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1 INTRODUÇÃO
1
Paper elaborado para servir como leitura preliminar obrigatória da disciplina Introdução ao Estudo do
Direito do Centro Universitário Jorge Amado, ao longo do semestre acadêmico 2008.2. A leitura do presente
paper não substitui a leitura da bibliografia indicada pelo professor, constante no final deste texto.
2
Professor do curso de Direito do Centro Universitário Jorge Amado, em Salvador e da Faculdade
Apoio/Unifass, em Lauro de Freitas (BA). Mestrando em Direito das Relações Sociais e Novos Direitos da
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Teoria do Direito pela Universidade do Sul de Santa
Catarina (SC) e Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Jorge Amado (BA). Advogado em Salvador
(BA).
3
ALMEIDA, Rodrigo Andrade de. Noções elementares sobre a essência do direito ao longo da história.
“Paper” elaborado para a disciplina.
4
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 15.
1
2 FUNDAMENTO METODOLÓGICO
É relevante observar, aqui, que o universalismo ético abrange três dimensões, quais
sejam, uma dimensão pessoal, uma espacial e outra temporal. Para os adeptos dessa corrente
teórica, alguns valores morais ou princípios de justiça são universais em todas essas
dimensões.
5
NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 1980. p. 28.
2
UNIVERSALISMO ÉTICO
É importante, também, ressaltar que os universalistas em matéria ética não afirmam que
todos os valores morais são universais; admitem, ao contrário, que cada pessoa, em cada local
e época possui valores morais próprios, que podem ser diferentes dos valores morais de outras
pessoas, em outros locais e em outras épocas. Acreditam, entretanto, que alguns valores
morais sejam universais e, portanto, eternos e imutáveis.
Portanto, como disse acima, podemos dizer que todo jusnaturalista é, de uma forma
geral, universalista em matéria ética, noção que é absolutamente coerente com o pensamento
jusnaturalista.
Dito de forma sucinta, os jusnaturalistas, como universalistas em matéria ética que são,
acreditam que existem valores morais e princípios de justiça que são universalmente válidos;
como esses valores são eternos e imutáveis, fazem parte da natureza humana e, portanto, da
essência do ser humano; logo, qualquer ato ou ordem que vá de encontro a esses valores
morais fundamentais é contrário à natureza do homem e, portanto, injusto e ilegítimo.
É com base nesse raciocínio que os jusnaturalistas concluem que os seres humanos têm
o direito natural de ter esses valores morais universalmente válidos respeitados;
conseqüentemente, qualquer norma posta pelo homem (direito positivo) deve respeitar o
direito natural ou, caso contrário, será injusta, podendo os homens desobedecê-la.
3
consideração sua importância para o argumento jusnaturalista. 6 Para compreender, entretanto,
o sentido desse termo, cumpre antes explicitar o significado da palavra natureza.
Natureza é um conceito extremamente genérico que serve para designar tudo aquilo que
existia antes do homem, e que continuará a existir sem o homem, 7 como as plantas, o mar e as
estrelas, por exemplo. A noção de natureza põe em destaque a distinção entre aquilo que é ou
foi produzido ou criado pelo ser humano, e aquilo que tem existência independentemente de
sua vontade criadora.
Natureza das coisas é, assim, a expressão utilizada para expressar a ideia da existência
de um direito natural; indica que o mundo tem uma ordem natural, um estado ideal de coisas,
um dever ser 8 que nenhuma vontade humana (seja do legislador, do juiz ou de qualquer outra
pessoa) jamais poderá subverter. Fica bastante clara a ideia de indisponibilidade e perenidade:
é impossível que o artifício das convenções e das condutas humanas possa alterar a natureza
das coisas, pois esta tem existência prévia ao próprio ser humano, e dele independe.
Por fim, o jusnaturalismo se apoia na ideia de que o homem pode conhecer a natureza
das coisas e, portanto, o direito natural, a partir da razão.
O conceito de razão pode ser tão complexo, que alguém poderia escrever um livro
inteiro apenas para tratar dele. Como o nosso objetivo aqui é fazer uma primeira aproximação
6
BOBBIO, Norberto. Giusnaturalismo e positivismo giuridico. Milão: Edizioni di Comunità, 1965. p. 197.
