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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

MATHEUS SCARTEZINI PEDRINI

MAGIA FAMILIAR:
O CONTROLE SOCIAL DO CORPO DA MULHER NO FILME A BRUXA

CURITIBA
2019
INTRODUÇÃO
Na presente análise abordaremos questões suscitadas a partir do filme A Bruxa (2015)
através da perspectiva feminista da escritora marxista italiana Silvia Federici, na obra Calibã
e a Bruxa, sobre a definição e controle do corpo físico e social da mulher no modelo ideal
para a acumulação primitiva do sistema capitalista, a esposa dona de casa obediente;
juntamente com seu correlato antagônico, seu simulacro perverso e temível, a bruxa. Essa
cisão conceitual se desenvolveu e se dissolveu durante os séculos XVI e XVII, tendo como
expoentes de violência a Caça às Bruxas e a Conquista da América, refletindo as contínuas
lutas sociais de seres dominados contra uma hegemonia histórica de pensamento (e ainda
resistindo) até os dias de hoje.
O TERRENO

O filme A Bruxa (2015), baseado e inspirado em contos folclóricos, escritos, diários e


jornais do século XVII, desenvolve uma experiência afetípica da “transição” do capitalismo
dentro do corpo social clássico das famílias da época: o pai (William), o chefe da casa, guia e
provedor da sustentação da família (e da sociedade); a mãe (Katherine), dona de casa,
criadora dos filhos, mantenedora do lar, submissa e fiel; a filha mais velha (Thomasin), que
cuida de seus irmãos, ensaiando para um dia ser mãe, aprendendo com a sua; o filho homem
(Caleb), reflexo e discípulo do pai, aprendendo a ser um homem justo e virtuoso.
Trabalharemos principalmente sob o ângulo dessas quatro personalidades - apesar da
composição de mais dois gêmeos e um bebê no seio da família retratada no filme - cuja
constituição da dependência das relações familiares está diretamente ligado à acumulação
primitiva, que na tentativa de nivelar as diferenças (princípio da identidade do Modelo
Capital), exporta desigualdade e desgraças (impotência e morte).
É nesse terreno do corpo com atmosfera ácida que Silvia Federici, na obra Calibã e a
Bruxa, analisa o sistema capitalista, ao mesmo tempo, adjuntamente com o pensamento de
Marx sobre a acumulação primitiva como processo fundacional da reestruturação social nas
sociedades pré modernas em curso de capitalismo; e distantemente de Marx por tomar ele
como protagonistas “o proletário” assalariado do sexo masculino e o desenvolvimento da
produção de mercadorias. Diferentemente, para Federici, o desenvolvimento de uma nova
divisão sexual do trabalho, a construção de uma nova ordem patriarcal, baseada na exclusão
das mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens, e a mecanização do
corpo proletário e sua transformação, no caso das mulheres, em uma máquina de produção de
novos trabalhadores são fenômenos importantes para a acumulação capitalista, sendo
expressão máxima na Caça às Bruxas dentro e fora da Europa, atrelada à Conquista
colonizadora e escravista das Américas. Mais que um cercamento de terras como
privatização em prol do lucro, houve um cercamento do corpo da mulher à reprodução. Eis o
ponto da marxista italiana:

A questão histórica mais importante que este livro aborda é como explicar a
execução de centenas de milhares de “bruxas” no começo da Era Moderna e
por que o surgimento do capitalismo coincide com essa guerra contra as
mulheres. (FEDERICI, 2017 p. 29)
A autora aborda como o desenvolvimento da servidão, surgida ”entre os séculos V e
VII em resposta ao desmoronamento do sistema escravista sobre o qual se havia edificado a
economia da Roma Imperial”, se deu por tentativas ulteriores do controle da vida (e do corpo)
do subjulgado camponês livre europeu:
Os senhores de terra se viram obrigados a conceder aos escravos o direito a
possuir uma parcela de terra e uma família própria, com a finalidade de
conter, assim, suas rebeliões e evitar sua fuga para o “mato”, onde
comunidades autogovernadas começavam a organizar-se às margens do
Império. (FEDERICI, 2017 p. 47)

