivada do pensamento
iluminista e é uma corrente teórica inspirada no ideal de progresso contínuo da humanidade. Fatores que marcaram o
positivismo foram a Revolução Industrial e as crises sociais que ocorreram em decorrência direta dessa revolução e da
explosão demográfica dos grandes centros urbanos europeus, ocasionada pela rápida industrialização. Nesse período, a
fome e a desigualdade social alastraram-se pelos centros urbanos, ao mesmo tempo em que os antigos paradigmas
medievais e o Antigo Regime eram superados. O movimento positivista também originou uma teoria historiográfica,
inspirada nas ideias do conde de Saint Simon (1760-1825), filósofo francês para quem a humanidade progrediria
continuamente, indo sempre adiante e nunca regredindo. Segundo a historiografia positivista, o progresso histórico
deveria ser constantemente aferido, tomando por base apenas os fatos que são constantemente registrados. O
positivismo, portanto, nasceu vindo de um socialista utópico, Saint Simon, mas também incorporou, na sua teoria
formulada pelo seu fundador: o filósofo e também criador da Sociologia, Auguste Comte (1798 – 1857), elementos
políticos. O pensamento positivista postula a existência de uma marcha para o progresso contínua e progressiva da
humanidade e que a leva a progredir constantemente. O progresso, que é uma constatação histórica, deve ser sempre
reforçado, de acordo com o que Auguste Comte pelo que chamou de Ciências Positivas. As Ciências Positivas teriam a
sua mais forte expressão na Sociologia, ciência da qual Comte é considerado o fundador. Auguste Comte apostava no
progresso moral e científico da sociedade por meio da ordem social e do desenvolvimento das ciências. O pensador
estabeleceu, nas chamadas Ciências Positivas, uma espécie de hierarquia das sete grandes ciências: Matemática,
Astronomia, Física, Química, Moral, Biologia e Sociologia, sendo essa última superior. Comte acreditava que a
Sociologia deveria basear-se nas ciências da natureza, sobretudo na Biologia e na Física, que tentam descobrir e
decodificar as leis naturais. O sociólogo deveria fazer um trabalho análogo na sociedade: descobrir e decodificar as leis
sociais. O sociólogo deveria ser um cientista observador, apoiando-se no conteúdo de sua análise e nos fatos. Outro
ponto abordado por Comte na sua teoria dizia respeito ao estágio em que a humanidade se encontrava era o de maior
evolução, segundo a sua Lei dos Três Estados, onde Comte estabeleceu três classificações distintas: o estado teológico
(primeiro e menos desenvolvido), o estado metafísico (segundo e intermediário) e o estado positivo (último e melhor).
O estado positivo ocorreu, segundo Comte, a partir do momento em que a humanidade passou a priorizar a ciência como
fonte do saber confiável.
Cadernos de Estudos Estratégicos 21

Foi no momento da passagem do império para a república, que se verificou a decisiva influência do
positivismo nas mudanças políticas e sociais, objetivando a construção de uma nova ordem, pois tanto
o marechal Deodoro da Fonseca que foi o primeiro presidente do Brasil como outros políticos que
participaram do governo tinham fortes influências positivistas. O positivismo no Brasil não foi
uma mera reprodução da filosofia de Comte, não se desenvolveu aqui como no cenário francês de sua
origem, e sim, numa versão temperada pelo ecletismo que marcava os pensamentos dos intelectuais
da segunda metade do século XIX, formadores de opinião dentro dos partidos políticos e das
famílias de prestígios da época. A influência do positivismo no Brasil, ocorrida no período
pré-republicano, deu-se na imprensa, no parlamento, nas escolas, na literatura e na academia,
produzindo um clima de grande entusiasmo pelo seu conteúdo de modernização das ideias. Assim
proclamada a República, os positivistas participaram ativamente da organização do novo
regime, contribuindo na introdução do estudo das ciências e na revisão filosófica que procurava
romper com a tradição existente das humanidades clássicas na educação. Nas escolas militares, o
positivismo encontrou um espaço apropriado para seu desenvolvimento. . Os ideais positivistas no
Brasil passavam a representar o progresso da consciência humana em contraposição aos dogmas
cristãos que predominavam em detrimento do saber racional. O pensamento positivista
influenciou políticos e filósofos, permitindo a organização do movimento republicano pelo fim da
monarquia. Em nosso meio, o positivismo encontrou um grande sucesso entre os meios acadêmicos
e militares porque não havia no país uma tradição em pesquisa científica. Na época, o país vivia
um momento político de afirmação de uma nova burguesia formada por intelectuais,
médicos, engenheiros e militares, que lutavam contra a monarquia, a influência do clero e o
caráter feudal dos latifúndios. A difusão dos ideais positivistas no Brasil ocorreu não pela sua
adoção pela maioria da população brasileira ou pela maioria da intelectualidade, mas sim pelo
fato de que figuras proeminentes como Benjamin Constant Botelho de Magalhães, no exército e
Júlio de Castilhos, na política, serem positivistas. A influência do positivismo no Brasil,
particularmente entre finais do século XIX e começos do XX, seria um fator decisivo e reforçador do
descortino de que a ordem e o progresso fariam do Brasil uma potência.
Contudo, o pensamento positivista não se impôs sobre a velha elite governante da época
imperial que era adepta do liberalismo político e que colocou na testa do governo brasileiro Prudente
de Morais em 1894, um civil representante da elite cafeeira, que se aproveitou do sofrível
desempenho do Exército Brasileiro na Campanha de Canudos para afastá-lo da condução dos
negócios do país e da visão que ele já trazia do Brasil Potência. Com Prudente de Morais na
Presidência da República se inaugurou um período conhecido como Velha República, onde por quase
quarenta anos as elites paulista e mineira, mediante acordos políticos, conduziram os negócios do
Brasil.
Neste período da Velha República, todavia, José Maria da Silva Paranhos Júnior, conhecido
pelo seu título nobiliárquico: Barão do Rio Branco, fez uma grande contribuição ao país e a ideia de
Brasil Potência com a consolidação das fronteiras brasileiras, em especial por meio de processos de
arbitramento ou de negociações bilaterais, conseguindo incorporar definitivamente ao Brasil quase
um milhão de quilômetros quadrados, destacando-se dentre várias, três questões de fronteiras: do
Amapá com a França, a de Palmas com a Argentina e a do Acre com a Bolívia.
A Primeira Grande Guerra trouxe como consequência um profundo abalo para a elite liberal
condutora da Velha República, que via no Brasil a barbárie e na Europa a civilização. Essa elite
mandava seus filhos estudarem na Europa e essa juventude brasileira pode constatar que a civilização
europeia incensada pelos seus pais e avós era, na verdade, muito mais primitiva do que eles
imaginavam, pois, durante essa Primeira Grande Guerra, uma enorme parcela dos jovens europeus
encontraram, de forma brutal, a morte nas trincheiras. Diante dessa constatação, essa juventude
brasileira via aqui a possibilidade de se constituir uma civilização moderna e diferente e voltaram,
então, a apostar na ideia de Brasil Potência, que teve os seus primórdios no positivismo.
Cadernos de Estudos Estratégicos 22

Foi essa juventude, da década de vinte do século passado, que trouxe de volta a baila um
Projeto Nacional, travestido agora na construção de um Brasil Potência, por uma permanente
contestação ao regime liberal que vigorava na Velha República, mediante uma série de eventos, dos
quais citamos a Semana de Arte Moderna que se realizou, em São Paulo, no ano comemorativo do
Centenário da Independência, 1922 e os diversos movimentos militares que eclodiram nessa década
de vinte. Ajudados pela Crise de !929, esses contestadores assumem o poder em 1930, com uma
Revolução que os coloca governando o Brasil e lhes permitem conduzir com um Projeto Nacional,
por cinquenta anos que se seguiram, na busca do Brasil Potência. Nessa era, no plano interno
construindo, nesse meio século, uma intepretação exitosa do destino maior de Brasil, cabe citar, dentre
outros, os seguintes intelectuais: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Predo
Junior.
Este Projeto Nacional perseguia três objetivos, na sua concepção, no plano interno: a
industrialização, a urbanização e a integração do território nacional e apresentava uma diretriz maior,
a intervenção estatal na consecução desses objetivos caso o setor privado se mostrasse incapaz de os
levarem adiante. Foi a chamada Era Vargas, pois foi Getúlio Vargas sua maior referência. Getúlio
Vargas foi um herdeiro do positivismo gaúcho.
No plano externo, o Projeto Nacional requereu o concurso da geopolítica para se explicitar. O
caráter predominantemente nacionalista da Era Vargas contribuiu para o desenvolvimento da
geopolítica, em virtude de seu comprometimento com a construção do Estado e da Nação no Brasil.
Foi deste período de cinquenta anos que pessoas como Mario Travassos, Golbery do Couto e Silva
e Carlos de Meira Mattos, entre outros, estruturaram o discurso de inserção internacional do Brasil,
aquele compatível com a sua presença no mundo, o discurso de Brasil Potência.
Destes o primeiro foi Mario Travassos(1891-1973) 6. O geopolítico Mário Travassos transpôs
o conceito do geógrafo inglês Mackinder de heartland para a América do Sul colocando-o aqui nos
altiplanos bolivianos. Quando publicou seu livro Aspectos Geográficos Sul-Americanos, em 1931,
não se limitou aos meios oficiais (civis e militares), nem ao círculo restrito das elites. Em 1935, surgiu
a segunda edição (ampliada), e, por sugestão dos editores, com um novo título: Projeção Continental
do Brasil. Na época da publicação de seu livro vigorava a hegemonia argentina na América do Sul,
que ainda possuía como vantagem a sua situação geográfica em relação a extensa Bacia do Prata. Em
face disto, Travassos concebeu no seu texto toda uma articulação transversal de transporte terrestre
do seu heartland, o "triângulo estratégico boliviano"7 até os portos atlânticos brasileiros do Centro-
Sul e ao sistema de transporte terrestre e fluvial Madeira- Mamoré, visando a ligação das Bacias
Amazônica e Platina e a projeção das comunicações brasileiras pelos Andes. Não foi por acaso que
Travassos propôs que o Estado definisse uma infraestrutura no setor de transportes, baseada “nas
linhas naturais ou geográficas de circulação do próprio território e contendo as adaptações ou
variantes que as possibilidades humanas põem hoje ao serviço dos homens de Estado para a
consecução das finalidades políticas das coletividades que dirigem”8. Para o Planalto Brasileiro, o
geopolítico propunha o desenvolvimento de artérias longitudinais, linhas de integração nacional que
se somariam à vantagem situacional da costa atlântica brasileira em relação a penetração do rio
Amazonas para o oeste. De fato, o livro não se limita a uma análise geográfica da América do Sul; na
verdade, o autor faz essa análise para situar a posição política do Brasil na América meridional. Assim,
a dimensão e a localização do território brasileiro, por si sós, sugerem o papel integrador do Brasil na
América do Sul. Observa, contudo, que, são os Estados Unidos que já naquela época vinham
exercendo uma influência política crescente, aproveitando-se quer das Antilhas, quer da fragmentação

6
Participou da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial, construiu e foi o primeiro comandante da
Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Também participou da comissão que demarcou Brasília. Foi o autor
de Projeção Continental do Brasil, um dos primeiros estudos sobre geopolítica feitos no Brasil
7
Triângulo que tinha como seus vértices as cidades de Oruru, Cochabamba e Santa Cruz de la Sierra.
8
Travassos, Mario, Projeção Continental do Brasil. São Paulo, Nacional, 1935, P 186.
Cadernos de Estudos Estratégicos 23

política da América Central para penetrar na América do Sul. Por sinal, Travassos não deixa de
assinalar que o poder político e econômico da influência estadunidense nessa região se traduz de
maneira muito clara no Canal do Panamá, ponto focal da atuação estadunidense que, em suas palavras,
“representa o papel de centro de todas as atuações desta política” 9 . Refere-se, em linguagem
contemporânea, à hegemonia dos Estados Unidos no continente americano. Concluímos que todos os
seus prognósticos feitos há quase um século, sobre a inibição norte-americana ao papel coordenador
do Brasil na América do Sul permanece atual. Suas ideias, assim como as ideias geopolíticas
anteriores do professor Everardo Beckhauser foram importantes para o Projeto Nacional e lastreou
as políticas de ordenamento territorial do Estado brasileiro.
Com o término da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos consolidam a sua hegemonia
mundial e abandonam o Brasil privilegiando uma atuação econômica, política e militar em outros
espaços que não a América Latina. Esse fato provoca profunda frustração entre os brasileiros, dentre
os quais alguns militares. Lembrando-se de Travassos e obrigados a admitir a superioridade dos
Estados Unidos e frustrados por não poderem manter das “relações privilegiadas” que tiveram com
os norte-americanos no decorrer da Segunda Guerra Mundial, nem poder contar com seu apoio na
cena internacional, alguns dos militares descontentes decidem reagir fundando a Escola Superior de
Guerra (ESG), em 1949, para pensar o Brasil.
A ESG deve a dois generais: Osvaldo Cordeiro de Farias e Salvador César Obino, a sua
fundação. O seu modelo inspirador foi o United States National War College É importante observar
que, ao explicar a fundação da ESG, Cordeiro de Farias expressa os objetivos dessa escola de maneira
muito clara: “Criar lideranças civis e militares para enfrentar a eventualidade de um novo estilo de
guerra não mais circunscrita à frente de batalha e ao palco de lutas, mas transformada em fato social,
que afeta a sociedade por inteiro e toda a estrutura de uma nação”10
Na ESG o princípio da defesa nacional foi substituído pelo princípio da segurança nacional, e
que a segurança nacional foi vista como função, antes de mais nada, “do potencial geral da nação”,
indo muito além do seu potencial militar. Ao longo dos anos, essas reflexões levaram ao aparecimento
de uma doutrina brasileira de segurança nacional. E o objetivo da ESG passou a ser o de formar as
elites dirigentes civis e militares, preparando-as para a implantação dessa doutrina. O estudo dos
problemas brasileiros passou a ser o objeto central dos estudos da ESG isto porque apesar da Guerra
Fria foi pouco relevante na instituição a tendência de “copiar” o pensamento ou as diretrizes dos
Estados Unidos.
Nesses estudos dos problemas brasileiros foi introduzido a geopolítica entre nós e se pretendeu
avançar nessa corrente de pensamento, no sentido de propor uma “teoria brasileira” para orientar os
rumos do país. A geopolítica encontra na ESG um espaço de discussão. É assim que surge uma “escola
brasileira de geopolítica”, Mas a ESG não tem apenas pretensões teóricas: seus fundadores têm “a
consciência de que o Brasil possuía os requisitos para chegar à grande potência”. 11 Em outras
palavras, é a partir da fundação da Escola Superior de Guerra que as elites militares assumem a
execução do Brasil Potência. É importante assinalar o apoio de parcela das elites civis a este projeto;
afinal, é durante um período democrático da vida nacional que se desenvolve a “escola brasileira de
geopolítica”. Os fundamentos da geopolítica brasileira lançados na primeira metade do século XX
foram, na ESG, revalorizados, aprofundados e reestruturados à luz dos novos desafios (nacionais e
mundiais), com o objetivo de transformá-los em princípios norteadores da atuação do Estado
brasileiro nos campos político, econômico, diplomático e militar. É importante lembrar a saída de
Vargas do governo em 1945 não eliminou o nacionalismo da cena política brasileira nem mitigou a

9TRAVASSOS, Mario, Projeção Continental do Brasil. São Paulo, Nacional, 1935, P 96.
10
OLIVEIRA, E. R. de “A Doutrina de Segurança Nacional: pensamento político e projeto estratégico”. Oliveira, 1988,
P 242.
11
MEIRA MATTOS, Carlos de, Brasil: Geopolítica e Destino. Rio de Janeiro, José Olympio, 1975.: P 60.
Cadernos de Estudos Estratégicos 24

busca do desenvolvimento presente no Projeto Nacional. A “escola brasileira de geopolítica faz com
que, na ESG, o Projeto Nacional passa a ser o de Brasil Potência.
A “escola brasileira de geopolítica” inspirou-se no pensamento autoritário, representado
sobretudo pelas análises de Alberto Torres e Oliveira Vianna sobre a realidade do país. A tese que
ambos defendem é que cabe ao Estado a formação da Nação brasileira, é um dogma presente no
discurso desses dois pensadores, interessados na compreensão dos fundamentos próprios da
nacionalidade brasileira. Como colocou Oliveira Vianna: “sou dos que acreditam que os povos valem
pelo teor moral e intelectual das suas classes dirigentes, e que as nações se salvam ou perecem pela
capacidade ou incapacidade das suas elites”12.
Foi a partir de 1955, que as teses da “escola brasileira de geopolítica” se fizeram mais
conhecidas. Foi a partir de então que surge maior interesse pelas obras de Golbery do Couto e Silva
e Carlos de Meira Mattos. Em 1957, Golbery do Couto e Silva publica Aspectos Geopolíticos do
Brasil. E o faz, fortemente influenciado pela Guerra Fria (oposição entre capitalismo e comunismo) e
se preocupando com a segurança nacional. Considera nessa obra a geopolítica “sobretudo uma arte
– a arte que se filia à Política e, em particular, à Estratégia ou Política de Segurança Nacional ”13 .
Nesse livro, Golbery do Couto e Silva considera que a segurança nacional só se realiza apenas por
meio do desenvolvimento econômico.
Para Golbery a segurança nacional se buscaria simultaneamente em duas vertentes: a interna
e a externa. No plano interno, fazia–se necessário prover a integração do território nacional e isto
exigiria com já havia apontado Mario Travassos um “planejamento cuidadoso” de toda a
infraestrutura necessária para possibilitar a fixação de contingentes populacionais no oeste e norte do
Brasil. Por conseguinte, a integração nacional dependeria da valorização econômica dos amplos
espaços geográficos do interior brasileiro.
Ainda no plano interno, Golbery do Couto e Silva insiste que o desenvolvimento econômico
é, pois, o verdadeiro desafio do Estado brasileiro. A “meta síntese” do governo Juscelino
Kubitschek, a construção de Brasília, seria um sinal poderoso de “nossa própria capacidade de
realização” e deveria abrir o caminho para uma política econômica de efetiva integração nacional.
No plano externo, Couto e Silva considera indiscutível a importância vital dos Estados Unidos
na defesa do continente americano. O autor mantém, assim, a mesma posição dos militares brasileiros
que fizeram parte da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial. Faz,
porém, uma exceção a essa subordinação: “Se a geografia atribuiu à costa brasileira e a seu
promontório nordestino um quase monopólio de domínio no Atlântico Sul, esse monopólio é
brasileiro, deve ser exercido por nós exclusivamente”.14Considera também o Brasil como um membro
do Ocidente: “nós somos, também, o Ocidente”.15 Apresenta de forma premonitória à possibilidade
de irrupção da guerrilha, no Brasil ou nos demais países da América Latina e a ameaça de uma
agressão comunista indireta, que capitaliza os descontentamento locai, de maneira que pode incentivar
o aparecimento de um governo favorável à ideologia comunista, como veio a acontecer em Cuba.
Teve Golbery também à percepção que um desafio semelhante se estaria apresentando na outra

