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O JUSNATURALISMO 1

Rodrigo Andrade de Almeida 2

1 INTRODUÇÃO

No texto anterior 3 vimos que ao longo de toda a história do direito no ocidente, a


discussão sobre a existência de um direito natural, comum a todos os seres humanos, ao lado
de um direito positivo, criado por cada comunidade, de acordo com a conveniência, foi
intensa. Inúmeros pensadores desenvolveram, durante todo esse período, uma infinidade de
teorias que tentavam explicar, da maneira mais satisfatória possível, a existência e a relação
entre essas duas formas de direito, mas sobre isso, até hoje, não existe consenso. 4 Sobretudo a
partir da modernidade, a clássica tese de que o direito posto (ius positum, na terminologia
latina – daí o termo “direito positivo”) deveria submeter-se ao direito natural, foi duramente
criticada e questionada, e uma nova sucessão de teorias passou a se debruçar sobre a relação
entre o direito positivo e o natural.

Desde o Renascimento, vários pensadores defenderam a supremacia do direito natural,


alegando que, por ser naturalmente presente na razão humana, corresponderia sempre ao ideal
de justiça, ou seja, seria sempre o melhor direito. Às teorias que defendem essa tese, costuma-
se chamar de jusnaturalismo, e seus autores são os chamados jusnaturalistas. Entendamos
agora, um pouco melhor, o que isso significa.

1
Paper elaborado para servir como leitura preliminar obrigatória da disciplina Introdução ao Estudo do
Direito do Centro Universitário Jorge Amado, ao longo do semestre acadêmico 2008.2. A leitura do presente
paper não substitui a leitura da bibliografia indicada pelo professor, constante no final deste texto.
2
Professor do curso de Direito do Centro Universitário Jorge Amado, em Salvador e da Faculdade
Apoio/Unifass, em Lauro de Freitas (BA). Mestrando em Direito das Relações Sociais e Novos Direitos da
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Teoria do Direito pela Universidade do Sul de Santa
Catarina (SC) e Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Jorge Amado (BA). Advogado em Salvador
(BA).
3
ALMEIDA, Rodrigo Andrade de. Noções elementares sobre a essência do direito ao longo da história.
“Paper” elaborado para a disciplina.
4
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 15.
1
2 FUNDAMENTO METODOLÓGICO

Em primeiro lugar, é preciso compreender quais são os pressupostos metodológicos que


formam, por assim dizer, a escola jusnaturalista. Para tanto, falaremos fundamentalmente
sobre universalismo ético, natureza das coisas e razão humana.

2.1 UNIVERSALISMO ÉTICO

Comecemos dizendo que, de uma forma geral, todo jusnaturalista é universalista em


matéria ética. 5 Mas o que significa universalismo ético?

Universalismo ético é o nome que se dá a uma corrente filosófica que acredita na


existência de valores morais ou princípios de justiça universalmente válidos. Em outras
palavras, se você acredita que existem alguns valores morais que são comuns a todas as
pessoas, em todos os lugares e em todos os tempos, então você é um universalista em matéria
ética. Isso significa, dito ainda de outra forma, que um universalista em matéria ética acredita
que alguns valores morais que temos hoje, no Brasil, são valores morais presentes também na
Europa, na Ásia e em qualquer lugar, e já eram presentes entre os antigos gregos e romanos, e
serão presentes no futuro, onde quer que haja um ser humano.

É relevante observar, aqui, que o universalismo ético abrange três dimensões, quais
sejam, uma dimensão pessoal, uma espacial e outra temporal. Para os adeptos dessa corrente
teórica, alguns valores morais ou princípios de justiça são universais em todas essas
dimensões.

5
NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 1980. p. 28.
2
UNIVERSALISMO ÉTICO

Há valores morais e princípios de justiça

comuns a todas as pessoas comuns a todos os lugares comuns a todas as épocas

É importante, também, ressaltar que os universalistas em matéria ética não afirmam que
todos os valores morais são universais; admitem, ao contrário, que cada pessoa, em cada local
e época possui valores morais próprios, que podem ser diferentes dos valores morais de outras
pessoas, em outros locais e em outras épocas. Acreditam, entretanto, que alguns valores
morais sejam universais e, portanto, eternos e imutáveis.

Portanto, como disse acima, podemos dizer que todo jusnaturalista é, de uma forma
geral, universalista em matéria ética, noção que é absolutamente coerente com o pensamento
jusnaturalista.

Dito de forma sucinta, os jusnaturalistas, como universalistas em matéria ética que são,
acreditam que existem valores morais e princípios de justiça que são universalmente válidos;
como esses valores são eternos e imutáveis, fazem parte da natureza humana e, portanto, da
essência do ser humano; logo, qualquer ato ou ordem que vá de encontro a esses valores
morais fundamentais é contrário à natureza do homem e, portanto, injusto e ilegítimo.

É com base nesse raciocínio que os jusnaturalistas concluem que os seres humanos têm
o direito natural de ter esses valores morais universalmente válidos respeitados;
conseqüentemente, qualquer norma posta pelo homem (direito positivo) deve respeitar o
direito natural ou, caso contrário, será injusta, podendo os homens desobedecê-la.

2.2 NATUREZA DAS COISAS

Outro conceito fundamental para se compreender a escola jusnaturalista é o de natureza


das coisas, conceito, aliás, até hoje pouco analisado pelos teóricos do direito, levando-se em

3
consideração sua importância para o argumento jusnaturalista. 6 Para compreender, entretanto,
o sentido desse termo, cumpre antes explicitar o significado da palavra natureza.