Assim, subordinados e em débito, o campesinato se encontrou dentro de “uma nova


relação de classe que homogeneizou as condições dos antigos escravos e dos trabalhadores
agrícolas livres” (DOCKES, 1982 p. 151 apud FEDERICI, 2017 p. 48): a escravidão
transformada em servidão. Porém, Federici afirma que o “acesso direto aos meios de sua
reprodução” (FEDERICI, 2017 p. 48), aspecto mais importante da relação senhor-servo, levou
os servos a terem uma autonomia maior na medida que podiam morar e trabalhar na sua nova
terra. Com a apropriação da terra por eles trabalhada, ferrenhamente contra “as restrições de
liberdade que a aristocracia lhes impunha” (FEDERICI, 2017 p.49), o potencial político da
luta antifeudal no qual “a terra é de quem trabalha”, toma grandes proporções por volta do fim
do século XIV devido à intensa luta de classes, cujo o objetivo principal era “preservar seu
excedente de trabalho e seus produtos”, e, ao mesmo tempo, “ampliar a esfera de direitos
econômicos e jurídicos” (FEDERICI, 2017 p. 54).
Dentre os movimentos heréticos no qual o campesinato sem-terra lutava contra os
dogmas de controle da Igreja e as leis do Estado, a autora afirma que, principalmente,
foram as mulheres que defenderam de forma mais ferrenha o antigo modo de
existência, e que se opuseram com mais veemência à nova estrutura de poder
- provavelmente devido ao fato de serem também as mais afetadas
(FEDERICI, 2017 p. 400).

Na Europa pré-capitalista como sociedades mais coletivizadas e igualitárias em


relação ao trabalho, “a subordinação das mulheres aos homens esteve atenuada pelo fato de
que elas tinham acesso às terras e a outros bens comuns”, tal como tradições de mulheres em
relação à organização de suas famílias através de métodos contraceptivos naturais e
ancestrais,
que consistiam basicamente em ervas transformadas em poções e ‘pessários’
(supositórios vaginais) usados para estimular a menstruação, para provocar
um aborto ou para criar uma condição de esterilidade (FEDERICI, 2017 p.
181).

O movimento de contrarrevolução da aliança entre a Igreja e o Estado em resposta às


lutas antifeudais resultou na disseminação da concepção da mulher-bruxa, subversiva e
incontrolável, que deveria ser erradicada e educada. Pois, através da lei como área-chave do
intenso processo de degradação social, “um dos direitos mais importantes que as mulheres
perderam foi o de realizar atividades econômicas por conta própria”(FEDERICI, 2017 p.
199); todavia, necessariamente, ou estavam dentro do âmbito familiar como esposa, mãe e
mantenedora do lar, ou estavam descontroladas disseminando o mal contra às famílias e à
sociedade. Assim, no processo de acumulação primitiva, “as próprias mulheres se tornaram
bens comuns”, estando para o Homem tal como a natureza selvagem estava: “definido como
um recurso natural que estava fora da esfera das relações de mercado”(FEDERICI, 2017 p.
192), o corpo da mulher já não era mais dela. Sobretudo, o motor da acumulação primitiva
reside na família, aumentando o raio de intenção do logos capitalista:

Complemento do mercado, instrumento para a privatização das relações


sociais e, sobretudo, para a propagação da disciplina capitalista e da
dominação patriarcal, a família surgiu no período de acumulação primitiva
também como a instituição mais importante para a apropriação e para o
ocultamento do trabalho das mulheres (FEDERICI, 2017 p. 193).

Assim, a criminalização da contracepção que expropriou as mulheres desse saber,


“transmitido de geração a geração, proporcionando-lhes certa autonomia em relação ao
nascimento dos filhos” (FEDERICI, 2017 p. 181), aliada à redução das mulheres a não
trabalhadoras, perdendo assim espaço no trabalho dentro da sociedade, suas opção de
emprego foram restringidas à o que lhes sobrara:

empregadas domésticas (a ocupação de um terço da mão de obra feminina),


trabalhadoras rurais, fiandeiras, tecelãs, bordadeiras, vendedoras ambulantes
ou amas de leite (FEDERICI, 2017 p. 182).

Federici demonstra que, na transição para o capitalismo, “todo o trabalho feminino,


quando realizado em casa, seria definido como ‘tarefa doméstica’”, mesmo quando feito fora
de casa era pago a um valor menor do que o trabalho masculino - com o complemento do
recebimento do salário da mulher pelas mão do marido - “nunca o suficiente para que as
mulheres pudessem sobreviver dele” (FEDERICI, 2017 p. 184); impossibilitado que “as
mulheres tivessem seu próprio dinheiro”, criando finalmente “as condições materiais para sua
sujeição aos homens e para a apropriação de seu trabalho por parte dos trabalhadores homens”
(FEDERICI, 2017 p. 195).
O FOGO ETERNO DO INFERNO

