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Filosofia e Pós-Modernidade: relações e pensamento em meio a teologia.

Mateus Soares Guedes1

1. Introdução - Ensaio: A importância e a relação da Filosofia para a teologia e para


o ministério pastoral.

Iniciar o conteúdo desse artigo com um ensaio é motivo de uma escolha pessoal para
adentrar o assunto referido: Filosofia e pós-modernidade. Por si mesma, e em si mesma, a
filosofia exige a ação reflexiva daquele que pretende a utilizá-la como seu objeto de
conhecimento. Dessa forma, entende-se que há uma necessidade de refletir sobre o motivo de
ser necessário a compreensão da filosofia dentro da pós-modernidade para o desenvolvimento
teológico e consequentemente do ministério pastoral.
Existe uma noção desenvolvida por inúmeros pesquisadores a qual asseveram a
filosofia como mãe de todas as ciências. Se esse conceito estiver correto, pode-se começar a
inferir a necessidade da filosofia para a teologia. É difícil pensar em uma teologia sendo
desenvolvida sem levar em consideração o auxílio da filosofia2. Para se pensar em um exemplo,
sem a filosofia o teólogo teria dificuldades de fazer perguntas ao texto sagrado com o objetivo
de conhece-lo melhor.
Assim, é possível pensar que a filosofia é uma das bases principais em que a teologia
está fundamentada. Contudo, o conhecimento dessa ciência não está somente em sua ação,
filosofar, mas está em conhece-la em seus desenvolvimentos históricos, os quais auxiliam de
maneira eficaz o trabalho do Teólogo.
Para um estudante das escrituras, pode-se pensar em dois pontos sobre a importância
que a disciplina possui para esse trabalho. Esses dois pontos podem ser divididos em passado e
presente.
Passado: É indiscutível que os autores do Novo Testamento escreveram dentro de
alguns contextos sociais e históricos específicos. Isso implica também que desenvolveram seus
textos em meio a conceitos e escolas filosóficas que podem ter influenciado tanto eles como

1
Bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Batista Equatorial. Mestrando em Tradições e Escrituras
Sagradas pela faculdades EST, como Bolsista CNPq. Estuda a área de Novo Testamento como biblista, com ênfase
nos escritos joaninos, Contexto Sócio histórico e cultural do NT, Jesus histórico e religião e sociedade na pós-
modernidade. Pastor Auxiliar na Igreja Batista do Cordeiro, Colméia – TO.
2
Especialmente uma teologia sistemática.
autores, ou seus destinatários o obrigando-os a combater ideias erradas a partir de conceitos
filosóficos que deturpavam as suas verdades.
Paulo, por exemplo, ao escrever sua carta aos tessalonicenses aproxima-se muito dos
conceitos filosóficos de sua época. “Seja a vossa moderação conhecida de todos os homens”3
(Fl 4.5). Ao observar as palavras de Paulo, pode-se encontrar conexões com uma importante
escola de filosófica de sua época, os estoicos. De tal modo, Paulo embora combata o estoicismo
em sua carta, também se utiliza dos conceitos estoicos para desenvolver sua argumentação4.
Para um segundo exemplo, podemos voltar-nos para as cartas joaninas. Em sua
primeira carta, o autor combate um grupo de hereges que adentraram a igreja e procuravam
enganar os cristãos daquela comunidade. Ao observar as acusações proferidas a esses hereges,
é possível perceber uma estreita conexão entre seus pensamentos com os pensamentos do
pensamento filosófico que possui seu pleno desenvolvimento no segundo século, o gnosticismo.
Haja vista, aqui podemos fazer uma afirmação sobre a relação teologia/filosofia: A
filosofia, e o conhecimento da filosofia é necessário para a compreensão dos textos do novo
testamento, já que os autores neotestamentários se utilizaram das, e combateram as, filosofias
de suas épocas.
Presente: A teoria utilizada no comentário anterior é valida também para a
argumentação que será feita a frente. Isto é, a sociedade nos tempos atuais está divida em uma
grande diversidade filosófica. Ou seja, as pessoas nos tempos atuais, estão moldadas e guiadas
por filosofias, sejam filosofias gerais (que estão presentes em um grupo geral da sociedade) ou
filosofias mais particulares.
Esse fato, portanto, leva-nos a pensar na missão teológica diante da sociedade atual. É
preciso compreender que a teologia possui como uma de suas principais missões responder a
questionamentos éticos e práticos em que as pessoas vivem no mundo hoje5. De tal modo, há
dois lados que precisam se conectar. Por um lado, uma sociedade que vive baseadas em
filosofias específicas considerando-se as suas idiossincrasias, por outro, uma teologia que se
possui a necessidade de ser relevante em seu contexto.
Assim, a teologia só produzira uma resposta e aplicação relevante para o seu contexto
particular, a medida que compreender os pensamentos e conceitos que guiam pessoas em meio
as suas dúvidas, inquietações, problemas éticos e morais. Para exemplificar, em uma sociedade

