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Teoria e Prática

Justiça Restaurativa
c,NOMA
EDIÇÃO

Howardlehr

Palas Athena

SÉRIEDA REFLEXÃOÀ AÇÃo


VISÃO GERAL

nquanto sociedade, como devemos reagir às ofensas?


Quando acontece um crime ou quando é cometida uma
injustiça, o que precisa ser feito? O que pede nosso senso de
justiça?A premência dessas questões é enfatizada diariamente
por eventos reportados pela mídia.
Quer estejamos preocupados com crimes ou outras ofen-
sas e danos, nossa reflexão sobre tais questões foi profunda-
mente moldada pelo sistema jurídico ocidental —não apenas
no Ocidente,mas também em grande parte do outro lado
do mundo.
O sistema jurídico ocidental ou, mais especificamente,
a justiça criminal, tem importantes qualidades. No entanto,
vemcrescendo o reconhecimento de suas limitações e carên-
cias.Não raro, vítimas, ofensores e membros da comunidade
sentem que o sistema deixa de atender adequadamente às
suas necessidades. Os profissionais da área da justiça —juízes,
advogados,promotores, oficiais de condicional, funcionários
do sistema prisional —amiúde expressam sua frustração com
o sistema. Muitos sentem que o processo judicial aprofunda
as chagas e os conflitos sociais ao invés de contribuir
para
seu saneamento e pacificação.
JUSTIÇA RESTAURATIVA
HOWARD ZEHR -

Justiça Restaurativa procura 'tratar de algumas dessas


A
os anos 1970vem surgindo
necessidades e limitações. Desde
em centenas de comunidades de
vários programas e práticas
países do mundo. Com frequência são oferecidos como
vários
âmbito do sistema jurídico
alternativas paralelas ou mesmo no
a Nova Zelândia fez da
vigente. No entanto, a partir de 1989,
seu sistema penal para
Justiça Restaurativa o centro de todo o
a infância e a juventude.
Atualmente, em muitas localidades, a Justiça Restaurativa
é considerada um sinal de esperança e um rumo para o futuro.
Resta saber se conseguiremos realizar suas promessas, mas
muitos estão otimistas.
A Justiça Restaurativa começou como um esforço para lidar
com assaltos e outros crimes patrimoniais que em geral são
vistos (em muitos casos incorretamente) como ofensas menores.
Hoje,contudo, as abordagens restaurativas estão disponíveis
em algumas comunidades para aplicação às modalidades mais
violentas de crime: morte causada por embriaguez ao volante,
agressão, estupro e mesmo homicídio. A partir da experiência
das Comissões de Verdade e Reconciliação na Africa do Sul,
também vêm sendo realizados esforços para aplicar a estrutura
da Justiça Restaurativa a situações de violência generalizada.
Além disso, tais abordagens e práticas estão ultrapas-
sando o sistema de justiça criminal e chegando a escolase
universidades,locais de trabalho e instituições religiosas.
Alguns defendema ideia de que abordagens restaurativas
como os processos circulares (prática que nasceu das comu-
nidades das Primeiras Nações Indígenas no Canadá)) podem
ser usadas para trabalhar, resolver e transformar os conflitos
em geral. Outros adotam os processos circulares e outras
abordagens restaurativas como um caminho para construir
e sanar comunidades. Kay Pranis, destacada defensora da

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VISÃO GERAL

Justiça Restaurativa, afirma que os círculos são uma moda-


lidade de democracia participativa que vai um passo além da
regra da maioria simples.
Nas sociedades onde o sistema jurídico ocidental substi-
tuiu ou suprimiu processos tradicionais de justiça e resolução
de conflitos, a Justiça Restaurativa oferece uma estrutura
apta a reexaminar e, por vezes, reativar tais tradições. Às
vezes vejo a Justiça Restaurativa como uma amálgama de ele-
mentos-chaveda percepção moderna sobre direitos humanos
com abordagens tradicionais em relação ao dano ou conflito.
Embora o termo "Justiça Restaurativa" abarque uma
ampla gama de programas e práticas, no seu cerne ela é um
conjuntode princípios e valores, uma filosofia, uma série
alternativa de perguntas paradigmáticas. Em última análise,
a Justiça Restaurativa oferece uma estrutura alternativa para
pensar as ofensas. Examinarei esse arcabouço nas páginas
que se seguem, mostrando como isto se traduz em prática.

POR QUE ESTE LIVRO?


