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UNIDADE 1

ASPECTOS INICIAIS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

✓ Raízes históricas;
✓ Aproximações conceituais;
✓ Pressupostos e Valores
Inclui textos retirados da dissertação de mestrado da Desa. Mª. Joanice Guimarães
Unidade de textos compilada pelo Bel. José Raimundo dos Santos Júnior

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OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

Apresentar e discutir com o aluno os pressupostos conceituais da JUSTIÇA


RESTAURATIVA, para que ao final da unidade este possa compreender o papel e a
função da Justiça Restaurativa, além de construir estruturas conceituais próximas a
sua realidade.

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APRESENTAÇÃO

Bem-vindo à Unidade 1 do nosso curso. É muito bom contar com a sua participação.
Iniciaremos nossos estudos com a uma introdução sobre o que vem a ser JUSTIÇA
RESTAURATIVA passando pelas raízes históricas que construíram a JR como
conhecemos nos dias de hoje, seus aspectos conceituais onde iremos apresentar as
ideias que norteiam o pensamento restaurativo e finalmente iremos discutir seus
princípios e valores.
O objetivo é que, ao final, você tenha condições de compreender os elementos
formadores e conceituais da Justiça Restaurativa.
Vamos trabalhar!

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PLANO DE TRABALHO

UNIDADE 1
1. JUSTIÇA RESTAURATIVA
1.1. Raízes históricas;
1.2. Aproximações conceituais;
1.3. Pressupostos e Valores

Realizar dialogo informativo/discursivo a respeito


OBJETIVO da importância e o papel da JUSTIÇA
RESTAURATIVA
Demonstrar como e onde nasceram as idéias
basilares do que vem a ser Justiça Restaurativa, em
que estas se lastreiam, apresentar alguns conceitos
existentes para o tema, e apresentar os
pressupostos e valores que revestem as ações da
CONTEÚDO Justiça Restaurativa.
• Justiça Restaurativa - Ideias basilares;
• Papel e importância da Justiça Restaurativa
• Pressupostos e Valores que baseiam as
ações
• Aula expositiva, com o auxílio de slides;
• Estudo/leitura e discussão de textos
METODOLOGIA
informativos;
• Exibição de vídeos;

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SUMARIO UNIDADE 1
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM 2
APRESENTAÇÃO 3
PLANO DE TRABALHO 4
PRIMEIRAS PALAVRAS SOBRE JUSTIÇA RESTAURATIVA 6
RAÍZES HISTÓRICAS 8
ASPECTOS CONCEITUAIS 12
PRESSUPOSTOS E VALORES 18
REFERÊNCIAS 26

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PRIMEIRAS PALAVRAS SOBRE JUSTIÇA RESTAURATIVA

A Justiça Restaurativa constitui uma das principais metodologias para


tratamento e resolução dos conflitos na sociedade moderna.

Tema ainda pouco difundido entre nós, a Justiça Restaurativa encontra


presença crescente nas mais diversas instituições brasileiras, inclusive no Judiciário,
que tem se mostrado cada vez mais aberto e sensível aos problemas da sociedade,
buscando conhecer melhor os desafios da atividade diária por meio de técnicas pouco
afeitas ao universo jurídico-positivo.

Para a adoção de um paradigma restaurativo na resolução de conflitos,


formalmente, é fundamental conhecer os elementos que constituem a estrutura teórica
da sua concepção. E assim analisar qual a melhor orientação a ser seguida na
perspectiva da adaptação da JR às finalidades propostas.

O termo Justiça Restaurativa origina-se do equivalente inglês Restorative


Justice. Segundo o Oxford Advanced Learner´s Dictionary (versão onlline), na língua
inglesa, o verbo restore (restaurar), dentre outros significados, tem a acepção de
“trazer uma lei, tradição, maneira de trabalhar, etc. de volta ao uso”. Seria o sinônimo
de reintroduzir: “restaurar antigas tradições”. Do verbete restorative (restaurativo),
extrai-se da mesma fonte, em uma página anterior, um significado especialmente
importante qual seja, “fazer você se sentir forte e saudável novamente”. Tal sentido
pode ser associado ao empoderamento dos participantes nas práticas restaurativas,
que é um dos reflexos esperados no decorrer do processo de solução de conflitos pela
metodologia.

Em português, o verbo restaurar também contém sentidos dignos de nota no


contexto da Justiça Restaurativa. Segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa
(versão online), referido verbo origina-se do verbete latino imperial restauro e pode
significar “ter novo começo” ou “recomeçar”, que indica que a Justiça Restaurativa
está mais voltada para a convivência pacífica futura da comunidade e
responsabilização do ofensor que propriamente focada na punição pura e simples de
atos pretéritos.

O Houaiss ainda traz que restaurar pode ser o equivalente a “dar

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compensação a; pagar, indenizar <r. danos>”. Este é um sentido óbvio de qualquer
prática de natureza restaurativa. Os danos emocionais e materiais não devem
permanecer sem respostas. A reparação criativa, com a escuta das necessidades do
trinômio vítima-ofensor-comunidade, é o que se busca por este tipo de abordagem
depois que uma ofensa causa um desequilíbrio entre as relações interpessoais e
sociais. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (versão online) traz também
os significados para o verbo em referência de “recuperar, renovar, reconstituir,
revigorar” ou até mesmo de “dar um novo esplendor”, dos quais a Justiça Restaurativa
apropria a idéia de que os incidentes, se devidamente trabalhados, podem dar nova
cara às relações deterioradas por ocasião de uma ofensa, com a característica de não
marcar o ofensor com os estigmas do sistema judicial penal vigente.

Com relação ao termo restaurativo propriamente dito, extrai-se que é um


adjetivo que significa “que tem o poder de restaurar; restaurador”. Tal aptidão carrega
o conjunto de práticas que se intitulam restaurativa. Pretende-se, com elas, restaurar
os laços sociais e emocionais rompidos por uma violência ou infração.