3
A palavra moderação possui o sentido de não se exceder voltando-se para as suas próprias práticas, mas em
todas as coisas depender de Deus, como o próprio apóstolo assevera mais a frente (v. 13-16). Cf. Dicionário
Internacional de Teologia do Novo Testamento.
4
Seria Paulo um Estoico?
5
Aconselha-se a pesquisar sobre as noções de teologia prática.
plenamente existencialista, é preciso pensar que a teologia também é existencialista, mas ao
mesmo tempo fenomenológica. Ou seja, diante de pessoas que só pensam no agora, a teologia
pode demonstrar que há um futuro e não somente o hoje.
É diante dessas argumentações que a relevância para o próprio ministério pastoral
ganha espaço nessa discussão. Pastores estão diariamente diante de congregações que possuem
grandes diferenças dentro de si mesmas. A esses mesmos pastores é dado a missão da pregação,
a qual possuem a necessidade homilética de levar a seus ouvintes uma mensagem relevante que
atenda as suas necessidades (relevância essa que pode ser tanto de maneira incentiva ou de uma
maneira exortativa). Para tanto, é preciso compreender o que se passam com eles, essa
compreensão poderá ser feita através da filosofia.
Diante dessas afirmações, entende-se a necessidade de avançar, e quebrar o próprio
senso comum que está baseado em um conhecimento geral. Logo, é necessário que ministros
se empenhem em conhecer muito mais sobre a sociedade e filosofia em que vivem, para que
assim, possam exercer suas homiléticas de maneira eficaz. É pensando nisso que podemos
utilizar um conceito trazido por Gérard Fourez6, os quais são significativos para essa
introdução: Código Restrito e o Código Elaborado.
Em resumo, Fourez entende o código restrito como o conhecimento geral que as
pessoas podem ter sobre um determinado assunto, assim refere-se ao senso comum. Já o código
elaborado trata sobre o conhecimento aprofundado sobre o assunto. Exemplificando esses
conceitos a partir da teologia podemos afirmar que quando há uma afirmação sobre Deus ser
amor, pode-se pensar nessa afirmação a partir de um código restrito, a ideia geral sobre o que
as pessoas sabem desse amor de Deus. Contudo, quando fazemos essa alteração, comparando,
por exemplo, os três amores principais para o povo grego, e pensamos nas implicações tanto
para a congregação como para a sociedade, pensamos em um código elaborado.
Os teólogos e pastores, portanto, possuem a tarefa de aprofundamento de seus
conceitos e de seus objetos de conhecimento. Como instrutores no meio eclesiástico há a
necessidade de líderes capacitados, e que exerçam, segundo Fourez, um código elabora. É dessa
maneira, que os líderes poderão fugir dos extremos como o fundamentalismo ou o pleno
“liberalismo”7. Destarte, a filosofia e a compreensão da pós-modernidade, permitirão que os

6
FOUREZ, Gérard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1995. p. 17-24.
7
Usa-se liberalismo segundo o conceito atual de que os teólogos liberais são aqueles que vão contra a ortodoxia
da igreja tradicional. O termo aparece entre aspas, pois há uma dificuldade de pensar em liberalismo teológico
hoje, já que se trata de um movimento teológico presente no século XIX.
teólogos e pastores, estejam cada vez mais aptos a liderarem e guiarem suas congregações nos
tempos atuais.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da Filosofia:
dos pré-socráticos a Wittgestein. Rio de Janeiro: Zahar,
1997. pp. 19-28;
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da Filosofia:
dos pré-socráticos a Wittgestein. Rio de Janeiro: Zahar,
1997. pp. 146-154; 201-204.
SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Marx,
Durkheim e Weber. Pétropolis, RJ: Vozes, 2017. Cap. 1.
SCHAEFER, Richard T. Fundamentos de Sociologia.
Porto Alegre: AMGH, 2016. pp. 8,9.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da Filosofia:
dos pré-socráticos a Wittgestein. Rio de Janeiro: Zahar,
1997. pp. 159-167.
SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Marx,
Durkheim e Weber. Pétropolis, RJ: Vozes, 2017. p. 29-37.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da Filosofia:
dos pré-socráticos a Wittgestein. Rio de Janeiro: Zahar,
1997. p.251-261
BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. 2. ed. São Paulo:
Paulus, 1997. pp. 97-127.
Título original
Postmodem Ethics
© Blackwell Publishers, Oxford, 1993
ISBN 0-631-18693-X

Tradução
João Rezende Costa
INTRODUÇÃO
Revisão
H. Dalbosco A MORALIDADE NA PERSPECTIVA
Capa MODERNA E PÓS-MODERNA
Alainle Garsmeur (foto do deserto do Saara, Tunísia, também publicada na capa da edição
original deste livro)

Impressão e acabamento Seres esmagados são melhor representados por pedaços e peças.
PAULUS Rainer Maria Rilke

Como indicado em seu título, este livro constitui um estudo de j'


