Você está na página 1de 15

ALMEIDA, Helena , Um panorama das mediações nas sociedades.

Na
senda da construção de sentido da mediação em contexto educativo
(Capitulo 6), in Veiga Simão, A. M., Caetano, A. P. & Freire, I. (orgs)
(2009). Tutoria e Mediação em Educação. Lisboa, EDUCA, 115-128.

UM PANORAMA DAS MEDIAÇÕES NAS SOCIEDADES.

NA SENDA DA CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DA MEDIAÇÃO EM CONTEXTO


EDUCATIVO 1

Helena Neves Almeida


helena.almeida@fpce.uc.pt

Resumo
O presente artigo visa destacar algumas ideias centrais no plano da
concepção da mediação na actualidade, bem como alguns eixos analíticos
subjacentes à reflexão necessária sobre a especificidade da Mediação
Escolar.

Palavras-chave: mediação; resolução de conflitos; regulação social; mediação


escolar

A mediação parece ser, numa primeira abordagem, um paradoxo na sociedade


actual: as descobertas científicas e tecnológicas apresentam soluções para grande parte
dos problemas, a multiplicação de leis em todos os domínios parece dar resposta a
todos os litígios, sem esquecer as redes de comunicação que propiciam laços e soluções
variadas. Ora, ao mesmo tempo que se foi construindo o mundo moderno,
estabelecendo contactos e ligações de toda espécie, federações, uniões monetárias,
convenções, foram também aparecendo catalisadores. Como refere Paule Paillet (1982,
9) "quando os modos de protecção do cidadão, quando a regulação das suas relações
com a lei, com a norma e com a instituição se encontram perturbadas ou pervertidas, é
necessário encontrar um elo de ligação. Seja de natureza política, associativa, sindical,
jurídica ou social, ele terá sempre por missão o estabelecimento das conexões
necessárias. Neste sentido, a mediação representa uma constatação de imperfeição do
nosso mundo e uma abertura á esperança .
O aprofundamento do sistema democrático, a globalização económica e o
desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação vieram dar um novo
impulso às relações sociais e económicas, acentuando o aumento das relações entre os

