Você está na página 1de 7

Métodos Consensuais de Gestão de Conflitos e a Concretização

dos Direitos Socioambientais


Painel / Meus cursos / MÉTODOS CONSENSUAIS (EAD) / Módulo Teórico 6
/ JUSTIÇA RESTAURATIVA E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

Ativar edição

Geral Módulo Teórico 1 Módulo Teórico 2 Módulo Teórico 3 Módulo Teórico 4 Módulo Teórico 5 Módulo Teórico 6

Módulo Prático 1 Módulo Prático 2 Módulo Prático 3 Módulo Prático 4

JUSTIÇA RESTAURATIVA E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS NA AMAZÔNIA


BRASILEIRA
 

4. JUSTIÇA RESTAURATIVA E CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: LIÇÕES A PARTIR DA


AMAZÔNIA BRASILEIRA
Neste tópico discutimos caminhos para a abordagem de conflitos socioambientais baseados em conceitos, valores, princípios e metodologias de justiça
restaurativa. Tais caminhos foram construídos a partir de experiências desenvolvidas na Amazônia brasileira, particularmente no estado do Pará, com
especial destaque para o Baixo Amazonas, o Baixo Tapajós e a região metropolitana de Belém. Nosso ponto de partida é uma perspectiva que
compreende os conflitos socioambientais na região amazônica enquanto fenômenos com caracteres sociais, políticos, econômicos, espirituais e
ecológicos intimamente relacionados ao colonialismo e à expansão da fronteira do capital (PAMPLONA MEDEIROS, SILVA NETO & GUIMARÃES, 2022 e
2020; SALM, SILVA NETO & PAMPLONA MEDEIROS, 2021; SILVA NETO, 2021; SILVA NETO & PAMPLONA MEDEIROS, 2021a).

Como vimos anteriormente neste Módulo, por definição, justiça restaurativa é uma forma de imaginar, praticar e viver a justiça relacionada a experiências
de diálogo entre sujeitos (individuais e coletivos) que sofreram danos e aqueles que os causaram, podendo contar com a participação de outros atores,
tais como membros das comunidades afetadas, agências estatais, organizações não governamentais, associações comunitárias e movimentos sociais.

 A justiça restaurativa busca tratar os conflitos por meio do envolvimento de todos os sujeitos afetados, utilizando processos inclusivos, colaborativos e
participativos capazes de estimular o compartilhamento de responsabilidades por danos causados e promover reparação, atenção a traumas e sequelas,
fortalecimento de indivíduos e grupos locais, restauração de relacionamentos e de um ambiente saudável de convivência.

Todas as abordagens tratadas nos tópicos anteriores, em alguma medida, perfazem os caracteres desta compreensão da justiça, embora somente
algumas expressamente manifestem preocupação com as relações da humanidade com a natureza e, portanto, vocacionem-se desde a origem a
aplicações que versam sobre questões socioambientais.

Ademais de uma visão imediata preocupada com a gestão de episódios conflitivos, uma concepção restaurativa de justiça almeja a transformação
construtiva de padrões socioculturais que reproduzem opressões, desmantelando narrativas que alimentam comportamentos lesivos, legitimam
violências e promovem exclusão. Além disso, trabalha no sentido de fortalecer os sujeitos afetados por conflitos, buscando potencializar sua capacidade
de resiliência, reparar os danos, tratar traumas e cuidar das sequelas relacionadas a atos danosos e violações continuadas. Em muitas abordagens, esses
processos são usados para enfrentar conflitos intersubjetivos, que afetam em certa medida comunidades, correntemente definidos como crimes,
contravenções ou atos infracionais, mas que numa visão restaurativa são vistos como violações a pessoas e relacionamentos (ZEHR, 2018).

No entanto, processos de justiça restaurativa cada vez mais são estendidos para o enfrentamento de situações complexas como racismo, conflitos
étnicos, atualizações do colonialismo, justiça de transição, questões sociais, discriminação de gênero e, um pouco mais recentemente, injustiças
socioambientais. No que tange aos conflitos socioambientais, a Amazônia brasileira, especialmente o estado do Pará, tem sido um lugar onde
experimentos de justiça restaurativa vêm sendo realizados, trazendo um conjunto de aprendizados que procuraremos, de forma sintética, apresentar
adiante.  Esses aprendizados podem ser lidos também em Silva Neto e Pamplona Medeiros (2017, 2020, 2021a e 2021b), Silva Neto e Santos (2018),
Vieira da Silva, (2019 e 2022), Pamplona Medeiros, Silva Neto e Guimarães (2020 e 2022), Dias, Nakamura e Silva Neto (2020), Silva Neto (2021 e 2022),
Viera da Silva e Silva Neto (2021), Salm, Silva Neto e Pamplona Medeiros (2021), Sacramento e Silva Neto (2021), Sacramento (2021), Lopes (2021) e
Pamplona Medeiros (2021 e 2022).