ética pós-moderna, e não da moralidade pós-moderna. i
Essa última, se a tentássemos aqui, buscaria um inventário o
mais compreensivo possível dos problemas morais, com que os ho-
mens e as mulheres, habitantes de um mundo pós-moderno, se con-
frontam e lutam por resolver - novos problemas desconhecidos de
gerações passadas qji não percebidos por elas, assim como novas
formas que tomaram agora velhos problemas, situados inteira**
mente no passado. Não são poucos os problemas das duas espécies.
A "agenda moral" de nossos tempos está cheia de itens em que escri-
tores éticos do passado mal ou sequer tocaram, e por boa razão: em
sua época eles não eram articulados como parte da experiência hu-
mana. Basta mencionar, ao nível da vida diária, os múltiplos temas
edição, 2003
morais que surgiram da atual situação das relações entre os casais,
da parceria sexual e familiar - notórias por sua subdeterminação
institucional, flexibilidade, mutualidade e fragilidade; ou a multi-
dão de "tradições", algumas sobreviventes apesar dos empecilhos,
©PAULUS-1997 outras ressuscitadas ou inventadas, que lutam por lealdade e pela
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 São Paulo (Brasil) autoridade de guiar a conduta pessoal — embora sem esperanças de
Fax (11) 5579-3627 estabelecer hierarquia comumente acordada de valores e de normas
Tel. (11)5084-3066
www.paulus.com.br
que dispensasse seus destinatários da tarefa vexante de fazer suas
editorial @ paulus.com.br próprias escolhas. Ou, no outro extremo, o do contexto global da vida
ISBN 85-349-0904-0 contemporânea — podem-se mencionar os riscos de magnitude inau-
dita e verdadeiramente cataclísmica, que surgem das linhas cruza- nossa conduta dos últimos vestígios de opressivos "deveres infini- *
J das de propósitos parciais ou unilaterais, que não se podem determi- tos", "mandamentos" e "obrigações" absolutos. Em nossos tempos, >^/
deslegitimou-se a idéia de auto-sacrifício; as pessoas não são esti-L^
nar de antemão ou estão fora do campo visual no tempo em que se
planejam as ações por causa da maneira como se estruturam essas muladas ou desejosas de se lançar na busca de ideais morais e culti-
ações. var valores morais; os políticos depuseram as utopias; e os idealistas
Esses problemas aparecem muitas vezes neste estudo, mas ape- de ontem tornaram-se pragmáticos. O mais universal de nossos
nas como pano de fundo contra o qual procede o pensamento ético da slogans é "Nenhum excesso!" A nossa era é era de individualismo
idade contemporânea e pós-moderna. Trata-se deles como do contex- não-adulterado e de busca de boa vida, limitada só pela exigência de
to experiencial em que se forma a perspectiva especificamente pós- tolerância (quando casada com individualismo autocelebrativo e li-
moderna sobre a moralidade. É a forma como são vistos e se lhes atri- vre de escrúpulos, a tolerância só se pode expressar como indiferen-
buem importância quando contemplados da perspectiva ética pós- ça). A era que vem "depois do dever" só pode admitir uma moralidade
moderna que é aqui o objeto de investigação. muito "minimalista" e em declínio: uma situação totalmente nova
—1> O tema verdadeiro deste estudo é a própria perspectiva pós- / segundo Lipovetsky - e ele nos aconselha aplaudirmos seu advento
moderna. A afirmação principal do livro é que, nojresultado da idade e alegrar-nos com a liberdade que trouxe em sua esteira.
moderna, que atinge sua fase autocrítica, muitas vezes autode- Lipovetsky, como muitos outros teóricos pós-modernos, comete,
nigrante e de muitos modos autodesmantelante (o processo que se o erro gêmeo de representar o tópico da investigação como um recur-
C pensa que o conceito de pós-modernidade capta e comunica), muitos so invêstigativo; o qúe"sé~deve explicar como o que explica. Descre-
3 caminhos antes seguidos por teorias éticas (mas não pelos interesses véFcomportamento prevalente não sigmíica fazer afirmação moral:
morais dos tempos modernos) começaram a parecer mais semelhan- os dois procedimentos são tão diferentes em tempos pós-modernos
l tes a uma alameda cega; ao mesmo tempo se abriu a possibilidade como soíam ser em tempos pré-modernos. Se a Descrição de
de uma compreensão radicalmente nova dos fenômenos morais. Lipovetsky está correta e nós nos confrontamosjioje^om uma vida
Qualquer leitor familiarizado com "escritos pós-modernos" e social liberadã~de preocupações mõrãis^ojjuro "é" que não se guia
escritos correntes sobre pós-modernidade logo notará que essa inter- mais por qualquer "deve", um intercurso social descasado de obriga-
pretação da "revolução" pós-moderna na ética é contenciosa, e não é ção e direito - a tarefãTdo sociólogo é mostrar como veio a suceder
absolutamente a única possível. O_que_se chegou a associar-se com a quVrêguTãmentação~moral tenha sido "d^encarregada^dgLarsenal
noção j).ós-modenia_da-moralidade é muitíssimas vezes a celebração de armas outrora desenvolvido nas lutas auto-reprodutivas da socie-
da "morte do «tico", da substituição da ética pela estética, e da "eman- dade^ Se acontece que os sociólogos fazem parte da corrente crítica
cipaçaoúltima" que segue. AprópriãTeticãe denegrida e escarnecida"" dcTpensamento social, sua tarefa também não parará nesse ponto.
como uma das constrições tipicamente modernas agora quebradas e Recusar-se-iam a aceitar que algo está certo simplesmente por exis-
!
f-
'W i
destinadas ao cesto de lixo da história; grilhões uma vez considera- tir, e também não tomariam por concedido que o que os humanos
dos necessários, agora estimados claramente supérfluos: outra ilu- fazem não é nada mais do que o que eles pensam que estão fazendo
são que homens e mulheres pós-modernos podem muito bem dispen- ou como narram o que fizeram.
sar. Se se precisar de exemplo dessa interpretação da "revolução éti- A hipótese deste estudo é que o significado da pós-modernidade
ca pós-moderna", não se pode fazer pior do que consultar o estudo repousa precisamente na oportunidade que oferece ao sociólogo crí-
recentemente publidado por Gilles Lipovetsky, Lê crépuscule du tico de seguir a espécie, acima mencionada, de inquirição com um
devoir ("O crepúsculo do deverVGãllimárd, 1992). Lipovetsky, proe- propósito maior do que nunca antes. A modernidade tem a estranha
minente bardo da "libertação pós-moderna", autor de "A era do va- capacidade de frustrar a auto-analise; ela embrulhou os mecanis-
zio" e "Império do efêmero", sugere que entramos finalmente na era mos de auto-reprodução com um véu de ilusões sem o qual esses
de 1'après-devoir, uma época pós-deontológica, em que se libertou mecanismos, sendo o que são, não podiam funcionar adequadamen-
_