1 Colóquio Internacional Tutoria e Mediação , AFIRSE, Lisboa, 21-23 de Fevereiro de 2008


1
cidadãos e entre estes e os serviços e empresas. Mas se é verdade que a democratização
do acesso ao crédito e a outros serviços, cujo consumo é antecipado ao pagamento, a
diversificação dos direitos a que se associa um melhor conhecimento e maior vontade
e capacidade de os exercer por parte dos seus titulares, têm proporcionado o aumento
da procura de uma justiça que se pretende rápida e eficaz, também no domínio social a
mediação se tem vindo a afirmar como modo alternativo de resolução de conflitos. A
crescente institucionalização das relações sociais cuja visibilidade assenta no aumento
do acesso a serviços públicos e privados, designadamente nas áreas da educação, da
acção social e da saúde, a que se associa uma alteração da estrutura e funções da
família e uma diminuição da influência da igreja e da comunidade, como instâncias de
regulação de conflitos, contribuem para que a mediação familiar, escolar e social e
comunitária constituam um paradigma de referência das práticas profissionais que
ocorrem nesses domínios.
A prática de mediação tem-se expandido por diversos campos de intervenção e
assume diferentes perfis no quotidiano. Hoje assiste-se à proliferação da diversidade
de mediadores e de práticas de mediação como resposta criativa a conflitos inscritos
nas relações inter-pessoais ou decorrentes de mudanças sociais. Defende-se o processo
de mediação quando o conflito assume um papel predominante nas relações entre as
pessoas, entre estas e as organizações, e entre organizações num determinado
território, e sempre que a procura de alternativas exigir a intervenção de uma terceira
pessoa que valorize a comunicação entre as partes e a capacidade de tomada de
decisão dos litigantes no sentido de estabelecer um acordo mútuo, sem a intervenção
do juiz ou de um negociador. O conflito, o equilíbrio e a mudança constituem polos
referenciais da expansão de práticas mediadoras; a mediação é utilizada em situações
de conflito, no sentido de o controlar ou prevenir, estabelecer ou reestabelecer laços
sociais, e deste modo, regular relações sociais e, ou impulsionar mudanças a nível
pessoal, inter-individual e social.
O panorama das práticas de mediação em distintos contextos sócio-económicos
e políticos, permite-nos referenciar, de um modo geral, duas concepções de mediação:
uma ligada à cultura americana que a encara como um meio alternativo de resolução
de conflitos, e uma outra, mais universalista, europeia, herdeira da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Bonafé-Schmitt (1999,18) está convencido
de que as formas e o desenvolvimento da mediação nos diferentes países são
directamente influenciadas pelos sistemas de regulação social . Uma análise
comparada desenvolvida pelo autor e seus colaboradores sobre a medição penal
existente em França e nos Estados Unidos, evidencia diferentes modelos de integração
social subjacentes aos modelos de mediação: O modelo americano é diferencialista ou
2
comunitário, e o modelo francês é universalista e republicano. Estas diferenças de
modelos explicam porque nos Estados Unidos se fala mais de mediação comunitária ,
baseada no culto da negociação, e que em França se releva a mediação de bairro,
social ou intercultural , em que o outro é um ser diferente mas igual, que está
centrada sobre a regulação constante das relações sociais. Ela opera novos laços, de
forma criativa, renovando laços cortados, gerindo a sua ruptura.
Pioneiros no domínio dos modos alternativos de resolução de conflitos (ADR), os
EUA deram um reconhecido contributo à expansão da mediação nos países da União
Europeia. No entanto, a síntese dos contornos da mediação em vários continentes,
efectuada por Marta Carrasco (2005), coloca em evidência as particularidades que o
processo foi assumindo, directamente associadas à diversidade dos contextos e
respectivo enquadramento legal. A nível europeu, e a título de exemplo, em Inglaterra
coexistem dois tios de mediação (do sector público e do sector voluntário), em Itália
adquire especial relevo a mediação familiar, escolar e penal, em França a mediação é
desenvolvida essencialmente no domínio familiar (penal e civil), nos países
escandinavos (Dinamarca, Finlândia, Suécia e Noruega) a mais referenciada é a
mediação de consumo. O estudo privilegia uma abordagem centrada na resolução de
conflitos, numa perspectiva essencialmente curativa, descurando a sua dimensão
preventiva, restauradora e promocional de laços sociais, de leitura mais sociológica.

O fim principal da mediação reside no estabelecimento ou restabelecimento da


comunicação entre as partes, facilitando o diálogo entre si. Mesmo quando o acordo
não é possível e cada uma delas assume uma posição radical, o insucesso da mediação é
relativo na medida em que se estabeleceu ou iniciou um processo comunicacional
parcial, que introduz transformações. Como refere François Six não há uma mediação
perfeita; toda a mediação é um momento de catálise [ ]; a mediação mais conseguida,
a melhor sucedida, é aquela que produz uma verdadeira comunicação entre as partes,
uma comunicação que trará realmente frutos na vida de cada uma das duas pessoas ou
de cada um dos dois grupos" (Six, 1991, 185). A mediação deve produzir, não uma
simulação de comunicação, mas uma troca real; mesmo quando não é alcançada deve
provocar em cada um a consciência de que não existe apenas a sua verdade, e que o
outro também possui uma parte dela. Com efeito, um dos benefícios da mediação é
comunicar2 a cada um que o isolamento é nefasto à construção de uma saída e que a

2 Na mediação, a produção da comunicação compreende três etapas: a escuta, o tempo e a conclusão. A escuta permite
compreender a situação, os argumentos, e os significados atribuídos por cada uma das partes ao assunto em análise; o
tempo permite gerir os diferendos e favorece a tomada de posição em liberdade, sem precipitações e de forma consciente
pelas partes envolvidas; a conclusão é o produto do trabalho efectuado até ao momento, num esforço de respeito pela
identidade dos agentes em presença. Cada mediação é diferente e exige um tempo específico, diferente de mediação
para mediação, com o seu ritmo próprio. Compete ao mediador fazer com que a mediação seja bem sucedida no tempo;
3
abertura em relação ao outro só valoriza a sua posição. A mediação permite a mudança
da argumentação de cada litigante, tornando-a mais racional e distante da vivência
pessoal. E este distanciamento aloja uma nova forma de encarar a realidade, de superar
constrangimentos e encontrar vias alternativas para o conflito.

