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SILVIA FEDERICI • NICOLE COX | 1

CONTRA-ATACANDO
DESDE A COZINHA
SALÁRIOS PARA O TRABALHO DOMÉSTICO: UMA
PERSPECTIVA SOBRE O CAPITAL E A ESQUERDA

SILVIA FEDERICI & NICOLE COX


2 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

EDITORA TERRA SEM AMOS


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2020. Copyleft. Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a par-
tir deste trabalho, mesmo para fins comerciais, desde que lhe atribuam o devido
crédito e que licenciem as novas criações sob termos idênticos.

Traduzido de: Counter-Planning From The Kitchen: Wages for Housework, A Per-
spective on Capital and the Left. Brooklyn: Comitê Novaiorquino do Salários para
o Trabalho Doméstico; Bristol: Falling Wall Press, 1976

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

F852 FEDERICI, Silvia & COX, Nicole.

Contra-atacando desde a cozinha: Salários para o


Trabalho doméstico – uma perspectiva sobre o capital e
a esquerda. Editora Terra Sem Amos: Brasil, 2020.

36p.

1. Mulheres 2. Trabalho doméstico. 3. Socialismo 4.


Feminismo I. Silvia Federici. II. Nicole Cox. III.
Título.

CDD: 305.42
SILVIA FEDERICI • NICOLE COX | 3

SUMÁRIO
CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA 05
nos oferecem “desenvolvimento” 06
um novo campo de batalha 08
trabalho invisibilizado 10
a nossa falta de salário como disciplina 14
a glorificação da família 16
diferentes mercados de trabalho 18
exigências salariais 20
que pague o capital 22

O CAPITAL E A ESQUERDA 27
a mesma velha história 28
o “modelo chinês” 31
4 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

**********
Estes artigos foram originalmente escritos em resposta a outro, pu-
blicado na revista Liberation, intitulado “Women & Pay for House-
work”, de Carol Lopate. Nossa resposta foi recusada pelos editores da
revista. Estamos publicando essa resposta porque o artigo de Lopate
parece afirmar com maior clareza e crueldade não apenas os pressu-
postos fundamentais da esquerda, mas também sua relação específi-
ca com o movimento feminista internacional neste momento. Acres-
centamos que, com a publicação destes dois artigos, não estamos
abrindo um debate estéril com a esquerda; estamos encerrando um.

**********
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CONTRA-ATACANDO
DESDE A COZINHA
Desde os tempos de Marx, ficou claro que os salários são a
ferramenta através da qual o capital governa e se desenvolve, ou
seja, que a base da sociedade capitalista tem sido a implemen-
tação dos salários e a exploração direta das e dos trabalhadores.
O que nunca ficou claro e não se assumiu pelas organizações do
movimento operário é que foi precisamente através dos salários
que se orquestrou a organização da exploração dos trabalhado-
res não assalariados. Esta exploração revelou-se ainda mais efi-
caz porque a falta de remuneração a oculta: no que diz respeito
às mulheres, o trabalho realizado por elas aparece como um ser-
viço pessoal alheio ao capital1.
Não é coincidência que nos últimos meses várias publicações
de esquerda tenham propagado ataques contra a campanha Sa-
lários para o Trabalho Doméstico. Sempre que o movimento fe-
minista tomou uma posição autônoma, a esquerda se sentiu traí-
da. A esquerda sabe que esta postura tem implicações que vão
além da “questão das mulheres” e representa uma ruptura com
1 Mariarosa Dalla Costa. “Women and the Subversion of the Community”. In: Dalla
Costa e Selma James (eds.), The Power of Women and the Subversion of the Community.
Bristol: Falling Wall Press, 1973, pp. 25-26.
6 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

suas políticas passadas e presentes, tanto em relação às mulhe-


res como em relação ao resto da classe trabalhadora. Na verdade,
o sectarismo que a esquerda tem tradicionalmente demonstrado
em relação às lutas feministas é uma consequência da sua inter-
pretação reducionista do alcance e dos mecanismos necessários
para o funcionamento do capitalismo, bem como da direção que
a luta de classes deve tomar para romper este domínio.
Em nome da “luta de classes” e do “interesse unitário da clas-
se trabalhadora”, a esquerda sempre selecionou certos setores da
classe trabalhadora como sujeitos revolucionários e condenou
outros a um papel meramente solidário nas lutas que esses seto-
res realizavam. Assim, a esquerda reproduziu em seus objetivos
organizacionais e estratégicos as mesmas divisões de classe que
caracterizam a divisão capitalista do trabalho. A este respeito, e
apesar da variedade de posições táticas, a esquerda permaneceu
estrategicamente unida. Quando se trata de decidir que assun-
tos são revolucionários, stalinistas, trotskistas, anarco-libertá-
rios, antiga e nova esquerda, todos eles se unem sob as mesmas
afirmações e argumentos para a causa comum.

NOS OFERECEM “DESENVOLVIMENTO”


Desde o momento em que a esquerda aceitou os salários
como linha divisória entre trabalho e não trabalho, produção e
parasitismo, poder potencial e impotência, a imensa quantida-
de de trabalho que as mulheres realizam em casa para o capital
escapou às suas análises e estratégias. De Lênin a Juliet Mitchell,
passando por Gramsci, toda a tradição de esquerda concordou
com a marginalidade do trabalho doméstico na reprodução do
capital e a marginalidade da dona de casa na luta revolucionária.
Segundo a esquerda, como donas de casa, as mulheres não so-
frem com o capital; na verdade, sofrem com a sua ausência. Pare-
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ce que nosso problema é que o capital falhou em sua tentativa de


alcançar nossas cozinhas e quartos, com a dupla consequência
de que presumivelmente permanecemos em um estado feudal,
pré-capitalista, e que nada do que fizermos nos quartos ou cozi-
nhas é relevante para a mudança social. Obviamente, se nossas
cozinhas estão fora da estrutura capitalista, nossa luta para des-
truí-las nunca triunfará, provocando assim a queda do capital.
Mas por que o capital permite a sobrevivência de tanto traba-
lho não rentável, tanto tempo de trabalho improdutivo, é uma
questão que a esquerda nunca enfrenta, sempre certa da irra-
cionalidade e incapacidade do capital de planejar. Ironicamen-
te, transferiu sua ignorância da relação específica das mulheres
para o capital, para uma teoria segundo a qual o subdesenvolvi-
mento político das mulheres só será ultrapassado através da nos-
sa entrada na fábrica. Assim, a lógica de uma análise centrada na
opressão das mulheres como resultado da sua exclusão das rela-
ções capitalistas resulta inevitavelmente numa estratégia desti-
nada a tornar-nos parte dessas relações e não para destruí-las.
Neste sentido, há um vínculo direto entre a estratégia dese-
nhada pela esquerda para as mulheres e a projetada para o “Ter-
ceiro Mundo”. Assim como querem introduzir as mulheres nas
fábricas, querem trazer as fábricas para o “Terceiro Mundo”. Em
ambos os casos, a esquerda pressupõe que os “subdesenvolvidos”
– aqueles de nós que não recebem salários e que trabalham em
um nível tecnológico pouco desenvolvido – estão atrasados em
relação à “classe trabalhadora real” e que só podemos consegui-
-lo através da obtenção de um tipo mais avançado de explora-
ção capitalista, um pedaço maior do bolo do trabalho fabril. Em
ambas as situações, a luta oferecida pela esquerda aos não assa-
lariados, aos “subdesenvolvidos”, não é a rebelião contra o capi-
tal, mas a luta por ele, por um capitalismo mais racionalizado,
desenvolvido e produtivo. Quanto a nós, não só nos oferecem o
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“direito ao trabalho” (este é oferecido a todos os trabalhadores),


mas também nos oferecem o direito a trabalhar mais, o direito a
sermos mais exploradas.