É relativamente recente o uso de abordagens restaurativas para o enfrentamento de problemáticas ambientais. Aqueles que têm se imiscuído neste
campo destacam que a justiça restaurativa ambiental ou justiça ambiental restaurativa – terminologias que vêm sendo utilizadas para configurar essa
subárea do movimento restaurativo – busca ampliar os horizontes da justiça restaurativa para além dos limites de uma visão de mundo antropocêntrica,
transcendendo a interpretação de que somente os seres humanos possuem valor em si, sendo os únicos sujeitos de dignidade, direitos, necessidades,
oportunidade de fala e ação na esfera pública. Sendo assim, indivíduos e grupos humanos não seriam as únicas vítimas de danos que precisam ser
curados, reparados e prevenidos, nem teriam a exclusividade na participação em processos restaurativos. O ambiente precisaria ser incluído (WIJDEKOP,
2022; HAMILTON, 2021; FORSYTH et al., 2021; SERRELS, 2021; PALI & AERTSEN, 2021; BIFFI & PALI, 2019).
Segundo estes autores, é urgente e necessária a dilatação do movimento da justiça restaurativa em direção às questões ambientais, especialmente diante
dos efeitos perigosos das mudanças climáticas. Em um sentido convergente, embora não exatamente idêntico a essas abordagens, este Módulo
considera que devemos estimular experiências de gestão de conflitos que busquem o bem viver com os entes não humanos e os espaços naturais, as
quais precisam ser particularmente sensíveis aos pontos de vista, necessidades e direitos dos povos e comunidades tradicionais, que são os sujeitos mais
vulneráveis aos impactos ambientais e, ao mesmo tempo, os que historicamente melhor representam a perspectiva da natureza. Temos chamado esta
abordagem de justiça restaurativa socioambiental.

A justiça restaurativa possui uma relação profunda e inexorável com povos nativos de diferentes partes do mundo, podendo inclusive ser definida como
uma justiça de base comunitária que resultou de fricções interétnicas, interculturais, inter-raciais e interclasses. É uma das formas de resistência ao
colonialismo que se atualiza na contemporaneidade. Todavia, ainda são reduzidas e recentes as experiências junto a povos e comunidades tradicionais da
Amazônia brasileira, e em menor número ainda os estudos sobre as contribuições destes grupos locais ao movimento global da justiça restaurativa. Mas
não podemos dizer que essas experiências e contribuições sejam inexistentes. Um conjunto de pesquisadores e praticantes da justiça restaurativa tem
adentrado esse denso caminho ainda pouco conhecido, mesmo que de forma exploratória e, podemos até dizer, experimental, traçando rotas como as
que ora apresentamos.

As rotas da justiça restaurativa socioambiental se relacionam, mas não se confundem, com a proposta existente na Agenda 2030 das Nações
Unidas, que estabelece os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Referida Agenda parte do pressuposto que não pode haver paz sem
desenvolvimento sustentável, nem desenvolvimento sustentável sem paz, e estabelece o objetivo de se “promover sociedades pacíficas e inclusivas
para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos
os níveis” (ONU, 2015).

Apesar da preocupação com a sustentabilidade, essa Agenda focaliza o desenvolvimento, o que traz consigo, inafastavelmente, a noção de crescimento
econômico contínuo, mais ou menos acelerado, chocando-se com percepções da relação entre humanidade e natureza não desenvolvimentistas
presentes entre muitos povos e comunidades tradicionais (SILVA NETO & PAMPLONA MEDEIROS, 2021a). Os discursos e as práticas do desenvolvimento
sustentável deixam algumas interrogações para os grupos locais afetados por atividades econômicas que são instaladas a pretexto do desenvolvimento,
mesmo que marcadas por pretensões legítimas, bem-intencionadas e técnico-cientificamente fundamentadas de sustentabilidade, como são muitas
daquelas preocupadas com a eco-eficiência e o manejo sustentável de recursos naturais. Algumas vezes, contudo, estas chocam-se com os interesses,
direitos e visões dos povos e comunidades tradicionais.  