Ainda sobre tal significação, imagine se no contexto do programa de Justiça


Restaurativa adotado na África do Sul (lá chamados de modelo Zwelethemba) na
década de 1990, após o regime do Apartheid, o foco da restauração fosse o retorno
da situação anterior? Sem dúvida a iniciativa seria um fracasso, ante o flagrante
retrocesso social em se resgatar qualquer forma de segregação racial. Assim sendo,
é equivocado afirmar que a Justiça Restaurativa busca necessariamente restaurar a
condição anterior a um evento conflituoso. O que se busca, de fato, é a construção
dialogada de formas de se conviver pacificamente no futuro e a restauração, na
medida do possível, dos laços sociais e emocionais rompidos. A atenção a este
objetivo pode evitar que o processo de solução de conflitos seja contraproducente e
fora do sentido principal pretendido com a restauração.

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RAÍZES HISTÓRICAS

Na maioria das sociedades as práticas alternativas para a solução de


conflitos, hoje reconhecidas como restaurativas, têm uma longa tradição que anterior
ao desenvolvimento de sistemas judiciários formais no estilo ocidental, e onde o
interesse coletivo, em prol da coesão, se sobrepunha ao interesse individual.

Os atos considerados afrontosos eram solucionados entre agressor, agredido,


familiares e as lideranças comunais, mediante a busca de uma solução rápida para o
problema, em prol do restabelecimento do equilíbrio coletivo rompido, pois, presente
a compreensão, que o ato delituoso atingia a todo o grupo social e poderia ocasionar
a sua desestabilização.

Embora de inestimável valor cultural, as práticas restaurativas foram sendo


abandonadas e relegadas ao esquecimento com o nascimento do estado moderno e
a constituição de um poder central que, objetivando monopolizar o controle social, as
considerou “primitivas”.

A esse tempo, surge no direito germânico, “uma série de leis no campo do


direito penal, especialmente as Capitulares de Carlos Magno (768 – 814),
enfraquecendo-se a concepção privada do direito de punir, com o fortalecimento do
poder público”, e o Estado adotando o novo modelo, tomou para si o poder de punir,
como responsável pela garantia da ordem pública, sustentando o discurso de que o
“jus puniendi”, ou seja o DIREITO DE PUNIR, seria um “dever-poder” único do Estado,
em prol da segurança e da paz social.

Assim, o Direito, instrumento de controle social, que até então era atrelado a
moral cristã, sob as premissas do positivismo jurídico passou a ter como única
realidade os ditames da lei. No caso especifico do Direito Penal, ocorreu um
distanciamento da moral religiosa, pois, sua fonte estava no poder político da
sociedade capitalista que o instrumentalizava para a manutenção da ordem burguesa
e liberal, sob a justificativa que, através da identificação das condutas desviantes e da
segregação carcerária, seria possível a manutenção da segurança e da estabilidade
social.

Na modernidade, a desilusão dos pensadores face as imposições da razão,

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no pensar e no existir, o desencanto com a ciência, a invenção de armas de guerra,
terrivelmente destrutivas, a crise ecológica global e outros acontecimentos históricos,
ensejaram em meados do século XX, um doloroso e gradual processo de reflexão
histórico–filosófico em contraposição ao “status quo” vigente. Não mais subsistindo
dúvida que o sistema formal de justiça, já não consegue dar conta das muitas
demandas que lhe são colocadas, em todas as áreas do conhecimento, surge uma
perplexidade, e a busca por novos paradigmas, se tornou inevitável.

Em meio à esteira dos questionamentos surgidos se encontram as práticas do


Direito Penal. Com um papel enfraquecido diante das massas, e em face da carência
de respostas às crescentes e imperiosas demandas decorrentes da violência e da
criminalidade, quebram-se todos os paradigmas de segurança.

O resgate do modelo de Justiça Restaurativa na área criminal surge como


uma resposta no plano humanitário, educacional e social, em face das situações
conflituosas que conduzem às ocorrências criminais constantes, sendo imprescindível
admitir, que a intervenção estatal, mediante a aplicação da pena de encarceramento,
não reduz as altas taxas de criminalidade ou de reincidência.

A chamada violência especifica, está presente no cotidiano de todos, cujas


formas mais visíveis são os delitos presentes a todo o momento, esgarçando o tecido
social. A violência estrutural, de forma subjacente, também presente nas diversas
estruturas de poder, pode ser considerada a mais perversa, pelo alcance,
profundidade e extensão com que macula a cidadania.

O enfoque criminal e policial que se dá ao combate das condutas desviantes,


pouco ou nada responde aos desafios que a problemática exige. Também, são sem
qualquer efeito, as bandeiras de moralização levantadas para salvar a pátria da
barbárie.

A Justiça Restaurativa foi, assim, resgatada das populações “primitivas”,


favorecida por três correntes de pensamentos cujos anseios sempre precisará
atender: a contestação das instituições repressivas, a descoberta da vítima e a
exaltação da comunidade, como explica Mylène Jaccoud.

Com relação ao movimento de contestação das instituições repressivas, este


surgiu a partir dos anos 30 do século XX, nas universidades americanas, com a

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concepção das teorias do consenso, que partem da premissa que a sociedade atinge
as suas finalidades quando há um perfeito funcionamento das suas instituições. Tais
entendimentos, associados à criminologia radical desenvolvida na Universidade de
Berkeley, objetivando substituir punição por controle, iniciaram uma profunda crítica
às instituições repressivas da época, retomando às lições do sociológico Émille
Durkheim sobre a ideia da consciência coletiva ou comum e da ruptura dos padrões
sociais de conduta.

Esse pensamento considera o conflito como uma característica normal e


universal das sociedades, ideia que ganhou corpo nos Estados Unidos, na
contestação ao papel e aos efeitos de tais instituições, o que também na Europa teve
eco, com os trabalhos de Michel Foucault, Françoise Castel, Robert Castel e Anne
Lovell, Nils Christir e Louk Hulsman, todos recomendando “uma justiça diferente,
humanista e não punitiva”, como relata Jaccoud.

Quanto à descoberta da vítima, movimento também identificado por Mylène


Jaccoud, afirma esta, lembrando Jacques Faget, que o término da Segunda Guerra
Mundial, deu lugar ao surgimento de discursos em favor das vítimas, os quais se
desenvolveram através de estudos científicos, denominado “vitimologia”. Este, além
de sensibilizar os juristas, com justificadas críticas ao processo penal, possibilitou
mudanças na mentalidade da época, inspirando as declarações de respeito à
dignidade da pessoa humana. Nesta ocasião, sucederam notáveis movimentos
internacionais de proteções aos Direitos Humanos, que asseguraram a participação
das vítimas no processo penal.

