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A Revolução Mexicana

◄ Emiliano Zapata

Conflitos relativos à posse da terra têm sido constantes na América Latina desde o
princípio da colonização européia. Mais recentemente, no início de 1994, a irrupção
do Exército Zapatista de Libertação Nacional teve entre seus principais motivos
questões referentes à propriedade e ao usufruto de terras outrora concedidas a
camponeses mexicanos de Chiapas, muitos dos quais de origem indígena. Para ser
mais específico, essas questões eram mudanças na política agrária do governo
mexicano que tenderiam a desagregar as possibilidades de sobrevivência material
dos camponeses de modo como ela fora estabelecida em virtude do conturbado
contexto sócio-político do México no presente século. Para compreender melhor
este contexto, pretendo trabalhar com algumas noções da constituição agrária do
México, em especial aquela do ejido, e suas implicações com o processo
revolucionário mexicano na primeira metade do século XX.
O período que antecedeu a Revolução Mexicana ficou conhecido como Porfiriato,
pois foi marcado pelo governo ditatorial de Porfírio Díaz (1876 - 1911). Este, após
ter lutado contra as tentativas francesas de controlar o México através da
imposição de Maximiliano da Áustria como imperador do país, implantou uma
política de benefícios aos interesses estrangeiros e às oligarquias nacionais, em
detrimento da população mais pobre, sobretudo os indígenas. Com a anuência do
Estado, os grandes fazendeiros passaram a expandir cada vez mais a fronteira
agrícola, como também a apropriar-se de terras outrora cultivadas pelos que,
julgava-se, “eram preguiçosos e improdutivos por natureza”, (leia-se índios e
mestiços) “incapazes de adaptar-se às técnicas modernas de cultivo ou de
responder a incentivos econômicos.”. Isto não apenas criou um proletariado rural
que crescia em número com a chegada do século XX, mas instigou um
descontentamento que explodiu com toda a sua força na Revolução.
Por outro lado, as “desapropriações” tiveram um efeito construtivo. Ao resistirem
às pressões para se tornarem trabalhadores assalariados, certos grupos de
camponeses da província de Morelos resgataram parte de seu antigo espírito
comunal. “Sua lembrança mais vívida e amarga era a perda, no espaço de poucas
décadas, de seus campos comunais e terras de pastagem, ou ejidos,” e eles iriam
lutar em nome do respeito à sua condição camponesa durante a Revolução, sob a
liderança de Emiliano Zapata.
A partir de 1909, as tensões em torno da eleição presidencial não puderam mais
ser controladas. Francisco Madero era o candidato de oposição à reeleição de
Porfírio Díaz, e possuía uma proposta de governo modernizadora. A perseguição de
Madero por parte dos porfiristas catalisou o ódio popular, instigando milhares de
camponeses à insurreição. Seus líderes mais destacados encontravam-se nas
figuras de Zapata, Pancho Villa e Pascual Orozco. Depois de um período de
combates em todo o México, Díaz foi demitido e Madero assumiu o governo.
Entretanto, este não durou muito tempo, apesar das medidas de Madero em favor
dos trabalhadores. Victoriano Huerta, o chefe do exército, apoiado pelos EUA e pela
alta burguesia mexicana, deu um golpe e destituiu Madero, que foi assassinado.
Huerta, por sua vez, saiu derrotado do confronto com seu oposicionista Venustiano
Carranza, governador do estado de Coahuila (1913).
“As diferenças de projetos entre os diversos grupos sociais começam a se acentuar.
A convenção de Aguascalientes, em 1914, marca a separação entre os setores
burgueses constitucionalistas e popular-revolucionários, ou seja, entre carranzista e
zapatistas-villistas.”