7
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: UnB, 1997. p. 27.
8
A expressão dever ser é de incomensurável importância para a teoria do direito. Falaremos dela inúmeras
vezes, quase sempre em contraposição à expressão ser. De uma forma geral, ao nos referirmos ao mundo do
ser, falamos do mundo dos fatos, ou seja, de como as coisas são de fato. Se digo: “os carros produzidos no
Brasil consomem pouco combustível”, quero simplesmente dizer que, no mundo dos fatos, ou seja, na vida
real, os carros brasileiros consomem pouco combustível! Se, ao contrário, digo: “os carros produzidos no
Brasil devem consumir pouco combustível”, quero dizer que é desejável que os carros brasileiros sejam
econômicos, ou seja, essa é uma situação ideal. Ao dizer que os carros produzidos no Brasil devem consumir
pouco combustível, não estou dizendo que os carros brasileiros consomem, de fato, pouco combustível. Em
outras palavras, enquanto o ser corresponde ao mundo dos fatos, o dever ser corresponde ao mundos dos
valores.
4
ao estudo da teoria do direito, vamos nos contentar com a noção comum da palavra razão, ou
seja, “[...] a consciência humana, a capacidade moral e intelectual dos seres humanos”, 9 a
consciência que o ser humano tem de sua existência, ligada à sua capacidade de raciocínio,
que o diferencia dos demais animais.
É preciso ressaltar que o jusnaturalismo não é uma escola jurídica coesa, no sentido de
que há, entre os vários autores jusnaturalistas, grandes divergências teóricas. Assim, ao invés
de falarmos em “jusnaturalismo”, talvez fosse mais apropriado falarmos de
“jusnaturalismos”. 10 Trataremos mais adiante dessas diferentes abordagens jusnaturalistas,
mas já posso anunciar que uma das grandes diferenças entre o jusnaturalismo medieval e o
jusnaturalismo moderno é exatamente o papel desempenhado pela razão humana na definição
do direito natural.
9
Essa é a definição dada por CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. São Paulo: Ática, 2003. p. 61.
10
SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 692.
5
O exemplo mais antigo da tensão entre o direito natural e o direito positivo de que se
tem notícia é aquele apresentado na tragédia Antígona, do poeta grego Sófocles. A referida
tragédia é a última parte da Trilogia Tebana, composta também por outras duas histórias,
Édipo Rei e Édipo em Colono. As três histórias juntas formam uma complexa trama, mas
tentarei expor os principais episódios de forma sucinta, apenas para ilustrar a grandeza da
contraposição engendrada por Sófocles.
Édipo deixa a terra onde fora criado e dirige-se a Tebas. No caminho entra em conflito
com uma comitiva que passava, e termina matando a todos, sem saber que dentre os mortos
estava seu pai, o rei de Tebas. Ao chegar a Tebas, que estava atravessando um período
bastante difícil, Édipo decifra o enigma da Esfinge, e torna-se o novo rei de Tebas,
desposando a rainha, Jocasta. Nem Jocasta nem Édipo se dão conta de que são, na realidade,
mãe e filho, e têm quatro filhos juntos: Etéocles, Ismênia, Polinice e Antígona.
Quando descobriu que era filho de Jocasta, Édipo furou os próprios olhos, e exilou-se
de Tebas. Antígona foi a única que não o abandonou, e o acompanhou no exílio até a morte.
Ao retornar a Tebas, Antígona descobriu que seus irmãos Etéocles e Polinice brigavam pelo
trono, até o ponto em que ambos morreram em um duelo. O trono, assim, foi herdado pelo
irmão de Jocasta, Creonte, que em seu primeiro édito, determinou que Etéocles, tido como um
bravo defensor da cidade, fosse sepultado com todas as honras fúnebres, enquanto Polinice,
considerado um traidor, fosse deixado onde caiu. Segundo esse édito, ainda, caso alguém
desobedecesse à ordem de Creonte e enterrasse Polinice, seria condenado à pena de morte:
CREONTE:
[...]
