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A ameaça do desabastecimento de água não se explica somente pelo clima: origens do

problema e possíveis soluções


(Pedro Michelutti Cheliz, geógrafo / geólogo)

A falta de chuvas, o ar seco e os vários incêndios que estão sendo vistos em


Araraquara e em várias outras áreas do interior do Brasil neste Inverno de 2021 tem
despertado espanto e preocupações. Dentre elas destaca-se a ameaça de falta de água e de
racionamento. Ainda que a diminuição das chuvas este ano seja bastante expressiva, ela não
era de todo inesperada. O padrão das chuvas no Estado de São Paulo é marcado por
ocorrência a cada 10-15 anos de período de 2 a 5 anos com chuvas bastante abaixo da
média, como mostram estudos do professor João Lima Sant’Anna Neto da UNESP. A
análise dos padrões das chuvas em Araraquara dos últimos 82 anos, organizada pelo
geógrafo Pedro Michelutti Cheliz, reforça que Araraquara não é exceção a este padrão. Este
estudo mostra que a cada 9-13 anos existe em Araraquara uma sucessão de 1 a 3 anos em
que a quantidade total de chuvas é até 40% menor do que a média usual. Desta maneira,
como se trata de um fenômeno previsível e que se repete de tempos em tempos, seria
necessário que o poder público e a sociedade se preparassem com antecedência para
enfrenta-lo, afim de evitar problemas como falta de água que agora ameaça a cidade.

Gráfico preparado pelo professor João Lima Sant´Anna Neto, da UNESP, ilustrando as variações das
chuvas em São Paulo ao longo do tempo, e a ocorrência recorrente de anos com chuvas abaixo da média a
cada 10-15 anos