Natureza é um conceito extremamente genérico que serve para designar tudo aquilo que
existia antes do homem, e que continuará a existir sem o homem, 7 como as plantas, o mar e as
estrelas, por exemplo. A noção de natureza põe em destaque a distinção entre aquilo que é ou
foi produzido ou criado pelo ser humano, e aquilo que tem existência independentemente de
sua vontade criadora.

Natureza das coisas é, assim, a expressão utilizada para expressar a ideia da existência
de um direito natural; indica que o mundo tem uma ordem natural, um estado ideal de coisas,
um dever ser 8 que nenhuma vontade humana (seja do legislador, do juiz ou de qualquer outra
pessoa) jamais poderá subverter. Fica bastante clara a ideia de indisponibilidade e perenidade:
é impossível que o artifício das convenções e das condutas humanas possa alterar a natureza
das coisas, pois esta tem existência prévia ao próprio ser humano, e dele independe.

2.3 RAZÃO HUMANA

Por fim, o jusnaturalismo se apoia na ideia de que o homem pode conhecer a natureza
das coisas e, portanto, o direito natural, a partir da razão.

O conceito de razão pode ser tão complexo, que alguém poderia escrever um livro
inteiro apenas para tratar dele. Como o nosso objetivo aqui é fazer uma primeira aproximação

6
BOBBIO, Norberto. Giusnaturalismo e positivismo giuridico. Milão: Edizioni di Comunità, 1965. p. 197.
7
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: UnB, 1997. p. 27.
8
A expressão dever ser é de incomensurável importância para a teoria do direito. Falaremos dela inúmeras
vezes, quase sempre em contraposição à expressão ser. De uma forma geral, ao nos referirmos ao mundo do
ser, falamos do mundo dos fatos, ou seja, de como as coisas são de fato. Se digo: “os carros produzidos no
Brasil consomem pouco combustível”, quero simplesmente dizer que, no mundo dos fatos, ou seja, na vida
real, os carros brasileiros consomem pouco combustível! Se, ao contrário, digo: “os carros produzidos no
Brasil devem consumir pouco combustível”, quero dizer que é desejável que os carros brasileiros sejam
econômicos, ou seja, essa é uma situação ideal. Ao dizer que os carros produzidos no Brasil devem consumir
pouco combustível, não estou dizendo que os carros brasileiros consomem, de fato, pouco combustível. Em
outras palavras, enquanto o ser corresponde ao mundo dos fatos, o dever ser corresponde ao mundos dos
valores.
4
ao estudo da teoria do direito, vamos nos contentar com a noção comum da palavra razão, ou
seja, “[...] a consciência humana, a capacidade moral e intelectual dos seres humanos”, 9 a
consciência que o ser humano tem de sua existência, ligada à sua capacidade de raciocínio,
que o diferencia dos demais animais.

É preciso ressaltar que o jusnaturalismo não é uma escola jurídica coesa, no sentido de
que há, entre os vários autores jusnaturalistas, grandes divergências teóricas. Assim, ao invés
de falarmos em “jusnaturalismo”, talvez fosse mais apropriado falarmos de
“jusnaturalismos”. 10 Trataremos mais adiante dessas diferentes abordagens jusnaturalistas,
mas já posso anunciar que uma das grandes diferenças entre o jusnaturalismo medieval e o
jusnaturalismo moderno é exatamente o papel desempenhado pela razão humana na definição
do direito natural.

Associado à tese do universalismo ético, os jusnaturalistas acreditam que os seres


humanos podem identificar aqueles valores morais unívocos, onipresentes, eternos e
imutáveis através da razão. Assim, o direito natural, segundo eles, pode ser conhecido pelo
homem através de sua intuição, de seu instinto, de seu sentimento imanente de justiça. A
título exemplificativo, posso dizer que se um filho, conscientemente, mata o próprio pai de
forma covarde e cruel para ficar com a herança, e ao saber desse fato tenho automaticamente
um sentimento de repúdio e indignação, isso significa que a minha intuição demonstra que o
respeito à vida e à figura paterna faz parte da natureza das coisas, e que aquele que tira a vida
do próprio pai age contra a natureza, praticando um ato injusto e reprovável, devendo,
portanto, ser punido. Se eu, e todas as outras pessoas temos essa mesma impressão, então
estamos diante de um valor moral universalmente válido e, portanto, de um direito natural. Se,
por acaso, o legislador ou um juiz, disserem que esse ato não é reprovável, e que o assassino
terá direito à herança da sua vítima, estaria emitindo um comando injusto, pois contrário ao
direito natural e à natureza das coisas, e esse comando (lei, sentença, etc.) seria ilegítimo,
devendo ser desobedecido. Observe que, nesse exemplo, concluímos que o direito à vida e o
direito de punir quem atenta contra a vida são direitos naturais a partir de uma análise racional
da situação, desencadeada por uma emoção. Percebeu a estreita ligação entre o jusnaturalismo
e os conceitos de natureza das coisas, universalismo ético e razão humana?

9
Essa é a definição dada por CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. São Paulo: Ática, 2003. p. 61.
10
SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 692.

5
O exemplo mais antigo da tensão entre o direito natural e o direito positivo de que se
tem notícia é aquele apresentado na tragédia Antígona, do poeta grego Sófocles. A referida
tragédia é a última parte da Trilogia Tebana, composta também por outras duas histórias,
Édipo Rei e Édipo em Colono. As três histórias juntas formam uma complexa trama, mas
tentarei expor os principais episódios de forma sucinta, apenas para ilustrar a grandeza da
contraposição engendrada por Sófocles.