12
OLIVEIRA VIANNA, Francisco, Problemas de Organização e Problemas de Direção (O Povo e o Governo). São
Paulo, Record, 1974, P: 132.
13
COUTO E SILVA, Golbery do, Conjuntura Política Nacional, o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. Rio de
Janeiro, José Olympio, 1981, P 33.
14
COUTO E SILVA, Golbery do, Conjuntura Política Nacional, o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. Rio de
Janeiro, José Olympio, 1981, P 52.
15
COUTO E SILVA, Golbery do, Conjuntura Política Nacional, o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. Rio de
Janeiro, José Olympio, 198,.P 227.
Cadernos de Estudos Estratégicos 25

vertente do Atlântico Sul, na África, onde o processo de descolonização se acentuou a partir de 1950,
numa conjuntura internacional particularmente difícil.
Em outras palavras, Golbery entende que o Brasil apresenta as condições necessárias para
dividir com os Estados Unidos o papel de “gendarme das Américas”; por conseguinte, de tornar-se
uma “grande potência”. De fato, se levarmos em conta os resultados econômicos que a implantação
do “Plano de Metas” do governo Juscelino Kubitschek começava a apresentar, não há dúvida de que,
na América Latina, o Brasil era o líder inconteste no setor econômico; além disso, sua máquina
administrativa, comandada por uma elite burocrática dinâmica, era também a mais moderna da região.
Portanto, a Argentina, o antigo rival, não tinha mais condições de concorrer com o Brasil na conquista
de hegemonia na região.
A unificação econômica do espaço geográfico provoca, porém, outras consequências, mas a
preocupação da “escola geopolítica brasileira” com a unidade do território nacional não desaparece,
mas ganha um novo significado, pois é o desenvolvimento econômico que, integrando
verdadeiramente o território nacional, permitiria a “manutenção de um império terrestre”, patrimônio
histórico-geográfico fundamental do Estado brasileiro.
Outro importante geopolítico, Meira Mattos, considera que a dimensão do território brasileiro
e sua indiscutível unidade, são, em si mesmas, elementos potenciais que devem ser transformados em
poder: “desenvolvimento de um país grande como o Brasil transborda em poder”16 É assim que, como
Couto e Silva, defende a integração do território nacional por intermédio de um projeto de
desenvolvimento econômico que privilegie a ocupação e valorização do interior do território
brasileiro. Golbery , como Meira Mattos, acredita que a plena integração do território brasileiro
“transformará potência territorial em poder, como fizeram os Estados Unidos” 17 após sua
constituição como Estado, em 1776.
A construção de Brasília, a “meta síntese” do governo Kubistchek, a rápida construção de uma
cidade-capital moderna em uma área “virgem”, com base em um planejamento administrativo sem
precedentes na América Latina, explicam o poder simbólico de Brasília no imaginário brasileiro: o de
uma nação unida, definitivamente voltada para o futuro, simbolizava a capacidade de realização do
“jovem gigante” em busca de um papel de destaque na cena internacional. Materializava o Brasil
Potência e demonstrava para o Ocidente e para os Estados Unidos em particular, que também
precisavam do Brasil.
A inauguração de Brasília em 1960 apresenta ao mundo a imagem de uma realização
extraordinária de um Estado-nação jovem, coeso, com objetivos internos e externos que articulam o
projeto de desenvolvimento econômico com a pretensão de “grande potência”. Porém, a insatisfação
da população com a elevação do custo de vida, sua mobilização crescente e o confronto dos projetos
nacionais da direita e da esquerda começam a ser vistos como um “perigo para a nação”. Aqueles que
têm o dever de defendê-la observam e acompanham com interesse os passos dos movimentos
populares, cujo objetivo é o de ter direito à voz ativa em um projeto nacional que seja construído pelos
“de baixo”. Em pouco tempo, o confronto político anuncia mudanças que levam os representantes da
“escola brasileira de geopolítica” (a exemplo de Golbery do Couto e Silva) a ocupar uma posição
particular no aparelho de Estado brasileiro. De fato, a elite militar toma o poder em 1964, iniciando
um regime militar que perdurar até 1985. Durante esse período, ela coloca em prática (pelo menos em
parte) o projeto nacional definido pelos geopolíticos militares.

16
MEIRA MATTOS, Carlos de A Geopolítica e as Projeções do Poder. Rio de Janeiro, José Olympio, 1977,
P 143.
17
MEIRA MATTOS, Carlos de A Geopolítica e as Projeções do Poder. Rio de Janeiro, José Olympio, 1977,
P 139.
Cadernos de Estudos Estratégicos 26

Carlos de Meira Mattos apresente no início dos anos oitenta na Escola Superior de Guerra uma
a ‘Fórmula para Medir o Poder Nacional'18, que já tinha reconhecimento internacional. Foi essa a
fórmula por ele apresentada: Pp = (C + E + M) x (S + W), onde: Pp = potência percebida ou poder
percebido; C = massa crítica = população mais território; E = capacidade econômica; M = capacidade
militar; S = estratégia nacional e W = vontade de buscar estratégia nacional; fórmula essa que
convalidava pelos atributos territoriais e populacionais do nosso país a tese do Brasil Potência.
A construção de Brasília, de importância indiscutível no processo de unificação da Nação
brasileira no “coração” de seu território consolidou o mercado nacional sob o controle da burguesia
industrial paulista associada ao capital estrangeiro. Essa burguesia industrial paulista fomentada pelo
Estado vai abandonar suas conquistas industriais no final dessa década de setenta, tornando-se rentista
pela venda de suas indústrias ao capital estrangeiro e se afastando do setor produtivo vai se
transformando em adversária do Projeto Nacional, que então se expressava com Brasil Potência. Em
meados da década de oitenta, com o término do regime militar, essa burguesia se assume como uma
elite liberal, dependente como a que existia no início do século XX , agora não mais cafeeira e sim
rentista, retoma o poder e o mantem até hoje, seguindo os mesmos princípios liberais que sempre lhe
pautaram, a mesma subserviência aos ditames do capital internacional e uma total ojeriza a um Projeto
Nacional e a visão de um Brasil Potência tendo como seu principal objetivo acabar com a Era Vargas.
Mas o futuro do Brasil pode ser atrasado por essa elite descompromissada com o interesse
nacional, mas a ela será impossível vedar o acesso do Brasil ao seu destino maior, o destino de Brasil
Potência, como demonstrado pela fórmula de Ray Cline, trazida por Meira Mattos. Temos o mais
relevante dessa fórmula: a massa crítica. A estratégia nacional do Brasil está posta em construir a
mundialização e para prover a nosso país do poder percebido para cumprir nossa estratégia nacional
temos de voltar a ter uma nova elite que promova o nosso desenvolvimento com os mesmos sonhos
da juventude da década de vinte do século XX, ou seja, uma nova elite soberana e com vontade
nacional.
Essa nova elite deve ter a consciência que nos últimos 200 anos, os anos de nossa
independência, forjamos um grande país que detém mais de 15% das terras agricultáveis do mundo,
da água doce de todo o planeta, de todos os recursos minerais ainda disponíveis no mundo e que
possuímos a maior reserva florestal dentre todas as nações, reservas de vulto de combustíveis fósseis
e um amplo espaço para produção de energia limpa e renovável. Lembrar a essa nova elite que o
território deste país é abençoado – ausente dos espaços de cataclismos naturais e que este nosso
fantástico país é habitado por um povo especial, mestiço, sincrético, formado por gente de todo o
mundo, dotado de identidade própria, que fala a mesma língua, que tem a mesma cultura, dotado da
mesma memória e de sentimentos comuns.
Temos de colocar para essa nova elite que criamos um enorme patrimônio e que nesses dois
séculos o tempo mais exitoso nessa criação foi quando tivemos um Projeto Nacional e o sonho de
Brasil Potência. No entanto, todo esse imenso patrimônio atravessa a maior crise da sua história fruto
da inexistência atual de projeto para o país. Uma crise dolorida, profunda e duradoura. Uma crise que
se nutre na inexistência de diretrizes de uma elite e de lideranças que galvanizem o povo na construção
de um Projeto Nacional e que insistem em deixá-lo ao léu, ou em dividi-lo e polarizá-lo. Temos de
defender um Projeto Nacional recuperando o discurso de Brasil Potência. Para essa defesa, precisamos
preservar cinco pilares que são nossos compromissos pétreos com o futuro de nosso país a com a ideia
de Brasil Potência:

18
Fórmula constante no livro World Power Assessment, 1977. A Calculus of Strategic Drift: apresentada em 1977, por
Ray Cline, que era o Diretor Adjunto de Inteligência na CIA e Diretor de Inteligência e Pesquisa no Departamento de
Estado dos EUA.
Cadernos de Estudos Estratégicos 27

1- Compromisso com a democracia. Ele aponta para o aperfeiçoamento do sistema político


brasileiro, em bases amplamente participativas, com o resgate da dignidade da função pública em
todos os níveis.
2- Compromisso com a soberania. Ele representa nossa determinação de dar continuidade ao
processo de construção nacional, buscando recuperar para o Brasil um grau suficiente de autonomia
decisória.
3- Compromisso com a solidariedade. Ele explicita a construção de uma nação de cidadãos,
eliminando-se as chocantes desigualdades na distribuição da riqueza, da renda e do acesso à cultura.
4- Compromisso com o desenvolvimento econômico. Ele expressa a decisão de pôr fim à
tirania do capital financeiro e à nossa condição de economia periférica. Assim, mobilizaremos todos
os nossos recursos produtivos e não aceitaremos mais a imposição, interna ou externa, de políticas
que frustrem o nosso potencial.
5- Compromisso com a sustentabilidade. Ele estabelece uma aliança com as gerações futuras,
pois se refere à necessidade de buscarmos um novo estilo de desenvolvimento, socialmente justo e
ecologicamente viável.
Para a realização plena desses compromissos, devemos rejeitar a divisão e nos unir. Essa união
construirá a aliança social majoritária capaz de em ponderar o povo brasileiro e sustentar esse projeto,
que irá equipar e soerguer a maioria trabalhadora e fará a transformação das condições estruturais
necessárias para vencer a crise, ordenar a economia e a sociedade, ancorar a inclusão social na
dinâmica do crescimento e abraçar aqueles que praticam uma cultura de autoajuda e de iniciativa.
O cimento de nossa união será nosso Projeto Nacional que deverá buscar os seguintes
objetivos:
A) Transformar a educação brasileira, inaugurando um novo processo educacional com uma
formação analítica e capaz; promovendo as iniciativas que reconciliem a gestão das escolas pelos
estados e municípios, com padrões nacionais de investimento, equalizando qualidade do ensino em
todo o território;
B) Retomar o desenvolvimento e a industrialização a partir de quatro setores-chave:
agroindústria; complexo de defesa; energia renovável; complexo de saúde e farmacêutico;
C) Promover uma produção qualificada baseada na nova economia do conhecimento,
entendendo que a riqueza e desenvolvimento não estão mais na indústria tradicional, mas na moderna
indústria rica em ciência, tecnologia e inovação que constrói a manufatura avançada, nos serviços
intelectualmente densos e na agricultura científica e de precisão;
D) Reorganizar as regras, práticas, políticas, em suma, as relações de trabalho de forma a
resgatar a maioria informal e a precarização da massa trabalhadora do aviltamento salarial e do
subemprego;
E) Praticar uma nova política fiscal-monetária (finanças funcionais) para obter autonomia e
autos-sustentação no financiamento do desenvolvimento;
F) A fim de atacar decisivamente os dois mais agudos problemas sociais do país, o alto
desemprego e as péssimas condições de vida das periferias metropolitanas, implementar um programa
de emprego garantido e trabalho aplicado, financiado pelo Estado, e que deve se tornar também o eixo
das políticas sociais de educação, saúde, saneamento básico e qualificação profissional nessas áreas;
e
Cadernos de Estudos Estratégicos 28

G) Reorganizar o federalismo brasileiro para democratizar a produção e o ensino; substituir as


atuais relações competitivas, predatórias entre União, estados e municípios por um federalismo
cooperativo tanto vertical como horizontal.
Para tanto, contamos com uma base produtiva moderna, articulada e com um mercado de
consumo que conserva imensa necessidade de produtos tradicionais. Todavia, precisamos aumentar
a produtividade média do trabalho, reter em nosso espaço econômico a maior parte possível da riqueza
criada e distribuir essa riqueza da forma mais equitativa. O que significa buscar outro padrão de
desenvolvimento, acelerado, competitivo, revertendo a concentração de renda no sentido distributivo.
Diferentes formas de propriedade e de organização da produção devem existir de forma
equilibrada, com generoso espaço para os empreendimentos de porte pequeno e médio, as
cooperativas e todas as expressões da economia solidária. Ainda não somos um país rico e
convivemos com brutais desigualdades. Mas, não somos miseráveis e caminhamos para a riqueza.
Podemos recuperar nosso sonho de Brasil Potência. Ainda temos um parque industrial
articulado e quase completo, uma população jovem, com presença marcante de quadros técnicos, uma
moderna agricultura capaz de responder a estímulos adequados, um vasto espaço geográfico, recheado
de recursos de todo tipo e capacidade científica. E no plano externo a conjuntura internacional mantem
aberta para o Brasil a possibilidade de exercer um papel coordenador na América do Sul e de integrá-
la na construção de um outro ocidente, o Ocidente Profundo, desde que se estabeleça a vontade
política para fazê-lo.
Os dois séculos de vida do Brasil estão perguntando se a nossa geração vencerá a crise que
vivemos e as nossas instituições terão a grandeza de fazer desabrochar a promessa civilizatória contida
na sociedade brasileira. Convocamos todos os brasileiros que desejam responder que sim o façam
construindo em uníssono uma vontade nacional capaz de reimplantar nosso Projeto Nacional e fazer
o Brasil Potência.

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Brasil – potência: origens, conceito e atualidade de um Destino
por Ronaldo Gomes Carmona*

Este texto se propõe a atualizar a discussão sobre o Brasil como potência mundial, ou noutras
palavras, sobre o projeto brasileiro de potência, tendo como premissa suas raízes profundas no
imáginario nacional1;
Muitos poderiam argumentar sobre a contradição de apresentar esta questão num contexto
em que nosso país, ao invés de ascender no sistema de Nações, regride há décadas em sua posição
de poder relativa. No periodo mais recente, talvez a partir de 2013, observa-se um período de grande
polarização nacional – com paralelo observado apenas nos momentos mais agudos da repercussão
da guerra fria entre nós brasileiros –, fazendo com que o país estivesse à deriva, como disse num
certo momento o General Villas Boas, então Comandante do Exército, isto é, sem projeto, sem rumo
e objetivos. Contudo, a crise vem de longe, sendo produto do esgotamento, pela não renovação, dos
objetivos naconais formulados ao longo do periodo chamado nacional – desenvolvimentista,
deflagrado com a gloriosa Revolução de 1930 que inaugurou um longo periodo de transformação
econômica, política e social em nosso país, alçando-nos a posição de uma das maiores economias
industriais do mundo. Contudo, em meados dos anos 1980, ao não termos a capacidade, como
brasileiros, de renovar estes objetivos, iniciamos um periodo de declínio do projeto nacional, que já
dura quatro décadas, interrompidos apenas brevemente por curtos periodos de retomada e maior
altivez nacional;
A este já longo periodo de desorientação nacional, somou-se ao iniciar-se 2020, crise de
extraordnária gravidade, em escala mundial, mas que aqui tomou proporções dantescas e que nos
convulsiona socialmente há um ano e meio, e apresenta, até o momento que redigimos estas linhas,
um saldo de mais de 550 mil compatriotas mortos.
As consequências dos quarenta anos de crise, portanto, se fazem sentir intensamente sobre
as pretenções brasileiras.
Vale recordar as expectativas do início deste século XXI. Ao seu início, em 2001, um
consultor da Goldman Sachs, Jim O’Neill, em projeções econométricas trasnformadas num estudo
intitulado "Sonhando com os BRIC: o Caminho para 2050", concluia pela ascensão de quatro
grandes massas territorais continentais autonomas – à saber, Brasil, Rússia, Índia e China –, à
condição de maiores economias do planeta comparativamente ao G-7, os grupo dos países ricos e
industrializados. A grande repercussão do estudo de O’Neill não deveu-se a sua originalidade, uma
vez que trata-se de tema recorrente da teoria geopolítica a análises da potencialidade dos “mega-
estados”, desde Kjéllen, que mais a frente, com o celebre diplomata americano George Kennan
apareceu sobre a denominação de “monster-Countries”. Mas a publicação da Goldman Sachs
rapidamente ganhou enorme repercussão, sobretudo pelo momento em que aparecera, na qual os
analistas estratégicos buscavam interpretar o mundo que se afirmaria no século XXI;
Hoje, contudo, a realidade é bem diferente. Em PIB nominal, segundo estudo recém
divulgado por uma consultoria, com base nos dados do FMI, o Brasil saiu do ranking das dez maiores
economias; já é o 13º. Em 2011, medido em dólares, o PIB do Brasil tinha a 7ª posição, e projetava-
se naquela ano ultrapassar a Inglaterra na 6ª posição, então fortemente imapctada pela crise

* Professor de Geopolítica da Escola Superior de Guerra, onde coordena o Grupo de Pesquisa Estudos de
Guerra - GPEG. É senior fellow do CEBRI (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).
1
O presente artigo representa adaptações de Confererência apresentada pelo autor ao CURSO DE ALTOS
ESTUDOS EM POLÍTICA E ESTRATÉGIA (CAEPE) da Escola Superior de Guerra, em Seminário sobre
Geopolítica do Brasil, realizado em 24 de junho de 2021.
Cadernos de Estudos Estratégicos 32

economica-financeira de 2008 2 . Por certo, a condição material é um dos fatores de grandeza


nacional; mas a queda brusca da posição relativa é certamente o maior indício da crise brasleira mais
recente, com reperussões evidentes sobre o objeto deste texto;
Diante deste acúmulo de crises, desalento e desorientação, como discutir o futuro,
questionarão muitos? As dramáticas condições atuais não exigiriam uma mentalidade de curto prazo,
visando tão somente enfrentar o emergencial, e superar o atual estado de coisas?;
É nos momentos mais agudos de crise, que se prepara a saída e a superação virtuosa de uma
Nação. Lembremos de Johan Fichte, fundador do idealismo alemão – base de ideias que reergueria
aquele país, mais de uma vez -, quando este pronunciou seus celebres DISCURSOS À NAÇÃO
ALEMÃ, em 1807 – com Berlim ocupada militarmente pelo exército napoleônico –, conclamando
o povo a construir a Nação, expulsar o invasor estrangeiro e modernizar o país, abrindo caminho
para sua unificação, num processo que só seria concluído em 1871. Muitos outros exemplo de
superação virtuosa de graves crise, em contextos de ocupação ou domínio estrangeiro, poderiam ser
observados numa análise histórica, bem como a construção das ideias que permitiram sua superação.
A China, após aquilo que denominam século de humilhação – que vai dos tratados desiguais,
imposto a força pelos britânicos no contexto da Guerra do Ópio em 1942, à primeira Revolução de
1911 -, é outro exemplo eloquente. A lista, qualitativamente falando, é expressiva;
Além desta introdução, este texto se compõe de três partes. A primeira, busca observar os
conceitos principais e opções que levam uma Nação a tornar-se uma potência; a segunda parte, se
propõe a revisitar as origens da visão brasileira que podemos nos tornar uma grande potência no
sistema de Nações; por fim, na parte final, vamos discutir a atualidade deste projeto e destino
nacional.