Neste livro não tentarei defender a Justiça Restaurativa.
Nem explorarei as muitas implicações dessa abordagem.
Gostaria que ele fosse uma breve descrição ou visão geral
da Justiça Restaurativa, uma espécie de "resumão". Ainda
que apresente abaixo alguns dos programas e práticas, meu
focorecairá principalmente sobre os princípios ou filosofia.
Outros livros da série Little Books of Justice &Peacebuilding
[PequenosLivros de Justiça e Construção de Paz] exploram
práticas e modélos de modo mais completo; uma lista dos
livros disponíveis está no final deste exemplar.
Este livro é para as pessoas que ouviram a expressão
"JustiçaRestaurativa" e estão curiosas sobre suas implica-
ções.Também é uma tentativa de trazer clareza àqueles que

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JUSTIÇA RESTAURATIVA
HOWARD ZEHR —

de atuação, pois é muito


estão envolvidosnesse campo fácil
perder o rumo e o sentido da nossa missão.
Todas as inovações sociais tendem a se desencaminhar
à medida que se desenvolvem e expandem, e a Justiça Res-
taurativa não é uma exceção. Na presença de cada vez mais
programas que se intitulam "Justiça Restaurativa", não raro o
significado desse termo se torna rarefeito ou confuso. Devidoà
inevitávelpressão do trabalho no mundo real, amiúde a Justiça
Restaurativa tem sido sutilmente desviada ou cooptada, afas-
tando-se dos princípios de origem.
Essa questão vem preocupandode
A Justiça modo especial os grupos de defesa dos inte-
Restaurativa resses das vítimas. A Justiça Restaurativa
pretende ser se diz orientada para as vítimas mas será
orientada de fato? Essas associações de vítimas
para as temem que os esforços para promovera
vítimas. Justiça Restaurativa sejam com frequência
motivados principalmente pelo desejode
trabalhar de maneira mais positiva comos
ofensores. Tal como o sistema criminal que procura aprimorar
ou substituir, a Justiça Restaurativa poderá se tornar apenas
uma forma de lidar com aqueles que cometeram ofensas.
Outros se perguntam se ela de fato atendeu de modo ade-
quado às necessidades daqueles que cometeram ofensas e se
empenhou suficientes esforços para ajudá-los a se tornarem
uma melhor versão de si mesmos. Será que os programas de
Justiça Restaurativa oferecem apoio suficiente para que os
ofensores cumpram suas obrigações e mudem seus padrões
de comportamento? Será que de fato tratam os males que leva-
ram os ofensores a se tornarem quem são? Tais programas
não estarão se tornando somente uma outra forma de punir os
ofensores, sob outro pretexto? E a comunidade como um todo?

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VISÃO GERAL

Estará adequadamente autorizada e motivada para envolver-se


e assumir suas obrigações?
Outras preocupações são estas: será que ao implementar
e praticar a Justiça Restaurativa estamos replicando padrões
de disparidade racial e económica prevalentes na socieda-
de? Será que a Justiça Restaurativa, tal como praticada nos
Estados Unidos, por exemplo, está sendo aplicada basicamen-
te para os caucasianos?Está tratando adequadamente das
disparidades subjacentes aos problemas sociais?
Experiências anteriores para promover mudanças no cam-
po da justiça nos advertem de que desvios e deformações
acontecem inevitavelmente, apesar de nossas melhores inten-
ções. Se os defensores da mudança não estiverem dispostos
a reconhecer e atacar esses prováveis desvios, seus esforços
poderão acabar produzindo algo muito diferente do que pre-
tendiam. De fato, as "emendas" podem acabar sendo muito
piores que o "soneto" que planejavam reformar ou substituir.
Uma das salvaguardas mais importantes contra tais des-
vios é dar a devida atenção aos princípios e valores funda-
mentais. Se estivermos bem conscientes deles, se planejarmos
nossos programas com esses princípios e valores em mente, se
nos deixarmos avaliar por esses mesmos princípios e valores,
é bem mais provável que nos mantenhamos na trilha correta.
A questão é que o campo da Justiça Restaurativa tem cres-
cido com tanta rapidez e em 'tantas direções que às vezes não
é fácil caminhar para o futuro com integridade e criativida-
de. Somente uma visão clara dos princípios e metas poderá
oferecer a bússola de que precisamos para encontrar o norte
num caminho inevitavelmente tortuoso e incerto.
Este livro é uma contribuição que procura articular os
conceitos da Justiça Restaurativa e seus princípios em termos
bem diretos. No entanto, devo admitir que existem limitações à