E agora, irmanados a estes princípios, tenho
determinações a proclamar sobre os filhos de Édipo.
Etéocles, que, em luta por esta cidade,
pereceu, brilhando em todos os combates,
determino que seja sepultado, digno de todos os ritos
que acompanham os melhores ao mundo dos mortos,
mas, quanto ao irmão dele, refiro-me a Polinice,
que atacou a pátria e seus deuses,
retornando do exílio quis com tochas
reduzi-la a cinzas e levar cativos os cidadãos,
que esse, já determinei à cidade,
não receba sepulcro nem lágrimas,
que o corpo permaneça insepulto,
pasto para aves
e para cães, horrendo espetáculo para os olhos.
Esta é minha decisão, jamais de mim
6
obterão os maus a honra devida aos justos.
Mas o que tiver sentimentos favoráveis a esta cidade, vivo
ou morto, será no mesmo grau, honrado por mim. 11
O problema que surge, nesse ponto, é o seguinte: segundo a tradição e crença dos
antigos gregos, o morto que não fosse sepultado seria condenado a vagar por cem anos nas
margens do rio que levava ao mundo dos mortos, sem conseguir passar para o outro lado. A
mera ideia de morrer e não ser sepultado inquietava e atormentava os antigos, constituindo
medo maior do que o próprio medo da morte. 12 Isso ocorria por acreditarem os antigos que
aquela seria uma regra determinada pelos deuses, ou seja, uma regra de direito natural,
enquanto a regra posta por Creonte não passava de uma regra de direito positivo, isto é, fruto
da vontade humana. Antígona, indignada diante da norma imposta por seu tio, reclama o
direito natural de sepultar o irmão, tipo por ela como superior ao direito posto pelo soberano,
desobedecendo-o. Eis um excerto bastante significativo dessa contraposição, no diálogo que
se passa quando Antígona é presa em flagrante pelos guardas e levado a Creonte:
CREONTE:
E tu, que baixas a cabeça,
admites ou negas que procedeste assim?
ANTÍGONA:
Admito, não nego nada.
CREONTE:
[...] Sabias que eu tinha proibido essa cerimônia?
ANTÍGONA:
Sabia. Como poderia ignorá-lo? Falaste abertamente.
CREONTE:
Mesmo assim ousaste transgredir minhas leis?
ANTÍGONA:
Não foi, com certeza, Zeus que as proclamou,
nem a Justiça com trono entre os deuses dos mortos
as estabeleceu para os homens.
Nem eu supunha que tuas ordens
tivessem o poder de se superar
11
SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 19-20.
12
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga, apud SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 696.
7
as leis não-escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal.
Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas
são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram.
Por isso, não pretendo, por temor às decisões
de algum homem, expor-me à sentença divina.13
Observe que o que se discute, no fim das contas, nessa parte da tragédia de Sófocles, é a
relação entre o direito natural e o direito positivo: qual deve prevalecer? Pode o direito
positivo contradizer frontalmente o direito natural, sendo este eterno e imutável? Sem a menor
sombra de dúvida, um jusnaturalista responderia: “evidentemente, o direito natural é superior,
e o direito positivo não pode se insurgir contra as regras da natureza.”
3 FUNDAMENTO TEÓRICO
Falar em teoria do direito significa, hoje, falar basicamente em uma teoria da norma
jurídica e em uma teoria do ordenamento jurídico. 14 Logo, para falarmos em uma teoria
jusnaturalista do direito, temos de levar em consideração a noção que os jusnaturalistas
tinham e têm, tanto do que seja uma norma, quanto do que seja um ordenamento jurídico.
Eis que surge, então, a nossa primeira dificuldade. Essa ideia de construir uma teoria,
entendida como um corpo sistemático de propriedades inerentes a um objeto é uma noção
moderna, ou seja, coisa relativamente recente na história do pensamento, se levarmos em
consideração os milhões de anos que compreendem a odisseia humana sobre a Terra. Assim,
não é adequado, do ponto de vista epistemológico, falarmos em uma teoria jusnaturalista do
direito dos antigos gregos, por exemplo. Aristóteles, a título ilustrativo, não construiu uma
teoria da norma jurídica, mas podemos, a fim de melhor compreender o pensamento
13
SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 35-36.