Mas não só. A mediação potencia a construção de laços sociais, e constitui,


inclusive, uma nova abordagem no processo de inclusão social, quando
operacionalizada no domínio social e cultural. Por exemplo, os profissionais que
trabalham com grupos de ciganos, luso-africanos e africanos imigrados em Portugal,
deparam-se com pessoas marcadas pelas múltiplas diferenças culturais com a
sociedade de acolhimento, tais como diferenças de identidade étnica, de cultura, de
padrões de comportamento e organização social. Como refere Santos Silva (1998:4, in
Oliveira e Galego, 2005:33) Dada a estrutura desigualitária da distribuição de
recursos, de oportunidades e de poderes, essas diferenças tendem a ser reconfiguradas
como desigualdades, tendem a induzir ou até a justificar, assimetrias, privações e
marginalizações a que os membros daqueles grupos são sujeitos. O que dificulta ou
mesmo impede a realização dos seus direitos pessoais, o desenvolvimento de
sentimentos de autoestima e respeito, a sua inserção social, familiar, laboral,
profissional, cívica e a sua relação com as instituições, as normas e as rotinas da
sociedade englobante . A mediação e a cultura que lhe está associada, caracterizada
pelo respeito para com outro, a focalização no diálogo, a valorização da cidadania, a
importância atribuída aos sujeitos e ao desenvolvimento das suas competências no
processo de mudança, a esperança numa solução que ultrapasse o binómio ganhador-
perdedor , e que é transversal a todo o processo relacional, constituem um mais-valia
no recosimento dos laços sociais em ruptura. O mediador como catalisador é
desprovido de poder coercivo, decisório e legislativo. Ele não toma o lugar dos
protagonistas, não absorve os seus diferendos, não promove a sua fusão através da
acção. Pelo contrário, o mediador reúne as partes em conflito, pede-lhes que tomem em
mãos o curso das suas vidas, dos seus projectos, e que enveredem por um novo
caminho, adoptando uma nova dinâmica entre si.

1 . Dimensões analíticas da mediação.

o prolongamento ou a diminuição dos intervalos entre os reencontros de mediação resulta de uma adaptação contínua;
tudo isto para conduzir a mediação ao seu termo (Six, 1995, 144).

4
A especificação conceptual, permite especificar eixos analíticos, como se de uma
teia cerzida se tratasse e cuja substancia se inscreve na lógica da (des)construção de
uma matriz analítica em matéria de mediação, com incidência na concepção de
mediação escolar, seus contributos e limitações. A que eixos nos referimos, e quais as
sua s características?

Qualquer que seja o domínio da sua expressão, a mediação constrói-se em torno


de 3 binómios, paradoxais pela aparente contradição que encerram (cf. Figura 1), a
saber: 1 Complexidade conceptual versus identidade processual; 2 Pulverização de
domínios versus afirmação/descoberta de potencialidades; e 3 Diversidade de
perspectivas metodológicas versus procura de especificidades.

Figura 1: Matriz analítica da mediação

COMPLEXIDADE
CONCEPTUAL / MEDIAÇÃO
IDENTIDADE PROCESSUAL

m
PULVERIZAÇÃO DE DIVERSIDADE
DOMÍNIOS/ METODOLÓGICA /
AFIRMAÇÃO- PROCURA DE
DESCOBERTA DE ESPECIFICIDADES
POTENCIALIDADES

II III

5
A articulação entre estes três eixos, potencia reflexões no plano da análise tanto
da visibilidade das práticas de mediação como dos seus contributos e limites. Vejamos,
em síntese alguns aspectos de cada um dos eixos aqui assinalados:

I - Complexidade Conceptual versus Identidade Processual

A Mediação é usualmente reconhecida como um modo extrajudicial, alternativo


de resolução de conflitos, distinto de outros processos como a arbitragem, a conciliação
ou a negociação. A abordagem sociológica do termo, desenvolvida a partir da década de
90 do século XX, afirma a mediação como um modo de regulação social, um
mecanismo associado à criação, transformação e desaparecimento de regras, que
integra uma dimensão societal ao serviço da criação ou renovação de laços sociais.
Especifica-se, deste modo, o seu carácter instrumental e expressivo no processo de
intervenção, designadamente em contextos de luta contra a exclusão social (Freynet,
1996 ; Bondu, 1998, Almeida, 2001) .