Infelizmente, algumas opções que vem sido feitas ao longo das últimas décadas
tornaram a cidade e a região mais vulnerável aos problemas trazidos por tais variações
climáticas. Entre elas, podemos lembrar as mudanças das fontes de abastecimento hídrico.
Tradicionalmente o abastecimento de Araraquara foi longamente realizado através de águas
retiradas dos rios (como as extraídas de represas da Captação de Águas). A partir da
perfuração dos primeiros poços profundos vem se registrando, porém, nas últimas décadas
uma crescente dependência no abastecimento da cidade de águas subterrâneas, tais como as
vinculadas ao Aquífero Guarani. A proliferação dos poços particulares, voltados
especialmente para condomínios fechados e grandes usinas, e as responsabilidades as vezes
pouco claras de fiscalização do uso destas águas contribui para uma certa falta de
organização do uso deste tipo de recurso.
Decisões tomadas pelo poder público podem contribuir para agravar esta
tendência de dependência cada vez maior das águas subterrâneas. Projeto proposto pelo
Executivo e aprovado pela câmara municipal (novo Plano Diretor) em 2014 diminuiu as
áreas de proteção obrigatórias margeando os rios da cidade de 100 para 70 metros. Ao
mesmo tempo se ampliou os valores máximos permitidos de construção e
impermeabilização (o quanto pode cobrir) de solos em vastas áreas muito próximas aos rios
que abastecem a Captação de Águas da cidade. Tais decisões se mostram especialmente
críticas quando se considera que os mapeamentos geológicos mais recentes e de maior grau
de detalhamento disponíveis (pesquisas do doutor em geologia pela UNESP Fábio Meaulo)
apontam que estas áreas são marcadas pela presença de solos arenosos de forte sensibilidade
a erosão pluvial (remoção e transporte do material pelas chuvas). Nas margens dos rios que
abastecem a Captação de Águas também se registram declividades médias do terreno mais
elevadas que a média de Araraquara, sendo marcadas por relevo relativamente íngreme.
Cria-se uma forte possibilidade do assoreamento (deposição de areias e outros sedimentos
nos rios ao ponto de deixá-los mais rasos e com menos água fluindo a céu aberto) já
preocupante do Ribeirão das Cruzes ser ainda mais agravado com o tempo.
Ao mesmo tempo, foi autorizado o aumento dos níveis de povoamento em
amplas áreas da cidade. Nota-se, assim, que a demanda pelas águas subterrâneas deve
crescer significativamente ao mesmo tempo que a disponibilidade para captação das águas
superficiais tem tendência a diminuir. Igualmente, estudos do professor Falcoski da
UFSCAR e do engenheiro Ivan Menzori mostram que mesmo muitas das áreas que a
legislação municipal estabelecem como áreas de proteção aos rios não vem sido respeitadas
nos últimos 12, sendo autorizados nelas a realizações de construções e empreendimentos
diversos. A defesa da proteção essas áreas ambientalmente sensíveis não significa defender
parar a cidade no tempo – existem numerosas outras áreas que poderiam ser ocupadas,
trazendo menos riscos para a preservação dos rios e das fontes de água da cidade de
Araraquara.
Tais práticas infelizmente contribuíram para uma diminuição expressiva do
fluxo de água dos rios, favorecendo aumentar ainda mais a necessidade de extração de
águas subterrâneas. Diferente do que muitos acreditam, essa fonte de água não é ilimitada:
importantes especialistas alertam que o uso demasiado dessas águas já tem feito rebaixar
localmente o nível das águas do Aquíferos Guarani em Araraquara. De fato, o geólogo
Perroni em trabalho de 2003 aponta nos casos mais críticos rebaixamento de 50 metros do
nível piezométrico (altura da água subterrânea em relação ao nível do mar) do Aquífero,
conforme caracterizou a partir da análise de medições de poços profundos da cidade. De
maneira semelhante, estudo coordenado pelo professor da USP e geólogo Hirata aponta
importante abatimentos do nível da água subterrânea na região central da cidade, onde se
concentram os poços do DAAE. Tais abatimentos se registram justamente nas áreas onde
medidas tomadas pelo poder público em 2014 permitiram liberar patamares mais altos de
adensamento populacional.
Cabe também discutir, ainda, eventuais problemas futuros com relação não
somente a quantidade, mas também a qualidade das águas disponíveis para abastecimento
na cidade. A diminuição e alteração em 2014 de áreas de proteção ao aquífero
anteriormente vigentes permitiram a instalação de distritos industriais em locais apontadas
por estudo da UNESP como de extrema sensibilidade a contaminação do Aquífero Guarani
a leste do aeroporto municipal. Comentários difundidos a época de que “novos estudos"
tornariam desatualizados o material da UNESP mereceriam ser melhores explicados, já que
até agora estes divulgados materiais novos não foram apresentados em público.
O único material disponibilizado - um breve relatório e apresentação de slides
entregues a câmara por consultores por ela escolhidos - usa fontes de dados menos
detalhadas e atualizadas que os estudos da UNESP para seus apontamentos, apesar da
referência aos materiais mais recentes terem sido encaminhadas e protocolados na câmara
municipal. Os dados originados do poço Aldo Lupo, por exemplo, foram também levados
em conta no estudo da UNESP, assim como numerosas outras coletas de dados e análises
em laboratórios não detalhadas nos relatórios dos consultores. Seria adequado detalhar
quais as medidas preventivas que estariam sendo adotadas para evitar problemas, uma vez
que ali (novos distritos industriais a leste, próximos a aeroporto) os impactos serão
significativamente maiores do que em outras áreas da cidade apontadas como de menor
sensibilidade a contaminação.
Nota-se que a ameaça atual de racionamento não tem origem somente nos
problemas decorrentes das variações climáticas, mas sim também em uma série de ações
pouco sábias que foram sendo tomadas ao longo dos anos. Cada um desses recorrentes anos
com poucas chuvas encontra em Araraquara condições de uso do território que tornam a
cidade mais suscetível a falta de água do que na estiagem anterior. As decisões e práticas
que contribuíram para tornar a cidade vulnerável a esta situação poderiam ser repensadas,
para buscar evitar a continuidade do agravamento deste problema no futuro próximo.

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