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Direitos Humanos

DIREITOS HUMANOS
PROF. HENRY ATIQUE

Guia referente à disciplina de Direitos Humanos do


Centro Universitário de Rio Preto, elaborado pelo
Prof. Dr. Henry Atique.

SÃO JOSÉ DO RIO PRETO – SÃO PAULO – BRASIL


CENTRO UNIVERSITÁRIO DE RIO PRETO - UNIRP

Halim Atique Junior


Reitor

Manuela Kruchewsky Bastos Atique


Vice-Reitora

Anete Maria Lucas Veltroni Schiavinatto


Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação

Agdamar Affini Suffredini


Pró-Reitora Acadêmica

Sérgio Luís Conti


Pró-Reitor Administrativo e Financeiro

Ricardo Costa
Pró-Reitor de Educação à Distância
APRESENTAÇÃO .............................................................. 6

1. Considerações iniciais sobre os direitos humanos ... 7

2. O princípio fundamental da dignidade da pessoa


humana .............................................................................. 9

2.1. Definição de dignidade da pessoa humana .............. 9

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................ 17

REFERÊNCIAS .................................................................. 18
Direitos Humanos

APRESENTAÇÃO

Bem-vindo ao guia de estudos da disciplina de Direitos Humanos!


Neste guia, estudaremos a parte introdutória quanto ao tema, fundamental para
seu adequado conhecimento e sua adequada compreensão.

Para que este guia fosse produzido, utilizamos a mais celebrada


doutrina no assunto, no sentido de encorpar o quanto exposto, mas, ao mesmo
tempo, buscando trazer a questão de forma que todos – sejam ou não da área
jurídica – possam refletir sobre o assunto.

A partir deste estudo, poderemos ter, em linhas gerais, um panorama


preliminar sobre o que trata a mencionada disciplina.

Leia atentamente o guia. Esperamos que este texto o ajude em


uma melhor compreensão. Bons estudos!

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Já é questão deveras consagrada que os direitos humanos
fundamentais são parte definitivamente integrante do arcabouço de qualquer
documento que se pretenda ser chamado de Constituição de um Estado.
Atualmente, a grande maioria dos Estados reconhece ao menos um núcleo de
direitos fundamentais no âmbito de suas Constituições ou aderiu a algum tratado
internacional de direitos humanos.

O papel primordial desses direitos é o de servir como instrumental,


como verdadeiras armas de concretização do princípio da dignidade da pessoa
humana, princípio esse de difícil delimitação conceitual, como se verá. Por isso
mesmo, longe se está da solução de todas as dúvidas, problemas e desafios que
a matéria suscita.

Ao analisar a teoria dos direitos fundamentais, é necessário


adotar um enfoque dentre as muitas possibilidades que se oferecem aos que
pretendem se dedicar ao enfrentamento do tema. Como ponto de partida, vale a
pena apresentar a lição de José Carlos Vieira de Andrade1, que se refere a três
perspectivas, a saber: a) filosófica ou jusnaturalista, a qual trata do estudo dos
direitos fundamentais como direitos de todos os homens, em todos os lugares
e tempos; b) estatal ou constitucional, a qual cuida dos direitos ou liberdades
fundamentais como reconhecidos aos homens em geral ou a certas categorias
dentre eles, em um determinado tempo e lugar; e c) perspectiva universalista ou
internacionalista, segundo a qual são direitos de todos os homens (ou categorias
de homens) em todos os lugares, em um certo tempo.

Cumpre ressaltar que essa tríade de perspectivas não esgota as


perspectivas que se podem ter como parâmetro no embate ao tema dos direitos
humanos: há outras importantes e que não podem ser tratadas com menoscabo,
tais como a perspectiva sociológica, histórica, ética, política, econômica, dentre
outras, cada qual passível de apresentar aspectos e problemas específicos que
suscitam análise. Vale dizer, conforme Ingo Wolfgang Sarlet2, “que também nesta
seara, os únicos limites residem, em última análise, no alcance da criatividade e
da imaginação humanas e no universo de abordagens que esta pode gerar”.

1 Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 15-37.


