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Comunicação Não-Violenta

PEDRO CONSORTE

O que existe de especial na Comunicação Não-Violenta (CNV)49 é que ela não


aborda apenas o aspecto da linguagem, mas também do entendimento das rela-
ções. Assim como a Pedagogia da Cooperação, ela questiona paradigmas presentes
em nossa sociedade, como, por exemplo, a ideia de que precisamos competir para
sobreviver, encontrar quem é o melhor, buscar o sucesso individualmente, iden-
tificar os culpados, punir quem está errado, impor respeito e atingir objetivos a
qualquer custo.
Nessa visão de mundo mais habitual, sou eu contra você, ou nós contra eles,
o que alimenta um entendimento bélico das relações e limita as pessoas a rótulos
que definem quem é “do bem” e “do mal”, os vilões, as vítimas e os heróis. Esse
paradigma opera na ideia do poder sobre os outros, pois considera que precisamos
estabelecer relações de dominação. Mas a CNV propõe outro caminho, que ressalta
a importância de considerarmos a interdependência de nossas relações. Esse é o
lugar do poder compartilhado, o poder com os outros.
A CNV é mais do que uma metodologia. Ela é uma série de princípios que po-
dem transformar nossa visão de mundo, para vivermos de forma mais cooperativa
e harmônica. Então, quanto mais você aprender sobre ela, mais chance terá de lidar
com conflitos de maneira mais construtiva, se comunicar de forma mais precisa,
descobrir recursos para lidar com as emoções e desenvolver sua capacidade de se
juntar a outras pessoas e encontrar criativamente soluções comuns.
Esses princípios literalmente mudaram a minha vida porque cresci em uma
família que tinha muito amor para dar e certa dificuldade de se comunicar de
maneira cooperativa. Brigas intensas, agressões verbais e físicas, drogas como
válvula de escape e até tentativa de suicídio. Também acabei incorporando e
reproduzindo tudo isso em minha própria vida. Porém, a CNV me levou a uma
jornada de transformação profunda, redirecionando minha vida pessoal e pro-
fissional, e me transformando em facilitador e consultor de CNV e de Metodolo-
gias Colaborativas. Por isso, digo que sou prova viva da potência de transforma-
ção que ela tem.

49 The Center of Nonviolent Communication. Fonte: www.cnvc.org/. Acesso em: 04/11/2020.

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Puxa, mas quem será que criou tudo isso? Marshall Rosenberg, psicólogo norte-
-americano, quando era criança, ficou muito reflexivo sobre as violências que vivia
pelo fato de ser judeu. Mais tarde, se propôs a investigar o que tornava a violência
algo tão prazeroso para alguns e tão sofrido para outros. Sob grande influência
de seu professor Carl Rogers e inspirado pela Não-Violência, proposta por tantos
nomes como Mahatma Ghandi, Martin Luther King Jr. e Rosa Parks, sistematizou
um conjunto de princípios e práticas que chamou de Comunicação Não-Violenta,
com o objetivo de ajudar as pessoas a se entenderem mais e, consequentemente,
reduzirem relações de desigualdade e injustiça.
Onde isso tem sido aplicado? Pelo fato de se tratar de uma abordagem que tem
como ponto de partida as relações humanas, tem sido utilizada numa gama imensa
de contextos, desde conflitos dentro de famílias, passando por conflitos internacio-
nais, sendo aplicada em empresas, em relacionamentos pessoais, em negociações
internacionais, na educação de crianças e na construção de comunidades.
Como saber se está funcionando? Os indicadores que representam a eficácia se
expressam através da transformação dos comportamentos violentos e do aumento
da sensação de sustentabilidade nas relações. Surge uma mudança na forma de li-
dar com conflitos e encontrar soluções, aumentando a sensação de segurança em
expor opiniões e sentimentos sinceros, a resiliência em lidar com crises e o grau
de autenticidade e de empatia. Nesse processo, percebemos menos mentiras, mais
falas sinceras e pedidos mais precisos, identificando também a presença de opiniões
discordantes, presenciando a exposição de vulnerabilidades e, finalmente, notando
que mais necessidades estão sendo contempladas.
O grande segredo da CNV é que ela nos ajuda a focar em pontos de vista que au-
mentem as chances de nos conectarmos uns com os outros e, consequentemente,
conseguirmos cooperar. Nessa jornada, ela propõe que respondamos duas pergun-
tas. A primeira é “O que está vivo?”, ajudando-nos a mapear o que está borbulhan-
do dentro de nós/mim/você/eles/elas etc., e buscando identificar o que estamos
sentindo e quais são nossas necessidades. Já a segunda pergunta propõe refletirmos
sobre “Como podemos tornar a vida mais maravilhosa?”, sendo entendida como
“Quais estratégias podemos cocriar para atendermos as necessidades de todos, sem
deixar ninguém de fora?”. Quer dizer que precisamos pensar nelas juntos, porque,
somente dessa forma, conseguiremos chegar a soluções que atendam a todos.
Mas, como incorporar isso na prática? Já aviso que não existe fórmula mágica e
isso pode ser libertador, porque, assim, é possível encontrar seu próprio jeito nessa
proposta. O que pode nos ajudar são os princípios, que dão boas pistas de como
incorporar a CNV à nossa vida. Um desses princípios é exercitar duas musculatu-
ras: a autenticidade e a empatia. A autenticidade tem a ver com buscar ser quem