v e- \
te; a modernidade devia propor-se alvos que não se podiam atingir, santo Agostinho insistiu e a Igreja repetidamente repisou - liberda-
para atingir o que podia atingir. A "perspectiva pós-moderna", à qual de de escolher o errado contra o certo - isto é, de transgredir os man-
se refere esse estudo, significa sobretudo o rasgamento da máscara ># damentos de Deus: afastar-se do modo do mundo tal como Deus o
das ilusões; o reconhecimento de certas pretensões como falsas e de ordenou; e tudo o que se afastava do costume era visto como trans-
certos objetivos como inatingíveis, e nem, por isso mesmo, desejá- gressão desse tipo. Estar no certo, de outro lado, não era questão de'
veis. A esperança, que guia esse estudo, é de que, sob essas condi- escolha: significava, pelo contrário, evitar a escolha - seguindo o modo
ções, as fontes de poder moral que, na moderna filosofia ética e prá- costumeiro de vida. Tudo isso, porém, mudou com o gradual afrou-
tica política, estavam escondidas da vista, possam se tornar visíveis, > xamento da força da tradição (falando sociologicamente - da vigi-
e as razões para sua passada invisibilidade possam ser mais bem lância coletiva apertada e ubíqua, ainda que difusa, e da adminis-
entendidas: e que, como resultado, as oportunidades de "moralização" tração da conduta individual) e com a crescente pluralidade de con-
da vida social possam — quem sabe — ser reforçadas. Resta a ver se o textos mutuamene autônomos em que veio a se conduzir a vida de
tempo da pós-modernidade passará para a história como crepúsculo crescente número de homens e mulheres; em outras palavras, com o
ou como renascimento da moralidade. lançar desses homens e mulheres na posição_de indivíduos, dotados
Sugiro que a novidade da abordagem pós-moderna da ética con- de identidades ainda-nágj^adas, ou dadas mas esquematicamente -
siste primero e acima de tudo não no abandono de conceitos morais confrontando-se assim
caracteristicamente modernos, mas na rejeição de maneiras tipica- do escolhas nojjfvcêsso.
mente modernas de tratar seus problemas morais (ou seja, respon- ^São as ações que a pessoa precisa escolher, ações que a pessoa
dendo a desafios morais com regulamentação normativa coercitiva escolheu dentre outras que podia escolher mas que não escolheu,
na prática política, e com a busca filosófica de absolutos, universais tá que é preciso calcular, medir e avaliar. A avaliação é parte indispen-
e fundamentações na teoria). Os grandes temas da ética - como di-fy sável da escolha, da tomada de decisão; é necessidade sentida por
reitos humanos, justiça social, equilíbrio entre cooperação pacífica e humanos como tomadores de decisão, necessidade sobre a qual rara-
auto-afirmação pessoal, sincronização da conduta individual e do mente refletem os que agem apenas por hábito. Uma vez que venha
bem-estar coletivo — não perderam nada de sua atualidade. Apenas a avaliar, porém, fica evidente que "útil" não é necessariamente "bom",
precisam ser vistos e tratados de maneira nova. ou "belo" não tem que ser 'Verdadeiro". Uma vez que se fez a pergun-
ta sobre os critérios da avaliação, as "dimensões" da mensuração co-
Se se veio a se distinguir a "moral" como o aspecto do pensar, meçam a ramificar-se e crescer em direções cada vez mais distantes
sentir e agir do homem relativo à discriminação entre "certo" e "er- entre si. O "modo certo", uma vez unitário e indivisível, começa a
rado", foi obra de modo geral da idade moderna. Na maior parte da dividir-se em "economicamente sensato", "esteticamente agradável",
história humana, fez-se pouca diferença entre padrões agora estri- "moralmente apropriado". As ações podem ser certas num sentido, e
tamente distintos da conduta hunana, tais como "utilidade", "verda- erradas noutro. Que ação deve ser medida e por que critérios? E se
de", "beleza", "propriedade". No modo "tradicional" de vida, em que numerosos critérios se aplicam, a qual dar prioridade?
raramente se olhava a distância e em conseqüência raramente se Podem-se encontrar em Max Weber (quem mais que qualquer
refletia, tudo parecia flutuar ao mesmo nível de importância, sendo outro pensador propôs a agenda para noss"a discussão da experiên-
pesado sobre as mesmas escalas de coisas "certas" versus "erradas" cia moderna) duas apresentações logicamente irrej:pjMÍliJ^ei
a serem feitas. A totalidade de modos e meios, em todos os seus as- surg2mentOLda_moder.nidad€:=Dê~um lãdõrfícamos sabendo que a
pectos, era vivida como se fosse avalizada por poderes que nenhuma modernidade começou com a separação entre o campo familiar e a
vontade ou capricho humano podiam desafiar; a vida em seu conjun- empresa de negócios — divórcio que em princípio podia prevenir ao
to era produto da criação de Deus, monitorada pela providência divi- perigo de critérios mutuamente contraditórios de eficiência e
na. Vontade livre, se afinal existe, podia significar somente — como aproveitabilidade (que são certos e adequados para negócios) e pa-