A Mediação ocorre em situações de conflito (presente ou latente) entre dois ou


mais sujeitos, dois ou mais seres, cujo desenlace origina processos de ruptura, e traduz-
se um movimento voluntário dos litigantes no sentido da procura de solução, de forma
implícita (por iniciativa de profissionais e de organizações) ou de forma explícita (por
iniciativa de sujeitos envolvidos). Trata-se de um processo que implica a existência, no
mínimo3, de uma terceira pessoa, imparcial, cuja acção é orientada por princípios de
não intervenção ou de intervenção mínima, isto é, que coloca o poder da decisão na
mão dos litigantes, que cria oportunidades comunicacionais entre si propiciadoras da
emergência de argumentações racionais e da construção de compromissos exequíveis e
responsáveis. Através da construção de um clima relacional de confidencialidade e
igualdade entre as partes, a mediação afirma-se como uma justiça doce (Six, 1995),
que capacita os indivíduos para viver em sociedade.

A mediação está em expansão como modo de regulação social positivo, alicerçado


na adesão e participação voluntárias dos litigantes, na procura de alternativas para os
conflitos, com respeito pelo ritmo dos sujeitos envolvidos no processo e sem recurso ao
império do juiz. Para além de um modo de intervenção, a mediação constitui também
uma âncora de investigação em domínios científicos diversos, desde a economia, à

3 A terceira pessoa constitui uma das estruturas fundamentais da mediação, mas no domínio social e comunitário a
relação trial pode-se diversificar e integrar as solidariedades primárias e secundárias, visando objectivamente criar ou
renovar laços sociais (Almeida, 2001).
6
sociologia, ao direito, à psicologia, às ciências da educação, ao serviço social. Não sendo
um campo específico estruturado apenas em torno de uma área de conhecimento, a
mediação assume um carácter identitário transversal e multidisciplinar.

II Pulverização de Domínios versus Afirmação / Descoberta de


potencialidades

A Mediação constitui um elemento de referência nas sociedades contemporâneas.


Ela entrou na gramática da resolução de diferendos e impõe-se no quotidiano dos
cidadãos, através dos meios de comunicação social, da literatura, das conversas
informais, a propósito de conflitos de natureza e em contextos diversos, desde o
consumo, à família, às relações internacionais, à vida em sociedade. A crescente
institucionalização das relações sociais, as transformações sociais ocorridas a nível da
composição e função das famílias e da escola, a mundialização da economia, a expansão
da sociedade da informação, a crise do Estado Providência, são, entre outros aspectos,
apontados como factores intervenientes na sua expansão. Por toda a Europa têm
emergido mediadores diversos. Cada país adoptou a mediação como um modo
alternativo de resolução de conflitos e como um modo de regulação social4, com uma
dupla função, latente e manifesta: fazer sociedade e regular conflitos (Briant e
Palau, 1999: 43).

Na perspectiva das ciências sociais, a mediação é mais do que o estabelecimento


de relação entre a sociedade e o indivíduo, a mediação define-se como o
relacionamento entre dois termos e dois seres (ibid, 43). Ela é simultanemente
societal e interindividual, mesmo que os diferentes actores sociais não tenham
consciência dessa dualidade. Por um lado, a mediação é societal na medida em que esse
relacionamento visa constituir ou desenvolver laços sociais e tratar ou prevenir
conflitos (ibid, 118)5. Mas, por outro lado, a mediação é igualmente interindividual se
entendida como um modo não contencioso de regulação de litígios, sob a égide de uma
terceira pessoa. Em qualquer mediação poder-se-á considerar a existência de uma
micro-mediação (inter-individual) e de uma macro-mediação (societal) que formam
um contínuum variável segundo a representação que os actores (mediadores e
litigantes) têm do processo. A mediação faz sociedade na medida em que ela cria

4 De acordo com Briant e Palau (1999,43) a regulação social é o conjunto de mecanismos através dos quais se criam, se
transformam e se anulam as regras. A regulação social toma a forma de mediaç es sociais e interindividuais. .
5 Inserem-se nesta categoria as mediações da linguagem, do direito, da escola, enquanto operações de construção da
realidade, de laços sociais, vectores de sensibilidades e matrizes de sociabilidades (Debray, 1991, 15).
7
laços sociais fundados em representações culturais e históricas da sociedade, mas ela é
igualmente um processo alternativo de resolução de conflitos, um modo que permite a
sua transformação, apoiando-se num compromisso voluntariamente definido e
assumido entre as partes.