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aqui. Apesar de ter me esforçado
estrutura que esboçarei bas_
uma abertura crítica, possuo um
tante para manter viés favorável
disso, apesar de meu empenho em contrário
a esse ideal. Além
de minha própria "lente", que se
escrevo do ponto de vista formou
homem branco, de classe
a partir daquilo que sou: um média
descendente de europeus e cristão menonita. Tal biografia e ainda
outros interesses necessariamente modelam minha voz e visão.
Mesmohavendo certo consenso dentro do campoda
Justiça Restaurativa quanto às grandes linhas que demarcam
seus princípios, nem tudo passa sem contestação. Estas pági-
nas retratam a minha compreensão da Justiça Restaurativa,
que deve ser comparada com outras vozes.
Por fim, escrevi este livro no contexto da Américado
Norte. A terminologia, as questões levantadas, e mesmoo
modo como o conceito foi formulado refletem em certa medida
as realidades do meu ambiente. A primeira edição foi traduzi-
da para muitos idiomas, contudo, as traduções para contextos
diferentes ultrapassam o campo da linguagem.
Tendo em vista esse pano de fundo e essas qualificações,
passemos agora à questão: o que é Justiça Restaurativa?
Muitas ideias equivocadas cercam o termo e penso que é cada
vez mais importante definir aquilo que a Justiça Restaurativa
não é. Antes de fazê-lo, entretanto, tecerei alguns comentários
sobre a presente edição revisada.

SOBRE ESTA EDIÇÃO AMPLIADA


Muito se passou desde que este livro foi publicadopela
primeira vez em 2002. Ele vendeu mais de '110.000exemplares
nos Estados Unidos e foi traduzido e lançado em países tão
díspares como o Japão, a antiga Tchecoslováquia, o Paquistão
e o Irã. Daí se vê que o campo da Justiça Restaurativa vem
se expandindo e desenvolvendo continuamente ao longo dos

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VISÃO GERAL

pode não ser apropriado. Fico feliz em ver essas aplicações


e reconheço prontamente os limites da ling uagem da "justi-
ça".Contudo, na minha experiência, a maioria dos conflitos
e danos envolvem uma vivência ou percepção de injustiça,
e prefiro não perder a consciência da dimensão de justiça
presente nessas situações. Portanto, continuo a usar o termo
"justiça"restaurativa neste livro embora reconhecendo que
"práticas"restaurativas possa ser um termo mais apropriado
em dados contextos.

A JUSTIÇA RESTAURATIVA NÃO É...


• A Justiça Restaurativa não tem como objeto principal
o perdão ou a reconciliação.
Algumas vítimas e defensores de vítimas reagem negativa-
mente à Justiça Restaurativa porque imaginam que o obje-
tivo do programa seja o de estimular, ou mesmo forçar, a
vítima a perdoar ou se reconciliar com aqueles que causaram
danos a eles ou a seus entes queridos.
Como veremos mais adiante, o perdão ou a reconciliação não
são o objetivo principal ou o foco da Justiça Restaurativa.
É verdade que a Justiça Restaurativa oferece um contexto
em que um ou ambos podem vir a acontecer. De fato, algum
grau de perdão, ou mesmo de reconciliação - ou ao menos
uma diminuição das hostilidades e do medo —,realmente
ocorre com mais frequência do que no ambiente litigioso do
processo penal. Contudo, esta é uma experiência que varia
de participante para participante e depende inteiramente
dos aspectos individuais. Não deve haver pressão alguma
no sentido de perdoar ou de buscar reconciliação. Nem o
perdão nem a reconciliação são pré-requisitos ou resultado
necessário da Justiça Restaurativa.