UM NOVO CAMPO DE BATALHA


A base política do movimento Salários para o Trabalho Do-
méstico é a rejeição desta ideologia capitalista que equipara a
falta de salários e o baixo desenvolvimento tecnológico ao atraso
político e à falta de capacidade e, finalmente, proclama a neces-
sidade imperiosa do capital como uma condição básica para a
nossa organização. É uma recusa em aceitar o pressuposto de
que, uma vez que somos trabalhadores não assalariados ou que
trabalhamos com menos desenvolvimento tecnológico (e ambas
as condições estão intimamente ligadas), as nossas necessida-
des devem ser diferentes das do resto da classe trabalhadora.
Repudiamos que, enquanto os operários do setor automobi-
lístico de Detroit possam se rebelar contra o trabalho na linha de
montagem, nós, das cozinhas das metrópoles ou das cozinhas e
campos do “Terceiro Mundo”, devemos procurar trabalhar em
uma fábrica, quando entre os trabalhadores de todo o mundo
a rejeição a este tipo de trabalho aumenta cada vez mais. Nos-
sa hostilidade à esta ideologia esquerdista é a mesma que temos
contra a suposição de que o desenvolvimento capitalista é um
caminho de libertação ou, mais especificamente, supõe nossa re-
jeição do capitalismo em qualquer forma que assuma. Inerente a
esta rejeição está uma redefinição do que é o capitalismo e quem
forma a classe trabalhadora – isto é, uma reavaliação das forças e
necessidades de classe.
Por esta razão, a campanha Salários para o Trabalho Doméstico
não é apenas mais uma demanda entre muitas, mas uma postura
política que abre um novo campo de batalha, que começa com as
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mulheres, e válida para toda a classe trabalhadora2. É preciso res-


saltar isto já que o reducionismo que se faz da campanha Salários
para o Trabalho Doméstico a uma mera demanda é um elemento
comum nos ataques que a esquerda lança sobre a campanha como
forma de desacreditá-la e que permite que seus críticos evitem en-
frentar os diferentes conflitos políticos que ela revela.
O artigo de Lopate, Women and a Pay for Housework, é um
exemplo claro desta tendência. Já no título, “Pay for House-
work”, o problema é falseado, alegando que um salário não é o
mesmo que receber um salário, o salário é a expressão da relação
de poder entre o capital e a classe trabalhadora. Uma forma mais
sutil de desacreditar a campanha é o argumento de que essa
perspectiva foi importada da Itália e tem pouca relevância para
a situação nos EUA, onde as mulheres “trabalham”3. Este é outro
exemplo claro de desinformação. The Power of Women and the Sub-
version of the Community – única fonte citada por Lopate – reco-
nhece a dimensão internacional do contexto no qual se origina a
campanha Salários para o Trabalho Doméstico. Em todo o caso,
traçar a origem geográfica da SpTD é desnecessário nesta fase
da integração internacional do capital. O que importa é a gênese
política, e esta é a recusa em assumir a exploração como traba-
lho, e a recusa em se rebelar apenas contra aquilo que implica
um salário. Em nosso caso, supõe o fim da divisão entre “mulhe-
res trabalhadoras” e “mulheres não trabalhadoras” (já que “são
apenas donas de casa”), divisão que implica que o trabalho não
assalariado não é trabalho, que o trabalho doméstico não é tra-
balho e, paradoxalmente, que a causa do fato de que nos Estados
Unidos a maioria das mulheres trabalha e luta de fato é que mui-
tas têm um segundo emprego. Não reconhecer o trabalho que as

2 Silvia Federici, Wages against Housework, 1975.


3 “A demanda por um Salários para o Trabalho Doméstico vem da Itália, onde a grande
maioria das mulheres de todas as classes ainda permanecem em casa. Nos EUA, mais de
metade das mulheres trabalham. Lopate, Women and Pay for Housework, cit. p. 9.
10 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

mulheres fazem em casa é ser cego ao trabalho e às lutas de uma


maioria esmagadora da população mundial não remunerada. É
ignorar que o capital nos EUA foi construído sobre o trabalho
escravo e o trabalho assalariado e que, até hoje, cresce graças ao
trabalho negro de milhões de mulheres e homens nos campos,
cozinhas e prisões dos EUA e do mundo.

TRABALHO INVISIBILIZADO
Partindo da nossa condição enquanto mulheres, sabemos
que o dia de trabalho que realizamos para o capital não se traduz
necessariamente num cheque, que não começa e acaba nas por-
tas das fábricas, e assim redescobrimos a natureza e a extensão
do próprio trabalho doméstico. Porque assim que olhamos as
meias que remendamos e as refeições que preparamos, obser-
vamos que, embora não se traduzam em salário para nós, não
produzimos nada mais que o produto mais precioso que pode
aparecer no mercado capitalista: a força de trabalho. O trabalho
doméstico é muito mais do que limpar a casa. É servir aos assala-
riados, física, emocional e sexualmente, para que estejam pron-
tos para trabalhar dia após dia. É a educação e o cuidado dos
nossos filhos – os futuros trabalhadores – cuidando deles desde
o dia do seu nascimento e durante os seus anos de escolaridade,
assegurando que também eles ajam da forma esperada pelo ca-
pitalismo. Isto significa que por detrás de cada fábrica, de cada
escola, escritório ou mina está escondido o trabalho de milhões
de mulheres que consumiram as suas vidas, o seu trabalho, pro-
duzindo a força de trabalho que está empregada nessas fábricas,
escolas, escritórios ou minas4.

4 Mariarosa Dalla Costa, Community, Factory and School from the Woman’s Viewpoint,
L’Offensiva, 1972: “A comunidade é essencialmente um lugar de mulher no sentido de
que é ali que ela realiza diretamente o seu trabalho. Mas, da mesma forma, a fábrica é
também o lugar que personifica o trabalho das mulheres que não serão vistas ali e que
transferiram seu trabalho para homens que são os únicos a aparecer. Da mesma forma, a
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É por isso que tanto nos países “desenvolvidos” como nos


“subdesenvolvidos”, o trabalho doméstico e a família são os pi-
lares da produção capitalista. A disponibilidade de uma força
de trabalho estável e bem disciplinada é uma condição essencial
para a produção, em qualquer fase do desenvolvimento capita-
lista. As condições em que o nosso trabalho é realizado variam de
país para país. Em alguns países somos forçadas a produzir in-
tensivamente crianças, em outros somos obrigadas a não nos re-
produzir, especialmente se somos negras ou se vivemos de pro-
gramas sociais ou se tendemos a reproduzir “desordeiros”. Em
alguns países, produzimos mão-de-obra não qualificada para os
campos, em outros, trabalhadores e técnicos qualificados. Mas
em todo o mundo o nosso trabalho não remunerado e a função
que desempenhamos para o capital é a mesma.
Arranjar um segundo emprego nunca nos libertou do primei-
ro. O duplo emprego só fez com que as mulheres tivessem ain-
da menos tempo e energia para lutar contra ambos. Além disso,
uma mulher que trabalha em tempo integral em casa ou fora
de casa, casada ou não, tem de dedicar horas de trabalho para
reproduzir a sua própria força de trabalho, e as mulheres estão
bem cientes da tirania desta tarefa, pois um vestido bonito ou
um bom corte de cabelo são condições indispensáveis, quer no
mercado do casamento quer no mercado de trabalho assalaria-
do, para obter o emprego almejado.
Por todas estas razões, duvidamos que nos Estados Unidos “as
escolas, jardins de infância, pré-escolas, e a televisão tenham as-
sumido grande parte da responsabilidade das mães na sociabili-
dade de seus filhos” e que “a diminuição do tamanho das casas e a
mecanização do trabalho doméstico [já] significou um potencial
aumento do tempo livre para a dona de casa” e que ela apenas “se
escola representa o trabalho das mulheres que também não serão vistas, mas que trans-
feriram seu trabalho para as alunas que retornam cada manhã alimentadas, cuidadas e
com roupas passadas a ferro por suas mães.
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mantém ocupada, usando e consertando aparelhos... que teori-