Hoje, a família, a escola, a comunidade, as relações inter e multiculturais, as


relações laborais a nível individual e colectivo, as relações dos cidadãos com as
organizações nos domínios da saúde, do ambiente, do consumo, da justiça, a política
internacional, constituem sede de mediação. Existe uma diversidade de campos,
situações e actores envolvidos no esforço de mediação, o que por si introduz alguma
complexidade analítica. Se a estes factores associarmos os diversos objectivos,
encontramos uma extensa panóplia de possíveis combinações. A este propósito, Luison
e Valastro (2004) destacam diferentes abordagens ou tipologias de mediação: •
mediação cultural - valoriza sobretudo aos aspectos culturais da comunicação,
relacionada com a problemática da migração, das sociedades multiétnicas e
interculturais; • mediação escolar - tem como finalidade a socialização e a produção de
identidades sociais, a criação de novos espaços de socialização e de modelos
alternativos de gestão das relações sociais; • mediação social traduz a tentativa de
aprendizagem da vida em sociedade e corporiza um projecto de reconstituição de
estruturas intermediárias entre os indivíduos e o Estado, com forte carácter de controlo
social; edia d c fli - na prevenção do conflito social e gestão dos problemas
como oportunidade de melhorar as relações sociais; • mediação comunitária - como
uma cultura de participação na gestão dos conflitos e aquisição de instrumentos de
aprendizagem para a mediação, capazes de recriarem os laços sociais; • mediação
institucional - como processo de profissionalização da mediação, criação de novos
campos de intervenção, confrontação com outros trabalhadores sociais.

Em função da singularidade dos contextos, dos actores sociais e das


problemáticas em que se inscreve, a mediação recorre a multiplicidades processuais e
assume crescente protagonismo. Os mediadores proliferam, as práticas diversificam-se,
mas nem todas as práticas são de mediação, apesar de assim serem designadas. A
mediação formal e profissional implica saberes específicos do ponto de vista teórico e
metodológico.

III Diversidade Metodológica versus Procura de Especificidades

8
A construção das especificidades metodológicas articula conhecimentos
processuais, estruturados em torno dos objectivos visados, dos actores intervenientes
no processo de tomada de decisão, das estratégias associadas à tomada de
conhecimento sobre os diferendos existentes entre as partes, do momento da acção
mediadora, e da origem do mediador.

Os enfoques metodológicos, estabelecidos segundo estes parâmetros referenciais,


quando combinados, indiciam tanto a diversidade de procedimentos como alguns
aspectos transversais básicos da intervenção mediadora: a análise do presente
consolida-se como um estádio intermédio entre a realidade passada e o futuro
esperado. A mediação atinge neste processo o estatuto de acção reguladora de
esperança, um dos referentes positivos da mudança de atitudes e comportamentos.

Embora exista uma metodologia associada à mediação, com a definição de etapas


e procedimentos (Lascoux, 2001; Milburn, 2002; Stimec, 2004), o facto de constituir
um processo voluntário, que se desenvolve em contexto democrático, introduz um
carácter de flexibilidade processual. Dora Fried Schnitman (1999: 25), centraliza a
atenção no processo comunicacional e suas potencialidades, e apresenta uma síntese
das diferentes perspectivas emergentes6, colocando em evidência, para além da
diversidade, a complexidade da mediação. Segundo a autora a resolução alternativa de
conflitos propõe entender os sujeitos como construtores das suas realidades, e com eles
construir transições entre o existente e o possível, validando a diversidade, o diálogo, o
outro, num contexto polifónico.