O conceito de potência

A fundação da Escola Superior de Guerra em 1949, derivou de uma compreeensão que “o


Brasil possui requisitos básicos (área, população, recursos) indispensáveis para se tornar uma grande
potência”, como diz seu manifesto que definiu seus princípios fundamentais. Esta ideia-força,
relaciona-se a um debate clássico na teoria geopolítica e das relações internacionais sobre atributos
que uma Nação deve possuir para posicionar-se na condição de potência mundial;
Do ponto de vista da teoria geopolítica, seu objetivo mais basilar refere-se ao planejamento
do adensamento do Poder Nacional, nas suas multiplas dimensões, visando uma política de potência,
no contexto de um ambiente internacional anárquico, semelhante ao estado da natureza, portanto
estruturalmente competitivo que caracteriza o sistema de Nações. Este conceito da geopolítica como
política de Poder e portanto de potência, é observável nas principais teorias clássicas, nas suas
princípais Escolas: a anglo-saxã, as européias (alemã e francesa); a brasileira e as não-ocidentais
(russa, indiana e chinesa);
A condição de potência não é estável no sistema de Nações; ao contrário, nos cinco século
da era moderna – iniciada com a expansão portuguesa no final do século XV -, a ascensão e quedas
das grandes potências, para utilizar o título do conhecido livro de Paul Kennedy, é uma regra
sistêmica. Podemos dizer que não há “posição estacionária” no sistema de Nações; a ascensão de
uma potência nova, deriva do acúmulo de excedentes de Poder Nacional, assim como o periodo de
duração de sua hegemonia sistêmica deriva da manutenção da danteira nas expressões que
caracterizam o Poder nacional. Num ambiente de competição sistêmica estrutural, a ascensão e
depois a manutenção da diantera ocorre sob contestação direta por parte de outras grandes massas
territoriais que buscam o mesmo objetivo. Assim tem sido a história do sistema internacional nos

2
Ver https://www.poder360.com.br/economia/brasil-cai-para-13o-no-ranking-de-maiores-economias-diz-
austin-rating/ (01/06/2021) e https://exame.com/economia/brasil-esta-prestes-a-deixar-grupo-das-10-
maiores-economias-do-mundo/ (09/11/2020).
Cadernos de Estudos Estratégicos 33

ultimos cinco séculos em que este se mundializou, isto é, conformou-se numa sistema mundial, e
não apenas regional, como era antes da expansão portuguesa;
A condição de potência é almejada por grandes massas territoriais autonomas, em geral
continentais, sobretudo em função da possibilidade que esta condição de hegemonia permite no
sentido de moldar as regras do sistema de Nações de acordo com seus interesses nacionais; e portanto
criando condições mais favoráveis ao desenvolvimento de sua civlização nacional;
O desenvolvimento do Poder Nacional almejando condição de potência obedece ao
estabelecmento de uma GRANDE ESTRATÉGIA (High Strategy, no original), como denominou
Liddel Hart, cujo objetivo é “o de coordenar e dirigir todos os recursos de uma Nação (...) para a
consecução do objetivo político”, isto é, dos grandes objetivos nacionais;
Já Arnold Toynbee, renomado historiador britânico, assim conceituava potência: “uma força
política que exerce seu poder coordenador num campo de ação maior do que o da sociedade que lhe
serve de base”;
Passemos a discutir os atributos de potência. O mais sintético e ao mesmo tempo mais
completo, é o formulado por Rodolf Kjéllen, considerado o fundador da Geopolítica como disciplina
científica, quem estabeleceu três atributos como características de uma grande potência: espaço,
liberdade de movimento e coesão interna3. Tomemos-o por base para nossa discussão dos atributos;
Por espaço podermos nos referir às grandes massas territoriais autonomas. Nos grandes
países, até mesmo em função de lei das probabilidades, como lembrou num momento o Embaixador
Araújo Castro, encontram-se maiores excedentes de recursos que permitem a sustentação de um
projeto de potência relativamente autárquico. Pequenos países, que sustentaram a condição de
potência durante um determonado periodo histórico – caso de Holanda, Grâ-Bretanha e Japão, por
exemplo -, não conseguriam fazê-lo sem buscar excedentes fora de seu próprio território, tendo uma
política externa necessáriamente imperialista-expansionista;
Grandes países possuem, em geral, excedentes de recursos que lhes permitem maior
autonomia ou margem de manobra – ou para usar a expressão de Kjéllen, liberdade de movimento;
Por fim, na formulação de Kjéllen, está o problema da coesão interna. Noutras palavras,
podemos falar na unidade de propósitos ou na vontade nacional que um determinado povo incorpora
no sentido de fazer valer seu projeto nacional;
Outras formulações clássicas sobre atributos de potência são encontradas em atores chaves
do pensamento geopolítico clássico, como Spykman e Mongenthau;
Spykman discute a questão do espaço a partir de uma bifurcação: por um lado a superficie
do território; por outro, a natureza das fronteiras. Sobre esta última, um poder terrestre, num
ambiente de conflitos, terá condições menos favorável a desenvolver seu Poder Nacional
relativamente à grandes países relativamente insulados, como Estados Unidos e o Brasil, que por
definição geográfica, possuem condições mais favorável ao desenvolvimento de de suas expressões
de potência.
Aliás, ambos grandes países do Hemisfério americano possuem a vantagem derivada da
posição de seus terrritório, caracterizado pela inexistência de poder terrestre desafiador - no caso
americano, México e Canadá, e no caso brasileiro, nossos vizinhos sul-americanos, há muito
pacificados em nossas fronteiras. Tampoucos ambos países possuem potência marítima que os
defronte: em ambos casos, o Oceano Atlântico os separam de outros polos, e nos caso americano, a
vastidão do Pacífico em relação à potência desafiante, a China. Caso bastente diferente, por exemplo,
da prórpia China, que possui conflitos ativos ou adormecidos com duas outras grandes massas
territoriais – Índia e Rússia -, e um ambiente marítimo que a defronta marcado por sobreposições de
reinvindicações de soberania e, portanto, permeado por tensões e iminentes perigo de guerra;
No que diz respeito à liberdade de movimento, Spykman apresenta como sesu componentes
fundamentais, a quantidade de população como fator determinante, a ausência ou presença de

3
Meira Mattos, 1975, p. 69
Cadernos de Estudos Estratégicos 34

matérias primas e o nível de desenvolvimento econômico e tecnológico; por fim, Spykman divide o
fator coesão interna em quatro elementos: grau de hegemoneidade étnica, grau de integração social,
estabilidade política e coesão nacional;
Morghentau, autor realista clássico da teoria das relações internacionais, ademais dos
mencioados fatores geográficos, demográficos e de posse de recursos naturais, define a capacidade
industrial e, derivada desta, a capacidade militar como atributo de potência por parte de um país. Por
fim, compreende a questão da coesão interna sobre um tripé que ele denomina, (1) caráter nacional;
(2) moral nacional e (3) aptidão diplomática;
Houve quem também buscasse propor uma formula empírica para a aferição do Poder
Nacional, como o geopolítico norte-americano, Professor Ray Cline:

A análise do desenvolvimento destes atributos de potência define a posição de um país no


sistema de Nações. Por isso, busca-se o desenvolvimento pleno de potencialidades, sejam elas
estáticas, isto é, presentes, mas não desenvolvidas, sejam áquelas que se busca adquirir, sobretudo
às ligadas ao conhecimento;
Com isso, chegamos a uma outra contribuição fundamental desta Escola Superior de Guerra
ao projeto brasileiro de potência: o planejamento da realização das potencialidades nacionais.
Afinal, como diz o citado manifesto fundacional da Escola, “o desenvolvimento do Brasil tem sido
retardado por motiveis sucetíveis de remoção”, pelo que, “como todo trabalho, a obtenção dessa
aceleração exige a utilização de uma energia motriz e de um processo de aplicação dessa energia”,
isto é, podemos dizer, um método de planejamento da remoção dos óbices e de realização destas
potencialidades;
Cabe destacar, já nos primeiros anos de funcionamento desta Escola, a contribuição do então
Tenente-Coronel Golbery, que apresenta uma importante contribuição num texto intitulado
“Planejamento do fortalecimento do potencial nacional”, de 1956. No texto, diz ele, trata-se de “um
sistema de escolhas sucessivas e hierárquica entre alternativas que se prefiguram, dentro de um
universo de conhecimentos em expansão dirigida, com o propósito de racionalizar e orientar a ação
com vistas a consecução de determinados fins – dadas, de um lado, certa disponibilidade estimada
de recursos e, de outro, uma série, também estimada, de obstáculos”;
Desenvolvendo sua visão quanto ao planejamento, afirma o então Ten-Cel. Golbery que “não
tivéssemos medo ao espectro de Marx, nascido com Feuerbach de “sob a asa esquerda” da filosofia
de Hegel, poderemos avançar a afirmação, a nosso ver plenamente justificada, de que o
planejamento é, de fato, um processo dialético, evoluindo sempre mediante a conciliação, em plano
superior, das teses e das antíteses que definem suas contradições imanentes”;

Assim, para o despois General Golbery, as principais antinomias que se manifestam no


domínio do planejamento são: a – a antinomia dos meios e dos fins; e b – a das necessidades e das
possibilidades;
Cadernos de Estudos Estratégicos 35

Por fim, na contribuição referida de Golbery, no tocante ao planejamento do projeto de


potência, é essencial distinguir o que é vital dentre os objetivos nacionais daqueles apenas
desejáveis. Nesse sentido, é importante resgatar a menção, feita pelo autor, a Louis J. Halle, quem
diz que,
“É necessário ter presente a distinção entre objetivos simplesmente desejáveis e objetivos de
natureza vital. Os primeiros, os apenas desejáveis, podem não se justificar que se submetam estes,
os vitais, a certos riscos extremos. Mas os objetivos vitais não nos deixam margem para escolhas –
impõe-nos o criar, a qualquer sacrifício que seja, meios suficientes para sua consecução”.

O projeto brasileiro de potência: suas origens remotas

Para a compreensão das origens profundas do projeto brasleiro de potência, é preciso


observar em primeiro plano, as origens da Nação e da nacionalidade. O Brasil é produto do
surgimento da Era moderna; de uma primeira fase da globalização, na qual pela primeira vez o
mundo expandiu-se de seus sistemas regionais até então vigentes – até o século XV -, ao cabo do
qual, em 1904, proclamava Mackinder o fim da “era colombiana”, ou seja, da expansão do sistema
mundial para todos os rincões do globo terrrestre;
Portanto, o surgimento do Brasil parte do projeto de expansão ultramarina portuguesa, que
se realizaria com signos de epopéia, pela grandeza de um empreendimento de tamanha magnitude,
para um país então localizado na borda ocidental extrema da península européia;
Sobre isso, verbalizou Stafan Zweig, escritor de origem austríaca, depois radicado no Rio de
Janeiro:

“...e, com espanto e inveja, volta o mundo a olhar para este pequeno e ignorado Povo no
extremo recanto da Europa; observada pelo lado do raciocínio, a expansão de Portugal é um
absurdo, uma quixotisse; mas quando um povo se abalança a tarefa muito acima de suas
forças, aumentam as possíblidades até intensidade jamais concebida; nunca talvez uma Nação
se concentrou toda num único momento de vitória, como Portugal, pelos fins do século XIV
e princípios do século XV; Portugal tem Alexandre, tem os seus argonautas, tem
Albuquerque, Vasco da gama, Magalhães, Camões e Barros; durante uma hora que o mundo
nunca poderá esquecer, é Portugal a primeira nação da Europa, a nação condutora da
Humanidade”.

A expanção portuguesa, que resultaria na conformação de um vasto Império mundial


distribuido por todos os continentes, resultou de uma dupla contingência. Por um lado, as
necessidades materiais de um pequeno e pobre Reino, de acessar a grande riqueza da época, as
especiarias asiáticas, e delas obter recursos para o bem estar da Nação. Com o caminho para “as
Índias” bloqueado por terra, quer por concorrentes, quer pelos perigos e ameaças que tal opção
representava, fez os lusos lançarem-se ao vasto mar. Contudo, tambem os moviam um sentido
anímico, tão ou mais importante que a dimensão material: a expansão da fé cristã ao mundo;
A expansão portuguesa encontraria seu declínio definitivo com a morte do jovem Rei Dom
Sebastião na Batalha de Alcácer-Quibir em 1578 e a ocupação do trono português pelo Rei de
Castela, Felipe II, dando início ao periodo da chamada União Ibérica que só seria rompida com as
guerras de restauração finalizadas em 1668 com a assunção de Dom Afonso VI ao trono português;
Durante os oitenta anos de domínio espanhol e nos séculos seguintes até a presente época,
prosperou no imagináro nacional luso-brasílico, o mito do sebastianismo, isto é, do retorno do jovem
Rei que livraria Portugal do domíno estrangeiro. Em especial, após o retorno no Padre Antonio
Vieira à Portugal, após uma longa temporada no Brasil, em 1641, ganha corpo a ideia do
estabelecimento do Império Português com o V Império Mundial. Afinal, a junção das profecias
presentes no imaginário português, conferia àquele reino uma atribuição singular, revestindo-o da
missão de cristianizar todo o mundo, cumprindo a profecia iniciada com o movmento das
navegações;
Cadernos de Estudos Estratégicos 36

Em sua História do Futuro, Vieira profetiza o V Império:

O primeiro império do mundo, que foi o dos Assírios, e dominou toda a Ásia, também foi o
mais oriental. Dali passou aos Persas, mais ocidentais que os Assírios; dali aos Gregos, mais
ocidentais que os Persas; dali aos Romanos mais ocidentais que os Gregos: e como já tem
passado pelos Romanos, e vai levando seu curso para o ocidente, havendo de ser, como é de
fé, o último império, aonde pode ir parar, senão na gente mais ocidental de todas?

A mítica vieirista do V Império pede uma atulização em linha com os desafios brasileiros
neste século XXI e tendo em vista seu projeto de potência. Por certo, a missão mudou o sentido, mas
a singularidade da construção de uma humanidade espelhada pelas condições da jovem e
potencialmente próspera civilização meridional mestiça é atualissíma;
Aqui, cabe uma discussão sobre a identidade brasileira e sua relação com a geopolítica e seu
projeto de potência. Em que medida o Brasil é herdeiro da civilização ocidental? Em que sentido a
civilização ocidental em si é una? Como a construção desta narrativa ocidentalista para a formação
social brasileira não se confundia com o ambiente da guerra fria que nos trouxe profundas
consequências em termos de unidade e coesão nacional? Em que medida esta fratura ideológica da
guerra fria – para utilizar-se, novamente, de formulação do então comandante do Exército, General
Villas Boas – volta a nos influenciar no contexto de nova confrontação em curso pelo Poder
Mundial?
O Brasil é ao mesmo tempo o extremo do Ocidente, geograficamente falando, localizado em
sua fronteira meridional. É um país ocidental, no sentido comparativo aos povos do Oriente, em
particular aos países árabes, aos hindus ou aos povos amarelos do Extremo Oriente. Contudo,
singulariza-se frente aos bárbaros do norte; em especial os anglo-saxões e germânicos. Em alguma
medida, reproduz uma divisão já existente no próprio continente europeu entre a Europa setentrional
e a Europa meridional. Agregue-se o fato da singular formação social brasileira, marcada pela
miscigenação e a assimilação de culturas num todo dialético, gerando uma nova síntese na forma de
um povo-novo, como diria o antrópologo Darcy Ribeiro. Quais as consequências desta condição de
Ocidente profundo ou Extremo Ocidente dotado das mencionadas singularidades, no projeto
brasileiro de potência? Talvez o primeiro e mais primordial fato, é de uma cultura de tolerância com
o diferente, ao mesmo tempo que os vastos recursos permitem constituir-se numa pan-região em sí
mesmo, para utilizar o conceito de Haushofer;
Vamos nos referir agora, de forma sucinta, ao projeto de potência no pensamento geopolítico
brasileiro;
As origens mais remotas de uma geopolítica brasileira autóctone podem ser localizadas nas
proposições do uso do território com fins de construção de um projeto nacional nos escritos do
patriarca José Bonifácio de Andrada e Silva. Medidas com a construção da capital no centro
geografico do país, incentivo à coesão nacional pela promoção da miscigenação, defesa da
manufatura nacional; fortalecimento da Marinha e do Exército, e “transplante” do Estado colonial
português para o novo Império do Brasil como forma de manutenção da unidade territorial legada –
ao contrário do que ocorria com nossos vizinhos hispânicos -, podem ser creditadas como medidas
iniciais deste geopolítica autóctone – antes portanto, do surgmento da geopolítica científica ou
formal com Kjéllen no final do século XIX;
O problema da unidade e integridade do colosso territorial brasleiro historicamente sempre
foi problema nacional crítico - cuja conquista formal, precedida de fato com o utis possidetis, inicia-
se com o Tratado de Madri de 1750, negociado por outro “geopolítico antes da geopolítica”, o
diplomata santista Alexandre de Gusmão.