Em 1915-16, Carranza conseguiu reprimir as iniciativas tanto de camponeses
quanto de operários, isolando Villa e Zapata (que chegaram a controlar o centro do
país). Ele havia percebido que, para colocar o Estado no controle do processo
modernizador, precisaria neutralizar a iniciativa das “massas revolucionárias”,
ganhando o apoio destas para alcançar seus objetivos. Assim, uma nova
constituição foi promulgada em 1917, a qual possibilitava ao governo estabelecer-
se como um órgão tutelar da sociedade, contendo a participação popular e
estimulando o desenvolvimento econômico do país. Para tanto, a constituição
garantia, pelo menos em teoria, “certos direitos sociais, com a reforma agrária, a
assistência social, a laicização do ensino, além de uma série de medidas
econômicas (nacionalizações, etc.).”
A Carranza sucederam Álvaro Obregón (1920-24), e Plutarco Calles (1924-33), em
cujo governo a reforma agrária alcançou alguns progressos, com a distribuição de
novas quantidades de terras (embora de má qualidade) e a implantação do crédito
agrícola. Por fim, a Revolução chegou a seu “crepúsculo” na presidência de Lázaro
Cárdenas (1934-40), ao qual se atribui a institucionalização do processo
revolucionário.
Depois de breve resumo do contexto político da Revolução, creio ser possível tratar
da questão das terras nos vários períodos mencionados.
Após a independência (1821), houve uma paulatina concentração fundiária
motivada em grande parte por práticas liberais adotadas pelo governo. Grandes
haciendas formaram-se a partir de terras confiscadas da Igreja e “compradas”
dos índios, posto que, “em nome da igualdade dos cidadãos e do liberalismo,
suprimiu-se o estatuto particular e as garantias dadas pela Coroa aos indígenas.
Encorajou-se inclusive o fracionamento individual das terras comunitárias e sua
comercialização.”
Tal situação acentuou-se com a ascensão ao poder de Porfírio Díaz. Há aqueles que
consideram o governo de Díaz uma reação à crise do liberalismo, um período de
maior intervenção estatal na economia. Nas palavras de Assis Cripa, “se o
liberalismo não havia dado conta de resolver os problemas de ‘atraso do país’, diz
Cordova, tratava-se de empregar diretamente o poder político para promover e
proteger o capitalismo no México.” Seja como for, Díaz não combateu a
acumulação de terras, e, em 1910, 40 milhões de hectares de terras comunitárias
já haviam sido apropriadas por sociedades agrimensoras mexicanas e
internacionais autorizadas pelo governo.
Com o início da Revolução, a luta por terras eclodiu e a reforma agrária tornou-se
inevitável. Esta, entretanto, ocorreu em ritmos diferentes ao longo do tempo, de
acordo com o equilíbrio de forças entre o governo e o campesinato revolucionário.
Desta forma, é possível perceber momentos distintos na reforma, a qual Clark
Reynolds, por exemplo, divide-se em três fases:
1) Reforma anárquica
2) Reforma institucional descentralizada
3) Reforma institucional centralizada
A primeira fase vai do princípio da Revolução até 1920, e é marcada pela
apropriação forçada de terras pelos camponeses rebeldes. Nesse período, houve
um aperfeiçoamento da organização do ejido através das leis zapatistas de 26 de
outubro de 1915, de 3 de fevereiro e 5 de julho de 1917. Embora mantivesse sua
base comunal, o ejido foi redefinido de acordo com velhas tradições indígenas
remanescentes dos calpulli da era pré-colombiana.
Na segunda fase, de 1920 a meados da década de 30, o governo já dirigia a
distribuição de terras, mas sem o apoio centralizado do poder judicial. Foi então
que o Estado reconheceu, em parte, a obra dos zapatistas, sancionando em 1920 o
termo ejido para designar as terras distribuídas. É interessante notar que os
governos anteriores a 1934, mesmo reconhecendo a importância do
estabelecimento de pequenas propriedades familiares para reduzir a instabilidade
política do país, viam o ejido como uma solução temporária, sem grande potencial
de desenvolvimento econômico. Devido a esta forma de pensar, em 1923 a
administração fixou duas maneiras distintas de conceder terras: uma, que
destinava 4 hectares aos ejidatarios, e outra, que fornecia 25 hectares aos
“sitiantes”. Acreditava-se que, enquanto os primeiros ficariam suficientemente
satisfeitos em poder produzir apenas para a subsistência de suas próprias famílias,
os segundos produziriam excedentes objetivando a sua comercialização.