2 A eficácia dos direitos fundamentais, p. 26.
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Direitos Humanos

Reconhecendo a importância de todas as perspectivas, e sem


olvidar a necessária interpenetração de todas elas, trabalharemos aqui com a
perspectiva estatal, centrando a atenção na órbita do direito constitucional positivo;
para isso, devemos delinear o sistema dos direitos fundamentais dentro de uma
teoria geral constitucionalmente adequada.

De outro lado, forçosa é a analise do direito comparado, pois, em


nível constitucional, cada vez mais se trata de categorias de cunho universal,
especialmente ao tangenciar o campo dos direitos humanos. Nesse contexto,
é nítida a aproximação do sistema brasileiro de proteção a esses direitos aos
modelos lusitano e espanhol, que, por seu turno, são marcados pelos influxos do
direito constitucional germânico.

Finalmente, é preciso avaliar o modo como a Constituição


brasileira de 1988 disciplina a temática dos direitos humanos, com o considerável
impacto causado pela ruptura com o regime militar autoritário instalado em
1964, demarcando o processo de redemocratização do Estado brasileiro, e a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e, eventualmente, outras Cortes
Constitucionais, pois a elas cabe, precipuamente (mesmo que, em alguns casos,
não exclusivamente) e em última análise, a interpretação e o desenvolvimento do
direito constitucional.

Evidentemente, não pretendemos, e nem seria possível esgotar,


tão vasto e rico assunto nessas considerações. Assim, o objetivo que aqui se
propõe é de apresentar algumas questões que se julgam relevantes para situar as
ideias, de modo a observer certo critério evolutivo, até se chegar ao cerne do que
se deseja desenvolver.

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2 O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA
2.1 Definição de dignidade da pessoa humana

Tradicionalmente, as Constituições brasileiras preocupavam-se, em


seu título inicial, com a organização do Estado, sob rubricas como “da organização
federal” ou “da organização nacional” ou ainda se referindo ao Império.

Em que pese ser da natureza de uma Constituição, além de veicular


os direitos fundamentais das pessoas, o papel de organizar o Estado3, o constituinte
brasileiro de 1988 inovou nesse aspecto, ao iniciar a sua obra apresentando nortes
diretivos para o intérprete, sob o título “dos princípios fundamentais”.

Isso quer dizer que o intérprete, ao examinar a Constituição


atual, encontra, de plano, quais são os valores jurídicos de sustentação do país,
devendo esses princípios fundamentais funcionarem como guias no processo
hermenêutico constitucional, possuindo caráter mais amplo e abstrato, quando em
face das regras constitucionais, essas, por seu turno, de caráter mais específico
e concreto4.

Dentre esses princípios, a Constituição de 1988 elege como


fundamento da República Federativa do Brasil e entrega especial destaque para
a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). De início, você deve-se atentar para
a complexidade da busca de uma compreensão do conteúdo de dignidade da
pessoa humana e, consequentemente, de sua correspondente definição jurídica,
o que se justifica no pressuposto de que a dignidade trata da condição humana
da pessoa e de suas complexas, imprevisíveis e incalculáveis manifestações da
personalidade.

3 Friedrich Müller. Fragmento (sobre) o poder constituinte do povo. São


Paulo: RT, 2004, p. 53-60.
4 Cf. Robert Alexy. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 2001, p. 82-86, bem como Walter Claudius Rothenburg.
Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 11-
49.

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Direitos Humanos

O acordo acerca das palavras “dignidade da pessoa humana”


não afasta, consoante a lição de Antonio Junqueira de Azevedo5, a grande
controvérsia em torno de seu conteúdo, o que, por si, torna razoável a posição
de que uma definição ou uma definição jurídica de “dignidade” não é possível de
ser alcançada6, mesmo não sendo essa a posição aqui adotada. Por sua vez, é
cediço na esmagadora doutrina constitucionalista a posição de que a dignidade
da pessoa humana é o bem constitucional maior por excelência, tratando-se de
um valor supremo7, uma referência constitucional unificadora de todos os direitos
humanos fundamentais8.