Assim, a geopolítica formal ou científica no Brasil – por ocasião do seu centenário nesta
década de 20 –, surge como problema de Estado, com a necessidade de impedir uma coalizão de
países sul-americanos de origem hispânica, liderados pela Argentina, há muito atuando pela
Cadernos de Estudos Estratégicos 37

reconstrução do Vice-Reinado do Prata, voltada contra o Brasil. Este é o objeto principal de


PROJEÇÃO CONTINENTAL DO BRASIL, do então Capitão Mário Travassos, surgido com a
Revolução de 1930 e encampado por ela. Um segundo problema para a projeção continental, aponta
Travassos, é, ao norte, a “penetração yankee”;
A geopolítica brasileira superaria seu problema inicial, seu confinamento sul-americano,
somente a partir de 1960, com o aparecimento de PROJEÇÃO MUNDIAL DO BRASIL, do General
Meira Mattos;

Atualidade do projeto brasileiro de se convertar numa potência no sistema de Nações

Já foi dto aqui que o Brasil possui todos os atributos naturais ou estáticos para tornar-se uma
grande potência. É seu destino, que poder acelerado ou retardado, em função de opções nacionais
que tomamos como país. Esta Escola Superior de Guerra, como aqui demonstrado, tem na sua
missão originária o desafio de ajudar o país no esforço de acelerá-lo, e esta todavia permanece
incompleta;
Contudo, há um novo cenário no mundo, com mudanças estruturais tectônicas, que se
apresenta como uma nova oportunidade para o Brasil retomar uma coesão em torno do projeto de
realização de seu potencial nacional;
O cenário de transição de ordem mundial – que poderá resultar na ascensão chinesa, no
relançamento americano ou numa terceira possibilidade, indefinida -, permite ao Brasil aumentar a
margem de manobra no sentido de maior autonomia. Em especial, o mundo assiste, após a grande
vulnerabilidade apresentada pela eclosão da Covid-19, tendencias dos grandes países a fortalecerem
suas posições no grande jogo, em especial reduzindo exposições em fatores críticos do Poder
Nacional;
Por exemplo, ganha corpo hoje no mundo, um debate sobre o conceito de autonomia
estratégica – que não se refere apenas a equipamentos bélicos, mas sobretudo a materiais e bens
críticos ou vitais. É que Kjéllen, há mais de cem anos, chamaria de condições para sustentar uma
autarquia. Esse debate, incrivelmente, parece ainda não ter chegado por aqui;
Outras questões que tomam vulto no debate internacional é o que alguns tem denominado
como “geopolítica dos meta-dados”. Trata-se, grosso modo, de como avanços na digitalização da
vida humana e da atividade econômica exponencializam vulneabilidades do Poder Nacional, que
passa cada vez mais a sofrer com tendências à desestabilização e quebra de coesão nacional
resultante de ameaças híbridas;
O projeto brasileiro de potência possui singularidades que devem ser destacadas, nesse
esforço de compreende-lo de forma atualizada.
Primeiro que o projeto brasileiro de tornar-se uma potência no sistema de Nações não resulta
de qualquer pretensão imperialista ou expansionista em relação à outras, mas antes que nada, de um
objetivo endógeno: obter condições mais favoráveis ao próprio desenvolvimento nacional e de sua
civilização. Há ampla margem para o adensamento do Poder Nacional a partir das características e
riquezas do território nacional, sem necessidade de acessar riquezas de outros;
Essencialmente, pode se dizer, o Labensraum (espaço-vital) brasilíco localiza-se em seu
próprio território, em regiões anecúmenas. Refiro-me, antes que nada, à Amazônia, reconhecida
mundialmente como um dos grandes vetores de futuro do mundo, mas pouco reconhecida como tal
pelos prórpios brasileiros. Agrague-se nossas Águas Jurisdicionais Brasileiras, equivalente a
aproximadamente metade do território emerso, e que por suas riquezas potenciais (e já reais) é
chamada de Amazônia Azul. A transformação do Brasil como potência-energética vai se
viabilizando pelos recursos marítimos, esssencialmente;
Nossa forma e posição geografica, que implica vantagens estratégicas relevantes, como
discutimos anteriormente, contudo, não nos deve desconsiderar ameças latentes a soberania e a
Cadernos de Estudos Estratégicos 38

integridade nacional. Desde 2005, como pequenas variações, nossa Politica Nacional de Defesa
observa que:

Após um longo período sem que o Brasil participe de conflitos que afetem diretamente o
território nacional, a percepção das ameaças está desvanecida para muitos brasileiros. Porém,
é imprudente imaginar que um país com o potencial do Brasil não tenha disputas ou
antagonismos ao buscar alcançar seus legítimos interesses. Um dos propósitos da Política
de Defesa Nacional é conscientizar todos os segmentos da sociedade brasileira de que a defesa
da Nação é um dever de todos os brasileiros.

Parafrasendo o chanceler Azeredo da Silveira, o Brasil é que o torna “o país-tipo da categoria


dos países insatélitizáveis”.

Referências Bibliográficas
CARMONA, Ronaldo. Poder Nacional e Grande Estratégia: uma análise geopolítica dos conceitos
fundamentais do projeto brasileiro de potência. Tese de Doutoramento apresentado ao Departamento
de Geografica da Universidade de São Paulo (USP), 2017.
CLINE, Ray S. World Power Assessment 1977. A calculus of strategic drift. CSIS, 1977.
COUTO E SILVA, Golbery. Planejamento do fortalecmento do potencial nacional. Trabalho
acadêmico apresentado à Escola Superior de Guerra, 1956.
MEIRA MATTOS, Carlos de. Projeção Mundial do Brasil. 1961, 72 páginas.
___________________. Brasil Geopolítica e Destino. Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1975.
SARDENBERG, Idálio. Princípios fundamentais da Escola Superior de Guerra. Revista da ESG,
nº 08.
Geopolítica com lentilhas: uma interpretação do pensamento do
general Golbery do Couto e Silva
por André Roberto Martin*

“...o direito de utilização de nosso território, seja para o que for, é um direito exclusivo de nossa
soberania que não devemos, de forma alguma, ceder por um prato de lentilhas.”*

Um espectro ronda o Brasil. Alijado praticamente do debate público desde a redemocratização do


país, a qual coincidiu aproximadamente com sua morte1, o pensamento do general Golbery do Couto e Silva
ainda paira sobre a intelectualidade civil e militar do Brasil, assim como sobre as elites política e econômica,
como se fosse um fantasma. De nada tem adiantado a tática do olvido, uma vez que as marcas na sociedade
e no território brasileiro legadas pelo velho ‘Bruxo’ ainda estão muito presentes, tendo sido ele, aliás, um dos
casos raros de intelectual que conseguiu ver muitas de suas idéias serem colocadas em pratica2. Entre os
exemplos de ‘rugosidades’ deixadas no território brasileiro sob a marca da influência do velho general,
podemos começar por citar nada menos do que a Hidroelétrica Binacional de Itaipu, uma obra de engenharia
e de diplomacia que garantiu a superioridade estratégica do Brasil sobre a Argentina, na disputa pela liderança
da América do Sul, e que não deixou de representar um pressuposto, ainda que involuntário, da montagem
diplomática do bloco econômico conhecido como MERCOSUL. Além desta que foi por muito tempo a maior
hidroelétrica do mundo, e sem dúvida seu maior legado, em função de seu significado estratégico, o
pensamento de Golbery do Couto e Silva também está presente em outras grandes obras tais como a ponte
Rio- Niterói, e a rodovia Transamazônica, além de algumas ações tópicas integrantes do Projeto Calha Norte3.

O que se passa hoje na Amazônia brasileira, em grande medida, não deixa de ecoar o que seus escritos
já indicavam na década de 1950, e que ele ajudaria a implementar, de fato, vinte anos mais tarde, quando da
sua condição de Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República: “inundar de civilização a Hiléia
Amazônica, a coberto dos nódulos fronteiriços, partindo de uma base avançada constituída no Centro-
Oeste...”4 Eis em síntese, o modelo de incorporação da floresta à estepe econômica nacional seguido, sem
modificações significativas, desde então.

Mas há muito mais. Certas heranças, não visíveis na paisagem, também possuem a marca indelével
do grande militar e homem público. Não nos esqueçamos de que Golbery foi o criador do Serviço Nacional
de Informações, que ele mesmo chamaria anos mais tarde de “o monstro”, dado seu receio de que aquele
instrumento viesse a adquirir vida e propósitos próprios. Além disso, sua interferência na concessão de canais
de televisão, ao legar ao SBT de Silvio Santos o disputado patrimônio de Assis Chateaubriand, de um lado,
e de outro, seu oferecimento a Ivete Vargas da sigla histórica do getulismo, em detrimento de Leonel Brizola,
são mostras indeléveis de que algumas de suas decisões ainda repercutem na vida cultural e política do Brasil
de nossos dias. A divisão do Estado de Mato Grosso e a fusão da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro
também contaram com seu decisivo apoio. De modo que, resumidamente, boa parte das estruturas territoriais

* Professor titular do Depto. de Geografia da Universidade de São Paulo (USP). Coordenador do GeoPo (laboratório de
Geografia Polítca) da USP.
SILVA, Golbery do Couto e :Conjuntura política nacional, o poder executivo e Geopolítica do Brasil. Livr. José
Olympio Ed., Rio de Janeiro, 3ªed., 1981 pg.52
1
Golbery falece em 1987, dois anos após o encerramento do regime militar.
2
O apelido de ‘Bruxo’ foi dado pela imprensa, dada sua fama de agir nas sombras. E embora alguns trabalhos
acadêmicos a seu respeito tenham surgido, em várias áreas do conhecimento, para a classe política, a grande mídia e o
público em geral ele permanece praticamente um desconhecido.
3
Para um aprofundamento desse tema consulte-se: MENEZES, Fernando Dominience: “Enunciados sobre o futuro:
ditadura militar, Transamazônica, e a construção do “Brasil Grande””. Dissertação de Mestrado, História, UNB, 2007
4
SILVA, Golbery do Couto e. : op.cit. pg.47
Cadernos de Estudos Estratégicos 40

e mentais vigentes em nosso país ainda hoje não passa de desdobramentos de sua visão de mundo e de seu
projeto de país e, portanto, não deveria nos surpreender a necessidade de revisitação de seu pensamento, às
vésperas da comemoração do bi-centenário de nossa Independência. Parabenizo assim a Escola Superior de
Guerra por esta iniciativa.

Coincidentemente, neste exato momento seu neto, o sociólogo e internacionalista Golbery do Couto
e Silva Neto, encontra-se às voltas com a produção de um livro e de um filme que re-habilitem a memória de
seu famoso e polêmico avô. Leitor compulsivo e dono de uma invejável biblioteca, o general faleceu em
1987 aos 76 anos, em pleno vigor intelectual. Seus livros tornaram-se clássicos nas áreas de: Geografia do
Brasil, Geopolítica, Estratégia e Segurança. É justo, portanto que seu pensamento seja constantemente
escrutinado, e nada mais natural do que começarmos por destacar alguns autores que nos parecem
determinantes na formação intelectual e ideológica de nosso autor.

Principais influências

Golbery do Couto e Silva foi estudante destacado desde menino. Depois de haver completado o curso
ginasial em sua cidade natal, o frio e meridional porto gaúcho de Rio Grande, ele ingressa na Escola Militar
do Realengo em 1927. Três anos mais tarde, ao se formar Aspirante a Oficial, conquistará o 1º lugar de toda
a turma de Cadetes das Três Armas, e mais tarde, em 1941, confirmando seus superiores dotes intelectuais,
torna-se o único oficial aprovado no concurso de admissão da Escola de Estado-Maior do Exército. Após um
breve curso de aperfeiçoamento nos Estados Unidos ele segue com a FEB para a Itália em 1945 na condição
de Oficial de Inteligência Estratégica e Informações, e poucos anos adiante, em 1952, já no posto de tenente-
coronel, é designado adjunto do “Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra”, então sob a
direção do general Juarez Távora. Este talvez seja o primeiro nome que deva ocupar nossa lista. Influência
que veio não só através das idéias, como também do exemplo5.

Juarez Távora fora um dos expoentes do tenentismo, companheiro de Luiz Carlos Prestes nas manobras
da famosa “Coluna”, chegara ao poder com Vargas em 1930, mas passara a divergir do líder após discordar
de suas posições durante o Estado Novo. Exemplo de militar que se torna político, Juarez Távora chegou a
disputar a presidência da República, pela UDN, com Juscelino Kubistchek, perdendo por pouco. Golbery o
acompanharia na oposição tanto a Juscelino quanto, sobretudo, ao herdeiro político de Vargas, João Goulart.
O ativismo político do general, no entanto, não é nosso foco principal. Avaliá-lo demandaria uma digressão
demasiado longa e nos desviaria do tema das idéias. Neste sentido, o propósito comum de dotarem o país de
uma “elite tecnoburocrática” comprometida com o desenvolvimento nacional, alavancado pelo capital
externo, parece resumir a essência da relação entre discípulo e mestre neste caso, e o que nos cabe anotar no
momento.

Outra influência vinda de um militar mais velho e de mais alta patente, e que se encaixa perfeitamente
com nosso objetivo mais específico, é aquela que podemos atribuir ao general Pedro Aurélio de Góes
Monteiro. Também oriundo do tenentismo, e nordestino como Juarez Távora, Góes Monteiro será
responsável pela interiorização de um princípio basilar, nem sempre respeitado é bem verdade, mas que tem
sido a bússola das nossas Forças Armadas no que concerne à relação entre o Exército e a política, desde a
criação da Escola Superior de Guerra. A idéia de que a ‘Força’ deve-se abster, enquanto instituição, da
participação no processo político, tem origem na Missão Francesa, e tornou-se princípio sempre tensionado
pela realidade econômica de um país de industrialização retardatária, no interior do qual a classe política e o
empresariado não parecem conseguir dar conta de tão decisiva missão histórica. Seu lema famoso se tornará
como que um postulado, que sintetiza esplendidamente o esforço em conciliar duas tradições antagônicas: a

5Estas informações foram obtidas em ASSUNÇÃO, Vânia Noeli Bá Ferreira de: “O satânico Dr. Go: A Ideologia
Bonapartista de Golbery do Couto e Silva”. Mestrado em C. Sociais, PUC/SP, 1999
Cadernos de Estudos Estratégicos 41

dos “jovens turcos”, intervencionistas, e a da “Missão Francesa” partidária da neutralidade militar. “Façamos
a política do Exército,...” tem relação com a primeira influência, “e não no Exército” com a segunda. Golbery
seguirá fielmente tal doutrina, e viverá intensamente sua contradição intrínseca. Atribui-se ainda a Góes
Monteiro a formulação preliminar do que mais tarde seria conhecido como a “Doutrina de Segurança
Nacional”, um dos pilares ideológicos e organizacionais do regime de 1964, e motivo de muitas críticas a
Golbery6.

Os próximos três nomes selecionados foram reconhecidos como mestres pelo próprio Golbery são
todos eles civis, e o influenciaram, sobretudo, a partir de seus escritos. Somadas, as três contribuições
constituem como que os pilares básicos de uma ‘Teoria de Brasil’ coerente, ao menos aos olhos de nosso
autor. Delgado de Carvalho, Oliveira Viana e Azevedo Amaral são os personagens a serem brevemente
relembrados.

Comecemos pelo historiador Azevedo Amaral, autor de um livro clássico sobre a Revolução de 1930
e apologeta do Estado Novo. Surgido em 1938 seu O Estado autoritário e a realidade nacional marcaria
fortemente Golbery, particularmente no tocante à idéia de que no Brasil, somente o modelo político
autoritário poderia responder pelo progresso sócio-econômico do país. Cético quanto à possibilidade de
aplicação no Brasil, um país agrário e atrasado, do modelo liberal-democrático de corte anglo-saxão, ele
acompanhará o sociólogo Oliveira Viana em sua crítica à importação de modismos anti-ibéricos, como vinha
sendo a experiência do federalismo durante a Primeira República. Numa perspectiva convergente muito ao
agrado de Golbery, tanto Amaral quanto Viana irão associar nacionalismo/indústria/capitalismo, o que se
constitui num dos pilares básicos do que aqui estamos denominando ‘pensamento golberyano’, e isto na
medida em que tal interação associa projeto de país com visão de mundo, uma preocupação cardial de nosso
autor. A falta de integração nacional entre as várias regiões econômicas, somada a uma sociedade amorfa,
eram os grandes desafios a vencer, e não é necessário muito esforço para se observar uma série de
características do Estado Novo sendo retomadas, paradoxalmente, pelos inimigos de Getúlio Vargas, logo
após o golpe de 1964. Como artífice principal desta proeza, encontramos justamente, o general Golbery do
Couto e Silva7.

Finalmente, é mistér mencionar Delgado de Carvalho, geógrafo, historiador e pioneiro no estudo das
Relações Internacionais entre nós, e a quem Golbery dedica seu principal livro - Geopolítica do Brasil,
confessando-se discípulo do mestre. Cremos que a adesão a princípios liberais na política externa consolidou-
se na mente do general Golbery, muito em função das formulações de Delgado de Carvalho. Juntamente com
Oliveira Viana foi um dos pilares da Escola de Altos Estudos, criada especificamente com a função de formar
administradores para os ministérios do Brasil. Já em seu livro didático Geografia do Brasil, de 1913, ele se
dedica a um aspecto geopolítico importante –a formação de nossas fronteiras- o que supomos deva ter
chamado a atenção de Golbery. Tempos depois, com o lançamento de Introdução à Geografia Política, em
1929, tal aproximação em termos de afinidades intelectuais fica demonstrada. Nos anos 1950, finalmente, a
atuação de Delgado junto ao Itamaraty, e a publicação de sua principal obra História Diplomática do Brasil,
ao final da década, consolidarão a reconhecida influência. Ambos desconfiavam de um sub-reptício
antiamericanismo embutido na tese defendida pelo movimento dos “não-alinhados”, e concomitantemente,
opunham-se à hipótese de um isolacionismo diplomático nacional8.

Em contrapartida, nos campos da Economia e da Ciência Política, o pensamento de Golbery se


mostrará crítico ao liberalismo strictu-sensu. Por um lado, ele julga uma ingenuidade considerar a democracia

6 Consultem-se a respeito: MIYAMOTO, Shiguenoli: “Os estudos geopolíticos no Brasil – uma contribuição para a sua
avaliação- in Perspectivas 4:75-92, 1981, e BRETAS, Marcos Luíz: “O general Góes Monteiro: a formulação de um
projeto para o Exército” in Militares e Política nº 2 (jan/jun 2008) pg. 31-61
7 Veja-se PALADINI, Priscila: “Caminhos cruzados: o pensamento de Oliveira Viana e Azevedo Amaral” Mestrado

em Ciência Política UF São Carlos, 2017.


8 Sobre o tema consulte-se BARROS, Nilson Cortez Crocia: “Delgado de Carvalho e a geografia no Brasil como arte

da educação liberal” in Estudos Avançados 22 (62), 2008.


Cadernos de Estudos Estratégicos 42

um sistema infenso aos apetites dos “homens-lobos”, sempre dispostos à manipulação de uma população
politicamente pouco educada. E de outro considera o planejamento estatal “o único método de conduzir com
eficiência a política de uma nação”9. A tentativa de equilibrar democracia com planejamento é longamente
discutida por Golbery, mas tais postulações permaneceram no campo da teoria. Na prática o que se deu foi o
sacrifício da primeira em favor do segundo, sob a alegação de que a “tecnoburocracia” , como já vimos, teria
melhores condições de permanecer fiel aos “objetivos nacionais permanentes”, do que as tradicionais
“minorias dirigentes, inescrupulosas e ávidas” 10.