Desenvolvimento pode ser definido como “o crescimento e a expansão do capital humano e material, capacidades e recursos ao longo do tempo”
(STAUFFER, 2017, p. 189, tradução nossa). Em todos os lugares e em quaisquer de suas manifestações, impreterivelmente apresenta consequências
socioambientais, maiores ou menores, embora sempre com algum grau de degradação. Com certa frequência, afeta destrutivamente não apenas
entidades não humanas e ambientes naturais, mas também pessoas e grupos que se encontram em posições vulneráveis em face das ações que
produzem crescimento e expansão de capital, não raramente mediante formas diferentes de violência, ameaças e violações da dignidade, bem como de
alterações em territórios e lugares considerados sagrados. Talvez tenha sido por isso que a Agenda 2030 das Nações Unidas incluiu entre os pilares do
desenvolvimento sustentável a promoção da justiça e da paz, assim como a libertação das violências que costumam estar associadas ao
desenvolvimento.

A Agenda 2030 da ONU apresenta 04 eixos do desenvolvimento sustentável. O primeiro está voltado à erradicação da pobreza e da fome, em
todas as suas formas e manifestações, de sorte que os seres humanos possam realizar seus potenciais, viver com dignidade e igualdade, em
ambientes saudáveis. O segundo revela preocupações com a degradação ambiental, tocando em aspectos como consumo e produção
sustentáveis, gestão dos recursos naturais e medidas tocantes às mudanças climáticas. O terceiro é referente a questões econômicas, de modo a
garantir a todos uma vida próspera e plena de realizações, porém mediante o consórcio entre progresso material e harmonia da humanidade com
a natureza. E o quarto toca à promoção de sociedades pacíficas, justas, inclusivas e livres do medo e da violência, através do fortalecimento de
instituições capazes de concretizar direitos e realizar o acesso à justiça (ONU, 2015).

A ideia de sustentabilidade implica a consideração das necessidades das presentes e futuras gerações, bem como o equilíbrio entre crescimento
econômico, justiça social, conservação ambiental e libertação de violências. Neste sentido, requer sensibilidade às injustiças e conflitos provocados pelo
crescimento econômico e expansão de capital, transcendendo a simples preocupação com as medidas de mitigação e indenização por danos gerados.
Todavia, o mais importante seria imaginar, praticar e vivenciar uma justiça capaz de evitar, tanto quanto possível, os efeitos nocivos do desenvolvimento,
promovendo o bem viver da humanidade com a natureza. Esse é o entendimento de sustentabilidade compartilhado pelos povos e comunidades
tradicionais. Como argumenta Leonardo Boff (2018, p. 46), ele pressupõe uma lógica pautada na “tendência dos ecossistemas para o equilíbrio dinâmico,
a cooperação e a coevolução”, mantendo a consciência da interdependência de todos e da necessidade de se garantir a inclusão de cada um.

Para contemplar a perspectiva dos povos e comunidades tradicionais, a justiça restaurativa deve ser capaz de lidar não somente com as violências
diretas, mas também com violências estruturais, culturais, institucionais e históricas, bem como tratar de responsabilidades intergeracionais, integrando
as gerações atuais às do passado a fim de construir o futuro desejado para as gerações vindouras. Para tanto, a justiça restaurativa precisa encarar
frontalmente as características das sociedades modernas que têm levado a mudanças drásticas no mundo natural – como podemos observar no caso das
discussões sobre as mudanças climáticas e o Antropoceno (LATOUR, 2020; VEIGA, 2019) – com consequências perigosas para a existência humana e de
outras formas de vida sobre o planeta. Essas transformações demonstram a importância de se ressignificar modos de vida, produção, comércio,
consumo, socialização e exercício da cidadania no sentido da superação da dicotomia humanidade/natureza, ressituando os seres humanos nas relações
ecológicas com outros seres vivos e os lugares habitados, assim como conferindo particular atenção às cosmovisões, formas de viver e direitos dos povos
e comunidades tradicionais.  

Como ensina Zehr (2018), justiça restaurativa é uma bússola que aponta uma direção, não um conjunto de mapas metodológicos ou técnicas de
resolução de conflitos. Não está focada na lei, mas em pessoas e relacionamentos. Em uma abordagem socioambiental, ela também está preocupada
com os indivíduos e coletivos, humanos e não humanos, assim como com ambientes afetados por conflitos e atos danosos. Isso significa a necessidade
de inclusão de grupos locais e de entes que transcendem os contornos da humanidade, como animais, plantas, florestas, terras, rios, lagos, cachoeiras e
ecossistemas, para não falar do próprio sistema-Terra, que geralmente são tratados como ambiente pela visão antropocêntrica da natureza, muito cara às
culturas modernas ocidentais, que comumente representam estes entes como recursos, objetos, coisas, meios, instrumentos para atender a desejos,
necessidades, interesses e vontades humanas, não sendo vistos como fins em si mesmos.