Édipo deixa a terra onde fora criado e dirige-se a Tebas. No caminho entra em conflito
com uma comitiva que passava, e termina matando a todos, sem saber que dentre os mortos
estava seu pai, o rei de Tebas. Ao chegar a Tebas, que estava atravessando um período
bastante difícil, Édipo decifra o enigma da Esfinge, e torna-se o novo rei de Tebas,
desposando a rainha, Jocasta. Nem Jocasta nem Édipo se dão conta de que são, na realidade,
mãe e filho, e têm quatro filhos juntos: Etéocles, Ismênia, Polinice e Antígona.

Quando descobriu que era filho de Jocasta, Édipo furou os próprios olhos, e exilou-se
de Tebas. Antígona foi a única que não o abandonou, e o acompanhou no exílio até a morte.
Ao retornar a Tebas, Antígona descobriu que seus irmãos Etéocles e Polinice brigavam pelo
trono, até o ponto em que ambos morreram em um duelo. O trono, assim, foi herdado pelo
irmão de Jocasta, Creonte, que em seu primeiro édito, determinou que Etéocles, tido como um
bravo defensor da cidade, fosse sepultado com todas as honras fúnebres, enquanto Polinice,
considerado um traidor, fosse deixado onde caiu. Segundo esse édito, ainda, caso alguém
desobedecesse à ordem de Creonte e enterrasse Polinice, seria condenado à pena de morte:

CREONTE:
[...]
E agora, irmanados a estes princípios, tenho
determinações a proclamar sobre os filhos de Édipo.
Etéocles, que, em luta por esta cidade,
pereceu, brilhando em todos os combates,
determino que seja sepultado, digno de todos os ritos
que acompanham os melhores ao mundo dos mortos,
mas, quanto ao irmão dele, refiro-me a Polinice,
que atacou a pátria e seus deuses,
retornando do exílio quis com tochas
reduzi-la a cinzas e levar cativos os cidadãos,
que esse, já determinei à cidade,
não receba sepulcro nem lágrimas,
que o corpo permaneça insepulto,
pasto para aves
e para cães, horrendo espetáculo para os olhos.
Esta é minha decisão, jamais de mim

6
obterão os maus a honra devida aos justos.
Mas o que tiver sentimentos favoráveis a esta cidade, vivo
ou morto, será no mesmo grau, honrado por mim. 11

O problema que surge, nesse ponto, é o seguinte: segundo a tradição e crença dos
antigos gregos, o morto que não fosse sepultado seria condenado a vagar por cem anos nas
margens do rio que levava ao mundo dos mortos, sem conseguir passar para o outro lado. A
mera ideia de morrer e não ser sepultado inquietava e atormentava os antigos, constituindo
medo maior do que o próprio medo da morte. 12 Isso ocorria por acreditarem os antigos que
aquela seria uma regra determinada pelos deuses, ou seja, uma regra de direito natural,
enquanto a regra posta por Creonte não passava de uma regra de direito positivo, isto é, fruto
da vontade humana. Antígona, indignada diante da norma imposta por seu tio, reclama o
direito natural de sepultar o irmão, tipo por ela como superior ao direito posto pelo soberano,
desobedecendo-o. Eis um excerto bastante significativo dessa contraposição, no diálogo que
se passa quando Antígona é presa em flagrante pelos guardas e levado a Creonte:

CREONTE:
E tu, que baixas a cabeça,
admites ou negas que procedeste assim?

ANTÍGONA:
Admito, não nego nada.

CREONTE:
[...] Sabias que eu tinha proibido essa cerimônia?

ANTÍGONA:
Sabia. Como poderia ignorá-lo? Falaste abertamente.

CREONTE:
Mesmo assim ousaste transgredir minhas leis?

ANTÍGONA:
Não foi, com certeza, Zeus que as proclamou,
nem a Justiça com trono entre os deuses dos mortos
as estabeleceu para os homens.
Nem eu supunha que tuas ordens
tivessem o poder de se superar

11
SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 19-20.
12
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga, apud SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 696.

7
as leis não-escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal.
Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas
são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram.
Por isso, não pretendo, por temor às decisões
de algum homem, expor-me à sentença divina.13

Observe que o que se discute, no fim das contas, nessa parte da tragédia de Sófocles, é a
relação entre o direito natural e o direito positivo: qual deve prevalecer? Pode o direito
positivo contradizer frontalmente o direito natural, sendo este eterno e imutável? Sem a menor
sombra de dúvida, um jusnaturalista responderia: “evidentemente, o direito natural é superior,
e o direito positivo não pode se insurgir contra as regras da natureza.”

Uma vez apresentado o fundamento metodológico, ou seja, os pressupostos que dão


suporte ao jusnaturalismo, passemos à análise de seu fundamento teórico.

3 FUNDAMENTO TEÓRICO

Falar em teoria do direito significa, hoje, falar basicamente em uma teoria da norma
jurídica e em uma teoria do ordenamento jurídico. 14 Logo, para falarmos em uma teoria
jusnaturalista do direito, temos de levar em consideração a noção que os jusnaturalistas
tinham e têm, tanto do que seja uma norma, quanto do que seja um ordenamento jurídico.

Eis que surge, então, a nossa primeira dificuldade. Essa ideia de construir uma teoria,
entendida como um corpo sistemático de propriedades inerentes a um objeto é uma noção
moderna, ou seja, coisa relativamente recente na história do pensamento, se levarmos em
consideração os milhões de anos que compreendem a odisseia humana sobre a Terra. Assim,
não é adequado, do ponto de vista epistemológico, falarmos em uma teoria jusnaturalista do
direito dos antigos gregos, por exemplo. Aristóteles, a título ilustrativo, não construiu uma
teoria da norma jurídica, mas podemos, a fim de melhor compreender o pensamento

13
SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 35-36.
14
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6.ed. Brasília: UnB, 1995. p. 19.
8
jusnaturalista, tentar sistematizar o substrato teórico dos pensadores jusnaturalistas. Para isso,
contudo, é necessário que saibamos que há uma grande diferença entre os jusnaturalismos
antigo, medieval e moderno.