Esta questão é igualmente trabalhada por Jan Marie Fritz (2004, in Oliveira e
Galego, 2005:30), embora sob outro ângulo, que enuncia cinco paradigmas básicos:
Mediação centrada nos participantes - está ligada ao humanismo, à psicoterapia e à
socioterapia. Esta abordagem utiliza geralmente um modelo por etapas e focaliza-se no
que os indivíduos desejam trabalhar no processo de mediação. É sobretudo utilizada
em modelos terapêuticos de mediação familiar, em que o mediador é sobretudo um
facilitador; Mediação orientada para a solução - utiliza um modelo por etapas e o
mediador pode facilitar e dirigir, tomar parte e sugerir uma solução. Tem implícita uma
abordagem pragmática, behaviorista e funcionalista. Nela, o conflito pode ser visto
como uma perturbação; Mediação transformação - focalizada na necessidade de
mudança dos participantes. O conflito é um meio para o reconhecimento e a mudança
de atitude. Este paradigma está ligado ao humanismo e ao funcionalismo estrutural,
unido a uma visão comunicativa/social do conflito humano. Cada uma das partes é

6 Ao analisar a questão dos novos paradigmas, a autora identifica sete perspectivas: sistémica, dialógica, argumental,
geradora, de desempenho, narrativa, transformadora.
9
responsável pelo resultado e o mediador é um facilitador; Mediação narrativa - o
mediador trabalha com as partes o desenvolvimento de uma história a propósito do
conflito: implica os participantes, decompõe o seu discurso e o argumento narrativo e
recria com eles uma nova história. Igualmente associado ao humanismo, sobretudo ao
pensamento pós-moderno, reconhece a existência de realidades múltiplas em
detrimento de uma realidade objectiva; Mediação processo integrado humanista -
acentua o humanismo, a competência cultural, a emancipação, o respeito e a
criatividade. O mediador é reflexivo, ajuda a que se avalie continuamente a interacção
entre os grupos. Valoriza o contexto, está centrado nos participantes, mas é flexível e
perante as circunstâncias pode integrar aspectos diversos. É uma abordagem
interactiva, focalizada na livre escolha e responsabilidade dos sujeitos envolvidos
(indivíduos, organizações, comunidades).

Equacionado, em cada situação específica, o objectivo estruturante da mediação


iniciada, há que fazer opções a nível das estratégias a utilizar no que respeita à tomada
de decisão e ao tipo de metodologia a adoptar.

Nesta diversidade conceptual e metodológica, face a múltiplos contextos e


objectos, a mediação essencialmente alicerçada no primado da construção de
alternativas, tem feito um percurso sinuoso, entre a mediação cidadã e a mediação
profissional, entre o domínio privado e público, um percurso que se afirma na busca de
especificidades por referência a outros processos e modelos de intervenção. Embora a
mediação seja essencialmente um domínio multidisciplinar, nem todas as intervenções
poderão ser apelidadas de mediação, mesmo que sejam construídas em torno de micro-
mediações. A mediação implica conhecimento, acção e reflexão.

2 - Mediação em Contexto Educativo: um processo em construção.

Como salienta Bonafé-Schmitt (2000:194), A mediação não é simplesmente uma


técnica de gestão de conflitos, constitui também um processo de aprendizagem de
novas formas de sociabilidade . É aprender na relação e através da relação,
simultaneamente de proximidade compreensiva e de distanciamento analítico, entre
litigantes com poderes diversos (relações entre pares, relações entre sujeitos e
organizações, relações entre organizações, e com a comunidade). Essa aprendizagem de
sociabilidade tem reflexos em termos individuais e societais. Por isso, Briant e Palaut
(1999) afirmam que a mediação faz sociedade. A escola não é apenas um lugar de

10
aquisição de conhecimentos, é também um lugar de socialização, um lugar de
aprendizagem de formas de sociabilidade.