Ambiente  corresponde a um conceito inerentemente marcado por uma concepção antropocêntrica da natureza, significando, ao fim e ao cabo,
tudo aquilo que se encontra em torno da humanidade, isto é, ao seu redor, à sua volta, e que, portanto, existe em função dela. Nas línguas
portuguesa e espanhola, aliás, o termo  entorno  é sinônimo de  ambiente. Quando usamos a expressão neste Módulo, fazemos isso com a
consciência crítica das pressuposições que ela traz, ainda que não as compartilhemos integralmente.

As culturas ocidentais modernas regularmente não valorizam a interconexão da humanidade com outras entidades naturais e os espaços que habitamos,
desperdiçando oportunidades para desenvolver padrões sustentáveis de coexistência. Diante disso, uma compreensão restaurativa de justiça pode
desempenhar um papel na transformação de padrões que contribuem para a ocorrência de conflitos socioambientais e de atos danosos que afetam o
ambiente e a humanidade. Mas, para isso, o campo restaurativo precisa se aproximar das visões de mundo que encaram a relação dos seres humanos
com o mundo natural a partir de outras perspectivas. Muitas delas percebem a justiça socioambiental não apenas como conservação dos recursos
naturais, mas também como respeito aos lugares habitados e a todos os entes que neles se encontram, garantia de territórios, salvaguarda de culturas,
manutenção de linguagens, continuidade de práticas rituais, proteção de conhecimentos ecológicos tradicionais, preservação de ciclos ecossistêmicos,
reprodução física, social e econômica de povos indígenas e comunidades locais.

Os conflitos socioambientais, no mais das vezes, estão relacionados a uma longa história de violações envolvendo pessoas e grupos com perspectivas
distintas sobre a relação entre a humanidade, os espaços naturais e os seres que os habitam. Além dos problemas exclusivamente ambientais, eles
tipicamente tocam em questões sensíveis como identidades, relações étnicas, racismo, territorialidades específicas, acesso, controle e uso da terra e das
águas, relações de gênero, diversidade cultural, cosmologias, espiritualidade, e assim por diante. Por estes motes já levaram vários atores a confrontos
violentos e mortes em diferentes lugares. A região amazônica não é uma exceção, senão um dos mais evidentes exemplos dos caracteres distintivos
desta modalidade de conflitualidade.

Compreender os conflitos socioambientais na Amazônia brasileira requer contatarmos com histórias que nos fazem olhar para o período colonial e
vermos os povos indígenas que foram violentamente expropriados de suas identidades, culturas, terras tradicionalmente ocupadas e modos de vida.
Muitos desses povos vivem atualmente processos de resgate de seus territórios, identidades, línguas, práticas rituais, narrativas míticas, meios de
produção, saberes medicinais, formas de organização social e política, mecanismos de resolução de conflitos, entre outros traços culturais, como
podemos observar no caso dos grupos que vivenciam dinâmicas de etnogênese. A expropriação por eles sofrida não é apenas um evento passado, mas
uma estrutura que se repete e continua na atualidade.

Os conflitos socioambientais também nos levam a revisitar as comunidades negras que possuem ligações históricas com a escravidão, as quais
igualmente experimentam processos de emergência étnica e vivenciam contemporaneamente atualizações da resistência à opressão historicamente
sofrida, traduzidas regularmente na forma de afirmação de territórios em que mantêm relações específicas com os espaços naturais e os entes que neles
se encontram. Esse é o caso das comunidades remanescentes de quilombos, que são símbolos dos movimentos contra o racismo, mas que, em não
menor grau, representam a luta pela conservação ambiental e pelo bem viver com a natureza.

Esses conflitos igualmente nos fazem visualizar coletivos humanos que acompanharam os fluxos migratórios e de colonização da região amazônica,
porém, diferentemente dos colonos que procuraram (e ainda procuram) estabelecer relações mercantilizadas com a terra e os recursos naturais,
adaptaram seus modos de vida, produção e relação com a natureza aos ambientes habitados, desenvolvendo um ethos de bem viver com os entes não
humanos e os espaços em que se encontram. Referimo-nos a comunidades tradicionais e povos da floresta como os seringueiros, castanheiros,
balateiros, quebradeiras de coco babaçu, pescadores artesanais, agricultores familiares, entre tantos outros.  