Esclarecidas brevemente as matrizes do pensamento golberyano em torno de como via o Brasil e o


papel das Forças Armadas, cabe agora elevarmos o nível de abstração para alcançarmos os patamares da
Filosofia e da Teoria da História. Os autores selecionados foram Thomas Hobbes, Oswald Spengler, Arnold
Toynbee e Herbert Spencer. Tentaremos a seguir justificar a razão dessa escolha, mas lembrando que
encaramos o pensamento de Golbery, a partir de sua inserção num contexto histórico mais amplo, o que nos
leva a destacar o período da Guerra-fria como a nova situação em que o oficial, já maduro, procurou atuar.
Daí preferirmos iniciar com Hobbes no lugar de Hegel, embora ele também fosse admirador deste último,
uma vez que a leitura acerca do tempo vivido, a interpretação sobre qual o sentido do momento histórico que
nos cerca, são abstrações decisivas na montagem de um “sistema integrado de Geopolítica”, e é sobre este
último que gostaríamos de chamar a atenção.

A conjuntura política, ou mais apropriadamente geopolítica, acima mencionada, dividindo o mundo


em dois blocos irreconciliáveis, imprimiu uma característica peculiar ao desenvolvimento intelectual de
Golbery que foi seu ceticismo quanto à possibilidade de emergência de uma “terceira via”, na luta de vida ou
morte entre Ocidente e Oriente. Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, nosso autor almejava o ideal de uma
sociedade regida pelo “planejamento democrático”, algo que era rejeitado tanto pelos regimes comunistas
quanto pelas democracias liberais. Daí esta oscilação entre realismo e idealismo que ficará mais clara, a
seguir.

Golbery acompanhava Hobbes tanto em sua visão pessimista acerca do Homem e da Humanidade,
quanto em sua leitura realista sobre o sistema de Estados, isto é, um sistema anárquico e competitivo, onde a
ameaça de guerra é a única permanência. Premissa esta cuja dramaticidade ficou evidentemente exacerbada
com a emergência da Era nuclear, levando nosso general a uma visão bastante pessimista quanto ao futuro.
No ano de 1952 ele escreverá: “não se sabe mais distinguir onde começa e onde termina a guerra...”11 e em
outra passagem: “...Segurança e Liberdade são dilemas decisivos com que sempre se viu defrontada a
humanidade, nunca, porém, como hoje, em circunstâncias tão dramáticas e tão imperiosas assim.” 12 . E
finalmente: “Essa é a guerra-total, permanente, global, apocalíptica- que se desenha desde já, no horizonte
sombrio de nossa era conturbada.”13. São frases de grande eloqüência, que dispensam maiores comentários.
Passemos então a examinar as contribuições de Toynbee e Spengler na construção da visão de mundo do
general Golbery.

Começando pelo filósofo e historiador alemão, apenas nove anos mais velho que o historiador e
diplomata britânico, vale o registro de que seu livro A decadência do Ocidente lançado em 1919, embora
escrito ainda antes de estourar a Iª Grande Guerra, foi um grande sucesso editorial, chegando a vender
somente na Alemanha, cerca de 600 mil cópias, no chamado período entre - guerras. Esta grande aceitação
esteve sem dúvida ligada ao fato de que a Filosofia da História por ele formulada ajustava-se como uma luva
ao sentimento geral de frustração de toda a nação alemã com a derrota sofrida em 1918. O tom pessimista da

9 Cf. SILVA, Golbery do Couto e: Planejamento Estratégico. Ed. UNB, Brasília, 1981, pg. 25
10 Ibidem pg. 394
11 SILVA, Golbery do Couto: Geopolítica e Poder UniverCidade, Rio de Janeiro, 2003 p.29-52 appud Carvalho, Thiago

Bonfada de: Geopolítica brasileira e Relações Internacionais nos anos 50: o pensamento do general Golbery do Couto
e Silva. FUNAG, Brasília 2009, pg. 82
12 SILVA, Golbery do Couto e: Geopolítica do Brasil op.cit. pg. 14
13 Ibidem pg. 12
Cadernos de Estudos Estratégicos 43

obra acabou-lhe conferindo um tom profético, frente à tragédia ainda maior que aguardava o Reich. Por que
então não tratá-la senão como o prelúdio do que poderia acontecer com todo o ‘Ocidente’ num futuro não tão
longínquo?14

Quanto a Toynbee, embora sua obra mais importante Um estudo da História, surgida em 1934, não
deixe de conter uma tentativa de resposta a Spengler e seu rígido determinismo, em termos gerais ela
permaneceu próxima das teses centrais deste último 15. Numa visão circular e entrópica, toda civilização teria
um momento de apogeu - quando ver-se-ia como um ‘Império Universal’- e outro de queda inexorável,
iniciado exatamente pela perda de um adversário com quem competir. Tal teoria parecia encaixar-se
perfeitamente à realidade da Guerra-fria, na opinião de Golbery, e o impactou profundamente. A despeito de
suas diferenças, Golbery entendia que tanto Toynbee quanto Spengler coincidiam na previsão sinistra de que
surgia no horizonte “o grande Império Universal em que se aniquilará, por fim, a civilização ocidental” 16. É
neste ponto crítico que o observador realista da cena internacional abre espaço para a entrada do apaixonado
ideólogo defensor daquela que ele julga ser a mais avançada de todas as civilizações –o Mundo Ocidental
Cristão- categoria que dará sentido à sua vida, mas cujos contornos geográficos ele nunca foi capaz de definir
claramente.

Em 1981 na Apresentação da segunda edição de seu consagrado livro Geopolítica do Brasil, o realismo
de Golbery se explicita ao antecipar a fratura do bloco soviético e a ascensão chinesa, ressalvando, porém
que esta ainda não se encontrava à altura das duas superpotências mundiais. Sua frase conclusiva, no entanto,
deixará evidente seu compromisso como ideólogo: “O antagonismo entre o Ocidente cristão e o Oriente
comunista domina ainda a conjuntura mundial”17. No ano seguinte, a guerra das Malvinas comprometeria
seriamente o acerto desta sentença. Não obstante, sua contribuição para o desenvolvimento do pensamento
geopolítico brasileiro seria inestimável. Ele trabalhou todas as escalas: a planetária, a regional, -sul-atlântica
e latinoamericana – e a nacional. Distinguiu uma geopolítica interna e outra externa e apresentou ao país um
programa completo para o incremento de seu Poder Nacional tanto nos planos ideológico e administrativo
quanto econômico e militar. Entre os muitos conceitos aprofundados e outros formulados por Golbery do
Couto e Silva, selecionamos justamente sua concepção acerca do Poder Nacional brasileiro, como uma
espécie de síntese do pensamento golberyano.

O conceito de Poder Nacional

Fortalecer o Poder Nacional do Brasil, para desta forma contribuir com o Ocidente cristão em sua luta
sem tréguas contra o Oriente comunista e ateu foi o objetivo intelectual, moral e político do general Golbery
do Couto e Silva ao longo de toda sua vida adulta. Após listar a soma de recursos diplomáticos, naturais e
demográficos que o Brasil poderia oferecer a um esforço de guerra de seu ‘sagrado’ Ocidente, contra o “cerco
comunista”, Golbery conclui: “...pela inigualável posição geopolítica ao largo do Atlântico Sul, [o Brasil]
ocupa posição de importância singular quanto à satisfação de todas essas imperiosas necessidades de defesa
do Ocidente” 18. O mapa abaixo ilustra seu ponto de vista de forma cabal.

14 Informações extraídas de DEFARGES, Paul Moreau: Introduction à la géopolitique. Paris, Seuil, 1994.
15 Cf. Carvalho, Thiago Bonfada: op. cit. Pg. 92.
16 SILVA, Golbery do Couto e: Geopolítica do Brasil op.cit. pg.22
17 Ibidem pg. 4
18 Ibidem pg. 246
Cadernos de Estudos Estratégicos 44

Fonte: Silva, Golbery do Couto e: Planejamento Estratégico, Ed. UNB, pg.237

A metáfora que identifica o Nordeste brasileiro a uma espécie de Gibraltar ampliado porém, não foi
propriamente uma invenção de Golbery. Desde os tempos coloniais quando o Tratado de Tordesilhas impôs
a política de ‘mare clausum’ no Oceano Atlântico, a Marinha Real Portuguesa já havia se dado conta da
importância em possuir uma base segura no Nordeste brasileiro, a fim de guarnecer sua rota para as Índias.
Este papel de “chave” de ligação entre as duas porções do Atlântico foi apenas reforçado com o surgimento
do poder aéreo, e Golbery nunca explicitou se considerava a CSN –Cia. Siderúrgica Nacional- uma
recompensa superior ou ao menos equivalente a um prato de lentilhas. Seja como for, não se pode negar que
a cooperação com os Estados Unidos durante o regime militar redundou na insofismável liderança brasileira
no contexto sulamericano, desdobrando-se para o Atlântico Sul e o restante da América Latina. Usar a posição
geográfica como instrumento de barganha na política mundial, constitui, pois, o primeiro passo, decisivo,
para o fortalecimento ou não do Poder Nacional. Os seguintes dirão respeito ao adensamento no uso do
território nacional, e a uma maior racionalização de seu ordenamento. As suas diretrizes geopolíticas internas
visavam a ocupação dos “vazios” demográficos, a vivificação das fronteiras, a coesão, integração e
valorização do território. Avançar a fronteira desde o centro e bloquear as entradas concretizavam o lema
“segurança e desenvolvimento” como bem resumiu Costa Freitas 19. O cartograma abaixo nos dá bem uma
idéia de sua manobra de integração nacional.

19Consulte-se FREITAS, Jorge Manoel da Costa: A Escola Geopolítica Brasileira – Golbery do Couto e Silva, Carlos
de Meira Mattos, Therezinha de Castro. Bibliex Ed., Rio de Janeiro, 2004.
Cadernos de Estudos Estratégicos 45

Fonte: Silva, Golbery do Couto e: Geopolítica do


Brasil op.cit. pg.90

Este objetivo de dar maior racionalidade ao uso e controle do território merece ser sublinhado, uma
vez que se estabeleceu como prioridade para toda a elite castrense desde o alvorecer da República. Na
formulação golberyana, como já vimos, a urgente necessidade de renovação da elite nacional só poderia caber
ao nascente estamento “tecnoburocrático-militar”, o único que estaria preparado para deixar guiar-se pela
ciência. Como aponta corretamente Walter Birkner: “no contexto de rápida modernização mundial seria a
qualificação técnica, e não a demagogia, que deveria caracterizar essa renovação” 20. E concluindo na mesma
direção, Ricardo Vélez Rodrigues sentencia: “O mais importante teórico da modernização do Estado
brasileiro ao longo do ciclo militar foi, sem dúvida, o general Golbery do Couto e Silva” 21.

Plenamente de acordo. E particularmente quanto à Geopolítica do Brasil, tanto a teórica quanto a


prática, o nome de Golbery tornou-se referência incontornável. O resultado de seu tripé ocidentalismo/poder
terrestre/rodoviarismo, isto é, geoideologia, geoestratégia e geoplanejamento, seu sistema geopolítico
integrado, como venho definindo, permitiu ao país alavancar seu Poder Nacional até o país vir a tornar-se a
potência líder da América do Sul, invertendo assim, a posição que ocupava na “gangorra” com a Argentina
até a década de 195022. Não é pouca coisa. Não obstante havia um calcanhar de Aquiles em seu modelo que
só seria revelado após a guerra do Yom Kippur em 1973, e a conseqüente “crise do petróleo” que se seguiu.
Nossa dependência do petróleo importado do Oriente Médio comprometeu todo o edifício tão
meticulosamente erigido por seu pensamento. Eram seus limites históricos e ideológicos. Desde lá o país não
possui mais uma bússola geopolítica clara para guiar seus passos, num mundo que está bastante diferente
daquele vivido por Golbery. Por isso, procurar compreender em profundidade seu pensamento, é a única
forma que temos de tentar avançar para além dele.

20 Cf. BIRKNER, Walter Marcos Knaesel:O realismo de Golbery –segurança nacional e desenvolvimento global no
pensamento de Golbery do Couto e Silva -Ed. Univali, 2009 pg. 156
21 Cf. RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez : O Republicanismo brasileiro Londrina, 2015, pg. 267
22 Meu ponto de vista sobre esta questão está desenvolvido em MARTIN, André Roberto: Brasil, Geopolítica e Poder

Mundial - o anti-Golbery- Hucitec Ed. S.Paulo, 2018. Também pode ser consultado o artigo: Regiane, R.; Martin, A.R.
:Geopolítica e geoideologia na pós-modernidade -rumo ao pluralismo ideológico- in Revista de Geopolítica v.9 n.2
(2018).
Cadernos de Estudos Estratégicos 46

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Livr. José Olympio Ed., Rio de Janeiro, 3ª Ed., 1981.

RODRGUEZ, Ricardo Vélez :O Republicanismo brasileiro. Londrina, 2015.


Therezinha de Castro
por Eli Alves Penha*

Há pessoas que se identificam com a História pelo desempenho extraordinário


de sua missão, nas exigências de cada época. Therezinha de Castro foi uma
delas1.

Agradeço o convite da ESG para escrever sobre a Professora Therezinha de Castro (1930-
2000) e me sinto duplamente honrado. Primeiro porque é a oportunidade de homenagear uma grande
geógrafa, ou melhor, uma "geopolitóloga", como ela mesma gostava de se autodenominar. Segundo
porque, graças a ela também, pude participar de grandes eventos organizados no âmbito da Escola,
inclusive como conferencista quando fui convidado - e aceitei o desafio - de assumir suas disciplinas
de geopolítica no curso do CAEPE no início da década de 2000.
Convivi com a Professora Therezinha ao longo da década de 90. Sua paixão pela Geopolítica
contagiava as pessoas à sua volta, inclusive a mim. Quando decidi desenvolver minha pesquisa
doutoral sobre a geopolítica do Atlântico Sul e as relações com a África na UFRJ, sob orientação da
professora Bertha Becker, encontrei na obra da Professora Therezinha uma grande fonte de
pesquisas por conta de seu “importante papel na história do pensamento geopolítico brasileiro no
que se refere ao desenvolvimento de uma geopolítica mais preocupada com os aspectos marítimos”
(Child, 1980, p. 58). Meira Mattos (cf 1980) também considerou que, com seus estudos, Therezinha
de Castro foi a grande responsável pela identificação do Atlântico Sul como área de interesse
estratégico nacional ao apregoar a necessidade de uma aliança no Cone Sul e intensificação das
relações com a África Ocidental e Austral. Foi também, com sua tese intitulada “Antártica**: Teoria
de Defrontação”, a motivadora do governo para efetivar e legitimar a presença do país na Antártida.
Nesse texto, pretendo apresentar alguns aspectos da sua biografia e principais influências
que recebeu, analisar algumas de suas obras e proposições relativos aos seus estudos sobre o
Atlântico Sul. Na conclusão, pretendo discutir a sua contribuição para o desenvolvimento do
conceito de Oceanopolítica, uma de suas principais contribuições teóricas para o estudo sobre o
posicionamento geopolítico do Brasil no mundo.

* Professor de Geografia da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)


** Cabe salientar que, neste texto, o autor utiliza tanto o termo “Antártida”, como “Antártica”, pois ambos possuem
aceitação acadêmica. A palavra “Antártida” foi escrita em documentos oficiais, como o próprio tratado que previu a
ocupação do continente gelado. Já “Antártica”, levando-se em conta suas raízes no idioma grego, quer dizer "anti-
ártico", ou "do outro lado do ártico". Como o Ártico é no Pólo Norte do nosso planeta, o anti-ártico é no Pólo Sul.
1
Cel. Cambeses, Manoel (IBGE, 2009, p.16)
Cadernos de Estudos Estratégicos 48

Biografia e a Influências
A Professora Therezinha de Castro nasceu no Rio de Janeiro, em 22 de dezembro de 1930.
Filha do General Fábio de Castro e da Sra. Nedyr de Castro, viveu parte de sua infância no Rio
Grande do Sul. Segundo seu próprio relato, ela se sentiu inclinada a estudar Geografia quando
participou com o pai em um evento de hasteamento da bandeira brasileira na cidade de Uruguaiana,
na fronteira com a Argentina. Naquele contexto histórico da segunda Guerra Mundial, o Brasil havia
se inclinado ao lado dos Estados Unidos e vivia uma forte rivalidade geopolítica com a Argentina,
que mantivera seus vínculos com a Alemanha. O sentimento de estar do “lado certo” da fronteira
motivou a futura geógrafa a cultivar o nacionalismo e, ao mesmo tempo, a defender os valores
ocidentais que, posteriormente, impregnaria todo a sua produção científica.
No final da década de 1940, Therezinha ingressa na Faculdade de História e Geografia da
Universidade do Brasil (atual UFRJ), sendo contemporânea de grandes nomes da Geografia
Brasileira como Berta Becker, Fanny Davidovich, Pedro Geiger, Lisia e Nilo Bernardes, Maria do
Carmo Galvão, entre outros. Na Faculdade, travou contato com o professor Carlos Delgado de
Carvalho que, apesar de ser um consagrado estudioso de Geografia Regional do Brasil e de
Geopolítica, naquele período lecionava disciplinas de História (Machado, 2009, p.122). Sobre esse
aspecto, é interessante observar que não havia, na grade curricular da Faculdade, nem Geografia
Política nem Geopolítica (idem, p. 111). Contudo, quando entrou para os quadros do IBGE em 1952,
para trabalhar ao lado de Carlos Delgado de Carvalho, foi que Therezinha de Castro pode
desenvolver sua vocação, através da profícua produção nos campos da Geopolítica e das Relações
Internacionais.
Nesse sentido, pode-se dizer que o pensamento de Therezinha de Castro teve dupla
influência em seu trabalho: de seu pai militar e de Delgado de Carvalho, historiador e geógrafo. A
influência paterna determinou sua vocação para o ensino da Geografia e da Geopolítica nos cursos
das Forças Armadas dentre as quais a Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica, Escola
de Guerra Naval, Escola de Estado-Maior do Exército, da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais
da Aeronáutica (EAOAr), Escola Superior de Guerra (ESG) e das delegacias da Associação de
Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
Nas escolas militares, contudo, sua contribuição não ficou restrita ao ensino. No contexto do
entendimento diplomático entre Equador x Peru sob o litígio das fronteiras ocorridas em 1995, o
então Estado-Maior das Forças Armadas, por necessidade de atuação governamental nessa questão,
buscou auxílio da ESG que recorreu aos estudos da Professora Therezinha sobre as fronteiras
andinas. Também por ocasião do conflito no então Timor Leste, atual Timor Lorosae, outro estudo
desenvolvido pela professora Therezinha de Castro foi subsídio para as atividades pertinentes ao
problema.
A influência intelectual de Delgado de Carvalho, por sua vez, relacionava-se aos estudos de
relações internacionais e, sobretudo, de Geopolítica no qual se destacou como uma das mais
proeminentes “geopolitólogas”. As primeiras obras de Therezinha de Castro serão feitas em
coautoria nas quais se destacam o artigo “Geografia Política e Geopolítica” publicado no Boletim
Geográfico em 1956 que procura enquadrar metodologicamente o seu campo preferencial de
estudos.
Nesse artigo, procuram destacar a importância da valorização dos estudos da Geopolítica no
Brasil considerando o contexto de crescente interdependência conjuntural e estrutural do sistema
internacional, cuja dinâmica tinha ampla repercussão nas decisões dos rumos internos:
Cadernos de Estudos Estratégicos 49

“Olhando-se um planisfério avulta-se logo a importância da Geopolítica para o Brasil (...). A


importância estratégica do Brasil com relação ao Atlântico Sul é inegável e a história da
Segunda Guerra Mundial nos afirma isso, com a instalação da base aérea americana em Natal,
que tornou o nosso Nordeste geopoliticamente pertencente aos Estados Unidos. Ao lado disso,
a extensão de nosso território vai nos proporcionar quilômetros de fronteiras. Argumentos
primordiais como estes, atestam a importância da Geopolítica para nós brasileiros” (Carvalho
e Castro, 1956, p.391).