camente foram projetados com a ideia de poupar seu tempo”5.
As creches e jardins de infância nunca nos deram tempo livre,
mas libertaram parte do nosso tempo para mais trabalho adi-
cional. Quando se trata de tecnologia, é nos EUA que podemos
medir o abismo entre a tecnologia socialmente disponível e a
tecnologia que entra em nossas cozinhas. E neste caso, também,
é a nossa condição de trabalhadoras não assalariadas que de-
termina a quantidade e a qualidade da tecnologia que obtemos.
Porque “se você não é pago à hora, dentro de certos limites, nin-
guém se importa quanto tempo leva para fazer o seu trabalho”6.
Em todo caso, a situação nos Estados Unidos mostra que nem a
tecnologia nem um segundo emprego libertam as mulheres do
trabalho doméstico, e que “produzir um trabalhador qualificado
não é um fardo menos pesado que produzir um trabalhador não
qualificado, pois não é entre esses dois destinos que as mulhe-
res se recusam a trabalhar gratuitamente, seja qual for o nível
tecnológico em que esse trabalho é realizado, mas em viver para
produzir, independentemente do tipo específico de filhos que
devem ser produzidos”7.
Resta dizer que, ao afirmar que o trabalho que realizamos em
casa é produção capitalista, não estamos expressando um desejo
de sermos legitimadas como parte das “forças produtivas”; em
outras palavras, não é um recurso ao moralismo. Só de um pon-
to de vista capitalista é que ser produtivo é uma virtude moral,
mesmo um imperativo moral. Do ponto de vista da classe tra-
balhadora, ser produtivo significa simplesmente ser explorado.
Como Marx reconheceu, “ser um trabalhador produtivo não é
apenas uma bênção, mas uma desgraça”8. Por isso, temos uma

5 Lopate. Women and Pay for Housework, cit. p. 9.


6 Dalla Costa, Women and the Subversion of the Community, cit. pp. 28-29.
7 Dalla Costa, Community, Factory and School, cit.
8 Karl Marx, Capital, vol. 1, Londres, Penguin Books, 1990, p. 644.
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pequena “autoestima”9. Mas quando afirmamos que o trabalho


reprodutivo é produção capitalista, estamos esclarecendo nosso
papel específico na divisão capitalista do trabalho e as formas
específicas que nossa revolta deve assumir. Finalmente, quan-
do afirmamos que produzimos capital, o que afirmamos é que
podemos e queremos destruí-lo e não entrar previamente numa
batalha derrotada, que consiste em passar de um modo e grau de
exploração para outro.
Devemos também deixar claro que não estamos “tomando
emprestadas categorias do mundo marxista”10. Admitimos que
estamos menos ansiosas do que Lopate para renunciar à obra
de Marx, pois ela nos proporcionou uma análise que até hoje
continua sendo indispensável para entender como funcionamos
na sociedade capitalista. Também suspeitamos que a aparente
indiferença de Marx ao trabalho reprodutivo se baseie em fato-
res históricos. Não nos referimos apenas a essa dose de chauvi-
nismo masculino que Marx certamente compartilhou com seus
contemporâneos (e não apenas ele). No momento histórico em
que Marx escreveu seu trabalho, a família nuclear e o trabalho
doméstico ainda não estavam desenvolvidos11. O que Marx tinha
diante de seus olhos era o proletariado feminino, que era empre-
gado junto aos seus maridos e filhos na fábrica, e a mulher bur-
guesa que tinha uma empregada e, quer ela trabalhasse ou não,
não produzia a força de trabalho da mercadoria. A ausência da-
quilo a que hoje chamamos de família nuclear não significa que
os trabalhadores não tenham intimidades ou tenham relações
sexuais. Significa, no entanto, que era impossível realizar as re-
lações familiares e o trabalho doméstico quando cada membro
da família passava quinze horas por dia na fábrica e não havia
tempo nem espaço físico para a vida familiar.
9 Lopate, Women and Pay for Housework, cit. p. 9: “Pode também acontecer que as mulhe-
res precisem de ganhar um salário para ganharem a autoestima e a confiança necessárias
para dar os primeiros passos rumo à igualdade”.
10 Lopate, Women and Pay for Housework, cit. p. 11.
11 Aqui falamos do nascimento da família nuclear como uma etapa das relações capitalistas.
14 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

Somente depois que as epidemias e o trabalho excessivo dizi-


maram o trabalho disponível e, mais importante ainda, depois
que diferentes ondas de lutas operárias entre 1830 e 1840 esti-
vessem prestes a levar a Inglaterra à revolução, a necessidade de
ter uma força de trabalho mais estável e disciplinada forçou o ca-
pital a organizar a família nuclear como base para a reprodução
da força de trabalho. Longe de ser uma estrutura pré-capitalista,
a família, como a conhecemos no “Ocidente”, é uma criação do
capital para o capital, uma instituição organizada para garantir
a quantidade e qualidade da força de trabalho e o seu controle.
É por isso que “assim como o sindicato, a família protege o tra-
balhador, mas também garante que ele ou ela nunca seja outra
coisa senão trabalhadores. É por isso que a luta das mulheres da
classe trabalhadora contra a instituição familiar é crucial12.

A NOSSA FALTA DE SALÁRIO COMO DISCIPLINA


A família é essencialmente a institucionalização do nosso tra-
balho não remunerado, da nossa dependência de homens por
salários e, consequentemente, a institucionalização da divisão
desigual do poder que disciplinou tanto as nossas vidas como
as dos homens. A nossa falta de salário e a nossa dependência
do rendimento econômico dos homens os mantiveram presos
aos seus empregos, porque se eles quisessem deixar o trabalho
tinham que enfrentar o fato de que suas esposas e filhos depen-
diam de sua renda. Esta é a base desses “velhos hábitos – nos-
sos e dos homens” que Lopate acha tão difícil de quebrar. Não
é por acaso que é difícil para um homem “exigir horas de traba-
lho especiais para se dedicar de forma equitativa ao cuidado dos
filhos”13. A razão pela qual os homens não podem requerer tra-
12 Dalla Costa, Women and the Subversion of the Community, cit., p. 41.
13 Lopate, Women and Pay for Housework, cit. p. 11: “Muitas das mulheres que lutaram
ao longo das nossas vidas por esta reestruturação caíram em desespero periódico. Pri-
meiro, haviam velhos hábitos – nossos e dos homens – para quebrar. Segundo, haviam
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balho de meio expediente é que o salário masculino é indispen-


sável para a sobrevivência da família, mesmo quando a mulher
fornece um segundo salário. E se “nos encontramos preferindo
ou procurando empregos menos absorventes que nos deixam
mais tempo para as tarefas domésticas”14 é porque resistimos à
exploração intensiva, nos consumimos na fábrica e depois nos
consumimos ainda mais rápido em casa.
O fato de não termos salários para o trabalho que fazemos
em casa também tem sido a principal causa da nossa fraqueza
no mercado de trabalho. Os empregadores sabem que estamos
acostumadas a trabalhar de graça e que estamos tão desesperadas
para ganhar algum dinheiro que eles podem comprar nosso tra-
balho a um preço muito baixo. Desde que o termo mulher se tor-
nou sinônimo de dona de casa, nós carregamos, para onde quer
que vamos, essa identidade e as “habilidades domésticas” que nos
são dadas ao nascer. É por isso que o tipo de emprego feminino é
geralmente uma extensão do trabalho reprodutivo e que o cami-
nho para o trabalho assalariado muitas vezes leva a mais trabalho
doméstico. O fato de o trabalho reprodutivo não ser assalariado
deu a essa condição socialmente imposta uma aparência de natu-
ralidade (“feminilidade”) que influencia tudo o que fazemos. É por
isso que não precisamos que Lopate nos diga que “o essencial que
não podemos esquecer é que somos um ‘sexo’”15. Durante anos, o
capital observou que só éramos boas para fazer sexo e fabricar fi-
lhos. Esta é a divisão sexual do trabalho e nos recusamos a eterni-
zá-la como inevitavelmente acontece quando fazemos perguntas
como estas: “O que significa hoje ser mulher?