Como uma família protestante imigrante na Nova Inglaterra, a ambientação do filme


começa com a expulsão da família da colônia onde habitavam devido ao conflito religioso
entre o pai puritano e os “falsos cristãos” da comunidade que o julgam por pregar o
Evangelho de sua doutrina, apesar do filme não se aprofundar nisso. Cercados por uma
imensa floresta, eles recomeçam suas vidas no campo, construindo uma casa, plantando milho
e criando animais.
O primeiro diálogo de Thomasin, tomada aqui como personagem principal, se dá por
meio da confissão de seus pecados de não fazer seu trabalho, desobedecer seus pais e
negligenciar as suas orações; alegando que seguiu os desejos de sua própria vontade, não a do
Espírito Santo, reconhece que merece além de toda humilhação e miséria nesta vida dela, e o
fogo eterno do Inferno. Logo após, Thomasin é encarregada dos cuidados do bebê da família
que, repentinamente, é raptado e levado floresta adentro por uma bruxa para ser sacrificado
em um ritual. O desaparecimento do bebê, com a crença da família de que foi um lobo que o
levou, é o primeiro marco na decadência e dissolução das relações afetivas familiares cujo
núcleo de culpa estabelece-se em Thomasin, um castigo de Deus, um caminho de bruxa.
O condicionamento de Thomasin como o alvo de acusação de bruxa pela família - já
que a certo ponto cada familiar foi perdendo a confiança nela - é reflexo do contexto político
de acumulação da época que acompanha o pensamento no filme: já subjulgadas desde
nascerem, as mulheres são educadas para virar um produto de consumo e reprodução da parte
“ativa” da sociedade patriarcal do capitalismo, perdendo o direito de autonomia de seus
corpos, sendo dada em categorias sem ter sido consultadas e perdendo potência de sua própria
vida. A demonização do conceito de mulher como inimiga, principalmente nas acusações de
que as bruxas sacrificavam crianças para o demônio, a autora interpreta como
não só uma preocupação com o declínio da população, mas também o medo
que as classes abastadas tinham de seus subordinados, particularmente das
mulheres de classe baixa, que, como criadas, mendigas ou curandeiras,
tinham muitas oportunidades para entrar nas casas dos empregadores e
causar-lhes dano (FEDERICI, 2017 p. 170).

Enquanto todos dormem, exceto a mãe que reza assiduamente, Caleb e seu pai
conversam sobre os problemas que a família está tendo em relação à sua subsistência - “A
nossa colheita não vai durar até o inverno” - escolhendo armar armadilhas na floresta para
caçar animais - “Temos de caçar a nossa comida, se não a podemos colher” - para conquistar
essa floresta selvagem (wilderness): “Ela não vai nos consumir”. Como futura cópia do pai,
Caleb recebe a tradicional educação patriarcal-divina, expressa no diálogo de sua marcha na
floresta:
(Pai) - Tu, então, nasceste pecador?
(Caleb) - Sim, fui concebido no pecado, e nascido da iniquidade.
(Pai) - E, qual é o teu pecado no nascimento?
(Caleb) - O pecado de Adão foi-me imputado e uma natureza corrupta
habita-me.
(Pai) - Bem lembrado, Caleb, muito bem. Podias dizer-me qual é a tua
natureza corrupta?
(Caleb) - A minha natureza corrupta é a falta de graça, entregue ao pecado,
somente ao pecado e assim será para sempre.

Esse diálogo é essencial para entender a sobredependência religiosa que co-constitui