Para compreender o conteúdo e o significado, ou melhor, os


conteúdos e os significados da dignidade da pessoa humana, devemos considerar
o fato de que Direito e Filosofia caminham juntos, no sentido de que é preciso tomar
a Filosofia para analisar a evolução do pensamento a respeito do que significa
este ser humano e da compreensão do que é ser pessoa e de quais os valores
que lhe são inerentes, já que isso vai servir para determinar o modo que o Direito
reconhece e define qual dignidade será objeto de tutela por parte do Estado e qual
proteção o Estado pode assegurar à dignidade9.

Nessa perspectiva, mas sem procurar afastar e incompatibilizar


outras visões, Ingo Wolfgang Sarlet10 fala em “dimensões da dignidade da
pessoa humana”, referindo-se, em um primeiro momento, “[à] complexidade
da própria pessoa humana e [a]o meio no qual desenvolve sua personalidade”;
além disso, para dar conta da heterogeneidade e da riqueza da vida, a noção de
dignidade da pessoa humana “integra um conjunto de fundamentos e uma série
de manifestações”, especialmente no campo do Direito, manifestações essas as
quais, “ainda que diferenciadas entre si, guardam um elo comum, especialmente
pelo fato de comporem o núcleo essencial da compreensão e, portanto, do próprio
conceito de dignidade da pessoa humana”.

5 Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. In: Revista dos


Tribunais, v. 797, mar. 2002, p. 12.
6 Cf. Claire Neirinck. La dignité de la personne ou le mauvais usage d´une notion
philosophique. In: Philippe Pedrot (Dir). Ethique, droit et dignité de la personne. Paris: Economica,
1999, p. 50 e François Borella. Le concept de dignité de la personne humaine. In: Philippe Pedrot
(dir). Ob. cit., p. 37.
7 José Afonso de Silva. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 105.
8 José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira. Constituição da República
Portuguesa anotada. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 58-59.
9 Ingo Wolfgang Sarlet. As dimensões da dignidade da pessoa humana:
construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In:
Ingo Wolfgang Sarlet (org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do
direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 16.
10 Ibid., p. 16-17.

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Direitos Humanos

A mencionada dificuldade em se definir dignidade da pessoa


humana reside da circunstância de que se trata de um conceito de contornos que
não são precisos e objetivos, de um conceito caracterizado por sua ambiguidade
e porosidade11, bem como por sua natureza polissêmica12. Além do mais, uma das
principais dificuldades, conforme a lição de Michael Sachs13, é que a dignidade
humana cuida de uma qualidade tida para a maioria da doutrina como inerente
a todo ser humano, mas não de aspectos específicos da existência humana –
como integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc. –, o que acarretou
que a dignidade passou a ser habitualmente definida como sendo o valor próprio
que identifica o ser humano como tal; todavia essa definição não serve muito ao
propósito de uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de
proteção da dignidade em sua condição jurídico-normativa.

Ainda assim, e nesse caso sem maiores dificuldades, mesmo que


não se possa estabelecê-las de forma exaustiva14, pode-se valer da verificação das
muitas situações de agressão e de violação à dignidade da pessoa humana, para
constatar que ela é algo real e vivenciado concretamente por cada ser humano,
em que pese a dificuldade em explicitar em que esta consiste15.

Por sua vez, a doutrina e a jurisprudência foram, ao longo do tempo,


estabelecendo alguns contornos basilares do conceito jurídico e concretizando o
conteúdo da dignidade, mesmo que sem atingir tampouco uma definição genérica
e abstrata consensualmente aceita. Alinhado a esse entendimento, Ingo Wolfgang
Sarlet16 apresenta interessante proposição de que a dignidade pode constituir um
conceito juridicamente apropriável, nos seguintes termos:

11 Cármen Lúcia Antunes Rocha. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana


e a Exclusão Social. In: Revista Interesse Público, n° 04, 1999, p. 24.
12 Cf. Francis Delpérée. O Direito à Dignidade Humana. In: Sérgio Resende
de Barros e Fernando Aurélio Zilveti (coords.). Direito constitucional - estudos em
homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, 1999, p. 153.
13 Verfassungsrecht II – Grundrechte. Berlin-Heidelberg-New York:
Springer-Verlag, 2000, p. 173, apud. Ingo Wolfgang Sarlet. Ob. cit., p. 18.
14 Cf. Jesús González Pérez. La dignidad de la persona. Madrid: Civitas, 1986,
p. 115.
15 Michel Renaud. A Dignidade do ser Humano como Fundamentação Ética
dos Direitos do Homem. In: Brotéria – Revista de Cultura, v. 148, 1999, p. 36.
16 Ob. cit., p. 19.