A importância da Geopolítica para o Brasil, na concepção dos autores, passava pelos fatores
espaço, posição, capacidade de desenvolvimento das potencialidades nacionais e projeção externa do
poder nacional. Essa preocupação ficou mais explícita no artigo “Rumo à Antártida” onde vão
apresentar a Teoria da Defrontação sobre a Antártida, consolidando também a predileção pela
Geopolítica.

A Teoria da Defrontação sobre a Antártica


A teoria da defrontação foi inicialmente divulgada no artigo “Rumo à Antártica”, publicado
em abril/junho de 1956 na Revista do Clube Militar e transcrita pelo Boletim Geográfico em sua seção
“Contribuição à Geopolítica” em novembro/dezembro do mesmo ano. Neste artigo, Therezinha de
Castro (em coautoria com Delgado de Carvalho) chamava a atenção para a importância político-
estratégica do “continente gelado” o qual, segundo ela, o Brasil estava em condições de reivindicar
direitos sobre a área que lhes caberia, segundo os critérios da defrontação.
Dentro de um cronograma de negociações, caberia ao Brasil a iniciativa diplomática no
Hemisfério Sul, onde seu território ocupa a maior extensão de terras. A partir daí se discutiria então,
com esses países, o chamado “direito de defrontação”. Resolvida essa primeira etapa estaria o Brasil
em condições de negociar, na Conferência Geofísica a ser realizada em 1957 com as potências
setentrionais, a “partilha da antártica”. Segundo ela, três razões de ordem estratégica, deveriam
impelir as negociações brasileiras:
1) O estreito de Drake ocupa posição estratégica importante, pois, uma vez fechado o
estreito de Magalhães, somente por lá poderiam passar os navios porta-aviões que o canal do Panamá
não comporta;
2) Na idade dos transportes supersônicos e dos bombardeiros dirigidos, é de capital
interesse possuir bases de controle dos ares em terra firme e uma língua de terra da Antártica faz parte
também da possível localização de tais bases;
3) Se no futuro houver meios científicos de controlar os climas, é evidente que no polo
sul, onde se formam as massas de ar que se deslocam destas áreas de baixa pressão (ciclonais)
regulando o trajeto das depressões do hemisfério sul, a Antártida seria útil ao Brasil.
A conclusão, sob esta ótica, é que o Brasil deveria levar em consideração estes fatores
de ordem estratégica e, à semelhança de outros países, realizar missões cientificas e estabelecer o
quanto antes bases de pesquisas e navais no continente austral para fazer valer sua presença, por
ocasião do Congresso Geofísico (Castro e Carvalho, 1956:505-6).
A tese da defrontação sofreu inúmeras críticas por parte dos geopolíticos argentinos
que não reconheciam os direitos brasileiros sobre a Antártida, pois eles se sobrepunham ao trecho
reivindicado pela Argentina. Na perspectiva desses, esta teoria foi entendida como a expressão de
uma política com claros desígnios anti-argentinos. Segundo o capitão de fragata da marinha argentina,
Bernardo N. Rodriguez (cf 1978), a Teoria da Defrontação é uma interpretação “larga” do Princípio
do Setor, enunciado pela primeira vez no Parlamento do Canadá em 20.02.1907, pelo então Senador
Pascal Piorei relativo à sua aplicação no Ártico. Em sua concepção original para o Ártico, indicava
somente que os territórios nacionais que confinassem com ele, teriam direitos a todas as terras
banhadas pelas águas, situadas entre as linhas traçadas, desde o Polo até os dois pontos extremos de
seu território, a leste e a oeste. Como na Antártida os países que se defrontam com ela se encontram
Cadernos de Estudos Estratégicos 50

muito distantes, não podem invocar os argumentos de continuidade ou contiguidade, como era o caso
do Brasil.
Para contrapor este critério, Therezinha de Castro incluía a reivindicação brasileira como
parte de sua teoria denominada “diretrizes geopolíticas difundentes”, onde o país poderia projetar sua
ação geopolítica para áreas mais afastadas do ponto de vista geográfico. Sob esta ótica, este fato se
justificaria por um lado, pela falta de uma estratégia ocidental e de uma aliança militar específica para
defender a região e, de outro, pela importância do controle antártico para o domínio do Atlântico Sul
(Penha, 2011).
Em 30 de Junho de 1958, o governo brasileiro notificou ao Departamento de Estado dos
EUA suas pretensões relativas ao setor localizado entre o meridiano 28° (Ilha Martim Vaz) e o
meridiano 53° (Arroio Chuí), mas foi excluído de participar da elaboração do Tratado da Antártida,
apesar da Marinha do Brasil ter realizado inúmeras pesquisas oceanográficas e meteorológicas, como
parte do Ano Geofísico Internacional. Segundo alegação dos norte-americanos, o país não havia
desenvolvido nenhuma atividade científica na região até o período em que ocorreu a convocação para
a reunião em Washington.
Os esforços da Prof. Therezinha de Castro em projetar o Brasil na Antártida, encontrou apoio
junto a parlamentares como o Deputado Eurípides de Menezes que passou a defender a sua proposta
relativa à “Teoria da Defrontação”. Também passou a divulgá-la para os estudantes e sociedade em
geral, através de obras como o “Atlas de Relações Internacionais” publicado pelo IBGE e o “Atlas
Histórico Escolar” do MEC, ambos de 1960.
Cadernos de Estudos Estratégicos 51

No Atlas do IBGE, a apresentação do mapa foi acompanhada de um texto em que se lê: “No
caso em que ela (a teoria da defrontação) seja posta em prática no continente do Polo Sul, o Brasil
seria beneficiado junto com outros países da América do Sul”, mas ressalva a oposição norte-
americana para quem “os Estados Unidos não aceitam a reivindicação dos setores, estimando-os como
contrários ao princípio da liberdade dos mares”.
Na parte conclusiva do Atlas, Delgado de Carvalho e Therezinha de Castro deixam claro a
preocupação com a situação do Brasil ao considerar a “Guerra Fria” apenas uma transitória “guerra
de classes”, à espera de que, com “osmose mais perfeita entre classes econômicas venha a desaparecer
do mundo o “subdesenvolvimento”. Vencer o “subdesenvolvimento” e projetar o Brasil como nação
influente nos centros decisórios mundiais adviriam da consciência geopolítica do estado brasileiro
considerando os seus fatores geográficos de “espaço” e “posição”.
Os interesses brasileiros na Antártida somente iriam manifestar-se, oficialmente, a partir de
1973 quando a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou um projeto de lei que
autorizava o Executivo à concessão de apoio logístico à projetada expedição brasileira a Antártida.
Em 1975 o Brasil aderiu ao Tratado da Antártida e a 28 de outubro de 1976 foi aprovada, pelo governo
brasileiro, as diretrizes gerais para a Política Nacional para Assuntos Antárticos (POLANTAR), como
forma de preparar o país para atuar junto aos fóruns especializados em questões antárticas. Em 1983
o Brasil foi aceito como membro consultivo do Tratado, ao enviar sua primeira expedição científica
à Antártida em janeiro deste ano a bordo do navio “Barão de Teffé”. A inclusão do Brasil no corpo
consultivo do Tratado credenciou o país a participar dos trabalhos de revisão do Tratado, em 1991.
No mês de abril desse ano, na cidade de Madrid, deu-se a 11a. Reunião consultiva com a
participação de 39 países, quando foi deliberado que as riquezas minerais do continente antártico
permaneceriam intactos por mais 50 anos. A tese da internacionalização que vigorava até então se
opôs ao princípio da defrontação uma vez que no primeiro caso, liberou-se o acesso das potências do
Hemisfério Norte à Antártida, enquanto que, no segundo caso, seriam os países do Hemisfério Sul
que se beneficiariam (Martin, 1992).
A partir de 1993, a Professora Therezinha de Castro passou a atuar na Divisão de Assuntos
Internacionais da ESG. Em cumprimento ao planejamento da Escola e pela motivação devida à sua
tese da defrontação, a ESG empreendeu uma viagem de estudo à base brasileira na Antártica com
membros do Corpo Docente e de Estagiários e tendo a Professora Therezinha como a principal
convidada. Apesar de ter declinado do convite, a professora se sentiu lisonjeada com o
reconhecimento dos militares pelos seus esforços em fazer o Brasil marcar presença no “continente
gelado”.
Em 2020, por ocasião da reinauguração da base assim se expressou o Vice-Presidente
Hamilton Mourão “Temos que render homenagem a quem nos antecederam, é muito importante a
gente destacar a figura da Professora Therezinha de Castro, entusiasta da Teoria da Defrontação”.
Para concluir, gostaria de lembrar um pensamento da Professora Therezinha sobre a Antártida:
“A utopia de ontem é a Antártica de hoje; o continente posicionado na junção dos oceanos
Pacífico, Atlântico e Índico, mostra que embora o homem já busque a terceira dimensão – o espaço
sideral – tem ainda essa etapa oceânica para vencer”.

Diagonais insulares no Atlântico Sul


A revisão do Tratado em Madrid se deu num contexto histórico de distensão nas relações
internacionais. O fim da guerra fria e a crescente importância do direito marítimo internacional,
mudou o foco geopolítico das nações; a velha concepção mackinderiana centrada no continente
eurasiático passa a ser substituída pelo advento do comércio marítimo como fonte de riqueza das
nações, segundo a tradição do liberalismo anglo-saxão preconizada pelo almirante Alfred Mahan.
Cadernos de Estudos Estratégicos 52

A Professora Therezinha acompanha esse processo, procurando analisar o


posicionamento do Brasil no mundo do pós guerra fria, procurando destacar a “vocação atlântica”
do país. Em sua obra “Atlântico Sul: Geopolítica e Geoestratégia”, a importância do Atlântico Sul
para o Brasil foi melhor explicitada, sobretudo pela presença de portos e aeródromos em cidades
brasileiras (Belém, Natal Recife, Salvador, Vitória, Rio de Janeiro, Santos e Paranaguá), além das
“sentinelas avançadas” das ilhas de Fernando de Noronha e da Trindade, a quem denominou de
trampolins para as operações no Atlântico e percebeu como pontos essenciais para a navegação de
cabotagem e das rotas oceânicas.

Ocupado pela Inglaterra quando Portugal perdia a primazia nos mares, o triângulo
geoestratégico formado por Ascenção/Santa Helena/Tristão da Cunha, reflete a importância
como trampolim e bases de apoio na Rota do Cabo na passagem Atlântico/Índico. Bem
mais afeito a costa sul-americana se encontra o trampolim formado pelo triângulo
geoestratégico Fernando de Noronha/Trindade/Malvinas. Já o terceiro triângulo
geoestratégico - Shetlands/Geórgias/Gough/Sanduíches/Orcadas na bacia aberta do Glacial
Antártico se interpenetra com os outros dois. Aí a soberania contestada que se estende as
Malvinas, indica apenas a soberania do Brasil e Inglaterra em bases avançadas do Atlântico
Sul. (Castro, 1999, p. 311)

A autora faz menção à “diagonal insular” formada por rotas que vão desde Lisboa até Buenos
Aires, constituído por arquipélagos do Atlântico Norte – Açores (importante ponto de apoio para a
Otan), Madeira, as Canárias e Cabo Verde. Essa diagonal, composta por arquipélagos e ilhas, foi a
base da expansão atlântica – ibérica e posteriormente constituiu trampolins de valor geoestratégico.
Therezinha descreve o triângulo formado por Ascenção/Santa Helena/Tristão da Cunha, como
“trampolim para a América do Sul e base de apoio na Rota do Cabo”. A ilha de Ascensão, nos dias
de hoje, abriga a base aérea da Força Aérea Real do Reino Unido e serve de base para as operações
militares dos Estados Unidos e do Reino Unido no Atlântico Sul, na América do Sul e na África.
Therezinha de Castro ressaltou a importância dos arquipélagos subantárticos – Shetlands do
Sul, Sanduíches do Sul, Gough e Geórgias do Sul – e apontou o posicionamento geoestratégico de
Fernando de Noronha e Trindade, que juntamente com o Arquipélago das Malvinas compunham
rota de cabotagem sul-americana. A importância desses “trampolins”, se viabilizariam como pontos
geoestratégicos para o comércio mundial o que, segundo ela, diferenciaria o Atlântico Sul dos
demais oceanos. considerado por ela “o mais intercontinental” dos oceanos por conta de sua ligação
“natural” com a África, Ásia e Oceania, através da passagem de Drake do Cabo, além de seu acesso
privilegiado à Antártida (Whitaker, 2016, p.310). É nesse contexto, em que se observa uma grande
valorização geoestratégica do Atlântico Sul e demais espaços oceânicos que emergem seus estudos
sobre a Oceanopolítica.

A Oceanopolítica
O espaço do Atlântico Sul foi um tema intensamente trabalhado por Therezinha de Castro
em suas obras, não somente em seu vasto estudo sobre o Oceano Atlântico, mas também ao analisar
os oceanos de forma sistemática, sobretudo em seu estudo publicado em “Rumo à Antártica”, de 1976,
e também em “Geopolítica – Princípios, Meios e fins”, lançado em 1986, pelo Colégio Pedro II e
reeditado em 1999, pela Editora Biblioteca do Exército. Nesse livro, descreve minuciosamente o
Atlântico Sul e demais espaços oceânicos, procurando relacioná-los aos interesses das potências
mundiais pelo acesso ao mar e às vias de comunicação e passagens marítimas (Mendes, 2020, p. 108).
Na descrição dos espaços oceânicos, segundo Therezinha de Castro, impôs-se a
“Geozonografia” que é o estudo sobre a compartimentação do planeta com base nas massas oceânicas.
Através da Geozonografia, percebeu-se que o Hemisfério Norte possui 39% de terras contra 61% de
águas, enquanto no Hemisfério Sul a proporção é de 17% de terras e de 83% de águas, fato que
permitiu a definição de um Hemisfério Continental e de um Hemisfério Oceânico. Na sua reflexão,
Cadernos de Estudos Estratégicos 53

essa distinção é fundamental para definir o conceito de Oceanopolítica, considerado por ela como
instrumental de análise da política aplicada aos espaços marítimos na perspectiva do “Poder Mundial”
(Penha, 2009, p. 132).
Na perspectiva da oceanopolítica, o Hemisfério Oceânico abrange, em sua maior parte, o sul
da linha do equador terrestre, englobando a América do Sul, parte da África, toda a Oceania e a
Antártica. A Antártida, nessa perspectiva, é o principal ponto de apoio das rotas de navegação global
e a América do Sul, a África e a Oceania são os vértices do Hemisfério Oceânico. Esse arranjo,
segundo a Professora por si só já justifica a importância de uma tomada de consciência sobre a
importância da dimensão da Oceanopolítica para os países do Hemisfério Sul, predominantemente
oceânicos.

Conclusão
A Professora deixou um grande legado para o Brasil. Dentre suas inúmeras publicações
destacam-se obras que não foi possível discutir aqui no texto como Atlas-texto de Geopolítica do
Brasil também de 1981; O Brasil no Mundo Atual - Posicionamento e Diretrizes de 1982; Brasil: da
Amazónia ao Prata de 1983; José Bonifácio e a Unidade Nacional de 1984; Hipólito da Costa: ideias
e ideais de 1985; Nossa América: Geopolítica comparada (1994).
Dada a complexidade de analisar toda a sua obra, procurei destacar aqui no texto apenas os
seus trabalhos sobre o Atlântico Sul, que é que melhor conheço. Como “discípulo” de sua escola
de pensamento procurei incorporar, em minha pesquisa de doutoramento, os conceitos de “bacia”,
“rotas marítimas” e de “vazio de poder” referentes às análises que efetuei sobre a geopolítica do
Atlântico Sul (Penha, 2011).
No meu trabalho, foi graças ao conceito de “oceanopolítica” que compreendi a importância
de se estudar a regionalização do espaço mundial a partir da formação de bacias oceânicas tendo
como “áreas-pivot”: Brasil (no Atlântico Sul), Índia (Índico), Estados Unidos (Atlântico Norte,
Ártico e Pacífico Norte), China (Pacífico Norte), Rússia (Pacífico Norte, Atlântico Norte e Ártico).
Curiosamente, ao expor essa nova regionalização do espaço mundial pude perceber também que, na
emergência de um novo reordenamento do poder mundial constituído pelos BRICS (Brasil, Rússia,
Índia, China e África do Sul) + os Estados Unidos a multipolaridade tende a se formar a partir do
mar e não pelos continentes (Penha, 2011:198). Nesse caso, mais uma vez a professora Therezinha
de Castro, graças às suas reflexões geopolíticas, antecipou-se aos fatos e deixou uma grande
contribuição sobre os estudos da oceanopolítica.

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O pensamento de Meira Mattos e o projeto de Brasil potência
por Guilherme Sandoval Góes*

1. INTRODUÇÃO
Compreender as realidades geopolíticas vinculantes do Estado brasileiro dentro do contexto
internacional contemporâneo perpassa, necessariamente, pela análise do pensamento estratégico-
acadêmico de Carlos de Meira Mattos, General do Exército Brasileiro, partícipe e testemunha ocular
da Segunda Guerra Mundial a partir da sua atuação na Força Expedicionária Brasileira (FEB), no
Teatro de Operações do Mediterrâneo.
É nesse diapasão que outro caminho não terá o estrategista pátrio senão o de trilhar a senda
acadêmica de Meira Mattos, em busca da formulação de uma geopolítica genuinamente brasileira
para o século XXI.
Para tanto, urge compreender a reconfiguração da ordem mundial pós-covid e o papel
geopolítico do Brasil na consolidação de um cenário mundial multipolar, não podendo o estrategista
hodierno prescindir do “pensamento geopolítico meiramattosiano” de protagonismo internacional
do Brasil Potência.
Com efeito, nos dias atuais, não seria possível pensar a Grande Estratégia do Brasil sem levar
em consideração as reflexões feitas por Carlos de Meira Mattos em diversos artigos e livros
publicados ao longo de sua vida, seja como Professor de Geopolítica da Escola Superior de Guerra
(ESG), da Escola de Guerra Naval (EGN) e da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica
(ECEMAR), seja como jornalista e Doutor em Ciências Políticas, pela Universidade Mackenzie (sua
tese de doutoramento foi Geopolítica e Trópicos, defendida em 1984).
Como bem destaca Freitas (2004, p. 64-65), o pensamento de Meira Mattos, um dos maiores
geopolíticos de todos os tempos, ganhou reconhecimento nacional e internacional:

Considerado por Kelly (1988) como “a autoridade máxima em Geopolítica na América do


Sul”, às suas teses Carlos de Meira Mattos, como parte integrante da Escola Brasileira, não
deixa de incorporar o legado dos founding fathers (sua base axiológica), moldando-o,
todavia, conforme os novos condicionalismos temporais, decorrentes da natural alteração
dos equilíbrios de poder regionais e mundiais, a própria evolução dos múltiplos vetores
constituintes da sociedade brasileira.