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realmente sou, falar o que está vivo dentro de mim e me expressar de maneira
sincera e honesta com aquilo que sinto, necessito e acredito. Já a empatia tem a ver
com um olhar respeitoso que podemos desenvolver sobre aquilo que alguém está
vivendo, assumindo a perspectiva dessa pessoa e sustentando um espaço que legi-
tima aquilo que ela vê, entende, sente e acredita. É na dança entre autenticidade e
empatia, que temos mais chances de nos conectarmos e cocriarmos soluções que
atendam todas as necessidades.
Outro ponto importante é visualizarmos esses princípios em 3 esferas de rela-
ção: eu comigo mesmo (intrapessoal), eu com alguém (interpessoal) e eu com o
todo (sistêmico). Na esfera intrapessoal, é muito comum ouvirmos vozes internas
que são bastante cruéis e exigentes com nós mesmos. Porém, aqui a ideia é mergu-
lharmos nessa relação e vermos de que forma podemos ser verdadeiros com aquilo
que sentimos e de que maneira podemos nos acolher com respeito e empatia (au-
toempatia).
Já na esfera interpessoal, nós cultivaremos esse olhar autêntico e empático com
outras pessoas, investigando como podemos nos relacionar com aqueles que fazem
parte do nosso convívio, de forma a conseguir expressar aquilo que sentimos e pre-
cisamos, mantendo uma presença empática àquilo que essas pessoas também nos
expressam.
Na terceira e última esfera, a sistêmica, existe um olhar para nossas estruturas
coletivas, para verificarmos o que podemos fazer para criar mais condições que
interrompam as desigualdades e atendam mais as necessidades das pessoas, prin-
cipalmente em larga escala, considerando grupos de distintos tamanhos até toda
uma nação.
Agora, também há quatro diferenciações que podem servir inclusive como
exercício prático para nos ajudar a transformar a maneira como percebemos senti-
mentos e necessidades (Quadro 5), entendemos as relações e, consequentemente,
nos comunicamos com os outros:

• Diferenciar Observação e Julgamento Moralizador. Por exemplo: a diferen-


ça entre pensar que “João é preguiçoso” (julgamento) e que “João levantou
da cama às 11h da manhã” (observação). Quanto mais focarmos na perspecti-
va do julgamento, maior será a tendência de nos desconectarmos. E, quanto
mais focarmos na perspectiva da observação, ou seja, das ações concretas que
estamos observando e que afetam nosso bem-estar, mais chances teremos de
cocriar soluções cooperativas e evitar conflitos violentos e inimizades.
• Diferenciar Sentimento e Pseudo-sentimento. Por exemplo: a diferença en-
tre pensar que “Eu me sinto triste” (sentimento) e “Eu me sinto injustiçado”

