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CONTRA-ATACANDO
DESDE A COZINHA
SALÁRIOS PARA O TRABALHO DOMÉSTICO: UMA
PERSPECTIVA SOBRE O CAPITAL E A ESQUERDA
2020. Copyleft. Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a par-
tir deste trabalho, mesmo para fins comerciais, desde que lhe atribuam o devido
crédito e que licenciem as novas criações sob termos idênticos.
Traduzido de: Counter-Planning From The Kitchen: Wages for Housework, A Per-
spective on Capital and the Left. Brooklyn: Comitê Novaiorquino do Salários para
o Trabalho Doméstico; Bristol: Falling Wall Press, 1976
36p.
CDD: 305.42
SILVIA FEDERICI • NICOLE COX | 3
SUMÁRIO
CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA 05
nos oferecem “desenvolvimento” 06
um novo campo de batalha 08
trabalho invisibilizado 10
a nossa falta de salário como disciplina 14
a glorificação da família 16
diferentes mercados de trabalho 18
exigências salariais 20
que pague o capital 22
O CAPITAL E A ESQUERDA 27
a mesma velha história 28
o “modelo chinês” 31
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Estes artigos foram originalmente escritos em resposta a outro, pu-
blicado na revista Liberation, intitulado “Women & Pay for House-
work”, de Carol Lopate. Nossa resposta foi recusada pelos editores da
revista. Estamos publicando essa resposta porque o artigo de Lopate
parece afirmar com maior clareza e crueldade não apenas os pressu-
postos fundamentais da esquerda, mas também sua relação específi-
ca com o movimento feminista internacional neste momento. Acres-
centamos que, com a publicação destes dois artigos, não estamos
abrindo um debate estéril com a esquerda; estamos encerrando um.
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CONTRA-ATACANDO
DESDE A COZINHA
Desde os tempos de Marx, ficou claro que os salários são a
ferramenta através da qual o capital governa e se desenvolve, ou
seja, que a base da sociedade capitalista tem sido a implemen-
tação dos salários e a exploração direta das e dos trabalhadores.
O que nunca ficou claro e não se assumiu pelas organizações do
movimento operário é que foi precisamente através dos salários
que se orquestrou a organização da exploração dos trabalhado-
res não assalariados. Esta exploração revelou-se ainda mais efi-
caz porque a falta de remuneração a oculta: no que diz respeito
às mulheres, o trabalho realizado por elas aparece como um ser-
viço pessoal alheio ao capital1.
Não é coincidência que nos últimos meses várias publicações
de esquerda tenham propagado ataques contra a campanha Sa-
lários para o Trabalho Doméstico. Sempre que o movimento fe-
minista tomou uma posição autônoma, a esquerda se sentiu traí-
da. A esquerda sabe que esta postura tem implicações que vão
além da “questão das mulheres” e representa uma ruptura com
1 Mariarosa Dalla Costa. “Women and the Subversion of the Community”. In: Dalla
Costa e Selma James (eds.), The Power of Women and the Subversion of the Community.
Bristol: Falling Wall Press, 1973, pp. 25-26.
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TRABALHO INVISIBILIZADO
Partindo da nossa condição enquanto mulheres, sabemos
que o dia de trabalho que realizamos para o capital não se traduz
necessariamente num cheque, que não começa e acaba nas por-
tas das fábricas, e assim redescobrimos a natureza e a extensão
do próprio trabalho doméstico. Porque assim que olhamos as
meias que remendamos e as refeições que preparamos, obser-
vamos que, embora não se traduzam em salário para nós, não
produzimos nada mais que o produto mais precioso que pode
aparecer no mercado capitalista: a força de trabalho. O trabalho
doméstico é muito mais do que limpar a casa. É servir aos assala-
riados, física, emocional e sexualmente, para que estejam pron-
tos para trabalhar dia após dia. É a educação e o cuidado dos
nossos filhos – os futuros trabalhadores – cuidando deles desde
o dia do seu nascimento e durante os seus anos de escolaridade,
assegurando que também eles ajam da forma esperada pelo ca-
pitalismo. Isto significa que por detrás de cada fábrica, de cada
escola, escritório ou mina está escondido o trabalho de milhões
de mulheres que consumiram as suas vidas, o seu trabalho, pro-
duzindo a força de trabalho que está empregada nessas fábricas,
escolas, escritórios ou minas4.