Finalmente, o terceiro movimento, que segundo Jaccoud, encorajou o


reaparecimento do modelo restaurativo na atualidade, faz a promoção das virtudes da
comunidade, ou seja, a exaltação da comunidade, como nomeado ainda por Faget.
Como tal, se constitui em uma noção que valoriza o envolvimento das comunidades
informais na discussão dos problemas criminais.

Considera-se “a comunidade”, o lugar que recorda as práticas tradicionais,


como memória de períodos em que a resolução de um número reduzido de conflitos
era melhor administrada, em regra, pela negociação. Ademais, esse movimento
ensejou o surgimento da noção de soberania concedida à comunidade, o que se
tornou onipresente nas teorias e nas práticas de Justiça Restaurativa.

A partir de 1970, iniciaram-se debates, restritos aos professores de Direito e

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de Ciências Sociais, quanto à possibilidade de ser a Justiça Restaurativa usada como
uma das vias alternativas para a ação penal.

Nos anos 80, pôde-se notar um crescimento no número de programas


restaurativos, até então vistos como simples “curiosidades”, os quais formaram uma
“massa crítica” para modelos viáveis, dando origem a uma Justiça Restaurativa “real
e possível”, considerada a partir de suas relações com o sistema existente.

Apesar da explosão da justiça restaurativa acontecer nos anos 90, antes dela
já existiam valores, processos e práticas restaurativas. Todavia somente na década
de 90 o tema voltou a atrair o interesse de pesquisadores como um caminho possível
para reversão da situação de ineficiência e altos custos, tanto financeiros como
humanos, do sistema de justiça tradicional e do fracasso deste sistema na
responsabilização dos infratores e atenção as necessidades e interesses das vítimas.

Baseada nas Constituições Democráticas do moderno mundo ocidental, cujo


princípio fundamental é a dignidade da pessoa humana, a Justiça Restaurativa
preconiza formula expressa de inviolabilidade dos direitos fundamentais, além de
atender aos pressupostos da teoria garantista e ter fundamento no Direito
Internacional e no Direito Humanitário.

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ASPECTOS CONCEITUAIS

A Justiça Restaurativa pode ser classificada como um conjunto de métodos


de tratamento de conflitos, em que se manifestam as características da voluntariedade
na participação, multidisciplinaridade na intervenção, empoderamento dos envolvidos,
horizontalidade das relações, valorização das soluções dialogadas, ressignificação do
papel do ofendido e da comunidade no processo, a busca pela reintegração sem
estigmas do ofensor na sociedade, bem como a confidencialidade do procedimento.

Ela baseia-se na aplicação de um rol de práticas, técnicas, atividades ou como


se queira chamar as ações oriundas do pensamento de cunho restaurativo, onde a
voluntariedade do infrator e da vítima são essenciais para o seguimento da proposta,
e quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pela
ofensa, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de
soluções, através de consenso, para a cura das feridas, dos traumas e perdas
causados pelo evento delituoso.

Baseado no seu desenvolvimento histórico e à luz da criminologia moderna o


professor Riccardo Cappi define Justiça Restaurativa, como:

Justiça Restaurativa é, pois, uma discussão sobre os novos “modos de


pensar e fazer” a justiça criminal, isto é, sobre as ideias, as
racionalidades, que sustentam a produção e a implementação de um
sistema de normas (de conduta, de sanção, de procedimento). É a
aproximação que privilegia toda forma de transformação, individual ou
coletiva, visando corrigir as consequências vivenciadas no âmbito de
uma infração, a resolução de um conflito ou a conciliação das partes.
Há, todavia, entre os mais diversos doutrinadores que têm se dedicado a
estudar este novo paradigma de justiça penal, uma preocupação com a falta de
uniformidade quanto ao uso de uma definição terminológica, que permita através de
uma única palavra, representar de forma clara o seu conceito e os seus princípios,
para daí aplicar, corretamente, os seus objetivos ao caso concreto.

Esta dificuldade existe em face do conceito de Justiça Restaurativa se


encontrar em processo de construção teórica e desenvolvimento, com análise
discursiva, mesmo após mais de trinta anos de experiências e debates. Assim desde
o ressurgimento deste paradigma até o momento, não foi possível precisar um
conceito inequívoco para Justiça Restaurativa.

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Por outro lado, em relação ao seu nome, várias expressões têm sido usadas,
tais como, justiça transformadora, justiça reparadora, justiça conciliadora, justiça
pacificadora, justiça relacional, justiça comunitária, que no entanto, conduzem sempre
à ideia de uma justiça que busca a restauração, a reparação, o conserto, o acerto, o
encontro, a reconciliação, a expiação, a composição, através de ações firmadas de
modo participativo e com responsabilidade.

Dentre estas expressões, o termo mais usado tem sido, acertadamente,


Justiça Restaurativa, por evocar uma ação ou um esforço em busca de uma
recomposição. Compreende-se, pelo senso comum, ser uma expressão que indica a
participação ativa da vítima, do ofensor e da comunidade, nos procedimentos da
Justiça.

A Justiça Restaurativa tem princípios próprios, sempre baseados no


voluntarismo, no consensualismo, no cooperativismo e no comunitarismo. Parte da
doutrina, alerta para a preocupação e a necessidade de serem, efetivamente,
definidos não só o conceito, como igualmente, os objetivos da Justiça Restaurativa,
pois, estes são itens difíceis de serem precisados, diante da diversidade de
orientações, modalidades e finalidades práticas que a Justiça Restaurativa,
implementa.