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A Justiça Restaurativa não implica necessariamente
numa volta às circunstâncias anteriores.
O termo "restaurativo" por vezes suscita
controvérsiapor
que pode parecer que ele sugere um _
retorno ao
como se o mal ou a ofensa não tivessem acontecido.passado
Istonão
é possível, especialmente no caso de danos graves.
Shiner, cujos filhos foram assassinados, afirma Lynn
quepala-
vras com "re" não funcionam: "Não posso reordenar
nada
porque, se o fizesse, seria como pegar os pedaços
embara-
lhados e colocá-los de volta no lugar... É preciso
construir,
criar uma nova vida. Tenho apenas alguns pedaços da
minha
vida anterior que precisei encaixar na vida nova."1
Na verdade, um retorno ao passado em geral não é pos-
sível e nem mesmo desejável. Uma pessoa com histórico
de abusos ou traumas, ou uma vida inteira de comporta-
mento nocivo, por exemplo, talvez não tenha um estado
relacional ou pessoal saudável para o qual retornar.Sua
situação precisa ser transformada e não restaurada.Da
mesma forma, a Justiça Restaurativa visa transformare
não perpetuar padrões de racismo e opressão.
Frequentemente a Justiça Restaurativa requer um movi-
mento na direção de um novo senso de identidadee saúde,
ou novos relacionamentos mais saudáveis. Muitosdefen-
sores da Justiça Restaurativa a veem como caminho para
restaurar um sentido de esperança e um sentidocomunitá-
que a advogada e
rio no mundo. Numa mensagem recente

profissional de Justiça Restaurativa Fania Davismeenviou


por email, ela diz:
Não se trata de retornar ao estado pré-conflitual,
mesmos, que
mas retornar à melhor versão de nós
habilmente facili-
sempre esteve presente. Quando de
possibilidade
tados, os processos de JR criam a
VISÃO GERAL

transformação das pessoas, dos relacionamentos e


das comunidades. Isto está muito longe do estado pré-
-conflitual. Portanto, o que estamos restaurando? Para
mim trata-se de retornar àquela parte de nós que real-
mente quer estar ligada ao outro de um modo positivo.
Retornar à bondade inerente presente em todos nós.
Poderíamos dizer que é um retorno à divindade pre-
sente em cada um de nós. Ou, como dizem os anciãos
dos povos indígenas: retornar à parte de nós que se
relaciona com todas as coisas.

A Justiça Restaurativa não é mediação.


Tal como os Programas de mediação, muitos programas de
Justiça Restaurativa são desenhados em torno da possibili-
dade de um encontro facilitado entre vítimas, ofensores e,
possivelmente,familiares e membros da comunidade.No
entanto, nem sempre se escolhe realizar o encontro, nem
seria apropriado. Além disso, as abordagens restaurativas
são importantes mesmo quando o ofensor não foi identifi-
cado ou preso, ou quando uma das partes não se dispõe ou
não pode participar. Portanto, as abordagens restaurativas
não se limitam ao encontro.
Mesmo quando o encontro acontece, o termo "mediação"
não o descreve adequadamente. Num conflito mediado ou
disputa presume-se que as partes atuem num mesmo nível
ético, muitas vezes com responsabilidades que deverão
partilhada
ser partilhadas. Embora esse conceito de culpa
o é. As
seja válido em certos crimes, em muitos casos não
querem ser
vítimas de estupro ou mesmo de roubo não
podem
vistas como "partes de um conflito". Na realidade,
tendência de
estar em meio a uma luta interna contra a
culparem a si mesmas.

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De qualquer maneira, para participar de um encontrode
Justiça Restaurativa, na maioria dos casos o ofensordeve
admitir algum grau de responsabilidade pela ofensa, e um
elemento importante de tais programas é que se reconheça e
se dê nome a tal ofensa. A linguagem neutra da mediação pode
induzir ao erro, e chega a ser um insulto em certas situações.
Ainda que o termo "mediação" tenha sido adotado desde
o início dentro do campo da Justiça Restaurativa, ele vem
sendo cada vez mais substituído por termos como "encontro"
ou "diálogo" pelos motivos expostos acima.

• A Justiça Restaurativa não tem por objetivo principal


reduzir a reincidência ou as ofensas em série.
Num esforço para ganhar aceitação, os programas de Justiça
Restaurativa muitas vezes são promovidos ou avaliados
como maneiras de diminuir a reincidência ou os crimes em
série.
Há bons motivos para acreditar que tais programas redu-
zem de fato a criminalidade. As pesquisas realizadas até o
momento são bastante animadoras em relação a esse que-
sito. No entanto, a redução da reincidência não é o moti-
vo pelo qual se devam promover os programas de Justiça
Restaurativa.
A redução da reincidência é um subproduto mas a Justiça
Restaurativa é praticada, em primeiro lugar, pelo fato de ser
a coisa certa a fazer. Aqueles que sofreram o dano devem
ser capazes de identificar suas necessidades e tê-las apon-
tadas, aqueles que causaram dano, devem ser estimulados
a assumir a responsabilidade e aqueles
que foram afetados
por um delito devem ser envolvidos
no processo ---indepen-
dente do fato de os ofensores
caírem em si e abandonarem
seu comportamento transgressor.

