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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

COMPLEXO HOSPITALAR PROF. EDGARD SANTOS


FACULDADE DE FARMÁCIA
DEPARTAMENTO DO MEDICAMENTO
FARA89 - Farmácia Clínica e Atenção Farmacêutica

KARINA ROCHA DA SILVA

RELATÓRIO DA VALIDAÇÃO DE REAÇÃO


ADVERSA AO MEDICAMENTO (RAM)

SALVADOR
2021
KARINA ROCHA DA SILVA

RELATÓRIO DA VALIDAÇÃO DE REAÇÃO


ADVERSA AO MEDICAMENTO (RAM)

Relatório apresentado a
Universidade Federal da Bahia,
como critério de avaliação da
disciplina FARA89 - Farmácia Clínica
e Atenção Farmacêutica I do curso
de Farmácia sob orientação do Prof.
Dr. Pablo Moura.

SALVADOR
2021
1 Caso Clínico

Nome: M.L.S.M Sexo: Feminino Idade: 65 anos

Peso: 64kg Raça/Cor: Negra Moradia: Matatu de Brotas

AMN: Pneumologia Doenças prévias: Esclerodermia

Breve relato da admissão: portadora de Hipertensão Arterial Sistêmica há +/-


10 anos, Asma e Hipertensão Arterial Pulmonar (HAP). Em acompanhamento
pelo Ambulatório de Pneumologia, refere suspensão do uso de Bosentana 125
mg no mês de outubro de 2015 em virtude de câimbras musculares. Relata
melhora com suspensão do tratamento.

Diagnóstico: Hipertensão Arterial Pulmonar (HAP) secundária a


Esclerodermia.

1.1 Cronologia

Paciente foi admitida no Ambulatório Professor Francisco Magalhães Neto


(AMN) de Pneumologia em 23/10/2013 com HAP. Sendo prescrito Citrato de
Sildenafila 60mg/dia e encaminhada ao serviço de fisioterapia para realização
do teste de caminhada de 6 minutos.

Paciente retorna à unidade no dia 26/03/2014, apresentando melhora clínica


com a introdução do Citrato de Sildenafila (“paciente apresenta melhora clínica
importante com início de Sildenafila”, sic médico). No dia 16/07/2014 a paciente
apresenta tose produtiva, sem febre, gripe e ausculta pulmonar com sibilos,
mas hemodinamicamente estável, foi mantido o citrato de Sildenafila e
adicionado Amoxicilina na prescrição. Nas consultas dos dias 05/11/2014 e
18/03/2015, a paciente seguiu estável e em classe funcional II, sem alterações
na prescrição.

No retorno do dia 21/10/2015, paciente refere internamento em hospital da


capital e traz relatório de alta. Em relatório, estão descritas as seguintes
informações:
“Há 2 meses passou a cursar com volume abdominal, associado a edema de
MMII, tosse seca e fraqueza em MMII (sic).”

Em uso regular de alenia, nifedipino e Sildenafil.

Suspeita: Anasarca sec. Cor Pulmonale

Esclerodermia (dx 2014)

HAP

HAS

Hepatite B (?)

No dia 09/07/2015 (dia da alta hospitalar), fígado com sistema porta e vasos
hepáticos preservados, ascite e alterações parenquimatosas hepáticas
crônicas.

Edema em articulação do joelho, sem sinais flogísticos e atritos. Sem edema


em MMII.

Em consulta no AMN no dia 21/10/2015, a paciente apresenta piora do quadro

clínico e passa a ser classificada na classe funcional III e é adicionado em


prescrição o medicamento Bosentana 125mg/dia. Em 22/10/2015, paciente
relata câimbras musculares e/ou fraqueza muscular após introdução da
Bosentana e suspensão do mesmo por conta própria.

Figura 01: Linha cronológica de acontecimentos

Fonte: Prontuário do Paciente


1.2 Patologia

1.2.1 Esclerodermia
A esclerodermia é uma doença reumática autoimune e não contagiosa, que
não atinge o tecido conjuntivo. Sua causa ainda é desconhecida e a
característica mais comum em seus portadores é o espessamento da pele.
Existem dois agrupamentos principais da família de doenças da esclerodermia:
Localizada e Sistêmica. De modo geral, as formas localizadas de

esclerodermia são limitadas a diferentes tipos de alterações cutâneas e não


apresentam envolvimento de órgãos internos. Em contraste, as formas
sistêmicas de esclerodermia são doenças autoimunes complexas que afetam
órgãos por todo o corpo, além de alterações na pele (DENTON; KHANNA,
2017).