Deste modo, visando orientar os Estados-membros na implementação e


utilização do modelo restaurativo, a Organização das Nações Unidas, através do seu
Conselho Econômico e Social, emitiu a Resolução 2002/12, descrevendo os seguintes
conceitos básicos sobre Justiça Restaurativa:

Programa Restaurativo – se entende qualquer programa que utilize


processos restaurativos voltados para resultados restaurativos.
Processo Restaurativo – significa que a vítima e o infrator, e, quando
apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo
crime, participam coletiva e ativamente na resolução dos problemas
causados pelo crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. O
processo restaurativo abrange mediação, conciliação, audiências e
círculos de sentença.
Resultado Restaurativo – significa um acordo alcançado devido a um
processo restaurativo, incluindo responsabilidades e programas, tais
como reparação, restituição, prestação de serviços comunitários,
objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e
logrando a reintegração da vítima e do infrator. (ONU 2002)
Assim, a proposta restaurativa está na possibilidade de ofertar a comunicação
coadunada com a pacificação do conflito relacional decorrente do cometimento de um
crime. Braithwaite adverte que a justiça restaurativa não pode resolver as injustiças

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estruturais mais profundas, mas pode pedir para que ela não torne tais injustiças ainda
piores e a justiça restaurativa, tem também, o papel de restaurar a harmonia através
do procedimento baseado no diálogo levando em consideração as injustiças
subjacentes.

E esta não definição única de conceito tem relação com o fato da justiça
restaurativa também se apresentar como movimento social em busca do afastamento
do paradigma dominante, apresentando dimensões variáveis e por vezes, conflitantes,
como a dimensão ética, instrumental e comunitária, as quais se sobrelevam ou se
subvalorizam conforme os contextos e programas implementados.

Por isso, vale as contribuições de Howard Zehr (2018) ao indicar o que não é
objetivo da justiça restaurativa, afunilando, minimamente, o campo de apreensão
deste instituto. Desta maneira, a justiça restaurativa não serve para gerar,
necessariamente, o perdão ou a reconciliação, isso pode ocorrer. No entanto, a
escolha por experimentar estes sentimentos aflorará dos imbricados. Não pode haver
nenhuma pressão neste sentido, pois isso descreditaria a proposta restaurativa.

Também, não busca a redução de reincidência ou de ofensas em série. A


criminalidade diminuída é um subproduto da Justiça Restaurativa. As necessidades
da vítima precisam de atenção, os ofensores devem ser estimulados a perceberem
suas atitudes, a comunidade pode ser envolvida no processo, mas tudo isso não
significa o abandono pleno do comportamento transgressor por parte do ofensor
(ZERH, 2018). Seria temerário à justiça restaurativa vender a ideia de habilitada a
reduzir a reincidência.

Outros aspectos são levantados pelo autor como o que não é justiça
restaurativa, sendo que o presente estudo não se debruçará sobre esses. Todavia, é
importante ressaltar as necessidades, tanto da vítima, quanto do ofensor, como
também da comunidade para que a restauração seja promissora.

A vítima precisa ser bem informada com conteúdos reais e não especulativos,
requerendo um acesso direto ou indireto ao ofensor, detentor da informação; precisa
narrar o acontecido com verdade, apresentando o dano ao ofensor e o impacto disso
na vida desta (da vítima); e precisa estar e ser empoderada diante do contexto aflitivo
que a arrebatou (ZERH, 2018).

O ofensor precisa ser estimulado a perceber suas atitudes e o impacto delas


na vida alheia; precisa perceber sua responsabilidade sobre os danos resultantes;

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precisa de estímulo à transformação pessoal e de aprimoramento das competências
pessoais. Enquanto que as comunidades tem por necessidades: o fomento ao
convívio saudável e o incremento dum senso comunitário com responsabilidade
mútua (ZERH, 2018).

Verifica-se que certas necessidades passam por contextos macroestruturais,


como o incremento duma transformação pessoal e das competências pessoais; bem
como o senso de responsabilidade mútua. Entretanto, mesmo parecendo distante a
configuração real destes propósitos, tais precisam ser exercitados, pouco a pouco, um
a um, para que as relações intersubjetivas pacíficas almejadas sejam alcançadas.

Há também outra contribuição acerca do conceitual para a Justiça


restaurativa, onde,

(...) para alguns ela será um processo de encontro, um método de lidar


com o crime e a injustiça que inclui os interessados na decisão sobre
o que deve ser feito. Para outros, representa uma mudança na
concepção da justiça, que pretende não ignorar o dano causado pelo
delito e prefere a reparação à imposição de uma pena. Outros, ainda,
dirão que se trata de um rol de valores centrados na cooperação e na
resolução respeitosa do conflito, forma de resolução eminentemente
reparativa. Por fim, há quem diga que busca uma transformação nas
estruturas da sociedade e na forma de interação entre os seres
humanos e destes com o meio ambiente. (PALLAMOLLA, 2009, p. 47)
Visando a abertura de um processo reflexivo sobre o tema, Marcelo
Gonçalves Saliba, apresenta o seguinte conceito de Justiça Restaurativa:
Processo de soberania e democracia participativa numa justiça penal
e social inclusiva, perante o diálogo das partes envolvidas no conflito
e comunidade, para melhor solução que o caso requer, analisando-o
em suas peculiaridades e resolvendo-o em acordo com a vítima, o
desviante e a comunidade, numa concepção de direitos humanos
extensíveis a todos, em respeito ao multiculturalismo e à
autodeterminação.
A amplitude da conceituação de Justiça Restaurativa foi traduzida na clássica
definição de Tony Marshall, como “um processo onde todas as partes ligadas de
alguma forma a uma particular ofensa vêm discutir e resolver coletivamente as
consequências práticas da mesma e as suas implicações no futuro”.

O âmbito da Justiça Restaurativa alargou ainda mais as suas perspectivas


com a inclusão do modelo terapêutico, profundamente reformado, sob a inspiração de
Albert Eglash, psicólogo americano, que ao término dos anos 50, trabalhando com
programas dos Alcoólatras Anônimos, e visando restaurar as injustiças causadas aos
terceiros, estabeleceu a “restituição criativa”, buscando desenvolver a transformação

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pessoal e a recuperação dos ofensores.

Albert Eglash, foi quem em 1975, conceituou, pela primeira vez Justiça
Restaurativa, originando-se este conceito, da sua antiga noção de “restituição criativa”
ou “restituição guiada”, referindo-se “à reabilitação técnica onde cada ofensor, debaixo
de supervisão apropriada, é auxiliado a achar algumas formas de pedir perdão aos
que atingiu com sua ofensa e a 'ter uma nova oportunidade' ajudando outros
ofensores”.