Dessarte, o presente trabalho acadêmico, fruto do Seminário Geopolítica do Brasil, realizado


em homenagem ao General Meira Mattos, na Escola Superior de Guerra, pretende, inicialmente,
analisar o arcabouço teórico do seu pensamento relativo à projeção internacional do País como
Potência Mundial, para, em seguida, desvelar as bases fundantes da geopolítica brasileira para o
século XXI.
Entretanto, antes de examinar o pensamento acadêmico do grande geopolítico Meira Mattos
é importante conhecer também a trajetória pessoal e profissional do cidadão militar Carlos de Meira
Mattos; e para tanto nada melhor do que a descrição feita pelo seu próprio filho, Dr. João Carlos de
Meira Mattos, a quem agradeço imensamente não apenas pela abertura feita no referido Seminário,
mas, também pelo envio dos dados que passo a reproduzir ipsis litteris em seguida.

*Pós-Doutor em Geopolítica, Cultura e Direito pela UNIFA. Doutor e Mestre em Direito pela UERJ. Professor Emérito
da ECEME. Professor Permanente do Programa de Mestrado Acadêmico em Segurança Internacional e Defesa da Escola
Superior de Guerra (PPGSID) e Professor Colaborador do Programa de Mestrado Profissional da Universidade da Força
Aérea (PPGCA); Diplomado pelo Naval War College dos Estados Unidos da América (Newport, Rhode Island, Class
48). Professor de Direito da EMERJ e da UCAM. E-mail: guilherme.sandoval@terra.com.br.
Cadernos de Estudos Estratégicos 56

No dizer de José Carlos de Meira Mattos: “Carlos nasceu no interior do Estado de São Paulo
na cidade de São Carlos, que foi fundada em terras pertencentes a sua família. Filho de Liberato e
Benedita de Mattos, sobrinho do Conde do Pinhal, Carlos de Meira Mattos ficou órfão aos 13 anos
de idade. Sua mãe decidiu ir viver em São Paulo, e lá chegaram, ela e seus filhos, ao final dos anos
20, e Carlos continuou seus estudos secundários no colégio Marista. Logo São Paulo se agitaria com
a revolução de 30. Inconformados com os rumos que o Brasil tomou sob o regime de Vargas, os
paulistas iniciaram os movimentos que culminaram no movimento de 32. A cidade de São Paulo
estava fervilhante, e nas ruas havia os centros de recrutamento para a revolução armada contra a
ditadura de Vargas. Tomado por este clima, Carlos, então um jovem com 18 anos, alistou-se sem
consultar a sua família. Tal foi o susto e preocupação de sua mãe que ela obrigou a Cristóvão, um
de seus filhos maiores, a alistar-se também e seguir com a tropa para cuidar de seu irmão menor. A
revolução não logrou seus objetivos e militarmente foi um grande fracasso. No entanto, ao ser
desengajado, um sargento que havia comandado o grupamento em que Carlos servira o aconselhou
a seguir carreira militar, pois havia demonstrado muito valor e capacidade de atuação no decorrer
da campanha. À época ele pensava em tornar-se advogado. No entanto, preferiu seguir o chamado
da carreira das armas e resolveu prestar concurso para a academia de cadetes de Realengo.
Aprovado, concluiu sua formação sem surpresas e seu primeiro posto foi em Mato Grosso. De lá foi
transferido para o Rio de Janeiro e aí teve o seu primeiro encontro com o Marechal Mascarenhas de
Moraes, que ele julgava ter sido o militar mais completo que conheceu. Este conhecimento o levou
a participar da montagem da Força Expedicionária Brasileira que participou da Segunda Guerra
Mundial. Foi integrante do primeiro contingente de oficiais a embarcarem que preparou o
desembarque dos pracinhas brasileiros no cenário da guerra. Tomou parte do quartel general do
Marechal Mascarenhas, servindo aí sob comando direto do General Castello Branco, de quem
também se tornou admirador e amigo. Comandou uma companhia de infantaria na tomada de Monte
Castello. Foi condecorado com a Bronze Star pelo exército norte-americano”.
Além de ter participado diretamente da História, o General Meira Mattos trilhou
brilhantemente dupla trajetória, na medida em que se destacou tanto na vida político-militar, quanto
na vida acadêmico-intelectual do País.
De fato, é incontestável a notável participação do General Meira Mattos em grandes eventos
históricos, e.g., o exercício do Comando do Contingente brasileiro e da Brigada Latino-americana
na intervenção da Organização dos Estados Americanos (OEA) na República Dominicana em 1965,
a participação como elemento combatente pelas forças paulistas durante a Revolução
Constitucionalista de 1932 e a atuação como Interventor Federal no Estado de Goiás, entre
novembro de 1964 e janeiro de 1965. 1
Já na esfera acadêmico-intelectual, além do já citado doutoramento em Ciência Política pela
Universidade Mackenzie de São Paulo (1983) e da publicação de uma série de artigos na Folha de
São Paulo, o General Meira Mattos publicou diversas obras, dentre elas: Projeção mundial do Brasil
(1960); Pensamento revolucionário brasileiro (1964), A experiência da Faibrás na República
Dominicana (1966); Doutrina política da revolução de 31 de março de 1964 (1967); A geopolítica
e as projeções do poder (1977); Brasil - geopolítica e destino (1975); Uma geopolítica pan-
amazônica (1980); O Marechal Mascarenhas de Moraes e sua época (1983); Geopolítica e trópicos

1
No Teatro de Operações do Mediterrâneo, o então Capitão Carlos de Meira Mattos atuou como Oficial de Ligação
entre o 4º Corpo de Exército dos EUA, comandando pelo Gen Grittenberger e a FEB, comandada pelo Gen Mascarenhas
de Morais. No célebre Combate de Monte Castelo, Meira Mattos era o Comandante da 2ª Companhia do 1º Batalhão do
11º Regimento de Infantaria. Além disso, na esfera político-militar, foi Subchefe do Gabinete Militar da Pres. da
República; Presidente da Comissão Especial do MEC; Inspetor-Geral das Polícias Militares; comandou a Academia
Militar das Agulhas Negras; foi Vice-Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e Vice-Diretor do Colégio
Interamericano de Defesa, em Washington.
Cadernos de Estudos Estratégicos 57

(1984); Estratégias militares dominantes (1986); Estratégias da guerra nas estrelas (1988); A
Geopolítica e a teoria de fronteiras (1990); e Geopolítica e Modernidade (2002).

É por tudo isso que o presente trabalho acadêmico tem a pretensão de delinear os elementos
fundantes de uma teoria geopolítica brasileira para o século XXI, inspirada na ideia de
desenvolvimento democrático de Meira Mattos.
Enfim, é este o espectro temático do presente artigo.

2. O PENSAMENTO DE MEIRA MATTOS E A EVOLUCÇÃO DA ESCOLA


BRASILEIRA DE GEOPOLÍTICA

Com efeito, as ideias e ensinamentos de Carlos de Meira Mattos sempre focaram as grandes
questões nacionais e conceitos fundamentais para formulação de uma concepção geopolítica
genuinamente brasileira.
Nesse sentido, é intensa e densa a participação de Meira Mattos na formulação do
pensamento geopolítico brasileiro, que, juntamente com outros grandes nomes da geopolítica, tais
como Everardo Backheuser, Mário Travassos, Therezinha de Castro, Golbery do Couto e Silva,
Álvaro Teixeira Soares, Cel Roberto Machado de Oliveira Mafra, Cel Paulo da Motta Banha e Cel
Raimundo Guarino, engrandeceram a posição do Brasil no cenário mundial.
Para Meira Mattos, a Geopolítica é a arte de aplicar a Política nos espaços geográficos.
Geografia é destino. Em essência, um dos pilares de sustentabilidade do pensamento de Meira
Mattos é a concepção democrática da geopolítica.
No dizer do próprio autor (MATTOS, 1975, p.138): “nosso conceito de desenvolvimento é
o democrático e encontra raízes na filosofia cristã. O desenvolvimento não se reduz a um simples
crescimento econômico. Para ser autêntico deve ser integral, quer dizer promover todos os homens
e o homem todo”.
Observe, com atenção, que aqui, Meira Mattos faz uso da expressão desenvolvimento
democrático num sentido mais amplo de geopolítica da democracia (FREITAS, 2004, p. 65)
(grifos nossos).
Geopolítica e desenvolvimento nacional são expressões que trazem ínsita entre elas a
imagem da projeção internacional de um País, bem como a digital do nível de bem-estar de sua
sociedade. Com efeito, a missão da geopolítica é promover o desenvolvimento nacional, que, por
sua vez, pressupõe a garantia de vida digna para todos.
Isto significa dizer, por outras palavras, que a geopolítica e a democracia são vetores que
devem se colocar juntos na busca da garantia de direitos do homem brasílico comum. Ou seja, a
concepção geopolítica do País não pode se afastar dos pilares de sustentabilidade de um verdadeiro
Estado Democrático de Direito.
Como já visto, a materialização do potencial geoestratégico do Brasil deve ser feita sem
agressão ao sentimento constitucional de justiça e em benefício da eficácia dos direitos do homem
brasílico (com as palavras de Meira Mattos em Brasil - Geopolítica e Destino, p.138: promover
todos os homens e o homem todo).
É a própria Constituição de 1988 que se debruça sobre tal questão, definindo novas vertentes
no campo da multidisciplinaridade (geopolítica e direito), ao descortinar os objetivos fundamentais
do Estado brasileiro (art. 3º, incisos I a IV), que acopla epistemologicamente o desenvolvimento
nacional democrático à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, à erradicação da
pobreza e da marginalização, à redução das desigualdades sociais e regionais e à promoção do bem
de todos, aí incluídos os direitos sociais dos hipossuficientes.
Cadernos de Estudos Estratégicos 58

Eis aqui o núcleo fundante da geopolítica democrática do Estado brasileiro: construir - a


partir do desenvolvimento nacional - uma sociedade livre, justa e solidária, sem pobreza e
marginalização e sem desigualdades sociais e regionais. Com tal tipo de intelecção em mente, fica
mais fácil compreender as bases teóricas que informam o pensamento de Meira Mattos e seu papel
transformador na escola brasileira de geopolítica. 2
Assim, o estudioso da evolução do pensamento geopolítico brasileiro deve compreender que
Meira Mattos atualizou os pensamentos de seus antecessores, especialmente Mário Travassos,
Delgado de Carvalho e Golbery do Couto e Silva.
Ou seja, Meira Mattos incorporou pioneiramente a ideia-força de projeção mundial na
equação geopolítica do Brasil, transcendendo a visão de projeção continental, tão bem esgrimida
por Mário Travassos. De fato, são as próprias palavras do General Meira Mattos que evidenciam tal
fato:

Em 1960, lancei um pequeno livro sobre a geopolítica – Projeção Mundial do Brasil. À


guisa de apresentação prestei, então, uma homenagem ao meu inspirador no campo da
geopolítica, o General Mário Travassos. Este livro só tem uma pretensão – a de ser (...) o
continuador da monumental obra Projeção Continental do Brasil. O Capitão de 1931 sonhou
com um Brasil potência continental. Nós lhe pedimos licença para sonhar agora com um
Brasil potência mundial (MATTOS, 1975, p. XIV-XV).

Ademais, como bem pondera Mafra (2006), Carlos de Meira Mattos nos legou o conceito de
fronteira como o “Limite da Soberania Nacional”, verdadeiras “Regiões geopoliticamente
sensíveis”, o que evidentemente complementa o conceito do Professor Delgado de Carvalho e sua
ideia de “Fronteira como obra de força política, que indica o poder de expansão a que chegou o
corpo social que envolve”.
Ainda na esteira do Coronel Roberto Machado de Oliveira Mafra, a relevância dos estudos
do quociente de maritimidade e continentalidade fica evidenciada, verbis:

Já o General Carlos de Meira Mattos, outro importante geopolítico brasileiro, alegando que
na atualidade as relações do Brasil com seus vizinhos sul-americanos, possibilitadas por
mais de 15.729 quilômetros de fronteiras terrestres (mais do que o dobro do litoral); ligando-
o a nove dos onze Estados e à única província (Guiana Francesa) da América do Sul elevam,
em muito, o quociente de continentalidade brasileiro. Para calculá-lo, traçou a linha
imaginária não a 1000 quilômetros do litoral [proposta de Therezinha de Castro], mas a 500
km do litoral (Fig.6), chegando a um quociente de continentalidade de 70% e de
maritimidade de 30% (MAFRA, 2006, p. 79).

Nesse sentido, vale destacar que, se levarmos em consideração a extensão da plataforma


continental, a proposta de Meira Mattos (linha imaginária traçada a 500 km do litoral), quando
comparada com a da Professora Therezinha de Castro (afastamento a 1000 km), é a que mais se
aproxima do limite de 350 milhas reconhecido pelo Direito do Mar, ou seja, a de Meira Mattos
representaria 269,9 milhas e a da Professora Therezinha de Castro 539,9 milhas náuticas.3

2
Com efeito, a expressão “desenvolvimento democrático”, hospedada na obra de Meira Mattos, projeta a imagem de
que a geopolítica e a democracia (Estado Democrático de Direito) são faces de uma mesma moeda, na medida em que
amalgamam realidades que se complementam e que, no campo epistemológico, não podem jamais se separar. Com
efeito, a geopolítica pressupõe a compreensão do jogo de poder de potências globais e seus impactos nos ordenamentos
jurídicos dos demais países subdesenvolvidos.
3
Com rigor, a proposta que mais se aproxima do limite traçado pelo Direito Internacional do Mar é a do Cel Roberto
Machado de Oliveira Mafra (404,9 milhas náuticas), projetando um quociente de continentalidade de 55% e de
maritimidade de 45%, o que evidentemente mais se aproxima agora com a incorporação da Amazônia Azul ao território
brasileiro.
Cadernos de Estudos Estratégicos 59

Comparando as obras de Golbery e Meira Mattos, Jorge Manoel da Costa Freitas (2004, p.
65-66) salienta que:

Na linha de Golbery do Couto e Silva, também subjaz ao pensamento de Meira Mattos a


procura de estabelecer uma geopolítica aplicada tendo inerente a ideia de que “as relações
geográficas compreendidas devem estar contidas na política do governo”. (...) merecem
especial destaque o enfoque geopolítico dado à complexa questão da integração da
Amazônia, o particular interesse devotado pelo autor ao estudo das potencialidades e
desafios geopolíticos do Brasil como “potência mundial a expansão”; e, de forma mais
ampla, a análise sobre a capacidade do “homem brasílico” de construir uma civilização dos
trópicos, ou, em outros termos, as potencialidades para o Brasil competir no cenário
mundial.

Resta indubitável, por conseguinte, o relevo científico da obra acadêmica de Meira Mattos
na evolução da geopolítica brasileira, notadamente quando se leva em consideração que seu legado
é o único que chega até o século XXI com a publicação de “Geopolítica e Modernidade”, em 2002,
daí o enfoque no desenvolvimento democrático.
Assim, é o enfoque na geopolítica da democracia que projeta a ideia-força do geodireito,
como base fundante do projeto brasileiro de potência mundial em ascensão, na medida em que
propicia o encontro epistemológico entre a Grande Estratégia Nacional, os valores do Estado
Democrático de Direito e os impactos do Poder Mundial sobre a ordem interna de países
subdesenvolvidos.
De notar-se que esse encontro científico entre a geopolítica contemporânea e a Constituição
é a base da reconstrução desenvolvimentista do Estado brasileiro, daí nossa inquietação acadêmica
com relação ao imperativo categórico da geopolítica brasileira, qual seja: colocar o País entre as
cinco maiores potências do planeta a partir de um projeto genuinamente brasileiro, voltado para todo
e qualquer homem brasílico (insista-se por essencial “para os todos os homens e o homem todo”).
Inspirada em Meira Mattos, a projeção mundial do Brasil pode atingir patamar mais elevado,
reposicionando nosso País no concerto nas nações civilizadas.
Urge, pois, traçar a trajetória em que o espírito do Brasil Potência esteja inserido, sem
subserviência e sem arrogância, mas, com pensamento autônomo e genuinamente nacional. Nesse
sentido, note-se a visão de Jorge Manoel da Costa Freitas:

O pensamento de Meira Mattos alicerça-se (...) na elaboração de elementos de análise


passíveis de materialização efetiva pela sede de poder (alicerçados nas condicionantes
geográficas do território), projetando-se daqui não só conceitos-operativos como também
perspectivas/cosmovisões profundamente otimistas acerca da capacidade do homem
brasílico em erigir nos trópicos uma civilização cujo esplendor refletirá a grandeza passada,
presente e futura da nação brasileira gerada a partir da fusão integradora de três elementos
étnicos, considerada garantia do sucesso do “hercúleo empreendimento” (FREITAS, 2004,
p. 71).