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(pseudo-sentimento). Ao focar em pseudo-sentimentos (sentimentos mistu-
rados com julgamentos e avaliações), eu cultivo a culpabilização dos outros
por aquilo que sinto e, consequentemente, a polarização das relações. Ao
focarmos no sentimento, ou seja, em como nos sentimos em relação ao
que estamos observando, mais chances teremos de estabelecer um diálogo
cooperativo, para interromper os desequilíbrios e alimentar relações mais
sustentáveis, que não estejam pautadas na imagem de um inimigo.
• Diferenciar Necessidade e Estratégia. Por exemplo: a diferença entre pen-
sar que “Tenho necessidade de que você arrume seu quarto” (estratégia)
e “Ao ver como seu quarto está, sinto necessidade de organização” (neces-
sidade). Ou seja, tenho um conjunto de necessidades, valores e desejos,
e visualizo uma estratégia para atender essas minhas necessidades. Isso é
diferente de achar que eu tenho uma necessidade de que alguém faça algo.
Ao focarmos nas necessidades e não nos apegarmos a uma estratégia es-
pecífica para atendê-las, nós nos libertamos e ganhamos mais opções de
caminhos para contemplá-las.
• Diferenciar Pedido e Exigência. Por exemplo: se eu penso “você deveria
participar da reunião das 18h” (exigência), e se eu penso “você aceita par-
ticipar da reunião das 18h?” (pedido). Quando abordamos as pessoas, do
ponto de vista da exigência, estamos impondo algo e isso comumente cria
resistência e desconexão. Já, quando abordamos as pessoas do ponto de
vista do pedido, ou seja, das ações concretas que pedimos para enriquecer
nossa vida, estamos abertos a receber um “não” como resposta e abertos
também a considerar as necessidades das outras pessoas, aumentando as
chances de encontrarmos soluções que contemplem todos.

Se você estiver pensando em como aplicar esses princípios dentro do percurso


das Sete Práticas da Pedagogia da Cooperação, existem muitas possibilidades. Por
exemplo, no Com-Tato, podemos nos perguntar “o que está vivo entre nós neste
início de encontro?”. No Com-Trato, podemos mapear quais são as necessidades la-
tentes no grupo e ajudar as pessoas a formularem pedidos precisos. Em Comparti-
lhar In-Quieta-Ações, podemos estimular a autenticidade e a empatia das pessoas,
para compartilharem o que realmente as está inquietando. Em Fortalecer Alianças e
Parcerias, podemos mergulhar naquilo que nos conecta como humanos e nos vul-
nerabilizarmos, para nos conectarmos mais profundamente. Em Reunir Soluções
Como-Uns, podemos imaginar uma série de estratégias diferentes para atender as
necessidades que estão por trás das inquietações trazidas pelo grupo. Em Projetos
de Cooperação, podemos transformar conflitos que possam surgir desse processo.

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E em Celebrar o VenSer, podemos enlutar tudo aquilo que gostaríamos que tivesse
acontecido durante o processo e que não aconteceu, e contar uns aos os outros tudo
aquilo que aconteceu e que tornou nossa vida mais maravilhosa.

ALGUNS SENTIMENTOS BÁSICOS ALGUMAS NECESSIDADES BÁSICAS


QUE TODOS NÓS TEMOS QUE TODOS NÓS TEMOS

Como nos sentimos quando nossas


necessidades são atendidas:
agradecidos, alegres, alertas, aliviados, cheios
de energia, comovidos, confiantes,
Autonomia, Celebração, Beleza,
confortáveis, contentes, esperançosos,
Harmonia, Inspiração, Ordem, Paz,
estimulados, impressionados, inspirados,
Autenticidade, Criatividade,
intrigados, orgulhosos, otimistas, realizados,
Significado, Interdependência,
surpresos.
Aceitação, Amor, Apoio, Apreciação,
Compreensão, Comunhão, Confi nça,
Consideração, Contribuição, Empatia,
Encorajamento, Honestidade,
Como nos sentimos quando nossas
Proximidade, Respeito, Segurança,
necessidades não são atendidas:
Abrigo, Água, Alimento, Descanso,
aborrecidos, confusos, constrangidos,
Nutrição, Expressão, Movimento,
desapontados, desconfortáveis,
Proteção, Toque, Diversão,
desencorajados, desesperançados,
Integridade.
desorientados, frustrados, impacientes,
intrigados, irados, irritados, nervosos,
perturbados, preocupados, relutantes,
saturados.

Quadro 5 — Sentimentos e necessidades

Espero que esse breve passeio tenha contribuído com sua vida de alguma forma.
Qualquer dúvida, pergunte para a gente. Até mais!

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