14
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6.ed. Brasília: UnB, 1995. p. 19.
8
jusnaturalista, tentar sistematizar o substrato teórico dos pensadores jusnaturalistas. Para isso,
contudo, é necessário que saibamos que há uma grande diferença entre os jusnaturalismos
antigo, medieval e moderno.
As normas advindas da natureza são aquelas que consubstanciam a vontade dos deuses;
assim, são perfeitas, imutáveis no tempo e no espaço (universalismo ético), e são sempre a
expressão da mais pura justiça. São normas que se aplicam sobre os homens, mesmo contra
sua vontade.
As normas elaboradas pela família, pela comunidade ou pelo Estado, são aquelas que
consubstanciam a vontade dos seres humanos; assim, são fruto ou da necessidade, ou da
conveniência, e portanto diferentes de lugar para lugar, e de uma época para outra.
Exatamente pelo fato de serem transitórias, não devem ir de encontro às regras do direito
natural, segundo a teoria jusnaturalista antiga. Contudo, excepcionalmente, os antigos
admitiam que, caso ocorresse de fato esse conflito, a norma positiva poderia prevalecer, por
haver sido elaborada em face de uma necessidade que seria, fundamentalmente, transitória.
Uma vez cessada essa necessidade, a norma positiva deveria deixar de existir, voltando a ser
15
Fonte do direito é mais um importante conceito para o estudioso do direito. Refere-se à origem da norma, ou
seja, o local, órgão ou autoridade de onde emana a norma jurídica, dotando-a de obrigatoriedade.
9
respeitada a norma de direito natural.
16
MACHADO NETO, Antonio Luís. Sociologia jurídica. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 345.
17
Observe que neste texto utilizo os termos norma e regra como sinônimos. Há, contudo, diferenças
fundamentais entre os dois termos que, contudo, não nos interessam neste momento do curso. Basta dizer,
sucintamente, que norma é gênero, do qual regra é espécie, assim como o é o princípio. Para quem desejar
compreender, desde já, as diferenças existentes entre regras, princípios e normas, indico o livro ÁVILA,
Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7.ed. São Paulo:
Malheiros, 2007.
10
seriam justas sempre que respeitassem e fossem condizentes com o direito natural, e seriam
injustas e ilegítimas sempre que fossem de encontro àquelas regras fundamentais da justiça
divina. Havia, assim, uma concepção do direito natural objetivo e material, que marcava a
teoria jusnaturalista medieval. Vamos entender um pouco melhor o significado desses dois
termos.
Quando falamos em direito natural objetivo, queremos dizer que a noção trazida por
suas regras recaía sobre os deveres das pessoas para com Deus e a sociedade. Em outras
palavras, se dissermos que uma das regras do direito natural determina que “todos são iguais
diante de Deus”, em verdade o que se pretende afirmar é que cada um de nós deve tratar a
todos com igualdade, ou seja, eu, enquanto indivíduo, tenho o dever de tratar a todos de forma
igualitária.
Quando falamos, ainda, em direito natural material, estamos nos referindo ao conteúdo
da referida norma. Isso é especialmente importante no momento de identificar uma norma de
direito natural. Conforme disse acima, os jusnaturalistas medievais defendiam que as regras
de direito natural eram sempre justas e perfeitas, por serem originadas em Deus. Destarte,
retomemos a suposta norma que citamos acima: “todos são iguais diante de Deus”. Essa é
uma norma boa? É justo que todos sejam iguais diante de Deus? Se você responder que sim,
se acreditar que essa norma é justa e perfeita, então poderá concluir que se trata de uma norma
de direito natural.
18
MACHADO NETO, Antonio Luís. Sociologia jurídica, op. cit., p. 345.
11
A lei eterna inspira a lei humana, da mesma forma que a natureza
divina inspira a natureza humana. Sem dúvida nenhuma, a natureza humana
pode ser dita uma natureza divina, isto pois todo criado é fruto do Criador.