Eglash, também, conseguiu iniciar a delimitação das práticas de Justiça


Restaurativa, para aplicação na justiça penal, identificando três modelos de justiça:
uma justiça distributiva, que objetiva impor ao infrator um tratamento; uma justiça
punitiva, que se concentra na imposição de castigos ao delinquente, e uma justiça
recompensadora, que visa a restituição, através da responsabilização do infrator.

Não deve esse aspecto terapêutico da Justiça Restaurativa, ser confundido


com o modelo reabilitador de justiça, identificado por Lode Walgreve. O modelo
reabilitador é apoiado, unicamente, sobre o indivíduo delinquente, e procura adaptá-
lo através de um tratamento, sem dispensar qualquer atenção à vítima, aos seus
familiares ou aos familiares do próprio ofensor, ou mesmo, à comunidade que sofreu
com a ocorrência dos fatos.

O viés terapêutico da Justiça Restaurativa é aplicado em termos de política-


criminal, como contraponto ao modelo tradicional de justiça, quando este estabelece
punições dirigidas às classes dos delitos considerados “sem vítimas”. A inserção é
feita, vinculada ao Poder Judiciário, contribuído para um melhor desempenho de suas
finalidades, através de programas socioeducativos, com medidas que Jaccoud,
justifica como uma aplicação, em que “o sistema de justiça, mantendo seu caráter
coercitivo, substitui a finalidade punitiva da sanção por uma finalidade restaurativa”.

Tudo isso nos permite afirmar que o conceito de Justiça Restaurativa é um


conceito ainda em aberto. Justifica-se, pois, deslocar o foco da sua análise conceitual
para as finalidades propostas por cada modelo de experiência prática já implantado,
na tentativa de tornar possível estabelecer diferenças entre as concepções existentes,
identificando as suas possibilidades de desenvolvimento, especialmente, no seio
estatal, quando mantida pelo Poder Judiciário.

André Gomma de Azevedo, aponta para a existência de conceitos mais


restritos ou mais amplos de Justiça Restaurativa, e dessa fusão de correntes, fazendo

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uso das suas próprias definições, gerou o conceito seguinte:

Proposição metodológica por intermédio da qual se busca, por


adequadas intervenções técnicas, a reparação moral e material do
dano, por meio de comunicação efetiva entre vítimas, ofensores e
representantes da comunidade voltadas a estimular: i) a adequada
responsabilização pelos atos lesivos; ii) a assistência material e moral
de vítimas; iii) a inclusão de ofensores na comunidade; iv)
empoderamento das partes; v) a solidariedade; vi) o respeito mútuo
entre vítima e ofensor; vii) a humanização das relações processuais
em lides penais; e viii) a manutenção ou restauração das relações
sociais subjacentes eventualmente preexistentes ao conflito.

Essa amplitude conceitual da Justiça Restaurativa levou John Braithwaite a


identificar uma finalidade institucional, caracterizando-a como possuidora de um
caráter instrumental que adiciona eficiência na reação ao crime. Ademais, por
substituir o controle penal formal por meios exitosos e medidas menos custosas, são
estas melhor aceitas pelo ofensor, tendo assim, maior legitimidade entre as partes
envolvidas nos conflitos penais. Isto permite uma participação mais autêntica na
resolução das lides, estimulando o respeito à lei e ao cumprimento dos acordos
firmados perante a Justiça, que ganha com isso maior credibilidade.

Na concepção de Howard Zehr que, igualmente, reconhece esta finalidade


institucional da Justiça Restaurativa, esta tem sido entendida sob um aspecto religioso
e espiritualizado, e busca firmar-se como um mecanismo destinado a introjetar valores
mais humanitários no sistema de justiça criminal. Conforme analisa Zehr, se o crime
é um ato lesivo, a justiça deve reparar a lesão e buscar a cura. Deve assim, ter como
primeiro objetivo reparar e curar as vítimas.

Como segundo objetivo, a reconciliação entre a vítima e o ofensor (cura do


relacionamento), sem esquecer as necessidades deste, embora enfatize a sua
responsabilização, que pode significar mudança e cura, com o reconhecimento do erro
cometido e o arrependimento.

De todas estas concepções e estes conceitos, podem ser extraídas, como


características marcantes da Justiça Restaurativa, não só a possibilidade de ensejar
a realização de um diálogo democrático, sincero e participativo entre as partes
principais e secundárias do delito, como também, e, principalmente, a concreta
realização do acordo restaurativo, que representa a manifestação de uma vontade
solidária de restabelecer encontros, proporcionar reparação e assumir a reintegração
e a inclusão de todos que sofreram com as consequências do delito.

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PRESSUPOSTOS E VALORES
A Justiça Restaurativa visa uma abordagem aplicada com garantias, além de
um tratamento igualitário, não estigmatizante, que tem como objetivo restaurar os
efeitos adversos do ato lesivo a partir do enfoque das necessidades integrais das
partes envolvidas, abrangendo a reparação de ordem material, emocional e afetiva.
Assim, isto será efetivado, com a responsabilização do ofensor, pela reparação em
favor da vítima, completando-se com a reinclusão de ambos à comunidade.

A participação das partes é a garantia do voluntarismo, como cooperação de


interesses e vontade livre, esclarecida e atual acerca dos seus direitos, da natureza
célere e eficaz do processo e das consequências possíveis, identificando uma solução
consensual, duradoura e futura, afastando-as, portanto, de uma atuação impositiva e
unilateral própria do processo tradicional.

Ao mesmo tempo que mantém o sigilo e a confidencialidade de todas as


informações referentes ao processo, a Justiça Restaurativa assegura oportunidades
iguais de tratamento, com dignidade, promovendo relações equânimes e não
hierárquicas, na promoção de transformações de padrões culturais e a inserção social
das pessoas envolvidas.