problemas reais de tempo... Pergunte a qualquer homem! É muito difícil para eles chega-
rem a um acordo sobre horários meio expediente e é difícil exigir horários de trabalho
especiais para se dedicarem de forma igualitária no cuidado dos filhos.
14 Ibid.
15 Lopate, Women and Pay for Housework, cit. p. 11: “O que não devemos essencialmente
esquecer é que somos um SEXO. É a única palavra desenvolvida até agora para descrever
as nossas semelhanças”.
16 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

Que qualidades específicas, inerentes e atemporais, se é que


existem, estão associadas ao “ser mulher”16? Pedir isto é pedir
uma resposta sexista. Quem pode dizer quem somos? O que po-
demos ter certeza é que sabemos até agora o que não somos, a
ponto de que é através de nossa luta que ganharemos força para
romper com a identidade que nos foi socialmente imposta. É a
classe dominante, ou aqueles que aspiram ao governo, que pres-
supõem que existe uma personalidade humana eterna e natural,
precisamente para perpetuar o seu poder sobre nós.

A GLORIFICAÇÃO DA FAMÍLIA
Não surpreende que a cruzada de Lopate em busca da essên-
cia da feminilidade a leve a uma surpreendente glorificação do
trabalho reprodutivo não remunerado e do trabalho não assala-
riado em geral:
O lar e a família têm sido tradicionalmente a única intersec-
ção dentro do mundo capitalista onde as pessoas podem cuidar
das necessidades umas das outras a partir do cuidado e do amor,
embora essas necessidades muitas vezes surjam do medo e da do-
minação. Os pais cuidam dos seus filhos por amor, pelo menos
em parte... E acredito mesmo que esta memória persiste em nós
à medida que crescemos de tal forma que conservamos, quase
como se fosse uma utopia, a memória de um trabalho e de um cui-
dado que vem do amor, e não de uma recompensa econômica17.
A literatura produzida pelo movimento de mulheres tem
mostrado os efeitos devastadores que esse tipo de amor, cuidado
e servidão tem sobre as mulheres. Estas são as correntes que nos
aprisionaram em uma situação próxima à escravidão. Nós nos
recusamos a perpetuá-la em nós mesmas e a elevar ao nível da

16 Ibid.
17 Lopate, Women and Pay for Housework, cit. p. 10.
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utopia a miséria de nossas mães e avós e a nossa própria! Quan-


do o Estado ou o capital não paga o salário devido, são aqueles
que recebem amor, cuidados – igualmente não pagos e impoten-
tes – que pagam com suas vidas.
Da mesma forma, rejeitamos a sugestão de Lopate, afirmando
que a demanda da campanha Salários para o Trabalho Domésti-
co “só serviria para esconder ainda mais as possibilidades de tra-
balho livre e não-alienado”18, o que significa que a única maneira
de “desencorajar” o trabalho é fazê-lo de graça. O presidente da
Ford certamente apreciaria esta sugestão. O trabalho voluntá-
rio em que o Estado moderno se ancora cada vez mais baseia-
-se nesta dispensação caritativa do nosso tempo. Parece-nos, no
entanto, que se este trabalho, em vez de se basear no amor e nos
cuidados, tivesse proporcionado uma remuneração econômica
às nossas mães, elas teriam provavelmente sido menos amargas
e menos dependentes, teriam sido menos chantageadas e teriam
chantageado menos os seus filhos, que foram constantemente
censurados pelo sacrifício que tinham de fazer. Nossas mães te-
riam tido mais tempo e energia para se rebelar contra esse traba-
lho e estaríamos em um estágio mais avançado dessa luta.
Glorificar a família como uma “esfera privada” é a essência
da ideologia capitalista, a última fronteira em que “homens e
mulheres mantêm suas almas vivas” e não é surpreendente que
nestes tempos de “crise”, “austeridade” e “privações”19 esta ideo-
logia esteja desfrutando de popularidade renovada na agenda
capitalista. Como Russell Baker expressou recentemente no The
New York Times, o amor nos manteve quentes durante os anos
da Grande Depressão e faríamos bem em levá-lo conosco duran-

18 Ibidem: “A eliminação dessa vasta área do mundo capitalista onde nenhuma transa-
ção tem valor de troca serviria apenas para esconder ainda mais as possibilidades de um
trabalho livre e não alienado”.
19 Ibidem: “Creio que é na esfera privada que mantemos nossas almas vivas”.
18 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

te esta excursão em tempos difíceis20. Esta ideologia que coloca


a família (ou comunidade) contra a fábrica, o pessoal contra o
social, o privado contra o público, o trabalho produtivo contra
o trabalho improdutivo, é útil diante da nossa escravidão no lar
que, na ausência de salários, sempre apareceu como se fosse um
ato de amor. Esta ideologia está profundamente enraizada na
divisão capitalista do trabalho que encontra uma de suas expres-
sões mais claras na organização da família nuclear.
O modo como as relações salariais mistificaram a função so-
cial da família é uma extensão do modo como o capital mistificou
o trabalho assalariado e a subordinação de nossas relações sociais
ao “ vínculo do dinheiro”. Aprendemos com Marx que os salários
também escondem o trabalho não remunerado incluído no lucro.
Mas medir o trabalho pelo salário também esconde o alto grau
em que nossas famílias e relações sociais foram subordinadas às
relações de produção: cada momento de nossas vidas tem uma
utilidade para a acumulação de capital. Tanto o salário como a
falta dele permitiram ao capital esconder a duração real do nos-
so dia de trabalho. O trabalho aparece simplesmente como um
compartimento das nossas vidas, ocorrendo apenas em determi-
nados momentos e espaços. O tempo que consumimos na “fábri-
ca social”, preparando-nos para o trabalho ou para ir trabalhar,
restaurando nossos “músculos, nervos, ossos e cérebros”21 através
de almoços curtos, sexo rápido, filmes... tudo isso disfarçado de
prazer, tempo livre, aparece como uma escolha individual.

DIFERENTES MERCADOS DE TRABALHO


O uso de salários pelo capital também esconde quem forma a
classe trabalhadora e mantém os trabalhadores divididos. Atra-

20 Russell Baker. Love and Potatoes. The New York Times, 25 de novembro de 1974.
21 Marx, Capital, cit., 1990.
SILVIA FEDERICI • NICOLE COX | 19

vés das relações salariais, o capital organiza diferentes mercados


de trabalho (um mercado de trabalho para negros, jovens, mu-
lheres jovens e homens brancos) e opõe a “classe trabalhadora”
ao proletariado “não-trabalhador”, supostamente parasitário do
trabalho do primeiro. Assim, aqueles de nós que recebem assis-
tência social são advertidos de que vivem dos impostos da “clas-
se trabalhadora”, e as donas de casa são retratadas como bolsas
furadas nas quais o salário de nossos maridos desaparece.
No entanto, é a fraqueza social dos trabalhadores não assala-
riados que tem sido e é a fraqueza de toda a classe trabalhadora
em relação ao capital. Como mostram os processos de “desloca-
mento de empresas”, a disponibilidade de trabalho não remune-
rado, tanto nos países “subdesenvolvidos” como nas metrópoles,
permitiu ao capital abandonar as áreas de produção onde a força
de trabalho tinha se tornado demasiado cara e assim minar o po-
der que os trabalhadores haviam conquistado. Quando o capital
não conseguiu fugir para o “Terceiro Mundo”, abriu suas portas
para mulheres, negros e jovens das metrópoles ou para migran-
tes do “Terceiro Mundo”. Portanto, não é por acaso que, embora
o capitalismo se baseie supostamente no trabalho assalariado,
mais da metade da população mundial não é remunerada. A fal-
ta de salários e o subdesenvolvimento são fatores essenciais no
planejamento capitalista nacional e internacional. São meios
poderosos para provocar a concorrência dos trabalhadores no
mercado nacional e internacional e fazer-nos crer que os nossos
interesses são diferentes e contraditórios22.
Estas são as raízes do sexismo, do racismo e do “assistencia-
lismo” (o desprezo pelos trabalhadores que conseguiram obter
assistência social do Estado) que são um reflexo dos diferentes
tipos de mercados de trabalho e, consequentemente, das dife-