Os conflitos socioambientais nos convidam ainda a visualizar ciclos político-econômicos, tanto antigos quanto recentes, que reproduziram e renovaram o
modelo extrativista colonial, fazendo-o continuar até os dias atuais, os quais têm atraído empreendimentos e trabalhadores para ecossistemas pouco
explorados e abundantes em recursos (florestais, aquáticos, minerais, epistêmicos etc.), aumentando assim a pressão sobre ambientes naturais
relativamente preservados de transformações antrópicas destrutivas, o que não raramente favorece iniquidades sociais, como a exploração da força de
trabalho, a violência no campo e a expropriação de famílias camponesas, ribeirinhas, indígenas e quilombolas das terras que tradicionalmente ocupam.   

Não é de hoje que políticas governamentais estimulam o desenvolvimento a partir da promoção de projetos econômicos que percebem os espaços
naturais como fronteiras para a expansão de capital, incentivando a instalação de empreendimentos que causam danos ambientais, gerando inúmeros
conflitos e violações a pessoas, grupos locais e ambientes, incluindo entre os sujeitos afetados indivíduos e coletivos humanos e não humanos. Os
ambientes naturais sempre povoaram o imaginário coletivo como el dorado, seja para a realização de negócios e a maximização de lucros, seja como
reserva de biodiversidade, ou ainda, mais recentemente, repositório de carbono que poderia salvar tanto o sistema capitalista quanto o processo
civilizatório de sua relação abusiva e predatória com a natureza, que começou desde os primeiros eventos de colonização e segue a se expandir.
Os espaços naturais são vistos como lugares que podem garantir uma sobrevida ao ideal de crescimento econômico ilimitado, que olha a natureza como
oportunidade de negócios, fonte de recursos a serem explorados. No entanto, vivemos em um tempo em que a humanidade observa mais do que
outrora os riscos da superexploração do ambiente e a necessidade de harmonizar crescimento econômico com conservação ambiental, justiça social e
redução dos índices de violência relacionados à modernização e aos modos de vida que caracterizam as sociedades modernas. Os reclames por
desenvolvimento sustentável são exemplos claros do reconhecimento dessa necessidade, mas não são os únicos. São acompanhados por outras
perspectivas não desenvolvimentistas, como as que se relacionam a noções como bem viver, decrescimento, decolonialidade, pós-extrativismo, entre
outras.

Todas as situações tratadas em experiências de justiça restaurativa socioambiental, direta ou indiretamente, têm alguma relação com atividades
econômicas que se expandem para territórios tradicionais, como monoculturas agrícolas (principalmente soja, milho e eucalipto), extração de madeira
(legal e ilegal), pecuária extensiva, mineração, pesca comercial, exploração predatória de recursos florestais e aquáticos, especulação imobiliária, turismo,
instalação de aterros sanitários etc. Por isso, não é um exagero dizer que os povos e comunidades locais envolvidos em conflitos socioambientais
encontram-se no “olho do furacão”, quer dizer, enfrentam cotidianamente pressões políticas e econômicas que visam transformar em negócios as áreas
ambientalmente conservadas devido à sua presença, modo de vida e estilo de produção.

Alguns casos de justiça restaurativa socioambiental podem ser consultados nos links abaixo:

Passagem do gado da várzea para a terra firme e vice-versa na comunidade quilombola de Murumurutuba

https://www.academia.edu/46271224/E_A_BOIADA_PASSOU_RESTAURATIVAMENTE_REFLEXÕES_SOBRE_UM_CASO_DE_JUSTIÇA_RESTAURATIVA_NO_QU

Emergência étnica quilombola e recategorização territorial na comunidade de Patos do Ituqui

https://www.academia.edu/41712813/JUSTIÇA_RESTAURATIVA_E_M_CENÁRIOS_DE_CONFLITO_ÉTNICO_RACIAL_NA_AMAZÔNIA_PERSPECTIVAS_DE_INT

Castanheiros, agricultores familiares e um grande projeto de manejo florestal na comunidade de Repartimento dos Pilões

https://www.tandfonline.com/eprint/3RTGDKVAHFI2G5GTUCVQ/full?target=10.1080/10282580.2021.1910813

Em todos esses casos, as questões ambientais não são separadas de preocupações sociais, demandas por paz, reivindicações por melhores condições
materiais de existência, regularização fundiária, emergência étnica, valorização cultural e espiritualidade. Por essa razão, acompanhamos aqueles que
pensam que devemos tratar as questões ambientais incluindo as pessoas, comunidades e grupos que dependem de ecossistemas conservados para sua
subsistência e sofrem mais diretamente as injustiças ambientais, os quais são os melhores porta-vozes da natureza. Para além da ideia de uma natureza
abstrata e indeterminada, vítima anônima das ações humanas, são esses sujeitos concretos que devem ser entendidos como os principais atores que
precisam ser envolvidos em processos de justiça restaurativa socioambiental.