Figura 02: Classificação da Esclerodermia

Fonte: https://sclerodermainfo.org/faq/general-description/

O Fenômeno de Raynaud, característica mais comum presente em até 95%


dos pacientes com ES, onde as alterações vasculares características somam-
se ao vasoespasmo arterial, podendo acarretar dano tecidual irreversível, como
reabsorção da polpa e falange distal, ulcerações, cicatrizes e gangrena de
extremidade (HUGHES; HERRICK, 2019).
Figura 03: Fase do Fenômeno de Raynaud

Fonte: Tomada de Medicina Vascular 2da ed, Cap 48. January 1, 2014. Páginas 587-599.

É uma doença extremamente heterogênea em sua expressão fenotípica, sendo


seu prognóstico determinado pelas manifestações clínicas predominantes,
especialmente no que diz respeito ao envolvimento visceral.

Figura 04: Evolução da ES

Fonte: autora

O tratamento depende das manifestações clínicas que cada portador vai


apresentar, já que a doença em si não possui tratamento.
Figura 05: Tratamento

Fonte: Hughes e Herrick (2019)

1.2.2 Patologias associadas

Paciente refere Hipertensão Arterial Sistêmica e Asma em uso contínuo de


Nifedipino e Fumarato de formoterol + budesonida 12/400mcg. Sem maiores
informações em prontuário.

2 Caracterização da RAM

A suspeita de reação adversa a medicamento (RAM) notificada foi câimbras


musculares em MMII (ficha de notificação) e fraqueza muscular (prontuário). A
paciente referiu sentir tais sintomas após a administração domiciliar do
medicamento.
A cãibra muscular é uma contração breve, involuntária e dolorosa de um
músculo ou grupo de músculos, ocorrem em pessoas saudáveis (geralmente
aquelas de meia idade e idosos). Causas comuns: desidratação, depleção de
eletrólitos, disfunções neurológicas, fármacos (diuréticos, estimulantes, ACO,
entre outros).

Já a dor muscular ou mialgia, é geralmente o resultado do processo


inflamatório nas fibras musculares. Ao se romperem ou sofrerem fissuras,
causam o incômodo da dor. A dor pode ser profunda, maçante e constante ou
uma dor rápida, aleatória, crônica e aguda. Causas: lesões, fármacos
(quimioterápicos, estatinas), doenças virais.

A etiologia dos sintomas experimentados pela paciente ainda não foi totalmente
determinada e por serem sintomas bastantes comuns em diversas patologias
podem estar relacionados a outros fatores.

3 Medicamento suspeito – Bosentana

A Bosentana é um medicamento antagonista do receptor de endotelina duplo


(ETA e ETB) usado no tratamento da HAP e na prevenção do desenvolvimento
de Úlceras Digitais (UD).