22 Selma James. Sex, Race and Class. Bristol, Falling Wall Press e Race Today Publica-
tions, 1975.
20 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

rentes formas de regular e dividir a classe trabalhadora. Se ig-


norarmos este uso da ideologia capitalista e o seu enraizamen-
to na relação salarial, não só acabaremos por considerar que o
racismo, o sexismo e o “assistencialismo” são doenças morais,
produtos da “falsa consciência”, como nos limitaremos a uma
estratégia “educativa” que nos deixa apenas com “imperativos
morais com os quais reforçamos a nossa posição”23.
Finalmente, encontramos um ponto em comum com Lopate
quando afirma que a nossa estratégia nos liberta de depender de
“homens que se comportam como ‘boas pessoas’ para alcançar
a sua emancipação”. Como demonstraram as lutas dos negros
durante a década de 1960, não foi através de boas palavras, mas
através de sua organização que eles conseguiram que suas ne-
cessidades fossem “compreendidas”. No caso das mulheres, a
tentativa de educar os homens fez com que nossa revolta fosse
privatizada e combatida na solidão de nossas cozinhas e quartos.
O poder educa. Primeiro os homens terão medo, depois apren-
derão, porque será o capital que terá medo. Porque não estamos
lutando por uma redistribuição mais justa do mesmo trabalho.
Estamos lutando para pôr fim a este trabalho e o primeiro passo
é colocar-lhe um preço.

EXIGÊNCIAS SALARIAIS
Nossa força como mulheres começa com a luta social pelos
salários, não para nos incluirmos nas relações salariais (já que
nunca estivemos fora delas), mas para nos libertarmos delas,
para que todos os setores da classe trabalhadora se libertem
delas. Aqui temos de explicar qual é a essência da luta pelos sa-
lários. Quando a esquerda sustenta que as demandas por um
salário são “economicistas”, “demandas parciais”, eles evitam

23 Lopate, Women and Pay for Housework, cit. p. 11.


SILVIA FEDERICI • NICOLE COX | 21

que tanto o salário quanto sua ausência sejam a expressão di-


reta da relação de poder entre o capital e a classe trabalhadora,
bem como dentro da classe trabalhadora. Também ignoram que
a luta salarial assume muitas formas e não se limita aos aumen-
tos salariais. Horários de trabalho reduzidos, melhores serviços
sociais, bem como mais dinheiro – tudo isto são vitórias salariais
que determinam quanto trabalho nos é retirado e quanto poder
temos sobre as nossas vidas. É por isso que os salários têm sido
historicamente o principal campo de batalha entre trabalhado-
res e capital. E como expressão das relações de classe, os salários
sempre tiveram duas faces: a face do capital, que o usa para con-
trolar os trabalhadores, fazendo com que cada aumento salarial
leve a um aumento da produtividade; e a face dos trabalhadores,
que lutam por mais dinheiro, mais poder e menos trabalho.
Como mostra a atual crise capitalista, cada vez menos tra-
balhadores estão dispostos a sacrificar suas vidas a serviço da
produção capitalista e a atender aos apelos por uma maior pro-
dutividade24. Mas quando a “troca justa” entre salários e produ-
tividade vacila, a luta pelos salários torna-se um ataque direto
aos lucros do capital e sua capacidade de extrair o trabalho ex-
cedente de nosso trabalho. É por isso que a luta pelos salários é
simultaneamente uma luta contra os salários, contra os meios
por eles utilizados e contra a relação capitalista que incorpora.
No caso dos não assalariados, no nosso caso, a luta pelos salá-
rios é ainda mais claramente um ataque ao capital. O salário do
trabalho doméstico significa que o capital teria de remunerar o
enorme número de trabalhadores dos serviços que hoje são pou-
pados, sobrecarregando-nos com estas tarefas. Mais importante
ainda, a demanda por salários domésticos é uma clara recusa em
aceitar nosso trabalho como um destino biológico, uma condi-
ção necessária para começar a se rebelar contra ele. Nada foi, de

24 Fortune, dezembro de 1974.


22 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

fato, tão poderoso na institucionalização do nosso trabalho, da


família, da nossa dependência dos homens, como o fato de que
nunca foi um salário, mas “amor” o que foi obtido por este tra-
balho. Mas para nós, como para os trabalhadores assalariados, o
salário não é o preço de um acordo de produtividade. Em troca
de um salário, não trabalharemos mais, mas menos. Queremos
que um salário possa gozar do nosso tempo e energia, que faça
uma greve e que não se limite a um segundo emprego devido à
necessidade de uma certa independência financeira.
A nossa luta pelos salários abre o debate sobre a duração real
do tempo de trabalho, tanto para os assalariados como para os
trabalhadores não assalariados.
Até agora, a classe trabalhadora, masculina e feminina, via
como o capital determinava a duração do seu dia de trabalho –
em que momento entravam e saíam. Isso definiu quanto tempo
nós pertencemos ao capital e quanto tempo nós pertencemos a
nós mesmos. Mas este tempo nunca nos pertenceu, sempre, em
cada momento de nossas vidas, pertencemos ao capital.
E está na hora de o fazermos pagar por cada um desses mo-
mentos. Em termos de classe, isto significa exigir um salário
para cada momento da nossa vida a serviço do capital.

QUE PAGUE O CAPITAL


Esta foi a perspectiva de classe que moldou as lutas, tanto nos
EUA como internacionalmente, durante a década de 1960. Nos
Estados Unidos, as lutas de negros e mães que dependem dos
serviços sociais – o Terceiro Mundo das metrópoles – expressa-
ram a revolta dos não assalariados e a rejeição da única alterna-
tiva proposta pelo capital: mais trabalho. Estas lutas, cujo núcleo
de poder residia na comunidade, não se realizaram em nome de
um maior desenvolvimento, mas pela reapropriação da riqueza
SILVIA FEDERICI • NICOLE COX | 23

social que o capital acumulou graças aos assalariados e não as-


salariados. Eles questionaram a organização social capitalista
que impõe o trabalho como uma condição básica para a nossa
existência. Eles também desafiaram o dogma da esquerda que
proclama que somente nas fábricas a classe trabalhadora pode
organizar seu poder.
Mas não é necessário entrar numa fábrica para fazer parte da
organização da classe trabalhadora. Quando Lopate argumenta
que “as pré-condições ideológicas para a solidariedade de classe
são as redes e relações que surgem do trabalho conjunto” e que
“essas condições não podem emergir do trabalho isolado das mu-
lheres que trabalham em casas separadas”, ele esquece e descar-
ta as lutas que essas mulheres “isoladas” realizaram nos anos 60
(greves de aluguel, lutas sociais, etc.)25.
Assume que não podemos nos organizar se não estivermos or-
ganizados primeiro pelo capital; e como nega que o capital já nos
tenha organizado, nega a existência de nossa luta. Confundir a
estrutura que o capital faz de nosso trabalho, seja nas cozinhas
ou nas fábricas, com a organização de nossas lutas é um caminho
claro para a derrota.
Temos certeza de que cada nova forma de reestruturação tra-
balhista tentará nos isolar cada vez mais. É uma ilusão pensar que
o capital não nos divide quando não trabalhamos isolados uns
dos outros.
Diante das divisões típicas da organização capitalista do tra-
balho, devemos nos organizar de acordo com nossas necessida-
des. Assim, a campanha Salários para o Trabalho Doméstico é
uma rejeição da socialização das fábricas e da possível “raciona-
lização” da casa proposta por Lopate: “Devemos olhar seriamen-
te para as tarefas ‘necessárias’ ao bom funcionamento da casa...