“Na Justiça Socioambiental busca-se uma nota de afirmação de sujeitos. Dessa forma, pretende-se por foco a atores específicos, e isto é
importante considerando a tão reiterada invisibilização dos mesmos. De tal modo, que é possível afirmar que a Justiça Socioambiental faz parte do
grande conjunto de conflitos tratados pelo Movimento da Justiça Ambiental, porém, com um destaque textual (highlight) advindo de um
posicionamento político que visa sublinhar povos e comunidades tradicionais como atores de uma categoria de conflitos específicos, na qual as
relações entre território – em suas dimensões ambientais, culturais e sociais – são, muitas vezes, o elemento catalizador.” – Eliane Moreira (2017, p.
16).

Um dos principais mecanismos para evitar que os espaços naturais sejam perigosamente convertidos em mercadorias para a satisfação de interesses
econômicos vem sendo a criação, implementação e manutenção de unidades de conservação ambiental, bem como o reconhecimento, demarcação e
titulação das terras tradicionalmente ocupadas por povos e comunidades locais cujos modos de vida, produção e interação com a natureza contribuem
para a reprodução dos ciclos ecossistêmicos. Essas estratégias retiram do mercado espaços naturais que são objeto de desejo de atores econômicos,
muitos dos quais não comprometidos ou mesmo preocupados com um modelo de desenvolvimento que se pode dizer legitimamente sustentável. Essa
estratégia, no entanto, não é capaz de evitar a geração de conflitos e não raro aciona históricos confrontos entre povos e comunidades locais e aqueles
que lideram as estratégias empresariais que muitas vezes têm apoio de instâncias governamentais.

 
Perspectivas recentes acerca da construção de paz em cenários de conflito socioambiental têm reconhecido que não somente o desenvolvimento,
mas também as próprias ações conservacionistas podem contribuir (e frequentemente contribuem) para a promoção de conflitos ou seu
acirramento. De forma reversa, a escalada de um conflito pré-existente também apresenta correntemente efeitos negativos aos processos de
conservação ambiental, por vezes chegando a inviabilizá-los. A alternativa sugerida é utilizar-se os projetos de conservação, assim como de
reconhecimento, demarcação e titulação de territórios de povos e comunidades tradicionais, como oportunidades para abordar os conflitos e
transformá-los construtivamente (ARJOUD et al., 2017).  

A justiça restaurativa encontra aqui, como se pode ver, um terreno fértil de desafios para a experimentação de seus conceitos, princípios, valores e
metodologias, dada a complexidade dos conflitos com os quais é chamada a lidar. Conflitos socioambientais frequentemente apresentam diversas
violências e relações de poder assimétricas, da mesma forma que os conflitos criminais com os quais os praticantes e teóricos da justiça restaurativa têm
ampla expertise. No entanto, diferem destes pelo fato de que, na maioria dos casos, estão envolvidos indivíduos e coletividades, humanos e não
humanos, além de espaços naturais. Também abrangem múltiplas dimensões, incluindo questões econômicas, políticas, espirituais e sociais, ademais das
exclusivamente ambientais.

Integrar esses diferentes atores e níveis de conflito geralmente é um empreendimento que apresenta muitos obstáculos. É por isso que sustentamos a
necessidade de uma abordagem capaz de lidar com a complexidade dos conflitos socioambientais e de confrontar suas raízes no colonialismo e na
expansão da fronteira do capital. No curso de alguns anos de experiências de trabalho com justiça restaurativa no estado do Pará – particularmente junto
a povos indígenas, comunidades quilombolas, castanheiros, catadores de açaí, agricultores familiares e pescadores artesanais –, temos observado
diversos desafios no enfrentamento dos conflitos socioambientais a partir de referenciais restaurativos, que podem ser traduzidos no formato de
indagações, quais as que vemos no quadro abaixo:

(1) Como promover adequadamente a responsabilização dos causadores danos socioambientais, sendo eles, muitas vezes, grandes produtores,
empresas e grupos corporativos, apoiados por atores do campo político?

(2) Como criar uma experiência segura para aqueles que sofreram ou sofrem continuadamente os danos a fim de se sentirem confortáveis em
encontrar antagonistas históricos, com quem já passaram por diversas situações de violência?

(3) Como promover diálogos entre sujeitos (individuais e coletivos) com perspectivas tão distintas acerca da relação entre humanidade e natureza,
que vão da objetificação à consideração da natureza como sujeito de direito?

(4) Como trazer para o processo restaurativo, mesmo que simbolicamente, a perspectiva dos indivíduos e coletivos não humanos afetados pelo
conflito socioambiental, assim como as gerações passadas e futuras?