O neuro-hormônio endotelina-1 (ET-1) é um dos mais potentes


vasoconstritores conhecidos, está relacionado também com a fibrose, a
proliferação celular, hipertrofia cardíaca, remodelação e é pró-inflamatório.
Estes efeitos são mediados pela ligação da ET-1 aos receptores ETA e ETB
localizados nas células do endotélio e do músculo liso vascular. As
concentrações de ET-1 nos tecidos e plasma são aumentadas em várias
doenças do tecido conjuntivo e cardiovasculares, incluindo HAP,
esclerodermia, insuficiência cardíaca aguda e crônica, isquemia do miocárdio,
hipertensão sistêmica e arteriosclerose, o que sugere que ET-1 desempenha
um papel patogênico nestas doenças. Na HAP e insuficiência cardíaca, na
ausência de antagonista de receptor de endotelina, concentrações elevadas de
ET-1 estão fortemente correlacionadas com a gravidade e o prognóstico destas
doenças (PRAKASH; PERRY, 2002).
Os fibroblastos em pacientes com esclerodermia exibem um fenótipo específico
caracterizado não apenas pela produção excessiva de colágeno, mas também
pela maior capacidade de resposta e produção de citocinas e quimiocinas,
como TGF-β, PDGF (fator de crescimento derivado de plaquetas) e endotelina
plasmática (ET-1). Na esclerodermia sistêmica, o dano vascular é proeminente
nos vasos pequenos e médios dos dedos, pulmões, coração e trato
gastrointestinal. Tem sido sugerido que a célula endotelial é o principal alvo da
doença e as alterações endoteliais precedem as alterações cutâneas. Em
particular, a ativação da célula endotelial com aumento da produção de
endotelina-1 (ET-1) e diminuição da liberação de prostaciclina causando
vasoconstrição pode ser um dos gatilhos da doença. Em particular, o TGF-β
induz a diferenciação de fibroblastos em miofibroblastos semelhantes a células
de músculo liso in situ. O acúmulo de miofibroblastos contribui para a
progressão da fibrose por aumentar a rigidez da matriz extracelular, elaborando
moléculas da matriz e citocinas profibróticas, além de serem resistentes à
apoptose. Uma vez que o colágeno é secretado no espaço extracelular, ele
sofre reticulação e maturação, resultando em uma matriz altamente estável
responsável pela rigidez da pele fibrótica e de outros tecidos (PRAKASH;
PERRY, 2002).

Segundo o UpToDate, Inc., a Bosentana apresenta como efeitos adversos a


artralgia (4%)

As seguintes estratégiasde busca foram utilizadas no PubMed, na BVS –


Biblioteca virtual de saúde e na Cochrane Library para verificar se na lietaratura
existem estudos que relacionem o medicamento como causa dos sintomas.

 (bosentan) AND (muscle pain OR muscle weakness OR muscle cramp)


No PubMed, foram encontrados 4 resultados que não demonstram nenhuma
relação entre os sintomas e a Bosentana. O mesmo aconteceu nas outras
bases de dados.

4 Causas alternativas
4.1 Medicamentos

A paciente fazia uso regular de Citrato de Sildenafila 60mg/dia, Nifedipino,


Fumarato de Formoterol + Budesonida, Furosemida e Espironolactona. A
relação temporal de uso dos medicamentos com a aparição dos sinais e
sintomas não justificam a reação. Em análise na bula, literatura não encontro
embasamento teórico com relação direta.

- Citrato de Sildenafil

Medicamento introduzido há 3 anos na terapia da paciente, em busca de


reações que ocorressem a longo prazo e não encontro relatos.

Segundo Carson (2011), o medicamento é tolerável e seguro, o uso a longo


termo não revelou reações adversas.

- Nifedipino

Não encontro descrição na literatura que direcionem para a causa direta com
os sintomas.

- Diuréticos

Espironolactona e Furosemida são medicamentos que podem causar depleção


de eletrólitos. As câimbras musculares ainda não possuem mecanismo
definido, mas algumas causas são apontadas, como a depleção de eletrólitos
(sódio, cálcio, potássio, magnésio), mas os exames laboratoriais mostram que
a paciente cursava com os parâmetros esperados.

EXAMES 11/05/2015 27/06/2015 06/07/2015 VR


TGO 40,9 40,9 - 5 a 40 UI
TGP 28,0 28,0 - 7 a 56 UI
Na 142 142 142 135-
145mmol/L
K 4,5 4,5 4,0 3,5-
5,5mmol/L
Ca - - 9,2 8,8 –
10,4mg/dL
- Fumarato de Formoterol + Budesonida

Apresenta a dor muscular em bula do medicamento, mas em literatura não


encontro dados que corroborem com os sintomas experimentados pela
paciente.

4.2 Doenças, comorbidades e sintomas

O envolvimento muscular na esclerodermia foi comumente relatado e pode se


manifestar como fraqueza muscular, artralgia, dores musculares/mialgia,
miopatia ou miosite.

O primeiro relato de envolvimento muscular é datado de 1876 e era


considerado um componente secundário da doença (PAIK, 2016).

As características histopatológicas específicas consistem principalmente em


microangiopatia, que pode ser observada em 0,44 a 57% dos casos, ou seja,
rarefação de capilares, espessamento da parede capilar, proliferação endotelial
e espessamento e laminação da membrana basal mediante exame de
microscopia eletrônica. Na verdade, apesar de pacientes com doenças
inflamatórias miopáticas serem propensos a exibir níveis mais elevados de
CPK sérica e mais graves déficit motor, alguns deles podem ter sintomas
clínicos leves e sem elevação de CPK (POKEERBUX et al., 2019).