3.1 OS JUSNATURALISMOS ANTIGO E MEDIEVAL

Como vimos na Leitura Introdutória 1, o fundamento do poder nas civilizações


ocidentais antigas era de ordem mítica. Vimos, quando falávamos de Aristóteles, que ele
admitia a existência concomitante de uma justiça natural e de uma justiça legal. Mas como se
dava a relação entre essas duas esferas normativas?

Comecemos, então, falando da questão da fonte do direito 15 sob a ótica do antigo


jusnaturalismo. Segundo o pensamento jusnaturalista, o direito possui duas fontes: a natureza,
e a vontade.

As normas advindas da natureza são aquelas que consubstanciam a vontade dos deuses;
assim, são perfeitas, imutáveis no tempo e no espaço (universalismo ético), e são sempre a
expressão da mais pura justiça. São normas que se aplicam sobre os homens, mesmo contra
sua vontade.

As normas elaboradas pela família, pela comunidade ou pelo Estado, são aquelas que
consubstanciam a vontade dos seres humanos; assim, são fruto ou da necessidade, ou da
conveniência, e portanto diferentes de lugar para lugar, e de uma época para outra.
Exatamente pelo fato de serem transitórias, não devem ir de encontro às regras do direito
natural, segundo a teoria jusnaturalista antiga. Contudo, excepcionalmente, os antigos
admitiam que, caso ocorresse de fato esse conflito, a norma positiva poderia prevalecer, por
haver sido elaborada em face de uma necessidade que seria, fundamentalmente, transitória.
Uma vez cessada essa necessidade, a norma positiva deveria deixar de existir, voltando a ser

15
Fonte do direito é mais um importante conceito para o estudioso do direito. Refere-se à origem da norma, ou
seja, o local, órgão ou autoridade de onde emana a norma jurídica, dotando-a de obrigatoriedade.
9
respeitada a norma de direito natural.

Já na Idade Média, dois importantes pensadores construíram teorias do direito natural


que muito influenciaram a concepção do direito naquele período: Santo Agostinho e São
Tomás de Aquino.

A principal característica que marca a distinção entre o jusnaturalismo antigo e o


medieval é o fundamento último do dever de obediência às regras do direito natural: enquanto
os antigos acreditavam que as regras naturais eram inelutáveis por conta da própria natureza
das coisas, os medievais defendiam que o direito natural deveria ser obedecido por
consubstanciar a vontade de Deus, onipotente criador de todas as coisas e seres. Segundo essa
última concepção, algumas regras do direito natural até podem ser quebradas pelo homem,
mas isso representa uma desobediência direta à vontade divina, ligando-se à tese central
católica do pecado original.

É Bodenheimer quem afirma que o cristianismo se apoderou do


conceito estóico de direito natural relativo e absoluto, aplicando-o à divisão
da história do homem segundo a revelação. O Direito Natural absoluto
prevaleceria antes da queda original. De acordo com o mesmo, todos os
homens eram iguais por natureza e possuíam as coisas em comum; não havia
poder político, nem a instituição da escravidão. Este Direito Natural
absoluto, porém, não pôde continuar a imperar, devido à depravação da
natureza humana motivada pelo pecado. Assim, fez-se necessário a
adaptação de um Direito Natural relativo à natureza do homem, abastardada
pela queda, que, entre outros males, trouxe a necessidade do trabalho, a
propriedade privada, o Estado, o direito positivo e a pena, a escravidão etc.
O ideal cristão residia, assim, na aproximação cada vez maior do Direito
Natural absoluto. Para tal fim existia a Igreja Católica, em cujo seio deveria
imperar a norma absoluta do Direito Natural, embora se permitisse à massa
dos fiéis o pautarem suas vidas pela norma relativa. 16

Assim, para os pensadores jusnaturalistas medievais, as regras do direito natural eram


sempre perfeitas e justas, já que eram provenientes do próprio Deus; as normas 17 de direito
positivo (aquelas criadas e postas pelo homem), por sua vez, poderiam ser justas ou injustas:

16
MACHADO NETO, Antonio Luís. Sociologia jurídica. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 345.
17
Observe que neste texto utilizo os termos norma e regra como sinônimos. Há, contudo, diferenças
fundamentais entre os dois termos que, contudo, não nos interessam neste momento do curso. Basta dizer,
sucintamente, que norma é gênero, do qual regra é espécie, assim como o é o princípio. Para quem desejar
compreender, desde já, as diferenças existentes entre regras, princípios e normas, indico o livro ÁVILA,
Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7.ed. São Paulo:
Malheiros, 2007.
10
seriam justas sempre que respeitassem e fossem condizentes com o direito natural, e seriam
injustas e ilegítimas sempre que fossem de encontro àquelas regras fundamentais da justiça
divina. Havia, assim, uma concepção do direito natural objetivo e material, que marcava a
teoria jusnaturalista medieval. Vamos entender um pouco melhor o significado desses dois
termos.

Quando falamos em direito natural objetivo, queremos dizer que a noção trazida por
suas regras recaía sobre os deveres das pessoas para com Deus e a sociedade. Em outras
palavras, se dissermos que uma das regras do direito natural determina que “todos são iguais
diante de Deus”, em verdade o que se pretende afirmar é que cada um de nós deve tratar a
todos com igualdade, ou seja, eu, enquanto indivíduo, tenho o dever de tratar a todos de forma
igualitária.