4 Mariarosa Dalla Costa, Community, Factory and School from the Woman’s Viewpoint,
L’Offensiva, 1972: “A comunidade é essencialmente um lugar de mulher no sentido de
que é ali que ela realiza diretamente o seu trabalho. Mas, da mesma forma, a fábrica é
também o lugar que personifica o trabalho das mulheres que não serão vistas ali e que
transferiram seu trabalho para homens que são os únicos a aparecer. Da mesma forma, a
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problemas reais de tempo... Pergunte a qualquer homem! É muito difícil para eles chega-
rem a um acordo sobre horários meio expediente e é difícil exigir horários de trabalho
especiais para se dedicarem de forma igualitária no cuidado dos filhos.
14 Ibid.
15 Lopate, Women and Pay for Housework, cit. p. 11: “O que não devemos essencialmente
esquecer é que somos um SEXO. É a única palavra desenvolvida até agora para descrever
as nossas semelhanças”.
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A GLORIFICAÇÃO DA FAMÍLIA
Não surpreende que a cruzada de Lopate em busca da essên-
cia da feminilidade a leve a uma surpreendente glorificação do
trabalho reprodutivo não remunerado e do trabalho não assala-
riado em geral:
O lar e a família têm sido tradicionalmente a única intersec-
ção dentro do mundo capitalista onde as pessoas podem cuidar
das necessidades umas das outras a partir do cuidado e do amor,
embora essas necessidades muitas vezes surjam do medo e da do-
minação. Os pais cuidam dos seus filhos por amor, pelo menos
em parte... E acredito mesmo que esta memória persiste em nós
à medida que crescemos de tal forma que conservamos, quase
como se fosse uma utopia, a memória de um trabalho e de um cui-
dado que vem do amor, e não de uma recompensa econômica17.
A literatura produzida pelo movimento de mulheres tem
mostrado os efeitos devastadores que esse tipo de amor, cuidado
e servidão tem sobre as mulheres. Estas são as correntes que nos
aprisionaram em uma situação próxima à escravidão. Nós nos
recusamos a perpetuá-la em nós mesmas e a elevar ao nível da
16 Ibid.
17 Lopate, Women and Pay for Housework, cit. p. 10.
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18 Ibidem: “A eliminação dessa vasta área do mundo capitalista onde nenhuma transa-
ção tem valor de troca serviria apenas para esconder ainda mais as possibilidades de um
trabalho livre e não alienado”.
19 Ibidem: “Creio que é na esfera privada que mantemos nossas almas vivas”.
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20 Russell Baker. Love and Potatoes. The New York Times, 25 de novembro de 1974.
21 Marx, Capital, cit., 1990.
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22 Selma James. Sex, Race and Class. Bristol, Falling Wall Press e Race Today Publica-
tions, 1975.
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EXIGÊNCIAS SALARIAIS
Nossa força como mulheres começa com a luta social pelos
salários, não para nos incluirmos nas relações salariais (já que
nunca estivemos fora delas), mas para nos libertarmos delas,
para que todos os setores da classe trabalhadora se libertem
delas. Aqui temos de explicar qual é a essência da luta pelos sa-
lários. Quando a esquerda sustenta que as demandas por um
salário são “economicistas”, “demandas parciais”, eles evitam
26 Ibid.
27 Ibid.
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28 Ibid., p. 10.
29 Ibid.
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30 Ibid.
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O CAPITAL E A ESQUERDA
Com sua tradicional cegueira em relação à dinâmica dos mo-
vimentos de classe, a esquerda interpretou o fim de uma fase
dentro do movimento de mulheres como o fim do próprio mo-
vimento. Assim, lenta mas seguramente, estão tentando recu-
perar o terreno político que nos anos sessenta foram forçados a
abandonar. Agora que o terreno parece estar claro, vemos cada
vez mais que esta esquerda deixa cair a máscara “feminista” e
despejam suas crenças mais estimadas que, embora sufocadas
pelo poder do movimento, nunca foram realmente eliminadas.
E, em primeiro lugar e acima de tudo, a crença de que a esquer-
da, e não as mulheres, estão na melhor posição para decidir o que
realmente precisamos e para onde deve ir o movimento de mu-
lheres. Nos anos sessenta, quando as mulheres estavam deixan-
do em massa os grupos de esquerda, a esquerda teve que abraçar
a validade da autonomia. (Já haviam passado pela dolorosa ex-
periência do completo repúdio do movimento negro autônomo).