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VISÃO GERAL

A Justiça Restaurativa não é um programa ou projeto


específico.
Muitos programas adotam a Justiça Restaurativa no todo
ou em parte. Contudo, não existe um modelo puro que
possa ser visto como ideal ou passível de implementação
imediata em qualquer comunidade. Mesmo após três
décadas, estamos ainda numa fase de aprendizado muito
intenso nesse campo. As práticas mais interessantes que
têm surgido nos últimos anos não passavam pela cabeça
daqueles que deram início aos primeiros programas, e
muitas ideias inovadoras surgirão em virtude do diálogo
e experimentação.
Do mesmo modo, todos os mode-
10sestão, em alguma medida, atre- A Justiça
lados à cultura. Portanto a Justiça Restaurativa é
Restaurativa deve ser construída uma bússola e
de baixo para cima, pelas comu- não um mapa.
nidades, através do diálogo sobre
suas necessidades e recursos, apli-
cando os princípios às situações que lhes são próprias.
A Justiça Restaurativa não é um mapa, mas seus princípios
podem ser vistos como uma bússola que aponta na direção
desejada. No mínimo, a Justiça Restaurativa é um convite
ao diálogo e à experimentação.

• A Justiça Restaurativa não se limita a ofensas menores


ou ofensores primários.
Talvez seja mais fácil conseguir o apoio da comunidade a
programas que lidam com os chamados "casos de menor
gravidade". No entanto, a experiência tem demonstrado
que as abordagens restaurativas podem produzir maior
impacto nos casos de crimes mais graves. Além disso,

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se os princípios da Justiça Restaurativa forem
sério, a necessidade dessas abordagens fica levadosa
aos casos mais muito clara
no tocante graves. As perguntas
doras da Justiça Restaurativa (ver p. 55) podem baliza_
ajudara
criar respostas judiciais sob medida para situações
difíceis. A violência doméstica é provavelmente muito
a área
de aplicação mais desafiadora e, nesse caso,
aconselho
grande cautela. Não obstante, abordagens
restaurativas
bem-sucedidas têm emergido também nesse
campo.
As abordagens restaurativas são desafiadoras em
todasas
ofensas onde se verifica um significativo desequilíbrio
de
poder, incluindo crimes de ódio, bullying e abuso
sexual
de menores. A concepção do programa deve levar isto
em
conta e os facilitadores precisam ter sido treinados minu-
ciosamente quanto às questões subjacentes que gerama
violência. Mas é possível desenhar programas para esses
casos, e muitos sustentam que, quando bem feitos,esses
programas produzem melhores resultados do que o sis-
tema que atualmente tenta resolver tais questões.
Pode parecer que os programas de Justiça Restaurativa
são mais apropriados para os jovens. Contudo, elessão
igualmente aplicáveis para adultos, e muitos programas
foram concebidos para ambas as faixas etárias.

• A Justiça Restaurativa não é algo novo nem se originou


nos Estados Unidos.
O moderno campo da Justiça Restaurativa de fato desenvol-
veu-se nos anos 1970 a partir de projetos-piloto em várias
comunidades norte-americanas. Buscando aplicar sua fé
e visão de paz ao campo implacável da justiça criminal,
os menonitas e outros profissionais de Ontário, Canadá,
e depois de Indiana, Estados Unidos, experimentaram

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VISÃO GERAL

encontros entre ofensor e vítima dando origem a progra-


mas, nessas comunidades, que depois serviram de modelo
para projetos em outras partes do mundo. A teoria da Justiça
Restaurativa desenvolveu-se inicialmente desses empenhos.
Contudo, a Justiça Restaurativa não surgiu do nada; o movi-
mento deve muito a esforços anteriores e a várias tradições
culturais e religiosas. Muitas tradições indígenas tiveram e
têm ainda elementos restaurativos
importantes. Beneficiou-seenorme-
mente do legado dos povos nativos da A Justiça
América do Norte e Nova Zelândia, e Restaurativa
outras tradições continuam oferecen- ressalta as
do inspiração. Portanto, suas raízes e dimensões
precedentes são bem mais amplos que pessoais e
a iniciativa dos anos 1970.Na verdade, interpessoais
essas raízes são tão antigas quanto a do crime.
história da humanidade.