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Direitos Humanos

Neste contexto, bem refutando a tese de que a dignidade não constitui


um conceito juridicamente apropriável e que não caberia — como parece
sustentar Habermas — em princípio, aos Juízes ingressar na esfera
do conteúdo ético da dignidade, relegando tal tarefa ao debate público
que se processa notadamente na esfera parlamentar, assume relevo a
percuciente observação de Denninger de que — diversamente do filósofo,
para quem, de certo modo, é fácil exigir uma contenção e distanciamento
no trato da matéria — para a jurisdição constitucional, quando provocada
a intervir na solução de determinado conflito versando sobre as diversas
dimensões da dignidade, não existe a possibilidade de recusar a sua
manifestação, sendo, portanto, compelida a proferir uma decisão, razão
pela qual já se percebe que não há como dispensar uma compreensão
(ou conceito) jurídica da dignidade da pessoa humana, já que desta — e à
luz do caso examinado pelos órgãos judiciais — haverão de ser extraídas
determinadas conseqüências jurídicas, muitas vezes decisivas para a
proteção da dignidade das pessoas concretamente consideradas.

Além dessas considerações quanto à dificuldade de definição da


dignidade da pessoa humana, ao estudar o tema, vale destacar as suas dimensões,
para assim buscar compreender o seu conceito de modo suficientemente
abrangente e operacional. Ressalvamos que não pretendemos aqui esgotar o
assunto e que tais dimensões não se revelam incompatíveis entre si e, tampouco,
excludentes.

Ao assegurar a inviolabilidade do direito à vida, as Constituições,


em um primeiro momento, tratam de proibir, em regra, a solução não espontânea
do processo vital17. Entretanto, não estamos atento apenas à proteção do que se
pode considerar sobrevivência, mas, sim, à conjugação entre vida e dignidade da
pessoa humana. Por conta dessa visão, trata-se de estatuir determinados direitos
e garantias exatamente para a promoção e proteção da vida com dignidade da
pessoa. Nesse aspecto, podemos citar exemplos, como a proibição de penas
cruéis, o direito à intimidade e à vida privada, dos quais são desdobramentos o
sigilo das comunicações, a inviolabilidade do domicílio e o segredo de justiça no
processo (art. 5º, LX, da CF) e ainda o direito à honra e o direito à imagem.

Ao ingressar nos textos normativos constitucionais, a vida assume


um importante papel diretivo para o intérprete, o que vem bem expresso na
seguinte colocação de Pietro de Jesús Lora Alarcón18:

17 Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Junior. Curso de direito
constitucional, p. 104.
18 Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de
1988, p. 181.

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Direitos Humanos

Curiosamente, a vida humana como bem jurídico constitucional e


direito fundamental assume uma importante função integradora dentro
do sistema, pois impregna todo o corpo normativo de uma unidade de
sentido, impedindo a progressão de enfoques que priorizam o Estado por
cima do indivíduo. Na verdade, o direito à vida permeia todo o desenho
constitucional, permanecendo sempre como uma sombra pronta para
servir de vetor de interpretação das mais diversas situações jurídicas.

O texto constitucional não leva em conta apenas o sentido biológico


de vida, mas considera-a como algo dinâmico, que se transforma constantemente,
um processo que se instaura com a concepção, transforma-se, progride, mantendo
sua identidade, até que termina com a morte19.

Por outro lado, é importante dizer que não há direito absoluto,


tampouco a vida, comportando o ordenamento jurídico alguma flexibilidade, como
as possibilidades legais de aborto, a legítima defesa, o estado de necessidade, o
estrito cumprimento do dever legal, a pena de morte, entre outros.