Quando falamos, ainda, em direito natural material, estamos nos referindo ao conteúdo
da referida norma. Isso é especialmente importante no momento de identificar uma norma de
direito natural. Conforme disse acima, os jusnaturalistas medievais defendiam que as regras
de direito natural eram sempre justas e perfeitas, por serem originadas em Deus. Destarte,
retomemos a suposta norma que citamos acima: “todos são iguais diante de Deus”. Essa é
uma norma boa? É justo que todos sejam iguais diante de Deus? Se você responder que sim,
se acreditar que essa norma é justa e perfeita, então poderá concluir que se trata de uma norma
de direito natural.

A primeira construção do jusnaturalismo medieval que nos importa corresponde à obra


de Aurélio Agostinho (354-430), bispo da Igreja Católica, considerado santo após a sua
morte. A teoria jusnaturalista augustiniana é fortemente marcada pela religiosidade, tendo a
vontade (ou justiça) de Deus como grande fundamento.

O pensamento de Agostinho é profundamente marcado pelas ideias de Platão e pelo


pensamento romano clássico. 18 Assim, segundo Agostinho, a justiça é marcada por uma
grande dicotomia: a existência de uma lex aeterna (“lei eterna”, divina, caracterizada pela
perfeição, perenidade, absolutidade), ao lado de uma lex temporalem (“lei temporal”, humana,
caracterizada pela imperfeição, transitoriedade e relatividade). Eduardo Bittar e Guilherme de
Almeida comentam a relação entre essas duas esferas normativas:

18
MACHADO NETO, Antonio Luís. Sociologia jurídica, op. cit., p. 345.
11
A lei eterna inspira a lei humana, da mesma forma que a natureza
divina inspira a natureza humana. Sem dúvida nenhuma, a natureza humana
pode ser dita uma natureza divina, isto pois todo criado é fruto do Criador.
Nesse sentido, a lei humana também é divina, ou seja, também participa da
divindade. Em outras palavras, a fonte última de toda lei humana seria a
própria lei divina. Todavia, sua imperfeição, seus desvios, sua incorreção
derivam direta e francamente das imperfeições humanas. 19

Percebe-se, assim, que a lei eterna ocupa um lugar de destaque em relação à lei
temporal, pois esta é imperfeita, e tal imperfeição decorre da noção de pecado original e livre
arbítrio.

Segundo Agostinho, o ser humano é marcado pelo pecado original, ou seja, aquela
iniqüidade originária que, desde a expulsão de Adão e Eva do Edem, atormenta o homem;
além disso, o homem é livre para decidir como agir, podendo assim escolher entre alinhar-se à
vontade de Deus ou afastar-se dela. É exatamente a união entre o livre arbítrio e o pecado
original que fazem com que o homem crie leis injustas, imperfeitas e corruptas. 20

Muitos séculos mais tarde, inspirado na obra de Aristóteles, 21 Tomás de Aquino,


também considerado santo pela Igreja Católica, desenvolveu uma teoria do direito que
contemplava a existência de três 22 esferas jurídicas: a lei eterna ou divina (lex aeterna), que
representa toda a ordem que rege o mundo e é inacessível à razão humana; a lei natural (lex
naturalis), que seria aquela parte da lei eterna que o homem consegue conhecer por meio da
razão, e a lei humana (lex humana), que seria aquela produzida pela homem e para o homem,
baseada na própria lei natural.

19
BITTAR, Eduardo C. B; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 5.ed. São Paulo:
Atlas, 2007. p. 200.
20
BITTAR, Eduardo C. B; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito, op. cit., p. 205.
21
MACHADO NETO, Antonio Luís. Sociologia jurídica, op. cit., p. 347.
22
Há, entre os autores, alguma divergência em relação à quantidade de esferas teorizada por Tomás de Aquino:
MACHADO NETO, Antonio Luís. Sociologia jurídica, op. cit., p. 348, por exemplo, considera que eram
quatro os tipos de leis vislumbrados por Aquino: lei eterna, lei natural, lei humana e lei divina; BILLIER,
Jean-Cassien, MARYIOLI, Aglaé. História da filosofia do direito. Barueri: Manole, 2005. p. 124-125, por
outro lado, consideram apenas três tipos de lei: a lex aeterna, lex naturalis e lex humana. Por questões de
ordem didática, preferimos adotar esta última classificação.
12
3.2 O JUSNATURALISMO MODERNO

Ao falarmos das teorias jusnaturalistas antiga e medieval, dissemos que uma das marcas
fundamentais das mesmas era sua concepção de direito natural objetivo e material, e vimos
que isso significa, em linhas gerais, que os direitos são analisados a partir da perspectiva dos
deveres do indivíduo perante Deus (para os medievais, ou a natureza, para os antigos) e a
sociedade, e que se caracterizam pelo seu conteúdo, sempre ligado à ideia de justiça e
perfeição moral.

Como vimos no capítulo anterior, ao tratarmos da transição entre os paradigmas feudal


e moderno, várias mudanças foram se sucedendo ao longo dos séculos XIII e XVIII,
sobretudo no que concerne à questão do conhecimento: o homem pré-moderno já não se
contentava com as explicações fundadas na suposta revelação, ou seja, já não acreditavam
que os fenômenos naturais, históricos ou culturais pudessem ser explicados com base na
suposta “vontade de Deus”, e passaram a buscar explicações naturais para os fenômenos
naturais, deixando de lado os transcendentalismos. 23

Por causa desse fenômeno, tornou-se praticamente insustentável uma teoria


jusnaturalista que tivesse fundamento em Deus ou em alguma força sobrenatural; o homem,
depois de vários séculos de teocentrismo exacerbado, redescobria a razão, e recorreu a ela
para construir uma nova teoria dos direitos naturais.