A Justiça Restaurativa não é uma panaceia nem neces-


sariamente um substituto para o sistema judicial.
A Justiça Restaurativa não é, de modo algum, resposta
para todas as situações. Nem está claro que deva substi-
tuir o sistema judicial, mesmo num mundo ideal. Muitos
entendem que, mesmo que a Justiça Restaurativa pudesse
ganhar ampla implementação, algum tipo de sistema jurí-
dico ocidental (idealmente orientado por princípios restau-
rativos) ainda seria necessário como salvaguarda e defesa
dos direitos humanos fundamentais. De fato, esta é a fun-
ção das varas de infância e juventude no sistema de Justiça
Restaurativa juvenil da Nova Zelândia.
A maioria dos defensores da Justiça Restaurativa concorda
que o crime tem uma dimensão pública e uma privada. Creio

• 25 •
que seria mais exato dizer que o crime tem uma dimensão
social assim como uma dimensão mais pessoal e interpessoal
O sistemajurídico se preocupa com a dimensão pública,ou
seja, os interesses e obrigações da sociedade representada
pelo Estado. Mas esta ênfase relega ao segundo plano
ou chega a ignorar, os aspectos pessoais e interpessoais
do crime. Ao colocar o foco sobre as dimensões pessoal
interpessoale comunitária do crime, consequentemente
valorizando-as, a Justiça Restaurativa procura oferecerum
maior equilíbrio na maneira como vivenciamos a justiça.

• A Justiça Restaurativa não é necessariamente uma alter-


nativa ao aprisionamento.
A sociedade ocidental, e especialmente os Estados Unidos,
faz uso abusivo dos presídios. Se a Justiça Restaurativa
fosse levada a sério, nosso recurso ao aprisionamento seria
reduzido e a natureza dos estabelecimentos prisionais
mudaria significativamente. No entanto, as abordagens
restaurativas podem também ser usadas em conjuntocom
as sentenças de detenção, ou em paralelo a estas. A Justiça
Restaurativa pode ser uma alternativa à prisão, podendo
assim reduzir nossa dependência do sistema prisional.
Entretanto, não elimina a necessidade de alguma forma
de encarceramento em alguns casos.

• A Justiça Restaurativa não se contrapõe necessariamente


à justiça retributiva.
Apesar de minhas afirmações em obras anteriores, não
vejo mais a Justiça Restaurativa como totalmente oposta
à justiça retributiva, muito embora ela possa reduzir nos-
sa confiança na punição por si mesma. Esta questão será
tratada em maior detalhe nas páginas 81-82.

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VISÃO GERAL

A JUSTIÇA RESTAURATIVA É FOCADA


EM NECESSIDADES E PAPÉIS
O movimento de Justiça Restaurativa começou como
um esforçode repensar as necessidadesque o crime gera
e os papéis inerentes ao ato lesivo. Os defensores da Justiça
Restaurativa examinaram as necessidades que não estavam
sendo atendidas pelo processo legal corrente. Observaram
também que é por demais restritiva a visão prevalente de
quais são os legítimos participantes
ou detentores de interesse no processo
judicial.
A Justiça
A Justiça Restaurativa expande o
Restaurativa
círculo dos interessados no processo
amplia o
(aqueles que foram afetados ou têm uma
círculo
posição em relação ao evento ou caso)
das partes
ampliando-o para além do Estado e do
interessadas.
ofensor a fim de incluir também aqueles
diretamente vitimados e os membros
da comunidade.
Como esta visão de necessidades e papéis marcou a origem
do movimento, e pelo fato de a estrutura de necessidades/papéis
ser tão inerente ao conceito, é importante começar nossa revi-
são desse ponto. À medida que o campo da Justiça Restaurativa
se desenvolveu, a análise dos detentores de interesse tornou-se
mais complexa e abrangente. A discussão que segue se limita
a algumas das preocupações centrais que já se faziam presen-
tes desde o início do movimento e que continuam a desempe-
nhar um papel central. Ela também se limita às "necessidades
judiciais" v—necessidades das vítimas, ofensores e membros da
comunidade —que podem ser atendidas, ao menos em parte,
pelo sistema judicial.