O uso de corticosteroides pode ser prejudicial, já que alguns pacientes cursam


com crise renal, devendo ser avaliada o benefício para o paciente.

5 Avaliação de Frequência

5.1 HUPES

Entre um total de 1945 RAMs validadas na unidade, 03 são envolvendo o


medicamento Bosentana, sendo 01 referente a dor muscular.

5.2 MHRA (Reino Unido)

Dentre as 350 reações referentes ao medicamento, 5 (1,43%) estão


relacionadas a afecções musculoesqueléticas e dos tecidos conjuntivos.
5.3

Organização Mundial da Saúde (OMS)

Entre as 37752 reações referentes ao uso de Bosentana no banco da Uppsala


Monitoring Center, 2386 estão relacionas a afecções musculoesqueléticas e
dos tecidos conjuntivos.

6 Avaliação de Causalidade

6.1 NARANJO

Causalidade Pontuação Obtida


Definida 9 ou +
Provável 5a8
Possível 1a4
Duvidosa 0 ou menos
6.2 RUCAM
Grau de Probabilidade Pontuação

Excluída <0
improvável 1a2
Possível 3a5
Provável 6a8
Altamente Provável >8

6.3 OMS
Esta RAM foi considerada uma reação Possível, pois:

Um acontecimento clínico, incluindo anormalidades de exames


laboratoriais, que se produzem com uma sequência temporal
razoável com relação a administração do medicamento, porém
que também pode ser explicada por uma doença concorrente
ou outros fármacos ou substância química. A informação sobre
a retirada do fármaco pode não existir ou ser confusa.

6.4 UNIÃO EUROPÉIA

Esta RAM é classificada como categoria B, onde os relatos contêm informação


suficiente para aceitar a possibilidade de uma relação causal, no sentido de
não impossível e improvável, ainda que a conexão é incerta ou poderia ainda
ser duvidosa, por exemplo, por falta de informação, evidências insuficientes ou
a possibilidade de outra explicação.

7 Conclusão

A última evolução em prontuário do dia 18/07/2017, informa que a paciente


esteve internada entre 26/06 – 05/07/2017 com quadro de anasarca, dor
moderada do abdômen a MMII, rigidez articular e dificuldade para locomoção
usando cadeira de rodas.

Em 18/07/2017, apresentava-se com extremidades perfundidas, porém frias,


edema em MMII, evolução do Fenômeno de Raynaud em mãos e pés e pele
endurecida e xerófita (seca) em metade do abdômen e MMII.
Diante do que foi exposto e levando em consideração a doença de base da
paciente, é possível inferir que o medicamento não foi responsável pela
fraqueza/câimbras musculares experimentadas pela paciente. Em internação
anterior a introdução do medicamento, a paciente referiu sentir fraqueza
muscular e a sua reintrodução não provocou novas queixas.

Os sintomas se encaixam com a evolução grave da Esclerodermia Sistêmica


Difusa com comprometimento cardíaco, pulmonar, gastrointestinal, vascular e
muscular.

8 Referências

ANGELI, P; ALBINO, G; CARRARO, P; PRIA, M D; MERKEL, C; CAREGARO,


L; BEI, E de; A BORTOLUZZI,; PLEBANI, M; A GATTA,. Cirrhosis and muscle
cramps: evidence of a causal relationship. Hepatology, [S.L.], v. 23, n. 2, p.
264-273, fev. 1996. Wiley. http://dx.doi.org/10.1002/hep.510230211.
CARSON, Culley C. Long-term use of sildenafil. Expert Opinion On
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DENTON, Christopher P; KHANNA, Dinesh. Systemic sclerosis. The Lancet,
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http://dx.doi.org/10.1016/s0140-6736(17)30933-9.
HUGHES, Michael; HERRICK, Ariane L. Systemic sclerosis. British Journal Of
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PAIK, Julie J.. Myopathy in scleroderma and in other connective tissue
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POKEERBUX, M. R.; et al. Survival and prognosis factors in systemic sclerosis:
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