Relutantemente, tiveram de admitir que as mulheres também fa-
zem parte da revolução. Chegaram ao ponto de admitirem o seu
recém-descoberto sexismo. Mas, mais importante, aprenderam
a falar em tons respeitosos e até moderados. Agora, no meio do
que veem como um funeral feminista, suas vozes se levantam no-
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vamente e desta vez não apenas para proferir a palavra final, mas
para julgar nossas conquistas e deficiências. Sua história nos sur-
preende com um toque familiar. Nas palavras de uma dessas au-
todenominadas “feministas”: “As mulheres também precisam de
um movimento socialista... e nenhum movimento que seja com-
posto apenas por mulheres pode substituir isso”1, o que signifi-
ca que estava tudo muito bem enquanto durou, mas, em última
análise, temos de ser lideradas por elas. E para fazer isso, querem
primeiro restabelecer a linha política correta.
3 Wally Secombe. The Housewife and her Labour under Capitalism, New Left Review,
No.83, Jan-Fev. 1974, p.23.
4 Ibid., p.24.
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O “MODELO CHINÊS”
Não é a primeira vez que, depois do fim de uma luta, os “revo-
lucionários” nos enviam de volta à cozinha (agora com a promes-
sa de “partilhar as tarefas domésticas”). Se este processo hoje
aparece menos claramente é apenas porque, em completa har-
monia com os planos do capital, a mesma mão que nos empurra
de volta para casa também está tentando nos empurrar para as
fábricas5 para “nos juntarmos a eles” na luta de classes, ou, mais
precisamente, para nos prepararmos para nosso “futuro papel
na produção”. O regime de longo prazo que eles têm para nós é
o que eles chamam de modelo chinês: socialização e racionali-
zação do trabalho doméstico e autogestão, autossuficiência na
fábrica. Ou, em outras palavras, um pouco mais da fábrica na
família (maior eficiência e produtividade do trabalho domésti-
co) e um pouco mais da família na fábrica (mais preocupação
individual, responsabilidade, identificação com o trabalho). Em
ambos os casos, a esquerda está abraçando Utopias capitalistas
há muito estimadas.
A autogestão e autossuficiência expressam a tentativa de ter
a classe trabalhadora não só explorada, mas também participan-
do no ordenamento da sua própria exploração. Não é por acaso
que o capital usa a palavra “alienação” quase tão frequentemente
quanto a esquerda e oferece os mesmos paliativos: “enriqueci-
mento do trabalho”, “participação dos trabalhadores”, “controle
dos trabalhadores”, “democracia participativa”. Quanto à racio-
nalização e socialização do trabalho doméstico (cantinas, dor-
mitórios, etc.), o capital tem frequentemente brincado com esta
possibilidade, pois em matéria de custos essa racionalização
pode ser uma poupança para o capital.
5 Ver Workers’ Fight, No. 79, Dez. 1974-Jan. 1975: “...se os homens podem ser pasto para
as fábricas, porque não as mulheres?... Se queremos ocupar o nosso lugar no mundo,
para alterar a sua história, temos de deixar os confins seguros das nossas casas e sair para
as fábricas... e AJUDAR A CONTROLÁ-LAS!”.
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6 Anatole Kopp. Gtta e Rivoluzione. Milão, Feltrinelli, 1972, p. 147 (traduzido do francês,
Ville et Revolution: Architecture et urbanisme sovietiques des annees vingt, Paris, 1967).
7 Ibid., p.l60.
8 Ibid., p.l28.
9 Ibid., p.267.
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10 Antonio Gramsci. “Americanism and Fordism”, Selections from the Prison Notebooks of Antonio
Gramsci, Londres, Lawrence & Wishart, 1971 citado em Introduction to Selected Sex-Pol Essays
1934-37 por Wilheln Reich & Karl Teschitz. Londres, Socialist Reproduction, 1973, p.33.
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11 Lisa Vogel. The Earthly Family. Radical America, Vol. 7, No. 4/5, July-Out. 1973, p.28.
12 Carol Lopate. Women and Pay for Housework. Liberation, Vol. 18, No.9, Maio-Junho
1974, p . 11 .
13 Zaretsky. Socialist Politics and the Family, p. 89.
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