Privilegiando as consequências do conflito, reduzindo desigualdades e


restaurando danos, na perspectiva do exercício da cidadania, pela participação
comunitária, a Justiça Restaurativa visa contar com o apoio dos membros da
comunidade, pois estes deverão incentivar a vítima, assim como o ofensor, a
retomarem os seus papéis sociais de origem, sem prescindir da promoção do
empoderamento das partes junto à comunidade. Desta forma, tem entendido Renato
Sócrates Gomes Pinto, ao se referir à Justiça Restaurativa ensinando que:

A visão restaurativa, emancipa-se da abordagem típica do


pensamento linear do modelo patriarcal para, numa mudança para o
eixo do pensamento complexo e matrístico, focar as necessidades que
as pessoas e comunidades afetadas pela criminalidade têm em face
do delito, propondo um procedimento colaborativo, solidário e
inclusivo, baseado na responsabilidade e na restauração dos traumas
e lesões produzidas pelo crime, e não simplesmente na punição. Não
há julgamento, mas diálogo.

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A essência propagada pela restauração vem de muito tempo, dos povos
maoris, na Nova Zelândia, que empregavam a ideologia restaurativa com grande
repercussão positiva dentro da comunidade.

No Ocidente, o interesse emerge de um programa de reconciliação entre


vítima e ofensor na cidade de Kitchener, Ontário (Canadá), no ano de 1974, onde após
a decisão judicial, havia a mediação vítima e ofensor (BRAITHWAITE, 2002).

Vale notar o momento de aplicação da justiça restaurativa nos experimentos


iniciais canadenses: no pós-sentença. Isso remete à reflexão da incompatibilidade
imediata entre o emprego do instituto e das técnicas subjacentes e aderidas a ele em
relação à proposta de economicidade, pois toda máquina pública já foi movimentada.

Além disso, não houve redução temporal, pois todo o trâmite processual já se
deu, e o que verdadeiramente ficou, foi a enorme necessidade de resolver os aspectos
aflitivos que perduram e permanecem entre a vítima e o ofensor, mesmo diante duma
sentença. Daí em diante, diversas experiências sucederam e os países, pelas mais
variadas formas de compartilhamentos das vivências, vem mesclando e buscando
êxito em suas performances.

Neste momento, então, insta explorar os fundamentos valorativos e


principiológicos que permeiam a justiça restaurativa, cujo objetivo será, em grande
medida, atender as necessidades dos imbricados no conflito criminal.

Para começar, o princípio do respeito é difundido por ZEHR (2018), no sentido


deste respeito por todos precisar aparecer em toda dinâmica restaurativa. Este
respeito também precisa ser equilibrado pelo cuidado com a particularidade de cada
um, pois, por mais que os indivíduos estejam todos interconectados, cada qual
carrega sua singularidade, sua particularidade.

A observância detida desta particularidade promove o acúmulo e riqueza de


diversidade, além de tratar com seriedade aspectos relativos às específicas situações
e contextos nos quais se inserem as pessoas envolvidas. A justiça, pois, reconhece
tanto a interconexão, quanto a particularidade cultural, contextual e de personalidade
como elementos importantes a serem respeitados.

Ainda sob os cuidados do princípio do respeito, tal existe também para criar
ambiente para o exercício do empoderamento e da não dominação. Interessante notar
que o empoderamento implica na não dominação e vice-versa.

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O empoderamento acontece quando as partes atuam de forma livre, com a
tranquilidade para expressar suas necessidades e o modo como creem que os danos
podem ser reparados. A não dominação se manifesta quando não há desequilíbrio de
poderes entre as partes, logo, todas tem vez e voz qualificadas na comunicação
(BRAITHWAITE, 2002).

Para Jonh Braithwaite (2002) a não dominação é bastante delicada de ser


controlada, pois as interações sociais, de modo geral, são permeadas por dominação.
Por isso, o trabalho restaurativo precisa caminhar no sentido de minimizar as
disparidades de poder existentes.

Chama atenção o fato de que o facilitador deve apresentar muita habilidade


no momento em que se verifica o desequilíbrio de poderes, o qual se manifesta na
fala, no gestual e na entonação empregada por cada interveniente para sustentar seus
respectivos discursos e necessidades.

Aquele (o facilitador), a priori, deve aguardar para que o contexto de não


dominação e empoderamento se restabeleça, sendo dada a voz a quem está sofrendo
o domínio. Isto não ocorrendo, ou ocorrendo de maneira falha, é que o facilitador
deverá intervir para dar voz ao dominado, encorajando-o.

Agora, vale caracterizar o princípio da proporcionalidade, aqui entendido


como baliza para que as necessidades não extrapolem o bom senso e direcionem-se
a verdadeira cultura da paz e do bom convívio. Nesta senda, Braithwaite (2002) traz
contribuição significativa.

O autor traz a ideia de vergonha reintegrativa ou reintegrative shaming como


um dos pilares da sua teoria dentro da justiça restaurativa. Assim, a vergonha sentida
pelo ofensor, diante da desaprovação de sua conduta por parte das pessoas que estão
ao redor, pode fluir para dois caminhos distintos e divergentes: o primeiro pode gerar
a estigmatização e marginalização do indivíduo; e o segundo, pode gerar a
reintegração do ofensor.

A estigmatização e marginalização ocorrem quando o indivíduo não é acolhido


no seio social, e é, simplesmente, alijado; a reintegração ocorre quando aquela
desaprovação da conduta praticada está somada a reaceitação do indivíduo pela
comunidade, gerando o sentimento de responsabilidade pelo que este cometeu e uma
vontade no seu íntimo de se reintegrar.

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A proporcionalidade serve para o exercício da tolerância e do equilíbrio quanto
ao saneamento de necessidades, sejam elas material, simbólica ou emocional. De
nada adiantaria realizar o caminho restaurativo, se o acordo, ao final, levasse à
estigmatização destrutiva, degradante ou humilhante do desfecho. O aprendizado não
viria para nenhum dos imbricados.

Portanto, o princípio da proporcionalidade, exigente de postura mais amena,


mesmo diante de fatos reprováveis, dialoga diretamente com a ideia da vergonha
reintegrativa e inversamente em relação à estigmatização destrutiva.

ZEHR (2018) aponta para outro princípio que não pode deixar de ser
apresentado: o da solidariedade. Quando se pensa nela, se está diante do exercício
de cooperação, pois são usados processos inclusivos e cooperativos para corrigir
danos e males.