Todo ser dotado de vida é indivíduo, não podendo dividir-se sob


pena de deixá-lo de ser. Assim, o homem é um indivíduo; no entanto, mais do
que isso, é uma pessoa, já que, além dos caracteres do indivíduo biológico, ele
tem os de unidade, identidade e continuidade substanciais; portanto, o objeto da
proteção constitucional é a vida humana, integrada de elementos físicos, psíquicos
e espirituais20; assim, decorrem desta proteção o direito à existência, à integridade
física, à integridade moral, entre outros.

Ao lado desse aspecto do direito à vida, caminha a ideia de dignidade


do ser humano, que passa a apresentar-se como pensamento independente de
suas origens nos movimentos religiosos cristãos, para ser encarada como uma
qualidade essencial à vida humana. Nas palavras de Eliana Franco Neme21:

Não há vida sem dignidade, e assim os dois preceitos encontram-


se em situação de igualdade como princípios de direito. Vida
e dignidade são valores essencialmente independentes e
necessariamente correlatos, num paradoxo necessário para a
manutenção do seu conteúdo, e do mais alto grau de importância
como determinantes da positivação jurídica.

19 José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo, p. 196.


20 Cf. Recasén Siches. Vida humana, sociedad y derecho, p. 254.
21 Dignidade, igualdade e vagas reservadas. In: Luiz Alberto David Araujo (coord.).
Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência, p. 136.

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Direitos Humanos

Destarte, podemos afirmar que os mandamentos relativos à


dignidade da pessoa humana são claros; entretanto, como já se afirmou, a
definição desse conceito é tarefa difícil. Não existe unanimidade nem na literatura
especializada, nem alguém que tenha conseguido dar conta de fazê-lo de
maneira reconhecidamente exaustiva. Muitos são os pontos de ênfase e formas
de tratamento da matéria, por isso vem obtendo maior sucesso uma definição
negativa, que tenha como ponto de partida a intervenção ou violação da dignidade
humana, que não pode ser justificada. Diante disso, a preocupação dogmática
volta-se para a verificação do momento em que se pode afirmar ter ocorrido lesão
à dignidade humana, o que demanda fundamentalmente a definição de sua área
de proteção22.

O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se


constitui em prerrequisito à existência e em exercício de todos os demais, em fonte
primária do todos os outros bens jurídicos. É dizer, sem o gozo da vida, não é possível
ter ou usufruir de nenhuma outra prerrogativa, devendo o Estado assegurá-lo em
dupla acepção: uma relacionada ao direito de continuar vivo e outra no sentido da
dignidade quanto à subsistência23. Além dessas, podemos considerar outras duas
acepções: uma “relativa aos direitos referentes às manifestações vitais, sem as
quais a vida não passaria de mera respiração, carecendo o sujeito da condição
jurídica de expressar-se espiritualmente no mundo”; outra que “pode inferir-se da
proteção da vida a partir da abordagem genética e suas atuais decorrências”24.

Constatamos, assim, que o direito à vida revela sua fundamentalidade


no viés material, quando se fala de seu conteúdo como valor supremo para o ser
humano, e, ao mesmo tempo, em sentido formal, quando se verifica a posição
que recebeu do constituinte na escala normativa. Daí, por razões óbvias, temos
esse direito como pedra angular, axiológica e lógica, para compreender o sistema
jurídico25.

Finalmente, emerge como questão a ser abordada (mesmo que


de passagem e sem intenção de enfrentar profundamente o problema, tampouco
apresentar qualquer solução ou fincar posicionamento) a pretendida universalidade
da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais que lhe são inerentes
em contraposição ao respeito da diversidade e especificidades culturais.

22 Leonardo Martins (org.). Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal


Constitucional Federal alemão, p. 177-178.
23 Alexandre de Moraes. Direitos humanos fundamentais, p. 76; José Afonso
da Silva. Ob. cit., p. 197.
24 Pietro de Jesús Lora Alarcón. Patrimônio genético humano e sua proteção na
Constituição Federal de 1988, p. 191.
25 Walter Claudius Rothenburg. Direitos fundamentais e suas características. In:
Revista de direito constitucional e internacional, jan.-mar. 2000, p. 146-157.
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Direitos Humanos

A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de


1948, podemos afirmar que modelos antigos de Estado cederam espaço a novos
modelos multiculturais de Estado, mesmo que essas mudanças ainda sejam
controvertidas e vulneráveis ao retrocesso.