essas relações familiares, na qual, condenados desde o nascimento, a moral do dever ser cria a
esfera da falta, eterna e hereditária, a minha natureza corrupta, destinada ao fogo eterno do
Inferno, como Thomasin. Essa falta se mantém na trama pela supressão do diálogo dos
acontecimentos em ocultamento e sigilo, desencadeando mais desconfiança e desafeto. Isso é
visto quando Caleb, - afetado pelo sequestro de seu irmão, com o peso do telos divino, uma
ideia de um “porquê” ou uma razão que justificaria tal acontecimento, na sua inocência
adolescente - indaga seu pai sobre a possibilidade de Caleb sofrer o mesmo destino de seu
irmão. Seu pai garante que ele o ama “mas apenas Deus sabem quem é filho de Abraão e
quem não é, quem é bom e quem é mal”. Fora da coletividade, o pensamento individual
patriarcal-divino, pré-definidor do sujeito (e) como definidor de objetos, atravessa o enredo
do filme, fermentando no medo: conforme o tempo passa no filme, as cadeias de afetos (de
não-conversa) passam a adquirir um aspecto mais controlável por parte de cada membro da
família, procurando alguma forma de solução e explicação imediata dos acontecimentos,
concatenando-se em proporções letais com o afastamento e a morte sequencial de quase todos
os membros da família puritana.
Após o desaparecimento do bebê, Caleb é o segundo a ser pego pela bruxa, devido ao
fato de ter se perdido na floresta após sair a procura de comida com Thomasin pois ouviram a
conversa de seus pais sobre as contínuas péssimas situações que estavam acontecendo pela
família ter ido morar sozinha no campo; porém, ele reaparece em estado doente na casa e fica
sob os cuidados da família. Em seu leito, ele começa a falar “pega o machado e corta a cabeça
dela”, se contorcendo, gritando “Ela está sobre mim! Pecado! Pecado!”, e, após todos se
reunirem para rezar em volta dele, morre em seu leito declamando uma última reza para Deus.
O ápice do conflito familiar no filme se dá quando Thomasin discute perante a
autoridade do pai e acusa Thomasin de ser uma bruxa e arruinar a família, que, por sua vez,
anuncia que os gêmeos “passam o dia a murmurar com a besta de chifres”, o bode preto da
família, acarretando o acontecimento do pai trancando eles todos (inclusive o bode) no
celeiro, deixando-os passar a noite lá para que no dia seguinte fossem levados pelo pai e pela
mãe de volta à colônia, porém, todos eles condenados à bruxaria - “pensem nos vossos
pecados”. Durante a noite, cortando lenha ao lado do celeiro com as crianças que o estavam a
ouvir, o pai confessa sua culpa para Deus. De joelhos, ele admite que é falso - “Estou
infectado com a porcaria do orgulho” - e que Deus poderia se desfazer dele do jeito que
quisesse mas que redimisse seus filhos pois “eles não conseguem domar a sua maldade
natural”. “Não amaldiçoei minha família!”.
Enquanto todos dormem, a bruxa entra no celeiro e leva os gêmeos, deixando pra trás
Thomasin e um punhado de animais mortos. Quando o pai acorda, no dia seguinte, e se depara
com o celeiro, ele morre com uma chifrada causada pelo bode preto. O barulho acorda a mãe
que surge na cena e, vendo Thomasin perto de seu pai ensanguentado no chão, ataca a filha
acusando-a de enfeitiçar e matar a família. Sendo atacada e acusada de bruxa pela mãe,
Thomasin defende-se com uma faca e acaba por matar sua mãe. Afetada por todos esses
acontecimentos, Thomasin finaliza o filme com a invocação do ser que falava com os gêmeos,
no corpo do bode preto, que a responde com um convite para Thomasin viver como quisesse;
sendo levada para um ritual de bruxas, onde, felizmente, para Thomazin, o fogo eterno do
inferno metamorfoseou-se em fogo da fogueira do ritual.
CONCLUSÃO
O espectro da bruxa ronda o filme inteiro ao mesmo tempo como personagem da
“vilã”, a “bruxa inimiga”; como feitiço de maldição e morte sob as relações familiares,
principalmente, no pai e na mãe; e como libertação espiritual de Thomasin. Apesar da(s)
bruxa(s) do filme viver(em) longe na floresta, o isolamento da família no campo, com os
desdobramentos mencionados, desenvolve uma trama mágica, baseada em culpa e medo, na
qual vê-se o trajeto que sai da submissão e culpa do corpo da mulher chegando na
corporificação do sagrado feminino; e, assim, Thomasin começa a levitar no ritual da
fogueira, rindo.
Ao final desta análise cinematográfica podemos concluir que, no decorrer do
desenvolvimento capitalista, o conceito de “bruxa” foi (e ainda é) um dispositivo de controle
do corpo da mulher dentro da esfera da família e da sociedade patriarcal, representando
(acusando) e denotando o simulacro subversivo ao Modelo análogo sobre o qual a
conceitualização da mulher - e o “legítimo” lugar dela - se assenta: ao mesmo tempo, mulher-
mãe/mulher-bruxa; pois, na primeira instância desse dualismo, a mulher certa opõe-se
simetricamente à mulher errada, e vice-versa. Com isso, a personagem principal do filme é,
antes de tudo, Thomasin, pois a experiência de sua vida se desdobra nesse conceito de bruxa,
começando destinada à arder no fogo eterno do Inferno e terminando na purificação da
fogueira do ritual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução


Coletivo Sycorax. São Paulo: Ed. Elefante, 2017.

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