A solidariedade tem por pano de fundo, também, a capacidade de estabelecer


uma escuta sensível por parte do ouvinte acerca das demandas e questões
apresentadas pelo falante.

Isso significa que todos os intervenientes precisam estar solidários no


referente aos quesitos trazidos, com o escopo de minimamente endireitar o quadro
fático, sempre com o olhar sobre as consequências do evento.

A solidariedade entrelaçada à cooperação vislumbra a habilidade do indivíduo


reconhecer a sua dor, e ao mesmo tempo, ser capaz de reconhecer que do outro lado
há outro ser humano, com demandas diversas, muitas vezes de trato essencial e que
podem vir a ser compartilhadas ao longo da fala. Logo, a

justiça restaurativa é um processo para envolver, tanto quanto


possível, todos aqueles que tem interesse em determinada ofensa,
num processo que coletivamente identifica e trata danos,
necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de promover
o restabelecimento das pessoas e endireitar as coisas, na medida do
possível. (ZERH, 2018)
Para tornar ainda mais claro o entendimento das idéias que ora se
apresentam, faz-se necessário elencar os princípios e valores da Justiça Restaurativa.
A Carta de Brasília, documento elaborado pelos painelistas e participantes da
Conferência Internacional “Acesso à Justiça por Meios Alternativos de Resolução de
Conflitos”, ocorrida na capital federal nos dias 14 a 17 de junho de 2005, elenca, num
rol não fechado, dezoito princípios e valores dos procedimentos restaurativos, a saber:

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1. plenas e precedentes informações sobre as práticas restaurativas e
os procedimentos em que se envolverão os participantes; 2.
autonomia e voluntariedade na participação em práticas restaurativas,
em todas as suas fases; 3. respeito mútuo entre os participantes do
encontro; 4. corresponsabilidade ativa dos participantes; 5. atenção às
pessoas envolvidas no conflito com atendimento às suas
necessidades e possibilidades; 6. envolvimento da comunidade,
pautada pelos princípios da solidariedade e cooperação; 7.
interdisciplinaridade da intervenção; 8. atenção às diferenças e
peculiaridades socioeconômicas e culturais entre os participantes e a
comunidade, com respeito à diversidade; 9. garantia irrestrita dos
direitos humanos e do direito à dignidade dos participantes; 10.
promoção de relações equânimes e não hierárquicas; 11. expressão
participativa sob a égide do Estado Democrático de Direito; 12.
facilitação feita por pessoas devidamente capacitadas em
procedimentos restaurativos; 13. direito ao sigilo e confidencialidade
de todas as informações referentes ao processo restaurativo; 14.
integração com a rede de políticas sociais em todos os níveis da
federação; 15. desenvolvimento de políticas públicas integradas; 16.
interação com o sistema de justiça, sem prejuízo do desenvolvimento
de práticas com base comunitária; 17. promoção da transformação de
padrões culturais e a inserção social das pessoas envolvidas; 18.
monitoramento e avaliação contínua das práticas na perspectiva do
interesse dos usuários.
Dos princípios e valores citados, é importante destacar que somente
participarão dos processos restaurativos aqueles que desejarem e, ainda assim,
deverão passar por uma etapa anterior para que sejam esclarecidos os objetivos e
condições da prática.

A atenção às necessidades de todos os envolvidos direta ou indiretamente


por uma infração é que conduzirá o plano de ações e obrigações que será construído,
com a observância das capacidades de cada um.

Os profissionais que participarão dos processos devem ser capacitados e


valoriza-se a formação interdisciplinar, gerando o fenômeno da ressignificação da
atuação profissional.

O diálogo será o elemento central do processo e todos terão a oportunidade


de falar. Por óbvio, os direitos de cada participante não poderão ser suprimidos e o
sigilo do que foi discutido deve ser observado.

Segundo a Rede de Justiça Restaurativa da Nova Zelândia, a visão e a prática


da Justiça Restaurativa são formadas por diversos valores fundamentais que
distinguem a Justiça Restaurativa de outras abordagens mais adversariais de justiça
para a resolução de conflitos.

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Os mais importantes desses valores incluem:

PARTICIPAÇÃO: Os mais afetados pela transgressão – vítimas, ofensores e


suas comunidades de interesse – devem ser, no processo, os principais oradores e
tomadores de decisão, ao invés de profissionais treinados representando os
interesses do Estado. Todos os presentes nas reuniões de Justiça Restaurativa têm
algo valioso para contribuir com as metas da reunião.

RESPEITO: Todos os seres humanos têm valor igual e inerente,


independente de suas ações, boas ou más, ou de sua raça, cultura, gênero, orientação
sexual, idade, credo e status social. Todos portanto são dignos de respeito nos
ambientes da Justiça Restaurativa. O respeito mútuo gera confiança e boa-fé entre os
participantes.

HONESTIDADE: A fala honesta é essencial para se fazer justiça. Na Justiça


Restaurativa, a verdade produz mais que a elucidação dos fatos e o estabelecimento
da culpa dentro dos parâmetros estritamente legais; ela requer que as pessoas falem
aberta e honestamente sobre sua experiência relativa à transgressão, a seus
sentimentos e responsabilidades morais.

HUMILDADE: A Justiça Restaurativa aceita as falibilidades e a vulnerabilidade


comuns a todos os seres humanos. A humildade para reconhecer esta condição
humana universal capacita vítimas e ofensores a descobrir que eles têm mais em
comum como seres humanos frágeis e defeituosos do que o que os divide em vítima
e ofensor. A humildade também capacita aqueles que recomendam os processos de
Justiça Restaurativa a permitir a possibilidade de que consequências sem intenções
possam vir de suas intervenções. A empatia e os cuidados mútuos são manifestações
de humildade.