25 Lopate, Women and Pay for Housework, cit. p. 9.


24 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

Precisamos investigar os itens desenhados para nos poupar tra-


balho e tempo em casa e decidir quais são úteis e quais simples-
mente causam uma maior degradação do trabalho doméstico”26.
Não é a tecnologia em si que nos degrada, mas sim a utiliza-
ção que o capital faz dela. Além disso, a “autogestão” e a “gestão
dos trabalhadores” sempre existiram em casa. Sempre tivemos a
opção de decidir entre lavar a roupa na segunda-feira ou no sá-
bado, ou a possibilidade de escolher entre comprar uma máqui-
na de lavar louça ou um aspirador de pó, desde que pudéssemos
pagar por qualquer uma dessas coisas. Portanto, não devemos
pedir ao capital que altere a natureza do nosso trabalho, mas
sim lutar para rejeitar a reprodução de nós mesmos e dos outros
como trabalhadores, como força de trabalho, como mercadorias.
E para alcançar este objetivo é necessário que o trabalho seja re-
conhecido como tal através dos salários. Obviamente, enquanto
a relação salarial capitalista continuar a existir, o mesmo acon-
tecerá com o capitalismo. É por isso que não consideramos que
receber um salário seja uma revolução. Afirmamos que é uma
estratégia revolucionária porque mina o papel que nos foi atri-
buído na divisão capitalista do trabalho e, consequentemente,
altera as relações de poder dentro da classe trabalhadora em ter-
mos mais favoráveis para nós e para a unidade de classe.
No que diz respeito aos aspectos econômicos da campanha
Salários para o Trabalho Doméstico, estas facetas são “altamen-
te problemáticas” somente se as abordarmos do ponto de vista
do capital, do ponto de vista do Departamento do Tesouro, que
sempre proclama sua falta de recursos quando se dirige aos tra-
balhadores27. Como não somos o Departamento do Tesouro e
não temos qualquer intenção de o ser, não podemos imaginar
conceber sistemas de pagamento, diferenciais salariais e acor-

26 Ibid.
27 Ibid.
SILVIA FEDERICI • NICOLE COX | 25

dos de produtividade com eles. Não vamos colocar limites às


nossas capacidades, não vamos quantificar o nosso valor. Res-
ta-nos organizar a luta para conseguir o que queremos, para to-
das nós, em nossos termos. Nosso objetivo não é ter um preço,
valorizar-nos fora do mercado, que o preço é insuportável, para
que o trabalho reprodutivo, o trabalho na fábrica e o trabalho no
escritório sejam “não econômicos”.
Da mesma forma, rejeitamos o argumento de que, nesse caso,
será outro setor da classe trabalhadora que pagará os nossos
eventuais lucros. Segundo esta mesma lógica, deve dizer-se que
os trabalhadores assalariados são pagos com o dinheiro que o
capital não nos dá. Mas o Estado fala dessa maneira. De fato, di-
zer que as demandas por programas de assistência social feitas
pelos negros durante a década de 1960 tiveram um “efeito devas-
tador em qualquer estratégia de longo prazo... nas relações entre
brancos e negros”, já que “os trabalhadores sabiam que seriam
eles, não corporações, que acabariam pagando por esses progra-
mas”, é racismo puro28. Se assumirmos que cada luta que tra-
vamos deve terminar numa redistribuição da pobreza, estamos
assumindo a inevitabilidade da nossa derrota. De fato, o artigo
de Lopate está escrito sob o signo do derrotismo, o que significa
aceitar as instituições capitalistas como inevitáveis. Lopate não
pode imaginar que se o capital reduzisse os salários de outros
trabalhadores para nos dar, esses trabalhadores seriam capazes
de defender seus interesses e os nossos. Também assume que
“os homens receberiam obviamente os salários mais elevados
pelo seu trabalho em casa” – em suma, assume que nunca sere-
mos capazes de ganhar29.
Finalmente, Lopate nos adverte que se recebêssemos um salá-
rio para o trabalho doméstico, o capital enviaria supervisores para

28 Ibid., p. 10.
29 Ibid.
26 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

controlar nossas tarefas. Uma vez que apenas considera as donas


de casa como vítimas, incapazes de se rebelarem, não se pode se-
quer prever que possamos nos organizar coletivamente para ba-
ter a porta na cara dos supervisores se eles tentarem impor o seu
controle. Além disso, pressupõe que, uma vez que não temos su-
pervisores oficiais, o nosso trabalho não é controlado. No entan-
to, mesmo que ter um salário significasse que o Estado tentaria
controlar nosso trabalho mais incisivamente, isso seria preferível
a nossa situação atual, já que essa tentativa exporia quem decide
e rege nosso trabalho, e é melhor saber quem é nosso inimigo do
que nos culpar e continuar nos odiando porque somos obrigadas
a “amar ou cuidar” “com base no medo e na dominação”30.

30 Ibid.
SILVIA FEDERICI • NICOLE COX | 27

O CAPITAL E A ESQUERDA
Com sua tradicional cegueira em relação à dinâmica dos mo-
vimentos de classe, a esquerda interpretou o fim de uma fase
dentro do movimento de mulheres como o fim do próprio mo-
vimento. Assim, lenta mas seguramente, estão tentando recu-
perar o terreno político que nos anos sessenta foram forçados a
abandonar. Agora que o terreno parece estar claro, vemos cada
vez mais que esta esquerda deixa cair a máscara “feminista” e
despejam suas crenças mais estimadas que, embora sufocadas
pelo poder do movimento, nunca foram realmente eliminadas.
E, em primeiro lugar e acima de tudo, a crença de que a esquer-
da, e não as mulheres, estão na melhor posição para decidir o que
realmente precisamos e para onde deve ir o movimento de mu-
lheres. Nos anos sessenta, quando as mulheres estavam deixan-
do em massa os grupos de esquerda, a esquerda teve que abraçar
a validade da autonomia. (Já haviam passado pela dolorosa ex-
periência do completo repúdio do movimento negro autônomo).
Relutantemente, tiveram de admitir que as mulheres também fa-
zem parte da revolução. Chegaram ao ponto de admitirem o seu
recém-descoberto sexismo. Mas, mais importante, aprenderam
a falar em tons respeitosos e até moderados. Agora, no meio do
que veem como um funeral feminista, suas vozes se levantam no-
28 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

vamente e desta vez não apenas para proferir a palavra final, mas
para julgar nossas conquistas e deficiências. Sua história nos sur-
preende com um toque familiar. Nas palavras de uma dessas au-
todenominadas “feministas”: “As mulheres também precisam de
um movimento socialista... e nenhum movimento que seja com-
posto apenas por mulheres pode substituir isso”1, o que signifi-
ca que estava tudo muito bem enquanto durou, mas, em última
análise, temos de ser lideradas por elas. E para fazer isso, querem
primeiro restabelecer a linha política correta.