Em face disso, mesmo em se considerando o conceito de dignidade


como universal, não há como evitar disparidades e até conflitos no momento
de avaliar se uma determinada conduta é ou não ofensiva da dignidade26,
especialmente em se verificando que qualquer sociedade civilizada tem seus
próprios critérios e variáveis – conforme o local e a época – a respeito do que
constitui o tratamento indigno27.

Vale registrar a advertência feita por Boaventura de Souza Santos28


de que o conceito de dignidade e o conceito dos direitos humanos normalmente
assentam em um conjunto de pressupostos tipicamente ocidentais, do mesmo
modo que observa Otfried Höffe29 no sentido da vinculação dessas noções à
tradição judaico-cristã ou à cultura europeia, quando, de fato, cada cultura possui
sua concepção de dignidade humana, muito embora nem todas elas a concebam
em termos de direitos humanos.

Impõem-se, nessa linha, o respeito ao multiculturalismo como uma


evolução natural e lógica das normas de direitos humanos universais, especialmente
no que diz respeito à liberdade individual e à igualdade, deslegitimando hierarquias
étnicas e raciais tradicionais, segundo as quais alguns povos seriam superiores a
outros e, por conseguinte, teriam o direito de lhes impor regras. Essa situação, que
se costuma chamar de revolução dos direitos humanos, criou o espaço político
para que grupos étnico-culturais contestassem hierarquias herdadas; porém, por
outro lado, exigiu que esses grupos proponham as próprias reivindicações na
linguagem específica dos direitos humanos, do liberalismo dos direitos civis e do
constitucionalismo democrático30.

26 Cf. Miguel Angel Alegre Martínez. La dignidad de la persona como


fundamento del ordenamiento constitucional español. León: Universidad de
León, 1996, p. 26.
27 Ronald Dworkin. El dominio de la vida: una discusión acerca del aborto,
la eutanasia y la liberdad individual. Barcelona: Ariel, 1998, p. 305.
28 Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: Revista crítica
de ciências sociais, n. 48, 1997, p. 11-32.
29 Medizin ohne ethik? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2002, p. 49, apud.
Ingo Wolfgang Sarlet. Ob. cit., p. 38.
30 Will Kymlicka. Multiculturalismo liberal e direitos humanos. In: Daniel
Sarmento, Daniela Ikawa e Flávia Piovesan (coords.). Igualdade, diferença e
direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 218-221.

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Direitos Humanos

Em conclusão, não podemos olvidar que “a dignidade da pessoa


humana exprime a abertura da República à ideia de comunidade constitucional
inclusiva pautada pelo multiculturalismo mundividencial, religioso ou filosófico”;
portanto, contrária a qualquer tipo de “fixismo” nesta seara e incompatível com
uma compreensão reducionista da dignidade31. Devemos buscar a superação
de qualquer visão unilateral e reducionista, para, assim, promover e proteger a
dignidade de todas as pessoas em todos os lugares.

Na sequência, para uma melhor compreensão de seu conteúdo


como princípio jurídico fundamental que dá ensejo a um leque de direitos e deveres
fundamentais, importa destacar quais as principais dimensões da dignidade da
pessoa humana, em face da já apresentada dificuldade de uma compreensão
jurídico-constitucional a seu respeito.

31 José Joaquim Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da


Constituição. 7ª ed.. Coimbra: Almedina, 2004, p. 225-226.

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Direitos Humanos

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse guia, estudamos a questão da consagração dos direitos


humanos, desde o seu surgimento, passando pelas perspectivas possíveis, até
a sua efetivação. Também analisamos a estreita relação desses direitos com o
princípio basilar da dignidade da pessoa humana, em relação ao qual buscamos,
por meio de possíveis enfoques, encontrar um conceito passível de concretização
desse valor máximo.

Em um próximo estudo, faremos uma abordagem mais


especificamente relacionada ao surgimento, ao reconhecimento e à evolução
histórica dos direitos humanos, em busco de continuar a desenvolver a temática
da presente disciplina.

17
Direitos Humanos

REFERÊNCIAS

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na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004.

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19

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