A terceira fase, que começa em meados da década de 30, é aquela em que o
governo dispõe do apoio dos tribunais e pode pôr em vigor decretos executivos em
quase todo o país. Diferentemente de seus antecessores, Cárdenas (presidente a
partir de 1934) considerava o ejido uma instituição perene, posto que bem
adaptada à realidade mexicana. Devido a seu posicionamento político, Cárdenas
buscou uma “terceira via” entre o capitalismo liberal e o socialismo, buscando, por
um lado, manter os princípios revolucionários (pelo menos em parte), e por outro,
adaptar o Estado Mexicano às novas condições mundiais pós-crise de 1929. Por
isso, uma certa ambigüidade pode ser notada em suas intenções, uma vez que,
embora estimulasse a iniciativa popular, também estabelecia meios institucionais
para controlá-la.
Assim, muitas das realizações de Cárdenas são questionadas quanto a seus reais
propósitos e abrangências. De qualquer forma, em seu governo parte das melhores
terras do país foi redistribuída aos camponeses. Fundou-se o Banco Nacional para
acabar com a usura, e ampliou-se o sistema de crédito agrícola instituído por Calles
em 1926. Além disso, a área permitida ao ejidatario praticamente triplicou, indo de
dois a três hectares para sete e oito.
Outra das obras de Cárdenas constitui a criação dos ejidos coletivos estabelecidos
em áreas de fazendas irrigadas. Segundo François Chevalier, “no final do mandato
de Cárdenas, os ejidos possuíam mais que a metade das terras produtivas
irrigadas: 994.320 hectares, contra 905.770 hectares de propriedade privada. Isso
representava verdadeira revolução econômica e social.”
É claro que a simples distribuição de terras não representa uma garantia absoluta
de seu aproveitamento. De fato, nas duas primeiras fases da reforma agrária, a
incerteza quanto ao respeito à propriedade ocasionou baixos investimentos na
produção e uso ineficiente do solo. “Nos casos extremos, teve lugar um verdadeiro
esgotamento da terra devido ao cultivo excessivo e uma depreciação nítida dos
edifícios e do equipamento agrícola.”. Por outro lado, os benefícios provenientes da
reforma também devem ser lembrados. A distribuição mais eqüitativa da
propriedade fundiária e o crescimento da produção agrícola (ao longo do tempo)
estão entre eles.
No campo político, a reforma agrária tornou possível à população camponesa
participar com mais peso das decisões governamentais., sobretudo através da
formação da Confederación Nacional Campesina, em 1935. A CNC foi incorporada
ao Partido de la Revolución Mexicana em 1938, e não raro se pensa que seja
manipulada pelo governo, principalmente com fins eleitorais. Porém, como afirma
Chevalier, “a inversa é verdadeira e acreditamos que, através desse sistema, os
milhões de ejidatários desempenham efetivamente certo papel na direção da
política interna do México - tal foi o objetivo de Cárdenas ao associá-los com o
partido. Mas, através de que métodos, como, e em que medida tal influência é
exercida, isso é assunto que requer pesquisar posteriores.”
A Revolução Mexicana foi a primeira insurreição popular do século XX a realizar
profundas transformações sociais. A Revolução derrubou uma facção das antigas
oligarquias que guerreavam pelo controle do governo e levou à organização de um
Estado institucionalizado cuja influência podia ser estendida a todo o país. Ela
também foi o berço da reforma agrária que, se não resolveu todos os problemas
fundiários mexicanos, ao menos conferiu a grandes parcelas da população o acesso
à terra, consolidando o ejido como um modelo apropriado para o aproveitamento
“social” do solo (no sentido de não priorizar, necessariamente, a produção para o
mercado), ao lado da agricultura capitalista apoiada pelo Estado.

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