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ENTREVISTA QUE ROGERS CONCEDEU À REVISTA VEJA, NA OCASIÃO EM

QUE ESTEVE NO BRASIL EM 1977

VEJA – Como se situaria a pessoa humana diante da psicologia humanista?


ROGERS – O ser humano, como todos os organismos, tende a crescer e a se
atualizar. É claro que todos os fatores sociais, econômicos e familiares podem
interromper esse crescimento, mas a tendência fundamental é em direção ao
crescimento, ao seu próprio preenchimento ou satisfação. Costumo exemplificar
esse processo lembrando batatas que guardávamos no porão da nossa casa na
fazenda. Elas criavam brotos porque havia uma janelinha no quarto. Era uma
tentativa inútil, mas parte da tentativa do organismo de se satisfazer. Você consegue
um produto muito diferente quando planta uma batata na terra, e comparo esse
processo ao que pode ser encontrado em delinquentes e em pessoas que são tidas
como doentes mentais: o modo como suas vidas se desenvolveram pode ser muito
bizarro, anormal; no entanto, tudo o que elas estão fazendo é uma tentativa para
crescer, para atualizar seus potenciais. O fato de essa tentativa causar maus
resultados situa-se mais no meio ambiente do que na tendência básica do indivíduo.
A pedra fundamental da psicologia humanista pelo menos como eu vejo, é, portanto
essa crença de que o ser humano tem um organismo positivo e construtivo.

VEJA – A psicologia humanista pode ajudar a sociedade a resolver seus


problemas? De que modo?
ROGERS– Ela não é uma solução para todos os problemas do mundo, mas pode
ajudar muito na solução dos problemas psicológicos e sociais. Pode ajudar o
indivíduo a crescer em direção a uma personalidade mais normal, mais expansiva. A
psicologia humanista tem os instrumentos para reconciliar diferenças, para ajudar as
pessoas a observarem os pontos de vista dos outros.

VEJA – Um governo com uma visão humanista não seria, então, mais poderoso que
uma psicologia humanista?
ROGERS – Para mim, isso é um sonho, mas seria bom esquematizar uma utopia
com um governo humanista. Quanto mais um governo acredita num ponto de vista
humanista possibilidades existirão de promover um clima no qual os cidadãos
possam crescer e trabalhar junto mais harmoniosamente, e no qual haverá mais
compreensão, ou respostas, as suas necessidades. Mas não vejo nenhuma
possibilidade do que eu chamaria de um governo humanista.
VEJA – O que o senhor pensa da psicologia acadêmica?
ROGERS – Nos Estados Unidos, a psicologia Acadêmica poderia dar excelente
aconselhamento e ajuda a governos ditatoriais. Acho que, se qualquer autoridade
diz “queremos que as pessoas sejam mudadas desta forma”, a psicologia
acadêmica sabe muito bem como mudar as pessoas, gradualmente, no sentido que

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se quiser. E vejo isso como um grande perigo. A psicologia humanista seria uma
valiosa conselheira a uma forma de governo democrático, pois ela o ajudaria a ser
cada vez mais democráticos, a compreender as capacidades, os direitos e a
habilidade do cidadão de ser responsável.

VEJA – O senhor tem se dedicado profundamente à organização de grupos de


encontros. O que vem a ser, para o senhor um grupo de encontro?
ROGERS – É uma oportunidade para as mais diversas pessoas se encontrarem,
sem nenhum planejamento, a não ser elas mesmas e seus inter-relacionamentos.
Não existe um tópico a ser discutido nem problemas imediatos a serem resolvidos.
Então, sobre o que se vai falar? Quando as pessoas percebem que qualquer coisa
pode ser discutida, então começam a falar mais de si mesmas e o encontro torna-se
mais profundo. A pessoa começa a acreditar que o grupo pode compreende-la e o
processo pode ser descrito como uma percepção dos próprios sentimentos, que as
pessoas nunca pensaram possuir, tentando novas maneiras de se comportar no
grupo, desenvolvendo relacionamentos mais íntimos, sejam eles positivos e de
amor, ou de raiva e confrontação, mas, de um jeito ou de outro, se aproximando
mais como pessoas.