8
A Müdbobúk <
drões morais de partilha e cuidado (que são certos e adequados para Esta é a razão pela qual legisladores e pensadores modernos
a vida familiar carregada de emoções) se encontrarem sempre no sentiram que a moralidade, antes de ser "traço natural" da vida hu-
mesmo território, lançando assim a pessoa que toma decisão em po- mana, é algo que se precisa planejar e inocular na conduta humana;
sição desesperadamente ambivalente. De outro lado, sabemos de e essa é a razão pela qual tentaram compor e impor uma ética oni-
Weber que os Reformadores protestantes tornaram-se, conscientes compreensiva e unitária - ou seja, um código coeso de regras morais
ou não, os pioneiros da vid^^d^r^.pjre^sainenltêlpôrqüeITnsisti- que pudessem ser ensinadas e as pessoas forçadas a obedecer; e essa
ram em que "a honestidade é a melhor política", que a vida em seu também é a razão por que todos os seus mais sérios esforços de agir
conjunto está carregada de sentido moral, que tudo que se fizer, em l assim se comprovaram vãos (embora quanto menos exitosos se com-
qualquer área da vida, tem significado moral - e de fato produziram provassem seus esforços passados, tanto com mais empenho o ten-
uma ética que abarcava tudo e recusavam-se resolutamente a dei- tassem). Criam honestamente que o vazio, deixado pela agora extin-
xar sem consideração qualquer aspecto da vida. Sem dúvida, há con- ta ou ineficaz supervisão moral da Igreja, podia e devia preencher-se
tradição lógica entre as duas apresentações. E todavia, contraria- com um conjunto, cuidadosa e habilmente harmônico, de regras ra-
mente à lógica, não significa necessariamente que uma das apresen- cionais; que a razão podia fazer o que a crença não estava mais fa-
tações seja falsa. O busílisé precisamente que a vida moderna não zendo; que com seus olhos, tornados largamente abertos, e com suas
se conforma ao "ou/ou" da lógica. A contradição entre as apresenta- paixões, postas em repouso, os homens poderiam regular seus rela-
çoes reflete fielmente o vêrdãHélro conflito entre tendências igual- cionamentos mútuos não menos, e talvez mais e melhor (de maneira
mente vigorosas da sociedade moderna; iima^sociedade que_é—mo.- mais "civilizada", pacífica e racional) que na época em que se viam
derna" jia medida em que tenta, sem cessar masjm^ vão,"abarcar o "cegados" pela fé e em que seus sentimentos, não dominados e não-
inab^rcáver,subsj;ituir diversidade por unIfoEmidade,_e_ambivalêncÍ£L domesticados, corriam selvagens. Em linha com essa convicção, fize-
porõrdemcõerente e transparante - e, ao tentar fazêJo, produz.cons- ram-se sem cessar tentativas de construir um código moral que -
tantemente mais divisões, diversidade e ambivalência-do que as de não mais se escondendo sob mandamentos de Deus — proclamasse
que se conseguiu-livrar. em alto e bom som corajosamente sua proveniência "feita pelo ho- /
Ouvimos muitas vezes que as pessoas adquiriram mentalidade mem" e apesar disso (ou antes, graças a isso) fosse aceito e obedecido^/
individualista, interessando-se egocentricamente só por si mesmas, por "todos os seres humanos". De outro lado, nunca parou a busca de/) >
à medida que, com o advento da modernidade, ficaram sem Deus e per- um "arranjo racional da convivência humana" - um conjunto de lei
deram a fé em "dogmas religiosos". A preocupação consigo mesmos, concebidas de tal modo, uma sociedade administrada de tal sorte, \
que marca os indivíduos modernos, é, segundo essa apresentação,, que fosse provável que os indivíduos, exercendo sua vontade livre e
produto da secularização, podendo-se reparar tanto suscitando de fazendo suas opções, escolhessem o que é reto e apropriado e não o
novo o credo religioso como estimulando uma idéia que, embora se- que é errado e mau. /
cular, pudesse pretender com sucesso compreensividade semelhan- Pode-se dizer que, embora a condição existencial dos homens e
te à das grandes religiões que gozaram de domínio quase total antes das mulheres sob as condições da vida moderna fossem muito dife-
de serem assaltadas e aluídas pelo ceticismo moderno. É preciso, de rentes do que era antes, a velha pressuposição — de que a vontade
fato, ver as conexões em ordem inversa. É porque os desenvolvimentos livre se expressa apenas em escolhas erradas, que a liberdade, se
modernos forçaram os homens e as mulheres à condição de indivíduos não monitorada, sempre verga para a licenciosidade e assim é, ou
que viram suas vidas fragmentadas, separadas em muitas metas e pode-se tornar, inimiga do bem - continuou a dominar mentes de
funções soltamente relacionadas, cada uma a ser buscada em con- filósofos e práticas de legisladores. Foi a pressuposição tácita, mas
texto diferente e segundo pragmática diversa — que foi improvável quase sem exceção, do moderno pensamento ético e da prática por
que uma idéia "onicompreensiva" promovendo visão unitária do ele recomendada, de que indivíduos livres (e, situados nas modernas
mundo servisse bem a suas tarefas e assim atraísse sua imaginação. condições, só poderiam ser livres) deviam ser prevenidos de usar sua