(5) Como engajar membros de agências estatais e da sociedade civil organizada no processo de produção de soluções e encaminhamentos que
promovam a reparação, a cura e a prevenção de novos incidentes danosos?

(6) Como envolver os diferentes níveis de interesse relacionados às problemáticas socioambientais, que abrangem dimensões políticas,
econômicas, sociais e espirituais, além de questões propriamente ambientais?

(7) Como podem ser promovidas transformações de curto, médio e longo prazos a fim de se gerar soluções sustentáveis a violências estruturais,
institucionais, culturais e históricas, que pesam desproporcionalmente sobre os povos indígenas e comunidades locais?

A partir das experiências conhecidas no estado do Pará, de que participamos diretamente na qualidade de facilitadores, coordenadores de um programa
de justiça restaurativa e/ou pesquisadores, temos levantado a hipótese de que as práticas restaurativas socioambientais precisam basear-se em
abordagens que integrem os processos de realização da justiça com a busca pelo bem viver, nos termos tratados anteriormente. Para tanto, contudo,
devem desenvolver um enfoque que as diferencie de outras aplicações no campo restaurativo, sem evidentemente recusar o aprendizado de outras
frentes de trabalho com justiça restaurativa que revelam a consolidação de conhecimentos teóricos e práticos acumulados por mais de 40 anos. Esse
enfoque sugere a necessidade de:

 
(1)   Compreender a conflitualidade para além de uma preocupação estrita com a culpabilização por desvios a regras legais, sem abrir mão da
necessária responsabilização por atos danosos, configurados ou não como crimes, contravenções ou infrações, numa perspectiva de
corresponsabilidade.

(2)  Adaptar as práticas restaurativas a fim de que possam abranger interesses coletivos e, por vezes, intergeracionais que, portanto, extrapolam os
conflitos interpessoais nos quais os facilitadores de justiça restaurativa estão acostumados a atuar, abraçando um número extenso de participantes
e uma complexa teia de emaranhados conflitivos.

(3)  Desenvolver sensibilidade para a identificação de diferentes formas de compreender a relação entre humanidade e natureza e como elas estão
relacionadas a determinadas experiências socioculturais que muitas vezes se apresentam como, aparentemente, irreconciliáveis, mas que podem
dialogar, desde que em espaços adequados e condições seguras.

(4)  Perceber que os conflitos estão ligados a situações opressivas que dizem respeito a injustiças históricas, estruturas sociais e padrões culturais
que reproduzem violências diretas, algumas das quais praticadas pelo Estado e grupos empresariais, que precisam ser consideradas numa
perspectiva de transformação social e mediante estratégias de curto, médio e longo prazos.

(5)   Atentar para as particularidades culturais dos grupos locais com os quais se está lidando, isto é, seus critérios de representatividade,
organização social e política, sistema produtivo, territorialidade específica, forma particular de entender seus direitos, conflitos e estratégias
voltadas a manejá-los.

(6)  Envolver diferentes atores e níveis de interesse associados à problemática, incluindo dimensões sociais, políticas, econômicas e por vezes até
espirituais, além das exclusivamente ambientais, buscando reduzir as disparidades de poder que caracterizam as relações entre os atores do
conflito.

(7)   Considerar formas de simbolicamente trazer para o tratamento do conflito as perspectivas dos indivíduos e coletivos não humanos, das
gerações passadas e futuras, bem como de sujeitos indiretamente afetados, inclusive aqueles não podem ser identificados ou determinados, mas
que não deixam por isso de ter direito de ser representados nos processos restaurativos.

(8)   Utilizar a linguagem da justiça restaurativa para fortalecer laços comunitários e aumentar as capacidades de diálogo e engajamento não
violento em conflitos, com o objetivo de prevenir e transformar divisões internas construtivamente e expandir as habilidades de comunicação com
atores externos.

(9)  Ajustar os usos da linguagem e as metodologias utilizadas às particularidades socioculturais dos grupos envolvidos no conflito, a fim de que as
práticas restaurativas façam sentido aos participantes e não se apresentem como experiências alienantes, para o que pedagogias libertárias e
dialógicas podem ser muito úteis.

(10) Estabelecer uma relação de diálogo com os saberes locais e as formas tradicionais de gestão de conflitos a fim de que as práticas restaurativas
não representem uma transposição de modelos exógenos de tratamento de conflitos a serem introduzidos no espaço social dos grupos
participantes das ações.

(11)  Por fim, respeitar a autonomia e a autodeterminação dos grupos envolvidos no conflito, buscando garantir a participação voluntária e
decisões ao longo do processo que sejam coletivas, preferencialmente consensuais, e que reflitam as escolhas dos sujeitos envolvidos, sem
interferência ou pressões externas.