Em verdade, é exatamente a partir dessa “nova” teoria dos direitos naturais que os
autores pré-modernos fundamentam a própria existência da sociedade civil e do Estado
moderno. Como vimos no Capítulo 1 (item 1.4.4.2.2), os teóricos contratualistas falavam em
um suposto estado de natureza, contraposto à sociedade civil; uma das características mais
comumente apontadas pelos referidos autores a respeito do estado de natureza era exatamente
a inexistência de qualquer garantia quanto à observância dos direitos naturais dos indivíduos
naquele estado de incessante “guerra de todos contra todos” (para utilizar a terminologia
empregada por Thomas Hobbes). A sociedade civil, politicamente organizada na forma de

23
A fim de ilustrar essa mudança de mentalidade, e o choque que a mesma produziu em relação à mentalidade
anterior, indico o romance ECO, Umberto. O nome da rosa. São Paulo: Nova Fronteira, 2008. Há, também, o
filme homônimo, de 1986, dirigido por Jean Jacques Annaud.
13
Estado, teria exatamente como função principal salvaguardar o respeito e observância dos
direitos naturais, como parte fundamental do pacto ou contrato social.

Tentemos, agora, enfrentar com um pouco mais de vagar o problema: os antigos


jusnaturalistas diziam que o direito natural se caracterizava pelo conteúdo sempre justo e
perfeito de suas normas. Mas, o que é uma norma justa? Aliás, o que é justo, justiça, bem e
mal? Para os antigos, a resposta era relativamente fácil: justo e bom é tudo aquilo que está em
conformidade com a palavra de Deus. Contudo, como falamos mais acima, a partir do
Renascimento o recurso à “palavra de Deus” como forma de fundamentar axiologicamente
uma construção teórica já não era mais aceita. Era preciso encontrar outro fundamento.

Esse fundamento, como se pode imaginar, não poderia mais estar no conteúdo da norma
de direito natural; os teóricos, assim, tentaram buscar um fundamento formal para o direito
natural, e esse fundamento foi encontrado na noção de razão humana. Em outras palavras, a
tese defendida passou a ser a de que as regras de direito natural eram aquelas regras básicas de
conduta acessíveis à razão humana, ou cognoscíveis pelo homem através da razão. Observe
que não estamos nos referindo aqui ao conteúdo da norma, ou seja, não estamos dizendo que
ela seja justa ou boa, mas somente que está presente na própria essência do ser humano,
fazendo parte dele. Para além disso, essas regras constituem verdadeiros direitos que cada
indivíduo possui, oponíveis aos demais indivíduos e à própria sociedade como conjunto, pelo
simples fato de ser humano. Dito de outra forma, tem-se aí uma concepção individualista do
direito natural, o que significa que cada indivíduo possui direitos subjetivos, a serem
respeitados e observados pelos demais indivíduos e pela sociedade como um todo. Juntas,
essas duas características modificam sensivelmente a teoria jusnaturalista, pois os direitos
naturais, que na Antiguidade e na Idade Média eram tidos como direitos objetivos e materiais,
passam a ser vistos agora como direitos subjetivos e formais.

Quando falamos, no item 2.3.1, destinado ao estudo dos jusnaturalismos antigo e


medieval, que o direito natural era objetivo e material, utilizamos como exemplo a seguinte
norma: “todos são iguais diante de Deus”. Naquela época, essa era considerada uma norma de
direito natural por ser tida como justa, e isso criava uma obrigação do indivíduo perante Deus
e a sociedade: tenho o dever de tratar a todos com igualdade.

A mesma norma, para os jusnaturalistas modernos, seria analisada de outra maneira: se


“todos são iguais diante de Deus”, isso significa que eu tenho o direito de ser tratado por

14
todos de forma igualitária (e não o dever de tratar a todos de forma igualitária: ao invés de um
dever, tenho um direito!). E se a noção de igualdade parece correta para a maioria das
pessoas, significa que faz parte da própria essência do ser humano e, portanto, constitui um
direito natural. Essa é uma concepção do direito natural formal e subjetivo (ou individual),
marca fundamental do jusnaturalismo moderno. Comparando, nesse ponto, os jusnaturalismos
antigo e moderno, temos que:

[...] Em lugar do cosmos finalizado e hierarquizado dos gregos, os


Modernos introduziram a subjetividade que constrói o mundo que o
circunda. O direito natural antigo remete à relação do sujeito com o mundo
no qual ele está. O sujeito tem como dever a realização do que deve ser em
função do que é, ou seja, do lugar que ele ocupa nesse mundo ordenado e
hierarquizado. Seus direitos não preexistem a seus deveres. O que pertence a
cada um, seus direitos, será determinado com relação à ordem e à finalidade
desse mundo. Em contrapartida, o pensamento dos Modernos modifica
radicalmente essa visão. O mundo sendo doravante concebido como infinito,
na continuação das reflexões galileanas, a “lei natural” dos modernos é a da
natureza do homem, isto é, de seus direitos subjetivos. estes constituem, por
conseguinte, o dado preexistente necessário em função do qual serão
determinados os deveres de cada um. A visão dos Antigos é, desse ponto de
vista, o inverso. 24

Se o formalismo e o subjetivismo são marcas fundamentais do jusnaturalismo moderno,