10 11
liberdade para fazer o mal. E não se admira. Quando vista "desde o paz duradoura. O conflito que o seu estar-juntos nunca parou de ge-
,, alto", pelos responsáveis pelo "curso da sociedade", pelos guardas do rar continuou sedimentando, num extremo, a tendência anárquica
' "bem comum", a liberdade do indivíduo devia preocupar o observa- de rebelar contra regras sentidas como opressão, e, no outro, as vi-
!i dor; ela é suspeita desde o início, pela simples imprevisibilidade de sões totalitárias que só podiam tentar os guardas do "bem comum".
i suas conseqüências, de ser de fato constante fonte de instabilidade, Essa situação aporética (aporia: em suma, uma contradição que
j! elemento de caos que se deve refrear para assegurar e manter a não se pode superar, uma contradição que resulta em conflito que
r ordem. Eji visão dos filósofos e dos legisladores só poderia ser uma' não se pode resolver) havia de permanecer a sorte da sociedade mo-
"visão do alto" - a visão-.dõs que"se confrontavam com a tarefa de derna, como um artifício auto-admitidamente "não feito pelo homem"
legislar a ordem-e-reprimir o caos—Nessa visão, para assegurar que — mas foi a marca comercial da modernidade não admitir que a sorte
indivíduos livres fizessem o que é reto, alguma forma de coação ti- fosse irreparável. Foi o traço característico da modernidade, talvez o
nha que entrar em jogo. Seus impulsos indóceis e potencialmente traço que a define, que a aporia tenha sido tida como conflito ainda
maus deviam ser mantidos em xeque - seja a partir de dentro ou de não resolvido, mas em princípio resolvível, como transtorno tempo-
fora: seja pelos agentes mesmos, pelo exercício de seu "melhor juízo", rário, como imperfeição residual no caminho da perfeição, como res-
suprimindo seus instintos com a ajuda de suas faculdades racionais to de não-razão no caminho do domínio da razão, como momentâneo
- ou expondo os agentes a pressões externas racionalmente planeja- lapso de razão a ser logo retificado, como sinal de ignorância, ainda
das que assegurassem que "não compensa fazer o mal", e assim fos- não inteiramente superada, do "melhor ajuste" entre o indivíduo e
se desencorajada de fazê-lo a maioria dos indivíduos na maior parte os interesses comuns. Um esforço a mais, uma façanha maior da
do tempo. razão, e a harmonia haveria de ser alcançada - para nunca mais se
Os dois modos de fato estavam intimamente conexos. Se os indi- perder. A modernidade sabia que estava profundamente ferida, mas
víduos fossem destituídos de faculdades racionais, não reagiriam pensava que a ferida era curável. E assim nunca parou de buscar
adequadamente a estímulos e induções externos, e os esforços para ungüento curativo. Podemos dizer que permaneceu "modernidade"
manipular recompensas e punições, por mais hábeis e engenhosas enquanto e na medida em que se recusou a abandonar essa crença e
fossem, seriam desperdiçados. Desenvolver capacidades individuais esses esforços. A modernidade refere-se esencialmente à solução de
de julgamento (treinar indivíduos para ver o que é de seu interesse e conflito, à admissão de nenhuma contradição exceto de conflitos aces-
seguir seus interesses uma vez que os viram) e administrar os inte- síveis à solução e à sua espera.
resses de tal maneira que a busca do interesse individual os levasse
a obedecer a ordem que os legisladores quisessem instalar, tinham O moderno pensamento ético, em cooperação com a moderna
que se ver como mutuamente condicionantes e complementares; só \ prática legislativa, lutou para abrir via a essa solução radical sob as
teriam sentido juntos. Mas, de outro lado, ver-se-iam potencialmen- bandeiras gêmeas da universalidade e da fundamentação.
te em propósitos cruzados. Visto "do alto", o julgamento individual Na prática dos legisladores, ^universalidade significou o domí-^
jamais poderia parecer inteiramente confiável, simplesmente pelo , nio sem exceção de um conjunto de leis no território sobre o qual
fato de ser individual e assim enraizado em autoridade outra que a estenoUa süalõFéranià. Os"firósõfó"s"dêfihiram a universalidade como'
dos guardiães e porta-vozes da ordem. E era provável que indivíduos í aquele traço das prescrições éticas que compelia toda criatura hu-
com verdadeira autonomia de julgamento dissentissem e resistis- \ \ mana, só pelo fato de ser criatura humana, a reconhecê-lo como direito
sem à interferência simplesmente por ser interferência. A autono-1 e aceitá-lo em conseqüência como obrigatório. As duas universalida-
mia de indivíduos racionais e a heteronomia de administração racio- des acenavam-se mutuamente sem realmente se fundirem. Mas coo-
nal não poderiam ir um sem o outro; mas também não poderiam peraram, estreita e frutuosamente, mesmo sem ter havido nenhum
coabitar pacificamente. Estariam ajuntados para o melhor e o pior, contrato assinado ou depositado nos arquivos estatais ou nas biblio-
destinados a colidir e lutar sem fim e sem nenhuma perspectiva de tecas universitárias. As práticas (ou intenções) coercitivas do legis-
12 13
íj- titfoiJrTt ó-p:

lador de uniformização supriram o "fundamento epistemológico" so- dade que aponta o caminho, como a lógica faz, para corrigir soluções
bre o qual os filósofos podiam construir seus modelos de natureza somente, pode eventualmente ser construída, dados suficiente tem-
humana universal, enquanto o sucesso dos filósofos em "naturali- po e boa vontade. O planejamento certo e o argumento final podem,
zar" o artifício cultural (ou antes, administrativo) dos legisladores devem e hão de ser encontrados. Com essa fé, os dedos chamuscados
\ ajudou a representar o modelo legalmente construído do sujeito do não doeriam demais, não haveria esforços inúteis, e o fracasso das
\\ estado como a incorporação e o compêndio do destino humano. esperanças de ontem só incitaria os exploradores a esforços ainda
\a Na prática dos legisladores, as fundamentações significavam os maiores hoje. Toda receita presumidamente "a toda prova" compro-
^"poderes coercitivos do estado que tornavam a obediência às regras var-se-ia errada, desautorizada e seria rejeitada, mas não a própria
expectativa sensata; a regra era "bem fundada" na medida em que busca de receita verdadeiramente a toda prova, receita que, como */
gozava do suporte desses poderes, e fortalecia-se a fundamentação uma delas certamente haverá de fazer, lançará base para busca ulte- "
com a eficácia do suporte. Para os filósofos, as regras seriam bem fun- rior. Em outras palavras, o pensamento e a prática morais da mo-
dadas quando as pessoas, de que se esperava segui-las, criam que ou dernidade estavam animados pela crença na possibilidade de um
podiam ser convencidas de que por uma razão ou outra segui-las era código ético nõo-ambivalente e não-aporético. Talvez ainda não se
a coisa certa a fazer. "Bem fundamentadas" eram essas regras à me- tenha encontrado esse código. Mas com certeza ele está à espera na
dida que ofereciam resposta cogente à questão: "Por que devo obe- virada da esquina. Ou na virada da próxima.
decê-las?" Via-se a fixação dessa fundamentação como imperativo, É a descrença nessa possibilidade que épós-moderna, "pós" não
uma vez que era provável que indivíduos autônomos, confrontados no sentido "cronológico" (não no sentido de deslocar e substituir a
com exigências legais/éticas, fizesem essas perguntas - e sobretudo modernidade, de nascer só no momento em que a modernidade ter-
a pergunta: "Por que devo eu ser moral?" Em todo caso, os filósofos e mina e desaparece, de tornar a visão moderna impossível uma vez
legisladores esperavam quefizessemessas perguntas - visto que chegada ao que lhe é próprio), mas no sentido de implicar (na forma
ambos pensavam ou agiam com a pressuposição de que boas regras de conclusão, ou de mera premonição) que os longos e sérios esforços
devem ser regras artificialmente planejadas, sob a mesma premissa da modernidade foram enganosos, foram empreendidos sob falsas
de que os indivíduos, quando livres, não abraçariam de maneira ne- pretensões, e são destinados a terminar - mais cedo ou mais tarde -
cessariamente voluntária boas regras sem ajuda, e sob o mesmo prin- o seu curso; que, em outras palavras, é a própria modernidade que
cípio de que, para agir moralmente, os indivíduos devem primeiro vai demonstrar (se é que ainda não demonstrou), e demonstrar além
aceitar as regras de comportamento moral, e de que isso não aconte- de qualquer dúvida, sua impossibilidade, a vaidade de suas espe-
ceria se não estivessem persuadidos primeiro de que agir moralmente ranças e o desperdício de seus trabalhos. O código ético a toda prova
é mais agradável que agir sem moral, de que as regras, a que são — universal e fundado inabalavelmente — nunca vai ser encontrado;
chamados a aceitar, designam de fato o que é agir moral. De novo — tendo outrora chamuscado muitíssimas vezes nossos dedos, sabe-
como no caso da "universalidade" - as duas versões de "fundamenta- mos agora o que não sabíamos então ao embarcarmos nessa viagem
ções", sem nunca se harmonizarem, cooperavam e complementavam- de exploração: que uma moralidade não aporética e não ambivalente,
se mutuamente. A crença popular de que as regras são bem justi- uma ética que seja universal e "objetivamente fundamentada", cons-
ficadas no que elas fazem facilitaria a tarefa das agências coerciti- titui impossibilidade prática; talvez também um oxímoron, uma con-
vas, enquanto a pressão inflexível das sanções legais derramaria tradição nos termos.
\sangue nas veias secas do argumento filosófico. É a exploração das conseqüências dessa crítica pós-moderna de
Tudo por tudo, a busca perseverante e inflexível de regras, que modernas ambições que constitui o assunto deste estudo.
"se fixarão", e de fundamentações que "não se abalarão", hauriu sua
força da fé na praticabilidade e no triunfo último do projeto huma- Sugiro que são as seguintes as marcas da condição moral, tais
nista. Uma sociedade livre de contradições irremovíveis, uma socie- como surgem uma vez contempladas desde a perspectiva moderna.
14 15
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1. As asserçóes (mutuamente contraditórias, se bem que amiú- Propõe-se um ideal (raramente atingido na prática) de produzir de-
de afirmadas com a mesma força de convicção): "Os seres humanos finições exaustivas e não-ambíguas; tais como prover regras nítidas
são essencialmente bons, e apenas precisam de ajuda para agir se- para a escolha entre adequado e inadequado e não deixar nenhuma
gundo sua natureza", e: "Os seres humanos são essencialmente maus, "área cinzenta" de ambivalência e de múltiplas interpretações. Em
e devem ser prevenidos de agir segundo seus impulsos", são ambas outras palavras, age com o pressuposto de que em cada situação de
errôneas. De^fato,» os humanos jsão moralmente ambivalentes^ vida pode-se e deve-se decretar uma escolha como boa em oposições
| ambivalência reside no coração da "primeira ceiiá"^dõ~HüníáTio face a a numerosas outras, e assim agir em todas as situações pode ser
; face. Todos os subseqüentes arranjos sociais - instituições ampara- racional, visto que os agentes também são racionais como devem
i das pelo poder, assim como as regras e os deveres racionalmente ser. Mas essa pressuposição omite o que é propriamente moral na
articulados e ponderados — desenvolvem essa ambivalência como seu moralidade. Muda os problemas morais do campo da autonomia moral
! material de construção, dando o melhor de si para purificá-lo de seu para o campo da heteronomia amparada pelo poder. Substitui o co-
pecado original de ser ambivalência. Os últimos esforços são inefica- nhecimento, que se pode aprender, das regras, pelo eu moral consti-
zes ou acabam exacerbando o mal que desejam desarmar. Dadaja tuído pela responsabilidade. Coloca a responsabilidade para com os
i estrutura primária da convivência humana, moralidde não-ambiya- legisladores e guardiãos do código no lugar que antes tinha sido da
|i lente é essencial impossibilidade: Nènhun^código ético logicamente responsabiliade para com o Outro e para com a própria consciência
, cõereíõte^jjodè "harmonizar-se" com a condlçaõ^ssencialmente moral, o contexto em que se faz a decisão moral.
| ambivalente da moralidade. É também a moralidade não pode "anu- 3. A moralidade é incurayelmente aporética. ^oucas^escolhas (e
• lar" o impulso moral; na melhor das hipóteses, pode silenciá-lo e apenas as que são relativamente triviais e de menor importância
paralisá-lo, tornando assim as oportunidades do "bem que é feito" •, existencial) sãg_boas-sem-ambigü-idaderA maior parte das escolhas
não mais fortes, talvez mais fracas do que de outra forma teriam j morais são feitas entre impulsos contraditórios. O que, porém, é mais
sido. Segue que não se pode garantir a conduta moral; nem por^çon- importante é que quase todo impulso moral, se se age sobre ele ple-
textos meTn^FpTãTrej^aT±05para--a"ação"Humana, nem põFmõtivo.s_mais namente, leva a conseqüências imorais (da maneira mais caracte-
bem forrtrado~s~d£T~ãpãi3~hTrnmn^^ a viver sem rística, o impulso de cuidar do Outro, quando levado ao extremo, con-
i essas garantias e conscientês^ie que nunca se oferecerão essas ga- duz à aniquilação da autonomia do Outro, a dominação e opressão);
" rantias - de que uma sociedade perfeita, assim como um ser huma-j todavia, não se pode implementar nenhum impulso moral a não ser
no perfeito, não é perspectiva viável, ao passo que tentativas de pro- que o agente moral seriamente se esforce para estender o esforço ao
var o contrário acabam sendo mais crueldade que humanidade e cer-j , limite. O eu moral move-se, sente e age em contexto de ambivalência
tamente menor moralidade. $f e é acometido pela incerteza. Daí que a situação moral livre de ambi-
*—&• 2. Fenômenos morais são intrinsecamente "não-racionais". Vis- güidadetenhaj.penas a existência utópica ~romciTwrizõn|e e estimu1
to que só são morais se precedem à consideração de propósitos e Io talvez indispensáveis para.um euTmoral, mas não como alvo rea-
cálculos de ganhos e perdas, não se ajustam ao esquema de fins e lista He prática_-ética. Raramente atos morais podem trazer comple-
meios. Também escapam de explicações em termos de utilidade ou satisfação; a responsabilidade que guia a pessoa moral está sem-
serviço que prestam ou são chamados a prestar ao sujeito moral, a pre adiante do que foi e do que pode ser feito. Não obstante todos os
um grupo ou a uma causa. Não são regulares, repetitivos, monóto- esforços em contrário, a incerteza acompanhará necessariamente
nos ou previsíveis de forma que lhes permitisse ser representados para sempre a condição do eu moral. Pode-se, com certeza, reconhe-
como guiados por regras. É principalmente por essa razão que não cer o eu moral por sua incerteza se tudo o que devia ser feito foi feito.
se podem exaurir por qualquer "código ético". Pensa-se a ética se- 4. A moralidade não é universalizável. Essa afirmação não en-
gundo os padrões da Lei. Como faz a Lei, esforça-se ele para definir dossa necessariamente o relativismo*mõíãl7expresso~nã proposição,
as ações "adequadas" e "inadequadas" em situações em que vigora. muitas vezes~pToposta e aparentemente semelhante, de que a
16 17
A^O