No contexto educativo, os actores intervenientes nesse processo de aprendizagem


(professores, alunos, auxiliares de acção educativa, outros técnicos) são diversos do
ponto de vista da formação e das características sócio-culturais. Os contextos sócio-
institucionais e comunitários de enquadramento são igualmente distintos (escolas e
serviços em zonas mais urbanizadas ou mais rurais, zonas de periferia, do litoral, do
interior, bairros sociais). Num mesmo território, geográfico e institucional, podem
articular-se e potenciar-se recursos díspares, conquistando e mobilizando parcerias, em
rede, cuja eficiência e eficácia é esperadamente elevada. Mas nem sempre os factos
ocorrem segundo as expectativas. A mediação, enquanto processo, concretiza-se de
forma complexa no quotidiano, e maximiza-se à medida que os actores forem criando
laços e superando os obstáculos decorrentes dessa complexidade. Os objectivos visados
ganham especificidade quando contextualizados. Emerge como central a dimensão
sócio-pedagógica da mediação, na sua vertente formativa e de estabelecimento de
compromissos pessoais e sócio-institucionais, ancorada no acompanhamento de
projectos com objectivos preventivos e adequados à população envolvida; mas a
mediação escolar incide igualmente sobre a resolução de problemas ou diferendos,
numa perspectiva mais inter-individual, curativa e reparadora.

A mediação joga com saberes teóricos e práticos, mas também com


representações. A diversidade de actores intervenientes coloca em jogo o pressuposto
de um trabalho em equipa num processo de adesão voluntária por parte dos mesmos
no contexto da acção (por exemplo, professores, auxiliares de acção educativa, pessoal
administrativo, pais), dos mediadores e dos litigantes (reais ou potenciais). Um
trabalho em equipa que ultrapassa as fronteiras da especificidade científica ou
operativa, e se concretiza num conhecimento transdisciplinar, em benefício de
objectivos comuns, com expressão dentro e fora dos muros institucionais. Cada actor, e
cada acção, integra um puzzle de saberes estratégicos com roupagens diversas, cuja
unidade e sentido se descobre após o seu encaixe. Não basta identificar os actores e a
natureza do conflito real ou potencial, que origina a mediação, nem dominar apenas os
seus procedimentos metodológicos. É preciso apreender e compreender as
características sócio-culturais do território onde se intervém, compreender a expressão
das consequências da situação em termos individuais, colectivos e institucionais,
identificar os obstáculos, e elaborar um projecto onde a mediação seja apenas um dos
processos a empreender.

11
Uma das primeiras dificuldades a enfrentar em contexto escolar, reside na criação
de uma dinâmica de (re) conhecimento da mediação, das suas vantagens e limites. Para
o efeito, é necessário investir na construção de uma identidade comum entre os
membros da comunidade educativa, que para além da possível diferença de origens
sociais, formação de base e idades, poderá não possuir hábitos de trabalho em comum
no estabelecimento de ensino. A partilha das incertezas, dos receios, bem como das
experiências positivas em sede de reunião periódica, desde o início do processo, a
sinalização e análise de situações, o envolvimento em tarefas comuns, a definição de
regras de funcionamento, poderão constituir estratégias adequadas ao processo de
construção de identidade dos mediadores e da mediação. A mediação não é uma manta
de retalhos de contributos individuais. O sentido da mediação tem de se inscrever num
projecto educativo mais amplo. Por isso, é igualmente importante a elaboração de
projectos de mediação, de forma partilhada e responsável, que tenham em
consideração ou possam dar visibilidade às diferentes lógicas de funcionamento
institucional (económica, organizacional, política, social, educativa), sem apropriação
de públicos alvo, num espírito de cooperação interpessoal, interinstitucional e
interprofissional, contribuindo desse modo para a melhoria do ambiente escolar.

Um outro obstáculo a contornar consiste na gestão dos poderes instituídos aos


diversos actores da comunidade educativa. Ao mediador é reconhecida autoridade
moral, algum poder proponente, mesmo que seja um poder micro e partilhado
(Almeida, 2001), mas quando cede ao chamamento do exercício da tomada de decisão
em vez do outro, deixa de o ser. Na mediação o que é verdadeiramente importante, é
aquilo que pensam e a forma como actuam aqueles com quem o mediador interage, não
é a sua percepção do mundo, não é a sua vontade. Compete ao mediador criar
oportunidades para a descoberta do novo, de alternativas que até à altura não tinham
sido exploradas, porque eram invisíveis ao abrigo da argumentação emocional e opaca
dos litigantes. Como conseguir tal pretensão em ambientes de tensão, contradições e
conflitos, sem fazer intervir a equação pessoal do mediador? São necessários dois
requisitos: formação e prática.