INTERCONEXÃO: Enquanto enfatiza a liberdade individual e a


responsabilidade, a Justiça Restaurativa reconhece os laços comunais que unem a
vítima e o ofensor. Ambos são membros valorosos da sociedade, uma sociedade na
qual todas as pessoas estão interligadas por uma rede de relacionamentos. A
sociedade compartilha a responsabilidade por seus membros e pela existência de
crimes, e há uma responsabilidade compartilhada para ajudar a restaurar as vítimas
e reintegrar os ofensores. Além disso, a vítima e o ofensor são unidos por sua
participação compartilhada no evento criminal e, sob certos aspectos, eles detêm a
chave para a recuperação mútua. O caráter social do crime faz do processo

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comunitário o cenário ideal para tratar as consequências (e as causas) da
transgressão e traçar um caminho restaurativo para frente.

RESPONSABILIDADE: Quando uma pessoa, deliberadamente causa um


dano à outra, o ofensor tem obrigação moral de aceitar a responsabilidade pelo ato e
por atenuar as consequências. Os ofensores demonstram aceitação desta obrigação,
expressando remorso por suas ações, através da reparação dos prejuízos e talvez até
buscando o perdão daqueles a quem eles trataram com desrespeito. Esta resposta
do ofensor pode preparar o caminho para que ocorra a reconciliação.

EMPODERAMENTO: Todo ser humano requer um grau de autodeterminação


e autonomia em sua vida. O crime rouba este poder das vítimas, já que outra pessoa
exerceu controle sobre elas sem seu consentimento. A Justiça Restaurativa devolve
os poderes a estas vítimas, dando-lhes um papel ativo para determinar quais são as
suas necessidades e como estas devem ser satisfeitas. Isto também dá poder aos
ofensores de responsabilizarem-se por suas ofensas, fazerem o possível para
remediarem o dano que causaram, e iniciarem um processo de reabilitação e
reintegração.

ESPERANÇA: Não importa quão intenso tenha sido o delito, é sempre


possível para a comunidade responder, de maneira a emprestar forças a quem está
sofrendo, e isso promove a cura e a mudança. Porque não procura simplesmente
penalizar ações criminais passadas, mas abordar as necessidades presentes e
equipar para a vida futura, a Justiça Restaurativa alimenta esperanças – a esperança
de cura para as vítimas, a esperança de mudança para os ofensores e a esperança
de maior civilidade para a sociedade.

Princípios básicos

A Justiça Restaurativa é sustentada por diversos princípios aqui estaremos


elencando os que mais destacam-se, os da voluntariedade, do consenso e da
confidencialidade.

a) Voluntariedade: A Justiça Restaurativa apenas pode ser aplicada com a


anuência expressa dos interessados, a qual inclusive pode ser retirada a qualquer
tempo durante o procedimento.

Na busca do diálogo e da compreensão, os interessados devem ser


esclarecidos sobre seus direitos, vantagens (quais vantagens, esclarecer, a vantagem

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não é processual, reduzir processo...) e consequências, para que então, com o devido

conhecimento, sintam-se preparados para optar pelas práticas restaurativas


e pela construção conjunta da solução para o conflito.

b) Consenso: A Justiça Restaurativa visa a construção conjunta de um


ajustamento entre os sujeitos envolvidos no conflito. Para que haja esse ajustamento,
todos devem estar cientes e de acordo com seus direitos e obrigações. O consenso
aqui tratado não se refere ao acordo eventualmente firmado entre os interessados
para resolução do conflito, mas sim quanto a participação e condução da prática. Deve
ter uma característica integrativa.

c) Confidencialidade: Todas as situações vivenciadas são acobertadas pela


confidencialidade e consequentemente não poderão – caso não haja ajustamento
entre as partes – ser utilizadas como prova endoprocessual. A confidencialidade é
essencial para que os interessados se sintam confiantes para exporem suas
experiências, seus sentimentos e como a relação conflituosa afetou suas vidas. A
regra da confidencialidade é mitigada por autorização expressa das partes, violação
à ordem pública ou às leis vigentes.

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REFERÊNCIAS

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Justiça Restaurativa: Uma Breve Apresentação de uma Inovação
Epistemológica na Autocomposição Penal. In.: SLAKMON, C.; DE VITTO, R.;
PINTO, R. Gomes (Org.). Justiça Restaurativa. Brasília – DF: Ministério da Justiça e
as para o Desenvolvimento – PNUD. 2005.
BRAITHWAITE, John and ROCHE, D. Restorative Justice and Responsive
Regulation. New York: Oxford. 2002.
GOMES PINTO, Renato Sócrates. Justiça Restaurativa. A era da Criminologia
Clínica. Disponível em: http://www.idcb.org.br/arquivos/artigos2.html.
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Justiça Restaurativa. In: SLAKMON, C., R. De Vitto, e R. Gomes Pinto, org., 2005.
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Unidas para o Desenvolvimento - PNUD.
Jesus, Joanice Maria Guimarães de. Justiça restaurativa aplicada ao juizado
especial criminal: em busca do modelo ideal Dissertação de Mestrado apresentada
à Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito, Orientador Professor Doutor
Riccardo Cappi. Salvador – BA 2014
MARSHALL, Chris; BOYARD, Jim; BOWEN, Helen. Como a Justiça Restaurativa
assegura a boa prática: uma abordagem baseada em valores. In: SLAKMON, C;
DE VITTO, R. Gomes (Org.) Justiça Restaurativa. Brasil: Ministério da Justiça, PNUD,
2005
MARTIL, Neusa Mosi Antunes. Justiça Restaurativa e os Círculos de Construção
de Paz: a coesão do tecido social como contributo à prevenção criminal.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto Superior de Ciências Policiais e
Segurança Interna Orientador: Professor Doutor Nuno Caetano Lopes de Barros
Poiares Lisboa, Fevereiro 2018
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula, Justiça restaurativa: da teoria à prática.
São Paulo: IBCCRIM, 2009.
SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba:
Juruá. 2009.
SLAKMON, C., R. De Vitto, e R. Gomes Pinto, org., Justiça Restaurativa Brasília –
DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento -
PNUD. 2005
ZEHR, Howard. Trocando as lentes. Justiça restaurativa para o nosso tempo.
trad. Tônia Van Acker. 3. edição. ed. 25º. aniversário. São Paulo: Palas Athena, 2018.
ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. 2. ed., fevereiro de 2017. trad. Tônia Van
Acker. São Paulo: Palas Athena: 2015.

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