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-JusncA RESTAURATIVA
HOWARDZEHR

Vítimas:aqueles que foram prejudicados


se preocupa em especial com
A Justiça Restaurativa
necessidadesdas vítimas de atos il ícitos, aquelas necessidades
adequadamente atendidas pelo
que não estão sendo sistema
dejustiça criminal. Não raro as vítimas se sentem ignoradas
negligenciadasou até agredidas pelo processo penal. Às vezes
os interesses do Estado são diretamente conflitantes com
aqueles da vítima. Isto acontece em parte devido à definição
jurídica do crime, que não inclui a vítima. O crime é definido
como ato cometido contra o Estado, e por isso o Estado toma
o lugar da vítima no processo. No entanto, aqueles que sofre-
ram dano muitas vezes têm várias necessidades específicas
em relação ao processo judicial.
Devido à definição jurídica de crime e à natureza do pro-
cesso penal, quatro tipos de necessidade parecem estar sendo
especialmentenegligenciadas:

1. Informação. Aqueles que sofreram o dano precisam de


respostas às suas questões sobre o ato lesivo e o ofensor,
incluindo saber por que e como aconteceu e o que ocorreu
depois. Precisam de informações reais, não especulações
ou informações oficiais resultantes de um julgamento ou
pedido de acordo. Conseguir informações reais em geral
requer que tenhamos acesso direto ou indireto ao ofensor
que detém a informação.
2. Falar a verdade. Um elemento importante no processo
de recuperação ou superação da vivência do crime é a
oportunidade de narrar o acontecido. Há bons motivos
terapêuticos para tanto. Parte do trauma acarretado pelo
crime advém da forma como ele perturba nossa visão
sobre nós mesmos e o mundo,
nossas histórias de vida.
Transcender essa vivência implica em "recontar" nossas

• 28 •
VISÃO GERAL

vidas, narrando a história em contextos significativos,


muitas vezes em situações onde receberá reconhecimento
público. Com frequência é importante para aqueles que
foram vitimados contar a história àqueles que causaram
o dano, fazendo-os entender o impacto dc suas açóes.
3. Empoderamento. Em geral aqueles que foram vitimados
sentem que a ofensa sofrida privou-lhes do controle - contro-
le sobre suas propriedades, seus corpos, suas emoções, seus
sonhos. Envolver-se com o proces-
sojudicial e suas várias fases pode
As vítimas
ser uma forma significativa de
devem ser
devolver-lhes um senso de poder.
capazes de
A oportunidade e o incentivo para
identificar
que identifiquem suas próprias
suas próprias
necessidades —ao invés de tê-las
necessidades.
definidas pelo Estado ou por seus
defensores - também é importante.
4. Restituição patrimonial ou vindicação. A restituição
patrimonial por parte daquele que causou dano geralmen-
te constitui elemento importante para os prejudicados, por
vezes, em virtude das perdas reais sofridas mas, igualmente,
devido ao reconhecimento simbólico que a restituição dos
bens representa. Quando aquele que causou dano faz um
esforço para corrigir o mal, mesmo que parcialmente, isto
é uma forma de dizer "estou assumindo a responsabilidade,
você não tem culpa pelo que fiz".
De fato, a restituição de bens é um sintoma ou sinal que
representa uma necessidade mais básica - a de vindicação.
Embora o conceito de vindicação esteja fora do escopo deste
livro, estou convencido de que se de uma necessidade
básica que todos temos ao sermos tratados injustamente. A
restituição de bens é uma dentre muitas outras maneiras de

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JUSTIÇA RESTAURATIVA
HOWARD ZEHR -

atender a essa necessidade de igualar o placar. Umpedido


de desculpas também pode contribuir para satisfazeressa
necessidade de ter reconhecido o mal infligido.

A teoria e a prática da Justiça Restaurativa surgiram e foram


fortemente moldadas pelo esforço de levar a sério as "necessi-
dades de justiça" das vítimas. 2

Ofensores: aqueles que causaram danos


O segundo maior foco de preocupação que deu origemà
Justiça Restaurativa é assegurar que aqueles que causaram
dano assumam a responsabilidade.
O sistema de justiça penal se preocupa com responsabilizar
os ofensores, mas isto significa garantir que recebam a puni-
ção que merecem. O processo dificilmente estimula o ofensor
a compreender as consequências de seus atos ou desenvolver
empatia em relação à vítima. Pelo contrário, o jogo adversarial
exige que o ofensor defenda os próprios interesses. Aqueleque
ofendeu é desestimulado a reconhecer sua responsabilidade
e tem poucas oportunidades de agir concretamente de modo
responsável. De fato, o risco de sentenças longas de aprisiona-
mento desestimula o ofensor a falar a verdade.
As estratégias neutralizadoras —estereótipos e raciona-
lizações que os ofensores adotam para se distanciarem das
infe-
pessoas que agrediram - nunca são questionadas. Assim,
ao
lizmente, o senso de alienação social do ofensor só aumenta
com
passar pelo processo penal e pela experiência prisional;
Por
frequência, sentem-se vítimas do sistema e da sociedade.
vários motivos esse processo tende a desestimular a responsa-
ofensa,
bilidade e a empatia por parte daquele que praticou a
A Justiça Restaurativa tem promovido a conscientizaçá0
do
Mais
sobre os limites e subprodutos negativos da punição.

