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Unidade 1

1.1 Paradigma Restaurativo e ancestralidade

Talvez esse seja teu primeiro contato com a Justiça Restaurativa ou

tenhas conhecido o termo há poucos anos. Isso pode levar a crer que a Justiça

Restaurativa é algo novo. Talvez isso também te faça acreditar que ela é um

método adequado para resolver conflitos e que, assim como a mediação, é uma

“alternativa” consensual a uma decisão heterocompositiva.

Essas são pré-compreensões bastante frequentes quando se pensa em

Justiça Restaurativa. Todavia, ambas estão equivocadas.

A Justiça Restaurativa tem base ancestral que remete a diversas

sociedades espalhadas pelo globo. Nas palavras de Howard Zehr (2012, p. 22),

O moderno campo da Justiça Restaurativa de fato desenvolveu-se nos

anos 70 a partir de experiências em comunidades norte-americanas

com uma parte considerável de população menonita. Buscando aplicar

sua fé e visão de paz ao campo implacável da justiça criminal, os

menonitas e outros profissionais de Ontário, Canadá, e depois de

Indiana, Estados Unidos, experimentaram encontros entre ofensor e

vítima, dando origem a programas, nessas comunidades, que depois

serviram de modelo para projetos em outras partes do mundo. A teoria

da Justiça Restaurativa desenvolveu-se inicialmente desses

empenhos.

Contudo, o movimento deve muito a esforços anteriores e a várias

tradições culturais e religiosas. Beneficiou-se enormemente do legado

dos povos nativos da América do Norte e Nova Zelândia. Portanto,


suas raízes e precedentes são bem mais amplos que a iniciativa

menonita dos anos 70. Na verdade, essas raízes são tão antigas

quanto a história da humanidade.

Diante de conflitos ou mesmo buscando conexão, esses grupos humanos

reuniam-se em círculo para se escutarem. O círculo reconhece e reverencia a

presença de cada um dos presentes. Seu formato permite que todos consigam

olhar-se nos olhos e passa a sensação de pertencimento e de horizontalidade.

Se pensarmos em grupamentos antigos reunidos em círculo ao redor do

fogo para compartilhar uma história ou alimentos, por exemplo, poderemos ter

uma imagem de como esses encontros aconteciam.

Embora possa soar algo distante de nós – não só no tempo, mas

principalmente no modo de organização –, a verdade é que esse aprendizado

de compartilhamento de significado em círculos perpassa diversas das nossas

manifestações culturais ou mesmo dos rituais que reconhecemos como

legítimos. Pense, por exemplo, na família reunida em volta da mesa da cozinha

para resolver problemas ou falar sobre situações delicadas (PRANIS, 2010, p.

15).

Imagino que o último exemplo tenha evidenciado, mas gostaria de deixar

manifesto: não falo aqui de uma comunidade mítica e longínqua, mas de algo

próximo. Tão próximo que carregamos geração a geração como uma herança

coletiva.

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Volte ao exemplo da reunião familiar em volta da mesa. Nosso imaginário

e experiências indicam que esse encontro pode ser extremamente útil e

necessário diante de situações difíceis, mas também nos relembram de um sem-

número de momentos de celebração e conexão construídos ao redor da mesa.

Para a Justiça Restaurativa, o encontro também tem esse aspecto plural.

Diferente da mediação, por exemplo, que é voltada exclusivamente a conflitos,

a Justiça Restaurativa visa prioritariamente construir e fortalecer vínculos de

pertencimento e significado. A Justiça Restaurativa preocupa-se com o conflito,

mas também com a conexão.

Por essa razão, dizemos que a Justiça Restaurativa é uma visão de

justiça, e, como tal, apresenta um paradigma próprio para enxergar conflitos,

relacionamentos e o existir em comunidade.

É uma experiência de justiça centrada nos sujeitos envolvidos em dada

situação e voltada a satisfazer suas necessidades humanas. A Justiça

Restaurativa busca transformar situações, conflitos e relacionamentos em

oportunidades de conexão com significado.

Por isso, preocupa-se não só com eventuais danos causados por um

determinado fato, mas também com os danos revelados por esse mesmo

acontecimento. Olha cuidadosamente, portanto, para o contexto, as relações de

poder, os padrões de relacionamento, as coalisões, as visões de mundo, as

características pessoais e determinados posicionamentos de cada um dos

envolvidos.

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Essa visão de justiça pergunta antes quem sofreu ou está sofrendo danos

e do que essas pessoas precisam nesse momento. Em seguida, busca entender

quais sujeitos apresentam alguma responsabilidade diante do acontecido.

Também procura identificar pessoas indiretamente afetadas pelo acontecimento

ou ainda cuja presença poderia trazer conforto e ser referência afetiva para as

pessoas diretamente envolvidas na situação. Faz um convite ampliado para que

esses sujeitos integrem o processo restaurativo, para que apresentem sua

perspectiva sobre os impactos do ato e sobre o que precisam ou como podem

contribuir para construírem um novo começo ou resgatarem um passado que

reconhecem como bom.

Só depois de todos esses passos é que a Justiça Restaurativa vai buscar

perguntar e responder sobre método. Note que nenhum método é adequado por

si. É preciso, antes, ter contato com elementos e narrativas determinantes de um

conflito ou situação para só então pensar em método adequado.

Esses passos já indicam algo bem distinto do passo-a-passo básico com

que trabalhamos conflitos no paradigma retributivo, que é aquele que costuma

guiar modelos hegemônicos de justiça.

Quando pensamos em retribuição, a pergunta mais relevante não diz

respeito a quem sofre danos ou a como satisfazer suas necessidades. Na

verdade, esse dano e essa pessoa são apenas pedra de toque de um sistema

punitivo.

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Sendo assim, o paradigma retributivo costuma perguntar, inicialmente,

qual norma foi violada e quem é o responsável pela violação, para, em seguida,

buscar definir qual punição essa pessoa merece. Embora possamos pensar essa

abordagem mais voltada a delitos, ela permeia o modo básico como tratamos os

conflitos cíveis, como nos relacionamos ou mesmo como educamos crianças.

A diferença entre os dois modelos é paradigmática. Ainda assim, a Justiça

Restaurativa não se contrapõe ao sistema estatal de justiça. Ao contrário, ela o

complementa (ZEHR, 2012), oferecendo um “trocar as lentes” para enxergar a

mesma situação sob perspectivas distintas (ZEHR, 2015).

Nas palavras de Howard Zehr (2012, p. 21): “a Justiça Restaurativa não é

um mapa, mas seus princípios podem ser vistos como uma bússola que aponta

na direção desejada. No mínimo, a Justiça Restaurativa é um convite ao diálogo

e à experimentação”.

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REFERÊNCIAS

PRANIS, Kay. Processos circulares. São Paulo: Palas Athena, 2010.

ZEHR, Howard. Changing lenses: restorative justice for our times.


Harrisonburg: Herald Press, 2015. Twenty-fifth anniversary edition.

ZEHR, Howard. Justiça restaurativa. São Paulo: Palas Athena, 2012. Tradução
de Tônia Van Acker.

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