A MESMA VELHA HISTÓRIA


Esta linha, claro, não tem nada de novo. Mais uma vez nos di-
zem que política séria não é assunto da cozinha, e que nossa luta
para nos libertarmos como mulheres – nossa luta para destruir
o trabalho doméstico, as relações familiares, a prostituição de
nossa sexualidade – está definitivamente subordinada, ou me-
lhor, é acessória, à “verdadeira luta de classes” na fábrica. Não
por acaso, a maioria das atuais polêmicas da esquerda contra a
autonomia do movimento de mulheres são dedicadas a negar
que salários para o trabalho doméstico é a estratégia feminista e,
portanto, da classe trabalhadora em nossa luta contra o capital.
Acreditam que salários para o trabalho doméstico significa me-
nos trabalho, menos dependência, menos chantagem, em uma
palavra, mais poder para as mulheres – e têm medo disso. Por
que isso acontece?
Uma resposta possível é que os homens têm medo de perder
seus “privilégios” masculinos: se as mulheres têm mais dinhei-
ro próprio, um dia os homens podem encontrar suas cozinhas
e camas vazias. Por mais verdade que isto seja, há uma razão
mais profunda que nos escapou até agora apenas porque anos de
1 Eli Zaretsky. Socialist Politics and the Family. Socialist Revolution, Vol.III, No. 19, Jan-
Mar 1974.
SILVIA FEDERICI • NICOLE COX | 29

doutrinação nos fizeram acreditar que a esquerda está do lado


da classe trabalhadora. A razão pela qual a esquerda está ativa-
mente tentando nos impedir de ganhar mais poder não é apenas
porque os homens são chauvinistas masculinos, mas porque a
esquerda está totalmente identificada com o ponto de vista ca-
pitalista. A esquerda, em todas as suas variedades, não está inte-
ressada em destruir o capital, o excesso de trabalho que somos
obrigadas a fazer, mas em torná-lo mais eficiente. Sua revolução
é uma reorganização da produção capitalista que racionalizará
nossa escravidão em vez de aboli-la. Por isso, quando a classe
trabalhadora se recusa a trabalhar, preocupam-se imediatamen-
te com “quem vai limpar as ruas”.
E é por isso que eles sempre escolhem seus “agentes revolu-
cionários” entre os setores da classe trabalhadora cujo trabalho
é mais racionalizado. Supostamente, os trabalhadores que mais
diretamente contribuem para a acumulação de capital serão os
mais preparados para administrá-la. Como Andre’ Gorz disse
sem rodeios: “Os trabalhadores das fábricas são revolucionários
porque não temem que com a revolução percam seus empre-
gos”2. Ou seja, os trabalhadores são revolucionários não por se-
rem contra sua exploração, mas porque são produtores; não por
se recusarem a trabalhar, mas porque trabalham. A distância que
a classe trabalhadora está deste “ponto de vista” pode ser medida
pela quantidade de energia gasta pela esquerda em reprovar os
trabalhadores por sua falta de “consciência de classe”, ou seja,
“consciência de produção”. A esquerda está horrorizada com o
fato de que os trabalhadores – homens e mulheres, assalariados
e não assalariados – querem mais dinheiro, mais tempo para si
mesmos, mais poder, em vez de se preocuparem em descobrir
como racionalizar a produção.
No nosso caso, uma coisa é certa. A esquerda ataca toda luta

2 De um discurso proferido numa conferência de Telos, Buffalo, no Outono de 1970.


30 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

que possa dar às mulheres poder real, porque, como trabalhado-


ras domésticas, não estamos à altura do “papel produtivo” que
elas atribuíram à “classe trabalhadora”. O que isso significa foi
melhor expresso por Wally Secombe em New Left Review:

A transformação revolucionária só é possível porque o proleta-


riado está diretamente envolvido no trabalho socializado e, por-
tanto, tem como classe o pré-requisito de um modo de produção
socialista. Embora o trabalho das donas de casa permaneça pri-
vatizado, elas são incapazes de prefigurar a nova ordem e não conse-
guem liderar as forças produtivas para quebrar a velha. (nosso itálico)3

Muito generosamente, Secombe admite que em tempo de cri-


se capitalista (isto é, quando o capital já está quebrando, supos-
tamente por conta própria, independentemente de nós), “mobi-
lizações de donas de casa” em torno de demandas próprias (por
exemplo, comitês de preços) podem dar uma “contribuição” para
a luta revolucionária. “Em tais circunstâncias, não é incomum
que camadas objetivamente atrasadas sejam jogadas para fren-
te. Mas o fato é que “as donas de casa ainda não fornecerão a
força motriz decisiva da luta das mulheres”4. Uma vez que, in-
ternacionalmente, a esmagadora maioria das mulheres trabalha
em primeiro lugar e sobretudo como empregadas domésticas,
isto equivale na verdade a eliminar as mulheres de qualquer pro-
cesso revolucionário, ou, em outras palavras, a aceitar completa-
mente a nossa exploração.

3 Wally Secombe. The Housewife and her Labour under Capitalism, New Left Review,
No.83, Jan-Fev. 1974, p.23.
4 Ibid., p.24.
SILVIA FEDERICI • NICOLE COX | 31

O “MODELO CHINÊS”
Não é a primeira vez que, depois do fim de uma luta, os “revo-
lucionários” nos enviam de volta à cozinha (agora com a promes-
sa de “partilhar as tarefas domésticas”). Se este processo hoje
aparece menos claramente é apenas porque, em completa har-
monia com os planos do capital, a mesma mão que nos empurra
de volta para casa também está tentando nos empurrar para as
fábricas5 para “nos juntarmos a eles” na luta de classes, ou, mais
precisamente, para nos prepararmos para nosso “futuro papel
na produção”. O regime de longo prazo que eles têm para nós é
o que eles chamam de modelo chinês: socialização e racionali-
zação do trabalho doméstico e autogestão, autossuficiência na
fábrica. Ou, em outras palavras, um pouco mais da fábrica na
família (maior eficiência e produtividade do trabalho domésti-
co) e um pouco mais da família na fábrica (mais preocupação
individual, responsabilidade, identificação com o trabalho). Em
ambos os casos, a esquerda está abraçando Utopias capitalistas
há muito estimadas.
A autogestão e autossuficiência expressam a tentativa de ter
a classe trabalhadora não só explorada, mas também participan-
do no ordenamento da sua própria exploração. Não é por acaso
que o capital usa a palavra “alienação” quase tão frequentemente
quanto a esquerda e oferece os mesmos paliativos: “enriqueci-
mento do trabalho”, “participação dos trabalhadores”, “controle
dos trabalhadores”, “democracia participativa”. Quanto à racio-
nalização e socialização do trabalho doméstico (cantinas, dor-
mitórios, etc.), o capital tem frequentemente brincado com esta
possibilidade, pois em matéria de custos essa racionalização
pode ser uma poupança para o capital.
5 Ver Workers’ Fight, No. 79, Dez. 1974-Jan. 1975: “...se os homens podem ser pasto para
as fábricas, porque não as mulheres?... Se queremos ocupar o nosso lugar no mundo,
para alterar a sua história, temos de deixar os confins seguros das nossas casas e sair para
as fábricas... e AJUDAR A CONTROLÁ-LAS!”.
32 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

Este foi o plano na Rússia, onde a aceleração da reprodução da


força de trabalho, ou seja, do trabalho doméstico, para “libertar”
o braço feminino para as fábricas foi uma das principais priori-
dades após a revolução. Como nos sonhos da esquerda, a diretriz
que inspirou os planejadores socialistas foi uma “sociedade de
produtores” onde tudo seria funcional à produção. Deste ponto
de vista, a “casa-comunidade”, com as suas cozinhas coletivas,
jantares, sanitários, dormitórios, etc., parecia a solução perfeita
para poupar dinheiro, espaço, tempo e “aumentar a qualidade e
produtividade do trabalho”6. Foi apenas por causa da “obstinada
resistência das massas trabalhadoras”7 que estes projetos foram
sendo cada vez mais abandonados. Anatole Kopp relata uma as-
sembleia de mulheres em Novisibirsk para exigir “até 5 metros
quadrados inteiros, desde que seja espaço individual”8; e em 1930
os urbanistas bolcheviques tiveram que reconhecer isso:

...todos estão desiludidos com a chamada “casa-comuna”... a “casa-


-comuna”, onde o quarto de um trabalhador só é grande o suficiente
para se poder dormir nele... a “casa-comuna” que diminui o espaço e o
conforto (vejam as filas nos lavatórios, sanitários, camarins, comen-
sais...) começa a despertar a insatisfação das massas trabalhadoras9.