A mediação está em processo de construção. O percurso, embora longo, já


começou a ser trilhado no plano do conhecimento e da acção. Há que investir na
formação, na produção de saberes adequados às realidades e contextos de emergência
do novo. É necessário dar voz a novas formas de enfrentar os constrangimentos, novos
modos de agir face à diferença, numa procura de alternativas, que, como refere Urie
Bronfenbrenner (1996), correspondem à rejeição do modelo de deficit , aspecto
igualmente salientado por Schnitman (1999), em favor de uma pesquisa política e
12
prática comprometida com experiências transformadoras que favoreçam o
desenvolvimento humano e promovam a cidadania. Neste contexto, a mediação
transforma-se numa nova forma de olhar o mundo e de nela intervir.

Referências Bibliograficas

Almeida, H. (2001). Conceptions et pratiques de la médiation sociale. Les modéles de


médiation dans le quotidien professionnel des assistants sociau, Coimbra :
Fundação Bissaya-Barreto, Instituto Superior Bissaya-Barreto.

Bonafé-Schmitt, J.P. & al.(1992). Médiation et régulation sociale, Lyon : GLSI -


Université Lyon II.

Bonafé-Schmitt, J.P. & al. (1999). Les médiations, la médiation, collection Trajets,
Toulouse : Éditions Érès.

Bonafé-Schmitt, J.P. & al. (2000). La médiation scolaire par les élèves. Paris : ESF
Éditeur.

Bondu, D. (1998). Nouvelles pratiques de médiation sociale. Jeunes en difficultés et


travailleurs sociaux, Paris : ESF.

Briant, V. & Palau, Y. (1999). La médiation. Définition, pratiques et perspectives,


collection Sciences Sociales, 128, Paris : Éditions Nathan/HER.

Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos


naturais e planejados, Porto Alegre: Artes Médicas.

Carrasco, M. ( 2005). Mediación y Consumidores. Madrid : Instituto Nacional del


Consumo.

Debray,R. (1991). Cours de médiologie générale, Paris, Gallimard.

Freynet, M.F.(1996). Les paradoxes de la fonction de reliance du travail social in


Bolle De Bal, M., Voyages ao coeur des sciences humaines, De la reliance, Tome
2: Reliance et pratique, Paris, Éditions Éditions l Harmattan, 189-208.

Fritz, J.M. (2004). Derrière la magie: Modèles, approches et théories de médiation.


Esprit Critique, Vol.06, No.03, pp. 9-16.

Lascoux, J.-L, (2001). Pratique de la médiation. Paris : ESF Éditeur.

Luison, L. e Valastro,O. M. (2004). Du processus aux pratiques de médiation. Esprit


Critique, Vol.06, No.03, pp. 3-8.

13
Milburn, Ph. (2002). La médiation : Expériences et compétences. Col Alternatives
Sociales, Paris : La Découverte.

Oliveira, A. e Galego, C. (2005). A mediação sócio-cultural: um puzzle em construção.


Observatório da Emigração. Lisboa: ACIME

Paillet, P. (1982). Des médiations par milliers in Informations Sociales, 4.

Santos Silva, Augusto (1998). A Formação e a acção de mediadores sociais, Síntese de


mesa redonda, organizada pelo Ministério da Educação em 27 de Março de 1998.

Six, J.F. (1995). Dynamique de la médiation, Paris : Desclée de Brower.

Six, J.F (1991). Le temps des médiateurs, Paris : Éditions du Seuil.

Schnitman, D.F. (1999). Novos Paradigmas na Resolução de Conflitos, in Schnitman,


D. e Littlejohn, Stephen (org.). Novos Paradigmas em Mediação. S.Paulo:
Editora Artes Médicas Sul. 17-27.

Schnitman, D. e Littlejohn, S. (org.) (1999). Novos Paradigmas em Mediação. S.Paulo:


Editora Artes Médicas Sul.

Stimec, A. (2004). La médiation en entreprise. Faciliter le dialogue. Gérer les conflits.


Favoriser la coopération. Paris : Dunod.

Referenciação do texto :

ALMEIDA, Helena , Um panorama das media es nas sociedades. Na senda da constr o


de sentido da mediação em contexto educati o (Capitulo 6), in Veiga Simão, A. M.,
Caetano, A. P. & Freire, I. (orgs) (2009). Tutoria e Mediação em Educação. Lisboa,
EDUCA, 115-128

14

View publication stats

Você também pode gostar