As ideias que guiam este Módulo estão profundamente enraizadas nas experiências dos povos e comunidades locais da Amazônia brasileira. Esses
grupos têm dado contribuições significativas para os movimentos restaurativo e ambiental. Apesar disso, o que está escrito aqui provavelmente refletirá
também experiências de outros povos e comunidades que apresentam visões semelhantes sobre a relação da humanidade com a natureza e
experimentam igualmente conflitos socioambientais, envolvendo colisões com atores empresariais e governamentais. Apresentamos nas tópicos
pregressos alguns exemplos nos contextos da América do Norte, da África e do Pacífico Sul.

A justiça restaurativa socioambiental faz parte de um processo pedagógico que um conjunto de estudiosos e praticantes vem tendo com mencionados
grupos amazônicos na última década. Uma das principais lições aprendidas é que as questões ambientais envolvem pessoas e não apenas uma natureza
separada da humanidade. Portanto, a justiça restaurativa deve abordar os conflitos sem tratar o ambiente como se fosse constituído por sujeitos
abstratos, indeterminados e indetermináveis. Pelo contrário, considera sobretudo aqueles mais vulneráveis às injustiças ambientais, que historicamente
promovem a conservação ambiental devido a seu modo de vida e estilo de produção, que se harmonizam com os ciclos ecossistêmicos dos espaços
naturais em que vivem e por isso contribuem para imaginar outros mundos (ACOSTA, 2016), decididamente menos antropocêntricos.

É por isso que adotamos o termo conflitos socioambientais – ou seja, parafraseando um conhecido antropólogo contemporâneo, optamos por considerar
o “meio ambiente com gente dentro”[1]. Esta concepção de ambiente tem recebido várias denominações ao redor do mundo, variáveis dependendo dos
lugares e conjunturas históricas em que foram produzidas. A mais conhecida é a chamada justiça ambiental, linguagem predominante nos debates
internacionais. Mas existem outros termos que designam movimentos semelhantes de acordo com certas especificidades locais ou regionais – por
exemplo, socioambientalismo (como é o caso do Brasil) e ecologismo dos pobres (ALIER, 2018). A noção de justiça socioambiental é aquela que
apresenta uma conexão mais profunda com a experiência histórica dos povos e comunidades tradicionais da Amazônia brasileira.

A justiça restaurativa socioambiental entende que a sustentabilidade da paz não pode ser experimentada sem a promoção do bem viver entre os seres
humanos, os entes não humanos e os lugares habitados. Isso implica não apenas a conservação dos espaços naturais ainda não devastados por
intervenções antrópicas. Também significa considerar perspectivas sobre a relação da humanidade com a natureza que diferem muito das culturas
ocidentais modernas. Em muitas destas, a natureza não é vista como rigidamente separada da humanidade. Em contraste, os entes não humanos são
percebidos como profundamente interligados com os seres humanos. Eles estabelecem relações de confiança e reciprocidade, realizam trocas materiais
e simbólicas, experimentam dependência mútua e cooperação, em vez de submissão e dominação (INGOLD, 2000). Portanto, vistos de uma perspectiva
restaurativa socioambiental, nós temos interações inquebrantáveis com os outros seres ao nosso redor, nossos “parentes de sangue”, com quem
devemos ter “boas relações”, como diriam os Oceti Sakowin Oyate.

Ao longo deste texto, esperamos ter apontado ao menos algumas direções que ajudem a formular uma concepção socioambiental de justiça
restaurativa, profundamente influenciada pelos saberes dos povos e comunidades tradicionais da Amazônia brasileira. Outras direções são sinalizadas
nos sítios eletrônicos indicados ao longo deste texto, nos referenciais bibliográficos que constam abaixo e nas aulas do Módulo que estão na plataforma
do curso, as quais devem ser assistidas como complemento dos aprendizados que foram aqui compartilhados.

Para outros textos dos autores, veja:

https://ufopaedu.academia.edu/NirsonNeto
https://ufopaedu.academia.edu/JosineidePamplona

[1] Refiro-me a Tim Ingold (2018) que afirma que “antropologia é filosofia com gente dentro”.

 

Questões para Avaliação de Aprendizagem


◄ Plano de Ensino Seguir para...
- Módulo Teórico 6 ►

 Documentação de Moodle relativa a esta página

Você acessou como MARCIA REGO (Sair)


MÉTODOS CONSENSUAIS (EAD)
Resumo de retenção de dados
Obter o aplicativo para dispositivos móveis

Você também pode gostar