é exatamente a partir desse ponto que os principais autores jusnaturalistas começam a
discordar: todos concordam que os indivíduos possuem direitos naturais, e que a principal
função do Estado é garantir o seu respeito e observância por todos; assim, a maioria dos
autores acredita que as leis criadas pelo Estado devem atender a essa finalidade, e que devem
sempre respeitar os direitos naturais dos indivíduos, ou serão inválidas. A título de exemplo,
poderíamos citar o direito à vida, tido como direito natural pela quase totalidade dos teóricos
modernos. Um Estado que criasse uma lei positiva prevendo a pena de morte estaria
desrespeitando diretamente uma regra de direito natural, e a lei positiva seria, portanto,
injusta, ilegítima e inválida. Perceba que, com isso, o direito positivo está em posição de
inferioridade em relação ao direito natural, pois somente será considerado “direito” se estiver
de acordo com as regras de direito natural. Thomas Hobbes, contudo, defende o oposto:
segundo ele, o Estado tem total autonomia para regular a vida em sociedade da forma que
julgar mais adequada, ainda que para isso tenha que editar leis que venham de encontro a

24
BILLIER, Jean-Cassien, MARYIOLI, Aglaé. História da filosofia do direito, op. cit., p. 371-372.
15
determinadas regras de direito natural. Em outras palavras, se para garantir a paz e a ordem no
seio da sociedade civil o Estado precisar decretar a morte de alguns indivíduos que
representem risco, essa lei positiva será legítima e válida. O direito positivo, assim, está em
posição de supremacia em relação ao direito natural, segundo pensamento hobbesiano.

Já no início do século XX, o pensamento jusnaturalista ganharia novo fôlego, com as


obras de Stammler, na Alemanha, e Del Vecchio, na Itália.

Desta vez, contudo, o jusnaturalismo assume uma característica bastante diferente: Del
Vecchio, por exemplo, tentar fundamentar a existência de direitos naturais de conteúdo
variável, querendo dizer com isso que as regras de direito natural podem variar, de acordo
com o momento histórico vivido pela sociedade. Tal afirmação, contudo, contraria um dos
fundamentos axiológicos do jusnaturalismo, que é a crença no universalismo ético.

3.3 O JUSNATURALISMO HOJE

Nos Capítulos seguintes, falaremos de outras escolas do pensamento jurídico que


surgiram, principalmente, a partir do século XIX. Como se tratava de um contexto histórico,
político, econômico e social bastante diferente daquele do início do Renascimento, como
teremos a oportunidade de analisar no momento adequado, a teoria jusnaturalista perdeu o
lugar de destaque, e passou a ser alvo de duras críticas por parte dos teóricos do direito.

Uma das principais razões para que isso acontecesse foi o chamado processo de
codificação do direito: a função de criar normas jurídicas válidas foi confiada a um órgão
específico do Estado (o Poder Legislativo), que as fazia na forma de leis escritas e
organizadas em um código sistematicamente ordenado.

Aliada ao fenômeno das codificações do século XIX, ganhou corpo também a noção de
que não existem valores morais e princípios de justiça universalmente válidos. Lembre-se de
que, quando começamos a falar do jusnaturalismo, dissemos que um dos fundamentos
axiológicos que lhe dão suporte é exatamente a crença na existência de valores

16
universalmente válidos (universalismo ético). Ganhou força, portanto, a partir do Iluminismo,
a corrente chamada de relativismo ético, à qual faremos referências mais detidas quando
falarmos do positivismo jurídico, mais adiante.

Por tudo isso, tornou-se comum, a partir do século XIX, falar que o jusnaturalismo
estava morto, fadado a desaparecer do mundo da teoria do direito, exatamente por se basear
em valores de cunho estritamente pessoais e de difícil aferição cognoscitiva. As teorias que se
seguiram ao jusnaturalismo, como o exegetismo, o historicismo e o próprio positivismo
jurídico, deixarão de lado a ideia da existência de um direito natural universalmente válido,
imutável e perfeito, e privilegiarão outros aspectos da experiência normativa, como a tradição
(que é mutável), a validade (ligada à autoridade que instituiu a norma) e a eficácia (o efetivo
funcionamento do direito na vida social). Não é demais lembrar que o século XIX
caracterizou-se em grande medida pela grande aceitação, no campo do conhecimento, do
paradigma epistemológico cientificista moderno, que seria depois transformado em
positivismo sociológico, por Auguste Comte, e metodologicamente lapidado por Émile
Durkheim. Segundo esse paradigma, a única forma legítima de conhecimento racional era
aquele produzido no âmbito da ciência, e sua principal característica era exatamente a
neutralidade axiológica, a ser garantida por meio de um estudo metódico dos fenômenos
sociais.

Esse ideal de neutralidade axiológica se espalhou por todos os ramos da ciência, e


chegou inevitavelmente ao direito. A partir do século XIX, os teóricos passaram a evitar a
todo custo associar o estudo do direito a qualquer tipo de análise valorativa de seu conteúdo, o
que implica em afirmar que se deve fazer um estudo do direito que seja completamente
dissociado do estudo da moral. A separação metodológica entre o direito e a moral tornou-se,
assim, impositiva para o estudo do direito; e como uma das principais características do
jusnaturalismo é exatamente a interdependência entre o direito positivo e os valores morais
inerentes à essência humana, criticar e refutar o jusnaturalismo, enquanto teoria científica do
direito, tornou-se constante e trivial.

Não obstante esse fato, o jusnaturalismo jamais desapareceu completamente do debate


jurídico. Fala-se, mesmo, em um “eterno retorno ao direito natural” 25, para referir-se ao fato

25
ROMMEN, Henri apud MACHADO NETO, Antonio Luís. Sociologia jurídica, op. cit., p. 353-354, que
afirma também: “[...] Os tempos mudam e as idéias, revestidas de roupagens novas, servindo a objetivos os
17
de que, de tempos em tempos, a questão da legitimidade moral de normas ou sistemas
jurídicos é trazida à baila, “ressuscitando”, por assim dizer, a discussão sobre o direito natural,
como suposto limite material normativo ao direito positivo.