Nesse sentido, a lei humana também é divina, ou seja, também participa da
divindade. Em outras palavras, a fonte última de toda lei humana seria a
própria lei divina. Todavia, sua imperfeição, seus desvios, sua incorreção
derivam direta e francamente das imperfeições humanas. 19
Percebe-se, assim, que a lei eterna ocupa um lugar de destaque em relação à lei
temporal, pois esta é imperfeita, e tal imperfeição decorre da noção de pecado original e livre
arbítrio.
Segundo Agostinho, o ser humano é marcado pelo pecado original, ou seja, aquela
iniqüidade originária que, desde a expulsão de Adão e Eva do Edem, atormenta o homem;
além disso, o homem é livre para decidir como agir, podendo assim escolher entre alinhar-se à
vontade de Deus ou afastar-se dela. É exatamente a união entre o livre arbítrio e o pecado
original que fazem com que o homem crie leis injustas, imperfeitas e corruptas. 20
19
BITTAR, Eduardo C. B; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 5.ed. São Paulo:
Atlas, 2007. p. 200.
20
BITTAR, Eduardo C. B; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito, op. cit., p. 205.
21
MACHADO NETO, Antonio Luís. Sociologia jurídica, op. cit., p. 347.
22
Há, entre os autores, alguma divergência em relação à quantidade de esferas teorizada por Tomás de Aquino:
MACHADO NETO, Antonio Luís. Sociologia jurídica, op. cit., p. 348, por exemplo, considera que eram
quatro os tipos de leis vislumbrados por Aquino: lei eterna, lei natural, lei humana e lei divina; BILLIER,
Jean-Cassien, MARYIOLI, Aglaé. História da filosofia do direito. Barueri: Manole, 2005. p. 124-125, por
outro lado, consideram apenas três tipos de lei: a lex aeterna, lex naturalis e lex humana. Por questões de
ordem didática, preferimos adotar esta última classificação.
12
3.2 O JUSNATURALISMO MODERNO
Ao falarmos das teorias jusnaturalistas antiga e medieval, dissemos que uma das marcas
fundamentais das mesmas era sua concepção de direito natural objetivo e material, e vimos
que isso significa, em linhas gerais, que os direitos são analisados a partir da perspectiva dos
deveres do indivíduo perante Deus (para os medievais, ou a natureza, para os antigos) e a
sociedade, e que se caracterizam pelo seu conteúdo, sempre ligado à ideia de justiça e
perfeição moral.
Em verdade, é exatamente a partir dessa “nova” teoria dos direitos naturais que os
autores pré-modernos fundamentam a própria existência da sociedade civil e do Estado
moderno. Como vimos no Capítulo 1 (item 1.4.4.2.2), os teóricos contratualistas falavam em
um suposto estado de natureza, contraposto à sociedade civil; uma das características mais
comumente apontadas pelos referidos autores a respeito do estado de natureza era exatamente
a inexistência de qualquer garantia quanto à observância dos direitos naturais dos indivíduos
naquele estado de incessante “guerra de todos contra todos” (para utilizar a terminologia
empregada por Thomas Hobbes). A sociedade civil, politicamente organizada na forma de
23
A fim de ilustrar essa mudança de mentalidade, e o choque que a mesma produziu em relação à mentalidade
anterior, indico o romance ECO, Umberto. O nome da rosa. São Paulo: Nova Fronteira, 2008. Há, também, o
filme homônimo, de 1986, dirigido por Jean Jacques Annaud.
13
Estado, teria exatamente como função principal salvaguardar o respeito e observância dos
direitos naturais, como parte fundamental do pacto ou contrato social.