VEJA – Qual a diferença entre os grupos de encontro e a terapia individual?


ROGERS – Na terapia de um-para-um, o cliente sente que é um milagre que ele
possa ser aceito e compreendido – mas será que alguém mais o compreenderá? Em
um grupo de encontro, ele logo percebe: “Todas essas pessoas me aceitam? E nem
ao menos estão sendo pagas para isso?” E isso é muito forte, pois provoca o
sentimento de que, “quem sabe, eu sou uma pessoa aceitável”. Nesse sentido, o
grupo de encontro pode ser de maior efeito que a terapia individual.

VEJA – Que mudanças ocorrem num grupo de encontro em relação à percepção ou


conscientização?
ROGERS – Tanto na terapia quanto no grupo de encontro, a mudança mais notável
é a expansão da conscientização do indivíduo. Ele vem para o grupo achando que
sabe quem é e que está consciente de si mesmo. Mas, quando começa a se abrir e
a notar como as pessoas ouvem com atenção, ele descobre, dentro de si mesmo,
coisas que não havia percebido antes. Começa a sentir que é mais do que pensava
ser, que tem sentimentos que nunca havia notado. Uma pessoa que nunca mostra
raiva, por exemplo, perceberá, no grupo, que tem raiva dentro de si. Ela não se
esquecerá disso e reconhecerá, no fundo, quando sentir raiva, que não poderá mais
escondê-la – e terá condições para lidar com ela.

VEJA – Por que o senhor chama de “facilitadores” os líderes dos grupos de


encontro?

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ROGERS – Porque o termo “líder” implica que uma pessoa sabe para onde o grupo
irá se dirigir e o orientará nessa direção. Então eu prefiro chamá-lo de “facilitador”,
porque minha ideia de seu propósito no grupo é a de que ele deve permitir que as
pessoas se expressem sem saber onde isso as levará. Ele facilita essas expressões
do grupo mas não controla sua direção. O facilitador pode saber alguma coisa sobre
o processo de grupos e o mesmo é verdadeiro para a terapia. O tipo de terapeuta
que eu gosto é o que age como um facilitador, pois não tem noção do que surgirá na
terapia, ou que direções a pessoa escolherá para si mesma.

VEJA – E, se ocorrer uma crise dramática dentro do grupo, o facilitador deve então
fazer o papel de líder?
ROGERS – Não, não! O facilitador inexperiente pode se sentir tentado a fazê-lo,
mas o experiente procurará acreditar no grupo. Lembro-me do que aconteceu com
um membro de nossa equipe quando um homem sofreu uma terrível crise psicótica,
numa sessão de grupo de encontro. As pessoas entraram em pânico e exigiram que
o facilitador fizesse alguma coisa, mas ele se manteve calmo e fez com que o grupo
discutisse sobre que atitude tomar. Algumas pessoas que se sentiram mais
próximas ao homem tentaram conversar com ele, mas o grupo ainda achava que ele
deveria ser internado. Pediram-lhe então que voltasse ao grupo, discutiram seus
sentimentos e suas preocupações com ele. No fim, tudo foi resolvido e mais tarde
ele fez terapia, sem hospitalização. O ponto é que o grupo, como um todo, é capaz
de agir muito mais sabiamente do que uma pessoa sozinha.

VEJA – As qualidades essenciais para um facilitador podem ser ensinadas ou são


naturais?
ROGERS – As qualidades essenciais para terapia individual – ou para grupos de
encontro – foram especificadas há bastante tempo e têm sido confirmadas por
pesquisas. Primeiro, se a pessoa está ligada a outra, como pessoa, genuína e real –
sem envergar um avental branco de doutor-, isso será de grande ajuda. Depois, se a
pessoa sente uma importância real pela outra, vai tornar seu crescimento e seu
desenvolvimento mais possíveis.
E, por último, se ela pode realmente compreender o mundo interior do outro,
verdadeiramente se sentir parte do universo de uma pessoa, essa capacidade para
a empatia será muito importante para o crescimento construtivo. Dessas três,
acredito que uma pode ser facilmente treinada – a empatia. As pessoas podem
aprender a ouvir melhor e com mais compreensão, e a se afastarem de alguns de
seus próprios conceitos, e realmente entenderem os outros como eles são. As
outras duas qualidades vêm com a experiência de vida, e outras vezes através da
terapia ou de vivencias como grupos de encontro.