O exemplo mais recente desse “retorno ao direito natural” pode ser observado na
filosofia do direito da segunda metade do século XX, sobretudo no período subseqüente à
Segunda Grande Guerra.

Apresentando a questão de forma bastante sucinta, podemos dizer que as teorias


positivistas do direito tiveram sua glória ao longo da primeira metade do século XX; como
propunham, de uma forma geral, uma abordagem axiologicamente neutra do direito,
promovendo a todo custo a dissociação metodológica entre o direito e a moral, predominou a
ideia de que a norma jurídica fosse vinculante e de observância obrigatória,
independentemente de seu conteúdo. Em outras palavras, isso significava que mesmo uma
norma jurídica absurdamente injusta deveria ser observada por todos e aplicada pelos juízes,
bastando para isso terem validade 26.

Com o fim da Guerra e a derrocada dos regimes nazi-fascistas, teve início um robusto
movimento por parte de importantes teóricos do direito, no sentido de refutar o positivismo
jurídico, por considerarem que aquela teoria tinha o grave inconveniente de legitimar todo e
qualquer regime político, pois mais abominável que fosse. O exemplo mais comumente
empregado por esses teóricos é o direito nazista que, segundo argumentam, podia ser
considerado “direito” a partir do ponto de vista juspositivista. Essa nova reação teórica (se é
que se pode chamá-la de teórica, ao invés de político-ideológica), assim, passou a reclamar a
necessidade de observância, pelo direito positivo, de princípios fundamentais superiores ao

mais antagônicos, por vezes, permanecem, desafiando bravamente a capacidade criadora da inteligência
humana. [...] Assim aconteceu com o Direito Natural; ideia antiqüíssima, cujos primórdios dificílimo, senão
impossível, seria pesquisar no amontoado das lendas, tradições e costumes de povos, de cuja história nos
separam séculos e milênios [...]. Quando tudo parecia indicar ao ingênuo otimismo cientificista da centúria
que nos precedeu, que o historicismo e o positivismo jurídicos já lhe haviam executado a sentença de morte,
eis que, como expressão parcial do ressurgimento da metafísica nesse século, movimento de ideias cujas
raízes se vão originar antes do findar do ‘oitocentos’, renasce de suas cinzas, aparentemente apagadas, a ideia
milenar do Direito Natural, inspirada já agora, não mais numa uniforme visão do mundo, de que carecemos
inteiramente em nossa época – que por isso mesmo já se convencionou chamar de crise –, mas sim nos
múltiplos postulados das mais variadas filosofias” (p. 352-353).
26
Para a teoria do direito, validade é o mesmo que existência jurídica da norma. Para que uma norma seja
considerada válida, segundo a teoria juspositivista, basta que ela cumpra dois requisitos formais: (1) haver
sido posta pela autoridade competente para elaborar normas jurídicas, e (2) haver sido elaborada de acordo
com o procedimento legislativo previsto no ordenamento jurídico. Observe que o conceito de validade não
tem qualquer relação com o conteúdo da norma em questão.
18
Estado, que muito lembram os tão recorrentes direito naturais.

O renascimento do direito natural na Alemanha após a Segunda


Guerra Mundial não é de forma alguma espantoso. Com a queda do Terceiro
Reich, diversos teóricos do direito, inclusive alguns que antes defendiam o
positivismo, consideraram que a necessidade de postular a existência de
valores jurídicos, principalmente aqueles que estivessem ligados à dignidade
da pessoa humana, era doravante imperiosa. [...] As contribuições teóricas
de Gustav Radbruch, e também as de Arthur Kaufmann, formam-se
paralelamente a uma construção jurisprudencial muito importante na
Alemanha Ocidental no pós-guerra. Os tribunais de justiça fundavam seus
julgamentos sobre princípios de direito natural, chegando até a pronunciar a
ilegalidade da ordem jurídica nazista por não ter respeitado os ditos
princípios. 27

Atualmente, a discussão já não é colocada tanto do ponto de vista do direito natural,


mas de supostos direitos que teriam fundamento na moral coletiva. As correntes que
defendem esse entendimento não se colocam como jusnaturalistas, preferindo classificar a si
mesmas simplesmente como anti-positivismo ou não-positivismo. Falaremos dela mais
adiante, depois de tratarmos da problemática do positivismo jurídico.

4 FUNDAMENTO POLÍTICO

As teorias jusnaturalistas possuem um forte conteúdo político. Desde o seu surgimento,


a noção da existência de direitos anteriores à própria sociedade representou uma espécie de
limite imposto ao poder normativo do próprio Estado.

O Estado, partindo da perspectiva jusnaturalista, não teria poder suficiente para regular
a vida em sociedade da forma que quisesse; poderia fazê-lo, respeitando os limites impostos
pelo direito natural.

Esse conteúdo político inerente ao jusnaturalismo foi especialmente útil à Igreja

27
BILLIER, Jean-Cassien, MARYIOLI, Aglaé. História da filosofia do direito, op. cit., p. 374-375.
19
Católica ao longo da Idade Média, pois foi exatamente a partir da noção da existência de
limites naturais impostos pela vontade de Deus, que a Igreja consolidou seu poder e sua
influência política no curso de todo aquele período histórico.

É exatamente por essa razão que na grande maioria das vezes em que a legitimidade do
Estado ou do Direito é posta em dúvida, a questão dos direitos naturais é trazida à baila. Em
outras palavras, a suposta existência de direitos naturais, superiores ao próprio direito
positivo, representa um forte instrumento discursivo, no sentido de criticar o direito positivo
vigente e questionar sua legitimidade.

Modernamente, uma das primeiras grandes alternativas teóricas ao jusnaturalismo foi a


chamada escola da exegese, nosso próximo objeto de estudo.

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