Esse fundamento, como se pode imaginar, não poderia mais estar no conteúdo da norma
de direito natural; os teóricos, assim, tentaram buscar um fundamento formal para o direito
natural, e esse fundamento foi encontrado na noção de razão humana. Em outras palavras, a
tese defendida passou a ser a de que as regras de direito natural eram aquelas regras básicas de
conduta acessíveis à razão humana, ou cognoscíveis pelo homem através da razão. Observe
que não estamos nos referindo aqui ao conteúdo da norma, ou seja, não estamos dizendo que
ela seja justa ou boa, mas somente que está presente na própria essência do ser humano,
fazendo parte dele. Para além disso, essas regras constituem verdadeiros direitos que cada
indivíduo possui, oponíveis aos demais indivíduos e à própria sociedade como conjunto, pelo
simples fato de ser humano. Dito de outra forma, tem-se aí uma concepção individualista do
direito natural, o que significa que cada indivíduo possui direitos subjetivos, a serem
respeitados e observados pelos demais indivíduos e pela sociedade como um todo. Juntas,
essas duas características modificam sensivelmente a teoria jusnaturalista, pois os direitos
naturais, que na Antiguidade e na Idade Média eram tidos como direitos objetivos e materiais,
passam a ser vistos agora como direitos subjetivos e formais.
14
todos de forma igualitária (e não o dever de tratar a todos de forma igualitária: ao invés de um
dever, tenho um direito!). E se a noção de igualdade parece correta para a maioria das
pessoas, significa que faz parte da própria essência do ser humano e, portanto, constitui um
direito natural. Essa é uma concepção do direito natural formal e subjetivo (ou individual),
marca fundamental do jusnaturalismo moderno. Comparando, nesse ponto, os jusnaturalismos
antigo e moderno, temos que:
24
BILLIER, Jean-Cassien, MARYIOLI, Aglaé. História da filosofia do direito, op. cit., p. 371-372.
15
determinadas regras de direito natural. Em outras palavras, se para garantir a paz e a ordem no
seio da sociedade civil o Estado precisar decretar a morte de alguns indivíduos que
representem risco, essa lei positiva será legítima e válida. O direito positivo, assim, está em
posição de supremacia em relação ao direito natural, segundo pensamento hobbesiano.
Desta vez, contudo, o jusnaturalismo assume uma característica bastante diferente: Del
Vecchio, por exemplo, tentar fundamentar a existência de direitos naturais de conteúdo
variável, querendo dizer com isso que as regras de direito natural podem variar, de acordo
com o momento histórico vivido pela sociedade. Tal afirmação, contudo, contraria um dos
fundamentos axiológicos do jusnaturalismo, que é a crença no universalismo ético.
Uma das principais razões para que isso acontecesse foi o chamado processo de
codificação do direito: a função de criar normas jurídicas válidas foi confiada a um órgão
específico do Estado (o Poder Legislativo), que as fazia na forma de leis escritas e
organizadas em um código sistematicamente ordenado.
Aliada ao fenômeno das codificações do século XIX, ganhou corpo também a noção de
que não existem valores morais e princípios de justiça universalmente válidos. Lembre-se de
que, quando começamos a falar do jusnaturalismo, dissemos que um dos fundamentos
axiológicos que lhe dão suporte é exatamente a crença na existência de valores
16
universalmente válidos (universalismo ético). Ganhou força, portanto, a partir do Iluminismo,
a corrente chamada de relativismo ético, à qual faremos referências mais detidas quando
falarmos do positivismo jurídico, mais adiante.
Por tudo isso, tornou-se comum, a partir do século XIX, falar que o jusnaturalismo
estava morto, fadado a desaparecer do mundo da teoria do direito, exatamente por se basear
em valores de cunho estritamente pessoais e de difícil aferição cognoscitiva. As teorias que se
seguiram ao jusnaturalismo, como o exegetismo, o historicismo e o próprio positivismo
jurídico, deixarão de lado a ideia da existência de um direito natural universalmente válido,
imutável e perfeito, e privilegiarão outros aspectos da experiência normativa, como a tradição
(que é mutável), a validade (ligada à autoridade que instituiu a norma) e a eficácia (o efetivo
funcionamento do direito na vida social). Não é demais lembrar que o século XIX
caracterizou-se em grande medida pela grande aceitação, no campo do conhecimento, do
paradigma epistemológico cientificista moderno, que seria depois transformado em
positivismo sociológico, por Auguste Comte, e metodologicamente lapidado por Émile
Durkheim. Segundo esse paradigma, a única forma legítima de conhecimento racional era
aquele produzido no âmbito da ciência, e sua principal característica era exatamente a
neutralidade axiológica, a ser garantida por meio de um estudo metódico dos fenômenos
sociais.