VEJA – Por que o senhor começou a chamar as pessoas de “clientes” , em vez de


“pacientes”?

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ROGERS – A razão mais profunda foi nunca ter sentido que as pessoas que me
procuram eram “pacientes”. Não eram doentes, e sim pessoas em dificuldade.
Então, qual o termo mais apropriado? Em inglês, “cliente” é aquele que vem buscar
o seu serviço. Mas ele ainda é responsável por si mesmo.

VEJA – Qual sua maior fonte de aprendizagem?


ROGERS – São as pessoas e os estudantes com quem convivo e trabalho. Quando
você se abre ao mundo de outros, um dos riscos – e a maior vantagem – é que você
terá mais possibilidade de aprender alguma coisa.

VEJA – O senhor tem se preocupado, ultimamente, de maneira crescente, com a


educação como forma de comunicação entre as pessoas. Como vê o sistema
escolar vigente em seus pais?
ROGERS – Até recentemente, a ênfase em mais escolas, mais educação para todos
e o fato de que uma pessoa nada pode fazer se não tiver um diploma universitário
resultaram num modo mais mecânico de educação, tentando preparar as pessoas
para uma sociedade mecanicamente orientada. De uns tempos para cá, no entanto,
têm ocorrido mudanças que dão maior ênfase à liberdade no aprendizado, onde o
indivíduo, pode escolher o que é de maior significação para a sua vida e aprender
isso. Assim, ele é levado a um processo de aprendizagem constante em vez de uma
educação mecanicamente orientada, que geralmente faz as pessoas sentirem que
finalmente acabaram o curso, já têm seu diploma, então não precisam estudar mais.
O aprendizado autodirigido, em contraste, faz com que as pessoas tenham sempre
vontade de estudar e aprender. Isso a entusiasma, assim como satisfaz ás suas
necessidades.

VEJA – Os adversários desse tipo de ensino tradicionalmente argumentam com o


fato de que a pessoa, nesse caso, terá uma educação limitada somente a seus
interesses e pode tornar-se incapaz de perceber mudanças. O que acha disso?
ROGERS – Se observarmos estudantes que saíram de escolas tipicamente
tradicionais, depois de um ano ou dois, notaremos que eles também adquiriram uma
educação limitada a seus próprios interesses. Eles se lembram de algumas coisas,
mas a maior parte delas já foi esquecida, pois geralmente foram estudadas somente
para um teste, um exame. Então, tanto um como outro modo de ensino pode ser
limitado aos próprios interesses da pessoa. Mas o estudante autodirigido pelo
menos conhece mais a si mesmo, conhece suas forças e suas fraquezas. E, porque
ele é auto motivado, frequentemente quer preencher os lapsos de sua educação.

VEJA – O senhor acredita que a autodisciplina surge naturalmente com o


aprendizado autodirigido?

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ROGERS – Sim, a liberdade e a responsabilidade sempre caminham juntas, e isso é
valido tanto para a educação quanto para outros aspectos da vida. A pessoa tem
que viver com as consequências do que aprende. Se não pode perceber as
mudanças, então será enganada pelos outros. E, quando isso torna claro, mais ela
será responsável – ao contrário de alguém que teve liberdade mas não reconheceu
suas consequências.

VEJA – Seguindo a tradição humanista, o senhor costuma enaltecer a bondade nas


pessoas, mas não estará deixando um pouco de lado o maquiavelismo e o espírito
de competição, que naturalmente existe em nossa sociedade?
ROGERS – Fui muitas vezes acusado de não compreender a maldade nas pessoas
– e levo a sério este tipo de crítica, isso pode até ser verdade. Mas cheguei a uma
posição, não através de pensamentos passivos mas através de meus contatos
diretos com pessoas, tanto em terapia quanto em grupos, ou mesmo em salas de
aula, nos quais percebi que, se confio plenamente em sua capacidade de se
compreenderem melhor e ser mais autodirigidas, essas escolhem direções que são
sociais e não antissociais, ou más. Dizem que com esse tipo de terapia o indivíduo
pode muito bem ser um melhor ladrão ou um melhor assassino, e para mim essa é
uma possibilidade bastante lógica. Mas, de acordo com minhas experiências, isso
simplesmente não acontece. Se ofereço a uma pessoa a possibilidade de se
expressar, de buscar suas próprias direções, ela não escolhe ser um melhor ladrão
ou coisa semelhante, mas procura seguir a direção de maior harmonia com seus
companheiros.