Que não se olvide as ideias de Meira Mattos no sentido de que a geopolítica é a arte de aplicar
a Política nos espaços geográficos, daí a relevância do enquadramento da América do Sul como
nosso lebensraum (espaço vital).
Neste mister, é dever do estrategista pátrio traçar as linhas dominantes da política
internacional do País. Não obstante isto, verifica-se que o Brasil nas últimas décadas vem mostrando
ser incapaz de engendrar um projeto nacional de desenvolvimento, que contemple nossas reais
possibilidades de transitar de potência regional para potência global.
É por isso que vamos, na próxima segmentação temática, analisar os elementos da
geopolítica brasileira do século XXI, particularmente no que tange às vantagens e desvantagens da
integração sul-americana e da expansão do núcleo estratégico brasileiro.
Cadernos de Estudos Estratégicos 60

3. BASES FUNDANTES DA GEOPOLÍTICA BRASILEIRA DO SÉCULO XXI

A mundialidade pós-moderna vem passando por grandes transformações em consequência


de quatro grandes momentos de ruptura paradigmática da história da humanidade, a saber: a queda
do Muro de Berlim (1989), o atentado contra as Torres Gêmeas (2001), a crise financeira mundial
(2008) e agora, mais recentemente, a crise do coronavírus (2019).
Tais eventos têm desdobramentos geopolíticos complexos que trazem no seu âmago o debate
em torno da retomada ou não da globalização da economia e sua lógica liberal em detrimento da
lógica do welfare state.
É importante, portanto, examinar se a geopolítica pós-moderna, que também é uma
geopolítica pós-pandemia mundial, resgatará o mundo americano, caracterizado pelo controle
hegemônico unilateral do sistema internacional pelos Estados Unidos ou, se, finalmente, despontará
o mundo pós-americano, um sistema multipolar de poder global, compartilhado agora também com
outras potências mundiais, notadamente a China da Iniciativa do Cinturão e da Rota da Seda.
Nesse contexto mundial ainda não definido, a dinâmica da geopolítica e das relações
internacionais também se acelera, na medida em que é compelida a incorporar, na sua equação
epistemológica, novas variáveis até então desconsideradas, como, por exemplo, a manutenção ou
não da Doutrina Trump e seu conceito estratégico do America First, a ascensão geopolítica da China
e sua capacidade de liderar ou não a retomada da globalização liberal, a reação das potências
europeias e sua habilidade de repatriar suas respectivas indústrias nacionais em contraposição à
dependência da China e muitos aspectos da nova estatalidade pós-moderna.
Urge, pois, compreender este contexto de “expansão mackinderiana” da China, da mesma
forma que importa analisar a possibilidade de retorno ou não das grandes alianças internacionais
lideradas pelos EUA, tais como a aliança transatlântica e a aliança transpacífica, dentro de um
quadro de “contenção spymaniana” realizado pelos EUA.
Em consequência, o estudioso da geopolítica e das relações internacionais do tempo presente
tem a tarefa de desvelar a complexidade dessa era pós-moderna, que se alimenta de uma visão
antagônica que coloca, de um lado, a pax americana e, do outro, a ordem mundial multipolar.
Com efeito, a ideia de pax americana (ciclo hegemônico estadunidense) projeta a imagem
de uma ordem unipolar controlada pelos EUA a partir de estruturas de governança global, cuja
criação remonta à Conferência de Bretton Woods, de 1944, com o surgimento do Banco Mundial
(BIRD), do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do sistema dólar com lastro em ouro em
substituição ao padrão ouro da era mundial eurocêntrica.
Tal arquétipo hegemônico norte-americano ganha maior musculatura geopolítica com o
desmoronamento da antiga União Soviética e com o início da globalização neoliberal da economia.
É dentro desse contexto que surgem novos organismos internacionais controlados pelos EUA e seus
aliados (União Europeia e Japão), quais sejam a Organização Mundial do Comércio (OMC) e os
grandiosos arranjos multilaterais de comércio (Parceria Transatlântica e Parceria Transpacífica).
Por outro lado, doutrinadores há que entendem que já se põe em curso o declínio do ciclo de
hegemonia americana, seja pela dinâmica de mudanças antissistêmicas que surgem com a crise
financeira de 2008, seja pela emergência sanitária universal de preceitos kantianos trazidos pela
crise do coronavírus de 2019. 4

4
Tal corrente adversária esposa a tese de implantação de uma nova mundialidade pós-americana, que surge com a crise
financeira neoliberal de 2008 e que se potencializa com a crise do coronavírus de 2019. Assim sendo, o mundo pós-
americano será caracterizado pela implantação de ordem geopolítica multipolar. Ou seja, uma nova engenharia de poder
global, cujas relações entre nações centrais já não envolvem apenas a tríade brzezinskiana (Estados Unidos, União
Europeia e Japão), mas, também a China com pretensões hegemônicas e potências regionais, notadamente Rússia e
Índia, como possíveis terceiros interessados.
Cadernos de Estudos Estratégicos 61

Agora, desafiando o poderio dos EUA, despontam estruturas de contra-hegemonia não mais
controladas por aquele País, tais como o G-20 Financeiro (vinte países mais ricos do mundo), o G-
20 Comercial no âmbito da OMC (grupo de 20 países que se opuseram à Rodada de Doha, de 2001,
paralisando-a até os dias de hoje) e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (Asian
Infrastructure Investiment Bank) controlado pela China e associado diretamente a sua nova
estratégia One Belt, One Road (OBOR).5
É, portanto, com tal tipo de intelecção em mente que urge compreender a formação desses
elementos de multipolaridade, que colocam em confronto o novo G-20 financeiro com o antigo G-
7, a paralisação da Rodada de Doha a partir da ação coordenada do G20 comercial em contraposição
aos EUA, União Europeia e Japão, no âmbito da OMC, e a criação do banco asiático e do banco dos
BRICS em oposição ao FMI e o Banco Mundial.
É nesse diapasão que é importante analisar a reconfiguração da ordem mundial do século
XXI, que coloca de um lado, a imposição de um mundo geopoliticamente unipolar (pax americana)
e, do outro, a perspectiva da formação de um mundo multipolar. 6
E assim é que, pela primeira vez, desde o fim do mundo europeu, em 1945, a estratégia
americana abandona a clássica teoria da tríade, tão bem esgrimida por Brzezinski (2203) por muitos
anos, e passa a negar tanto a aliança transatlântica quanto a aliança transpacífica da NSS de Obama,
estabelecendo em seu lugar o conceito de “America em primeiro lugar”, arquétipo protecionista que
dispara a era da desglobalização da economia.
Com efeito, o mundo pós-coronavírus vivenciará a disputa geopolítica entre a China e os
Estados Unidos pela liderança global.
E mais: no meio disso tudo, a legítima aspiração pelo desenvolvimento nacional dos países de
modernidade tardia do Sul Global, como infelizmente ainda é o caso do Brasil. Neste contexto, o
denominado “núcleo estratégico brasileiro”, aqui vislumbrado como o conjunto de segmentos
tecnológico-industriais genuinamente nacionais e capazes de participar eficazmente da competição
internacional (grandes empresas multinacionais brasileiras), é, sem dúvida, a base fundante do
desenvolvimento do País. Ou seja, um país com mais de 200 milhões de habitantes não pode abrir
mão da necessária expansão do seu núcleo estratégico tecnológico e industrial, sob pena de se
transformar em mera sociedade de serviços, exportadora de produtos primários (GÓES, 2021, p.
XXV).
Dessarte, impende aqui discutir em que medida o Brasil seria capaz de contribuir para a
implantação de uma nova ordem mundial multipolar? Ou seja, o melhor caminho para tanto seria o
fortalecimento do seu núcleo estratégico ou não?
A projeção geopolítica brasileira pode abrir mão da consolidação de empresas genuinamente
nacionais que tenham a capacidade de competir internacionalmente com os demais polos de poder
global?
Em síntese, qual é a importância geopolítica do núcleo estratégico brasileiro, composto pelos
segmentos econômico-tecnológicos autônomos posicionados na cadeia transnacional de produção,
tais como Petrobras, indústria naval, agronegócio, Embraer e muitos outros setores da economia
brasileira.

5
Com efeito, a grandiosa estratégia chinesa do Cinturão e da Rota da Seda tem inspiração no expansionismo centrífugo
da Teoria de Mackinder, na medida em que projeta o poderio da China em direção à conquista das massas eurafricanas
e eurasiáticas da Ilha Mundial. Ou seja, o Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima do Século
XXI, juntas simbolizam a criação de um espaço geopolítico centrado na China, no qual projetos de infraestrutura e
investimentos serão feitos nos países da Europa, Ásia e África, conquistando dessarte a Ilha Mundial mackinderiana.
6
De todas essas análises complexas que surgem a partir de um mosaico cientificamente multinucleado, o que importa
destacar é a visão de que o mundo pós-crise de 2008 nasce como um cenário mundial, no qual os Estados Unidos perdem
a capacidade de controlar a mundialização financeira, seja pela mitigação dos seus indutores internos de hegemonia
global (G-7, OMC, FMI e BIRD), seja pela perda de controle do projeto epistemológico neoliberal (GÓES, 2018, p.
526).
Cadernos de Estudos Estratégicos 62

Nesse sentido, é fácil perceber que não é simples o jogo geopolítico dos países de
modernidade tardia, como é o caso do Brasil: se se alinharem automaticamente às potências
mundiais, provavelmente serão obrigados a aceitar o simples papel de exportadores de commodities.
Por outro lado, se rejeitarem grandes acordos multilaterais de abertura comercial, poderão ficar
isolados dos maiores mercados consumidores do planeta.
Enfim, importa desvelar as vantagens e as desvantagens da expansão do núcleo estratégico
brasileiro, identificando se vale ou não fortalecer a indústria nacional e a internacionalização das
empresas privadas brasileiras, dotando-as de competitividade internacional de modo a mantê-las na
cadeia transnacional de produção capitalista.
Usando a energia como exemplo nesse sentido, pondera Carmona (2020, p. 9), que “nesse
esforço de análise da realidade, é preciso separar interesse de ideologia, retórica de realidade,
propaganda dos fatos, pois está subjacente à questão da transição energética, cuja consequência,
como dissemos, que no limite podem derivar em ações indesejáveis ao uso pleno dos recursos
energéticos nacionais”.
Com tal tipo de intelecção em mente, fica fácil compreender que a mundialidade pós-
moderna estabelece um novo conceito de espaço vital (lebensraum), qual seja: a conquista de
mercados e mentes. 7
Enfim, a falta de uma visão clara dessa ordem de considerações pode dificultar a elaboração
de um projeto geopolítico genuinamente brasileiro, livre de interferências externas, daí a
importância do debate em torno da temática da integração sul-americana.
Observe, com atenção, que a nossa Constituição de 1988, no seu art. 4º, preconiza a formação
de uma comunidade latino-americana de nações. Portanto, tal comando constitucional não deixa de
ser uma orientação geopolítica para a política externa brasileira. Com rigor, um mandamento
constitucional a todos dirigido.
No entanto, há que se reconhecer que a integração latino-americana, muito embora seja a
melhor trajetória geopolítica a trilhar a longo prazo, é de difícil execução no momento, na medida
em que o México já se encontra intensamente vinculado aos EUA e aos demais países da América
do Norte; os Estados do Caribe e da América Central também estão mais próximos estrategicamente
dos EUA do que a qualquer país sul-americano. Assim, tudo indica que integração multilateral deste
jaez seria praticamente impossível no curto ou médio prazo.
Em consequência, a geopolítica brasileira deve reduzir seu espaço vital para o subcontinente
sul-americano. É este induvidosamente nosso verdadeiro lebensraum, ponto de partida de qualquer
projeto brasileiro de inserção internacional. Defende-se aqui a visão de que o estrategista pátrio tem
o desafio de engendrar a integração da chamada tríade geopolítica sul-americana, composta pelos
três grandes conjuntos geopolíticos do nosso subcontinente (Arco Amazônico, Pacto Andino e
Cone Sul).
Eis aqui o primeiro grande objetivo da geopolítica brasileira: consolidar definitivamente o
espaço geopolítico da América do Sul como um polo de poder autóctone dentro do sistema
internacional.
No entanto, há que se reconhecer que doutrinadores há que acreditam que a integração sul-
americana é um modelo superado de projeção geopolítica do Brasil.
Para outros, entretanto, a integração sul-americana continua a representar a pedra angular no
projeto de reafirmação do Brasil como potência global no século XXI.

7
Em consequência, observe, com atenção, que a geopolítica contemporânea se afasta do conceito clássico de lebensraum
atrelado à conquista de territórios, ou seja, atrelado à guerra de expansão territorial. Agora, em tempos de estatalidade
pós-moderna, o que importa é ganhar musculosidade geopolítica para conquistar novos mercados, que se abrem em
escala planetária.
Cadernos de Estudos Estratégicos 63

Cabe, portanto, refletir acerca da melhor concepção geopolítica para o País no contexto
mundial pós-pandemia. Neste mister, é importante analisar os impactos da nova mundialidade sobre
o espaço geopolítico sul-americano, que se encontra fragmentado, com a presença de potências
extrarregionais tais como a China e a Rússia, ao lado da tradicional presença norte-americana na
região.
Todas essas interferências externas projetam uma nova agenda sul-americana, que impacta
diretamente o entorno estratégico do Brasil, tal qual vislumbrado pela Política Nacional de Defesa.
A temática é complexa, na medida em que envolve a questão do maior ou menor
protagonismo brasileiro no processo de integração sul-americana. Não há respostas corretas, daí a
necessidade da confrontação de ideias, que permitirá identificar as vantagens e as desvantagens de
cada uma dessas posturas geopolíticas do País.
Deixa-se para a reflexão do leitor, a cosmovisão de Carlos de Meira Mattos, traçando as
linhas mestras da política exterior do Brasil:

Aqueles rumos deixados pelo barão do Rio Branco, baseados numa visão
predominantemente continental, já se apresentam parcialmente superados. Uma visão
presente e futura terá que ampliar-se até o campo ideológico, estratégico e econômico de
nossa posição no planeta. (...) Quando se fala em pan-americanismo, surgem logo os
nomes de Bolívar e Monroe. Seria repetir injustiça, o que não desejamos, omitirmos entre
os precursores da ideia pan-americanista o nome brasileiro de Alexandre de Gusmão,
notável diplomata e irmão do cientista Bartolomeu Gusmão, o "padre voador". Mais de
meio século antes de Bolívar e Monroe, o diplomata santista, na qualidade de conselheiro
da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros do rei de Portugal, d. João V, concebeu
e redigiu o Tratado de Madri (1750), no qual, pela primeira vez, se proclama que a sorte
da América deveria ser decidida pelos americanos (MATTOS, 2011, p. 60-63) (grifos
nossos).

Já Golbery do Couto e Silva, com a maestria reflexiva que lhe era peculiar, se preocupava
com os limites da integração regional, continental e global do Brasil:

A Geopolítica Brasileira deve caracterizar-se, sobretudo, como: geopolítica de


integração e valorização espaciais; geopolítica de expansionismo para o interior e,
também, de projeção pacifica no exterior; geopolítica de contenção, ao longo das
linhas fronteiriças; geopolítica de participação na defesa da Civilização Ocidental;
geopolítica de colaboração continental; geopolítica de colaboração com o mundo
subdesenvolvido de aquém e além-mar e geopolítica de segurança em face da
dinâmica própria dos grandes centros externos do poder. (SILVA, 2003, p. 546).

Com a devida agudeza de espírito, o leitor haverá de concordar que tal tipo de abordagem
epistemológica acarreta maior densidade acadêmica no debate atual acerca dos desafios que se
apresentam ao projeto geopolítico genuinamente brasileiro, cujo maior desafio é conceber um
arquétipo autóctone, com aptidão de gerar o desenvolvimento nacional, sem violar os princípios
constitucionais do Estado Democrático de Direito, notadamente o núcleo essencial da dignidade da
pessoa humana.
Assim, o leitor haverá de concordar com a ideia de que somente uma elite estrategicamente
sofisticada teria capacidade para articular os elementos do Poder Nacional, transformando poder
potencial em poder real e projetando o País no concerto das nações, notadamente a partir dos seus
quatro grandes arquétipos geopolíticos fundantes, que posicionam o Brasil como uma
superpotência energética, uma superpotência alimentar, uma superpotência aquífera e uma
superpotência ambiental (superpotência verde).
Cadernos de Estudos Estratégicos 64

4. CONCLUSÃO

Dotado de extraordinária visão estratégica, Meira Mattos foi induvidosamente um dos


grandes baluartes da geopolítica brasileira, na medida em que edificou as bases teóricas da projeção
mundial do Brasil, sem descurar da integração regional.
Com efeito, o legado acadêmico de Meira Mattos ajuda a desvelar os desafios geopolíticos
do Brasil contemporâneo enquanto líder regional, capaz de articular um modelo de integração
multilateral que desloque a América do Sul para a centralidade do sistema mundial de poder.
Provavelmente, se vivo fosse estaria Meira Mattos muito preocupado com o atual estágio de
desenvolvimento da geopolítica brasileira, ou melhor dizendo, com a inexistência de uma
geopolítica para o País.
Infelizmente, impera no seio da elite intelectual pátria, a falta de visão estratégica, que
denega a ideia de Brasil Potência, daí a falta de uma Grande Estratégia nacional de desenvolvimento,
com latitude para fomentar a expansão do núcleo estratégico brasileiro a partir da
internacionalização das empresas brasileiras, associada às políticas públicas de industrialização e
avanço tecnológico do País.
Com espeque na posição de mero mercado consumidor e simples sociedade de serviços,
dependência e subdesenvolvimento continuam sendo faces da mesma moeda para os países
subdesenvolvidos de modernidade tardia do Sul Global, como, infelizmente, ainda é o caso do
Brasil.
Com isso, consolida-se a subordinação geopolítica em relação ao eixo tecnológico-
financeiro-comercial dos países desenvolvidos. Afasta-se da tríade de desenvolvimento “Estado-
capital nacional-capital internacional”, substituindo-a pelo modelo de desenvolvimento pautado
apenas no capital internacional.8
Assim, tentou-se demonstrar que a falta de uma Estratégia Nacional genuinamente brasileira
impede por via reflexa que a Constituição cumpra seu papel de assegurar direitos mínimos de vida
digna para o homem brasílico.
É por isso que toda a sociedade, aí incluídos operadores do direito, juízes e tribunais, deve
interpretar a Constituição com a devida visão estratégica, aferindo se as emendas constitucionais e
os marcos regulatórios do núcleo estratégico da economia nacional (energia, transportes, indústria
naval e aeronáutica, agronegócio, mineração, telecomunicações etc.) estão de acordo com os
objetivos fundamentais da Constituição, notadamente o princípio constitucional do desenvolvimento
nacional.
Urge, portanto, engendrar um novo paradigma constitucional de estatalidade positiva
atenuada, que harmonize de um lado o binômio livre iniciativa - abertura mundial do comércio
e, do outro, o trinômio dignidade da pessoa humana - desenvolvimento nacional - justiça social.
Em sentido geopolítico, sugere-se articular as pan-regiões da tríade geopolítica sul-
americana: Arco Amazônico (pan-amazônia), Comunidade Andina de Nações (pacto andino) e o
Cone Sul (Mercosul). Com isso, a integração das frentes amazônica, andina e platina fica associada
à expansão do núcleo estratégico sul-americano, que potencializa cada vez mais o núcleo estratégico
brasileiro.
Essa talvez seja a única forma de realizar o imperativo categórico da geopolítica brasileira,
qual seja conduzir o País a estar entre as cinco maiores potências do planeta.

8
Observe, com agudeza de espírito, que o País faz a opção pelo encerramento dos arquétipos desenvolvimentista, seja
o modelo dual de Getúlio Vargas (Estado-Capital Nacional), seja o modelo tridimensional de Juscelino Kubistchek e do
regime militar (Estado-Capital Nacional-Capital Internacional). Em suma, grande parte da elite intelectual brasileira
tem a firme convicção de que nosso melhor modelo de desenvolvimento é aquele que se alinha automaticamente aos
centros mundiais de poder, sem grandes desafios em termos de geopolítica e relações internacionais.
Cadernos de Estudos Estratégicos 65

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Cadernos de Estudos Estratégicos 66

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Edição de julho / 2021

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