Desde os anos 30, o Estado russo tem mantido a família nu-


clear como o organismo mais eficaz para disciplinar trabalhado-
res e garantir o fornecimento de força de trabalho, e também na
China, apesar de um certo grau de socialização, o Estado apoia
a família nuclear. Em qualquer caso, a experiência russa de-
monstrou que, uma vez que o objetivo é a produção, o trabalho,

6 Anatole Kopp. Gtta e Rivoluzione. Milão, Feltrinelli, 1972, p. 147 (traduzido do francês,
Ville et Revolution: Architecture et urbanisme sovietiques des annees vingt, Paris, 1967).
7 Ibid., p.l60.
8 Ibid., p.l28.
9 Ibid., p.267.
SILVIA FEDERICI • NICOLE COX | 33

a socialização do trabalho doméstico só pode ser mais uma reor-


denação de nossas vidas – e os exemplos nas escolas, hospitais,
quartéis, etc., nos ensinam continuamente. E essa socialização
de modo algum elimina a família, simplesmente a amplia, por
exemplo, na forma de “comitês políticos e culturais” que existem
em nível comunitário e de fábrica, como na Rússia e na China.
De fato, tendo em vista a fábrica, o capital precisa da família,
ou mais especificamente, a disciplina da primeira se baseia na
disciplina da segunda, e vice-versa. Ninguém nasce trabalhador
neste mundo. É por isso que, vestidos com bandeirolas de estre-
las ou com foices e martelos, no coração do capital encontramos
sempre a glorificação da vida familiar.
No Ocidente, o capital vem racionalizando e socializando o
trabalho doméstico há muitos anos. O Estado vem planejando
o tamanho, as condições de vida, a habitação, o policiamento, a
educação, o consumo de drogas e a doutrinação da família em
uma escala cada vez maior. E se não conseguiu mais do que con-
seguiu, é por causa da revolta dos que não têm valor na família
– mulheres e crianças. Foi esta revolta que impediu a família de
ser mais produtiva e que a tornou, por vezes, contraproducente.
Há muito tempo que a esquerda chora por esta incapacidade
capitalista de disciplinar a família. Como o camarada Gramsci
observou já em 1919:

...todos estes fatores tornam qualquer regulação do sexo e qualquer


tentativa de criar uma nova ética sexual adequada aos novos méto-
dos de produção e trabalho extremamente complicada e difícil. No
entanto, é preciso tentar esta regulação e criar uma nova ética... A
verdade é que o novo tipo de homem exigido pela racionalização da
produção e do trabalho não pode ser criado até que o instinto sexual
tenha sido regulado e até que também seja racionalizado10.

10 Antonio Gramsci. “Americanism and Fordism”, Selections from the Prison Notebooks of Antonio
Gramsci, Londres, Lawrence & Wishart, 1971 citado em Introduction to Selected Sex-Pol Essays
1934-37 por Wilheln Reich & Karl Teschitz. Londres, Socialist Reproduction, 1973, p.33.
34 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

Hoje a esquerda é mais cautelosa, mas não menos determina-


da a nos amarrar à cozinha, seja na sua forma atual ou em de for-
ma mais racionalizada, produtiva. Não querem abolir o trabalho
doméstico, porque não querem abolir o trabalho fabril. Em nos-
so caso, eles gostariam que fizéssemos ambos os tipos de traba-
lho. Aqui, porém, a esquerda reflete exatamente o mesmo dilema
que hoje incomoda o capital: onde as mulheres podem ser mais
produtivas, na linha de montagem ou na linha de produção de
bebês? O capital precisa de nós nas fábricas como mão-de-obra
barata, para substituir outros trabalhadores que são demasiado
caros, mas eles também precisam de nós em casa para manter os
potenciais causadores de problemas fora das ruas. A diferença
aparente entre o trabalho doméstico trotskista é a barbárie, ou
seja, todas as mulheres para as fábricas – e o trabalho doméstico
libertário é o socialismo, ou seja, nenhum trabalho deve ser pago
– é apenas uma diferença de tática no âmbito de uma estratégia
capitalista global.
Os libertários sustentam que o trabalho doméstico escapa a
qualquer categorização socioeconômica: “O trabalho doméstico
das mulheres no capitalismo não é produtivo nem improdutivo”
– Lisa Vogel11; “Podemos ter de decidir que o trabalho doméstico
não é produção nem consumo” – Carol Lopate12; e “As donas de
casa são e não são parte da classe trabalhadora” – Eli Zaretsky13.
Elas colocam o trabalho doméstico fora do capital e afirmam
que é “trabalho socialmente necessário” porque acreditam que,
de uma forma ou de outra, será necessário também sob o socia-
lismo. Assim, Lisa Vogel afirma que o trabalho doméstico “...é
fundamentalmente um trabalho útil, tem o poder, nas condições
certas, [sic] de sugerir uma sociedade futura na qual todo o tra-

11 Lisa Vogel. The Earthly Family. Radical America, Vol. 7, No. 4/5, July-Out. 1973, p.28.
12 Carol Lopate. Women and Pay for Housework. Liberation, Vol. 18, No.9, Maio-Junho
1974, p . 11 .
13 Zaretsky. Socialist Politics and the Family, p. 89.
SILVIA FEDERICI • NICOLE COX | 35

balho seria principalmente útil...”14. Isto é ecoado pela visão de


Lopate da família como o último retiro onde “mantemos vivas as
nossas almas”15, e culmina com a afirmação de Zaretsky de que
“as donas de casa são parte integrante da classe trabalhadora e
do movimento operário: não porque produzem mais-valia, mas
porque realizam trabalho socialmente necessário”16.
Neste contexto, não estamos surpresas ao ouvir de Zaretsky
que “a tensão entre eles [feminismo e socialismo]... continuará
no período do socialismo... com o estabelecimento de um regime
socialista, conflito de classes e antagonismo social não desapa-
recem, mas muitas vezes surgem de uma forma mais nítida e
clara”17. Isso mesmo: se este tipo de “revolução” ocorrer, seremos
as primeiras a lutar contra ela.
Quando, dia após dia, a esquerda propõe o que a capital pro-
põe, seria irresponsável não chamar um clube de clube. A acusa-
ção de que Salários para o Trabalho Doméstico iriam institucio-
nalizar as mulheres em casa veio de todos os lados da esquerda.
Enquanto isso, se regozijam por estarmos sendo institucionali-
zadas na fábrica. No momento em que o movimento de mulheres
deu poder às mulheres institucionalizadas em casa e na fábrica,
a esquerda apressou-se a canalizar esta subversão em mais uma
instituição capitalista indispensável: os sindicatos. Esta é agora
a onda de esquerda para o futuro.
Com este panfleto queremos finalmente nos diferenciar da
esquerda por uma linha de classe. A lâmina que define a linha é
feminista, o que divide não são os homens das mulheres, mas a
tecnocracia da classe trabalhadora que pretende controlar. Te-
mos sido tímidas e retraídas por não ter falado tão claramen-

14 Vogel. The Earthly Family, p.26.


15 Lopate. Women and Pay for Housework, p. 10.
16 Zaretsky. Socialist Politics and the Family, p. 89.
17 Ibid., pp.83-84.
36 | CONTRA-ATACANDO DESDE A COZINHA

te antes, mas a esquerda nos chantageou com a acusação de


redbaiting18 (ser para o Estado caso não sejamos para eles) da
mesma forma como o Estado americano chantageou os rebeldes
com a acusação de comunismo e o Estado russo chantageou os
rebeldes com a acusação de trotskismo.

DIZEMOS ADEUS A TUDO ISSO.

Nova York, maio de 1975

18 N.T.: Estratagema discursivo que busca anular ou rebaixar o argumento de alguém


acusando-o de ser socialista.

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