VEJA – Uma terapia ou um grupo de encontro resolveria todos os problemas da


pessoa, tornaria sua vida bem mais fácil?
ROGERS – Não isso não é verdade. A pessoa se desenvolverá mas o crescimento
será sempre doloroso. Quando os potenciais humanos são desenvolvidos, a vida se
torna mais complexa. As pessoas se descartam de seus velhos problemas
deixando-os para trás, mas, quando vão em frente, encaram novos problemas,
talvez tão difíceis com os anteriores – porém mais excitantes, pois elas aí estão mais
conscientes e mais prontas a lidar com eles. Portanto o prazer de ser mais
independente, mais real e mais livre é mais que suficiente para contrabalançar a dor
e a dificuldade que advêm deste tipo de crescimento. Para a máxima curiosidade e
aprendizagem desse tipo, tanto as crianças quanto os adultos precisam de amor de
um indivíduo, ou de um grupo, que possa criar segurança suficiente para que a
pessoa que está se desenvolvendo se atreva a tomar riscos que a levem a essas
áreas de crescimento. E essa é uma das coisas que um grupo de encontro
proporciona – a segurança de um ambiente de compreensão, com pessoas que
procuram se amar mutuamente. A habilidade de tomar riscos é um dos efeitos
básicos mais importantes de um grupo de encontro. Faço questão da palavra “risco”
porque toda aprendizagem é um risco; no entanto, é a nova aprendizagem e o novo

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comportamento que tornam a vida excitante. É o que leva as pessoas a um
desenvolvimento mais completo.

VEJA – Em seus trabalhos o senhor costuma se referir ao que chama de “pessoa


emergente”. O que será isso?
ROGERS – Vejo a pessoa emergente como a que tomou o risco de viver de um
modo novo e mais humano numa sociedade que não encoraja esse tipo de
aprendizagem. Portanto, seu caminho não é fácil. São pessoas que não estão
ligadas a coisas materiais, embora possam aprecia-las se as possuírem. Em termos
de autoridade, vejo pessoas emergentes como alguém que tem um sentimento
bastante profundo, de que somente dentro de si existe a maior fonte de autoridade,
na qual pode confiar. Esta pessoa está pronta a ouvir qualquer autoridade, mas
quando se trata de seu próprio comportamento, a escolha está unicamente, dentro
de si mesma. Ela é quem avalia toda experiência e autoridade, e toma decisões
baseadas no que ela quer fazer. Na verdade, sempre existiu uma ou outra pessoa
assim. No entanto, ter um grande grupo de indivíduos tomando decisões por si
mesmo, como aconteceu nos Estados Unidos, durante a guerra do Vietnam, quando
um vasto número de jovens simplesmente se recusou a ir para a guerra, é realmente
um novo aspecto da sociedade.

VEJA – A pessoa emergente seria um produto exclusivo da sociedade americana ou


ela pode surgir também em sociedade de países em desenvolvimento?
ROGERS – Os Estados Unidos, principalmente na região oeste, são um terreno
bastante fértil para esse tipo de indivíduos. Mas eu os tenho encontrado também em
outros países, como Holanda, Alemanha, Japão, Austrália, e sinto mesmo que o
Brasil é um bom solo para esse tipo de pessoas. Em qualquer cultura, essa pessoa
irá encontrar dificuldades – mas sinto no Brasil, uma coragem igual à que encontro
nos Estados Unidos. Sou muito a favor dessas pessoas, pois elas apreciam o fato
de que a vida é um processo de mudança. Portanto, não estão atadas a nenhuma
ortodoxia ou tradição e nem qualquer modo fixo de fazer as coisas.

FONTE: Revista VEJA no. 441


16 de fevereiro de 1977
Páginas 3, 4 e 6

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