• 30 •
VISÃO GERAL

que isto, vem sustentando que a pun ição não constitui real res-
ponsabilizaçâo. A verdadeira responsabilidade consiste em olhar
de frente para os atos que praticamos, significa esti mular aquele
que causou dano a compreender o impacto de seu comporta-
mento, os males que causou —e instá-lo a adotar medidas para
corrigir tudo o que for possível. Argumenta-se que este tipo de
responsabilidade é melhor para aqueles que foram vitimados,
aqueles que causaram dano, e também, para a sociedade.
Além da sua responsabilidade para com as vítimas e a
comunidade, aquele que causou dano tem outras necessidades.
Dentro dos parâmetros da Justiça Restaurativa, se queremos
que assuma suas responsabilidades, mude de comportamen-
to, torne-se um membro que contribua para a comunidade,
devemos também considerar suas necessidades. O assunto
ultrapassa o escopo deste livro, mas as seguintes sugestões
esboçam o necessário.

Aqueles que causaram o dano precisam que a justiça


lhes ofereça:
1. Responsabilização que
a. Cuide dos danos resultantes,
b. Estimule a empatia e a responsabilidade e
c. Transforme a vergonha. 3
2. Estímulo para a experiência de transformação pessoal,
incluindo:
a. Cura dos males que contribuíram para o comportamento
pessoais e históricos, 4
lesivo abrangendo os traumas
elou
b. Oportunidades de tratamento para dependências
outros problemas e
c, Aprimoramento de competências pessoais.
comunidade.
3. Estímulo e apoio para reintegração à
temporária.
4. Para alguns, detenção, ao menos

• 31 •
JUSTIÇA RESTAURATIVA
HOWARDZEFIR —-

Comunidade
Os membros da comunidade têm necessidades
advindas
do crime, e também papéis a desempenhar. Defensoresda
Justiça Restaurativa como o antigo juiz Barry Stuarte Kay
Pranis argumentam que, quando o Estado assume o lugardo
cidadão, isso termina por enfraquecer nosso sentidocomu-
nitário. 5 As comunidades sofrem o impacto do crime e, em
muitos casos, deveriam ser consideradas partes interessadas
pois são vítimas secundárias. As comunidades também podem
ter responsabilidades em relação às vítimas, aos ofensorese
aos seus próprios membros.
Quando a comunidade se envol-
Justiça ve com o processo, poderá iniciarum
Restaurativa fórum para discutir essas questões,
está mais atividade que vai, ao mesmotempo,
centrada nas fortalecer a própria comunidade. Este
necessidades assunto é igualmente muito vasto. Os
que na punição. itens a seguir sugerem algumas áreas
que merecem atenção.

As comunidades precisam que a justiça ofereça:


1. Atenção às suas preocupações enquanto vítimas.
2. Oportunidades para construir um senso comunitárioe de
responsabilidade mútua.
3. Oportunidade e encorajamento para assumir suas obri-
gações em favor do bem-estar de seus membros,inclusi-
ve daqueles que foram prejudicados e dos que causaram
dano, e fomento das condições que promovam comunidades
saudáveis.
quem
Muito mais poderia ser escrito —e de fato foi - sobre
são as partes envolvidasem um crime e suas necessidades
acima
e papéis. Contudo, as questões básicas esboçadas

• 32 •
VISÃO GERAL

- quanto às suas necessidades e aos papéis desempenhados


por vítimas, ofensores e membros da comun idade ---continuam
a oferecer o foco central, tanto para a teoria quanto para a
prática da Justiça Restaurativa.
Em resumo, os serviços do sistema de justiça criminal ou
penal estão centrados nos ofensores e na aplicação do casti-
go - e garantem que eles recebam o que merecem. A Justiça
Restaurativa está mais centrada nas necessidades dos preju-
dicados, dos que causaram dano e das comunidades onde a
situação ocorreu.

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