25
ROMMEN, Henri apud MACHADO NETO, Antonio Luís. Sociologia jurídica, op. cit., p. 353-354, que
afirma também: “[...] Os tempos mudam e as idéias, revestidas de roupagens novas, servindo a objetivos os
17
de que, de tempos em tempos, a questão da legitimidade moral de normas ou sistemas
jurídicos é trazida à baila, “ressuscitando”, por assim dizer, a discussão sobre o direito natural,
como suposto limite material normativo ao direito positivo.
O exemplo mais recente desse “retorno ao direito natural” pode ser observado na
filosofia do direito da segunda metade do século XX, sobretudo no período subseqüente à
Segunda Grande Guerra.
Com o fim da Guerra e a derrocada dos regimes nazi-fascistas, teve início um robusto
movimento por parte de importantes teóricos do direito, no sentido de refutar o positivismo
jurídico, por considerarem que aquela teoria tinha o grave inconveniente de legitimar todo e
qualquer regime político, pois mais abominável que fosse. O exemplo mais comumente
empregado por esses teóricos é o direito nazista que, segundo argumentam, podia ser
considerado “direito” a partir do ponto de vista juspositivista. Essa nova reação teórica (se é
que se pode chamá-la de teórica, ao invés de político-ideológica), assim, passou a reclamar a
necessidade de observância, pelo direito positivo, de princípios fundamentais superiores ao
mais antagônicos, por vezes, permanecem, desafiando bravamente a capacidade criadora da inteligência
humana. [...] Assim aconteceu com o Direito Natural; ideia antiqüíssima, cujos primórdios dificílimo, senão
impossível, seria pesquisar no amontoado das lendas, tradições e costumes de povos, de cuja história nos
separam séculos e milênios [...]. Quando tudo parecia indicar ao ingênuo otimismo cientificista da centúria
que nos precedeu, que o historicismo e o positivismo jurídicos já lhe haviam executado a sentença de morte,
eis que, como expressão parcial do ressurgimento da metafísica nesse século, movimento de ideias cujas
raízes se vão originar antes do findar do ‘oitocentos’, renasce de suas cinzas, aparentemente apagadas, a ideia
milenar do Direito Natural, inspirada já agora, não mais numa uniforme visão do mundo, de que carecemos
inteiramente em nossa época – que por isso mesmo já se convencionou chamar de crise –, mas sim nos
múltiplos postulados das mais variadas filosofias” (p. 352-353).
26
Para a teoria do direito, validade é o mesmo que existência jurídica da norma. Para que uma norma seja
considerada válida, segundo a teoria juspositivista, basta que ela cumpra dois requisitos formais: (1) haver
sido posta pela autoridade competente para elaborar normas jurídicas, e (2) haver sido elaborada de acordo
com o procedimento legislativo previsto no ordenamento jurídico. Observe que o conceito de validade não
tem qualquer relação com o conteúdo da norma em questão.
18
Estado, que muito lembram os tão recorrentes direito naturais.
4 FUNDAMENTO POLÍTICO
O Estado, partindo da perspectiva jusnaturalista, não teria poder suficiente para regular
a vida em sociedade da forma que quisesse; poderia fazê-lo, respeitando os limites impostos
pelo direito natural.
27
BILLIER, Jean-Cassien, MARYIOLI, Aglaé. História da filosofia do direito, op. cit., p. 374-375.
19
Católica ao longo da Idade Média, pois foi exatamente a partir da noção da existência de
limites naturais impostos pela vontade de Deus, que a Igreja consolidou seu poder e sua
influência política no curso de todo aquele período histórico.
É exatamente por essa razão que na grande maioria das vezes em que a legitimidade do
Estado ou do Direito é posta em dúvida, a questão dos direitos naturais é trazida à baila. Em
outras palavras, a suposta existência de direitos naturais, superiores ao próprio direito
positivo, representa um forte instrumento discursivo, no sentido de criticar o direito positivo
vigente e questionar sua legitimidade.
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