moralidade não passa de costume local (e temporário), de que é certo se essa autonomia, desde a escrivaninha de controle da sociedade,
que o que se crê ser moral em determinado lugar e tempo não se vê como germe de caos e anarquia dentro da ordem; como o limite ex-
com bons olhos em outro, ocorrendo, portanto, que todas as formas terno do que a razão (ou seus porta-vozes e agentes autonomeados)
de conduta moral até então praticadas são relativas a tempo e a podem fazer para planejar e implementar o que quer que se tenha
lugar, afetadas por caprichos de histórias tribais e invenções cultu- proclamado como o arranjo "perfeito" da convivência humana. Os
rais; essa proposição é feita muitas vezes mais no contexto de uma impulsos morais, porém, são também um recurso indispensável na
V proibição de qualquer comparação entre moralidades e acima de tudo administração de qualquer desses arranjos "realmente existentes":
V de qualquer exploração do outro do que no contexto de afirmação fornecem a matéria-prima da sociabilidade e do compromisso com
sobre fontes puramente acidentais e contingentes de moralidade. outros com que se modelam todas as ordens sociais. Precisam, pois,
Argumentarei contra essa^yisão manifestamente^ relatiyista_e_em ser domesticados, aproveitados e explorados, de preferência a serem
última análise niilista de moralidade^ À afirmação: "Ã moralidade é meramente supressos ou prescritos. Daí a endêmica ambivalência
riao-umversalizáveTríaTTcomo aparecerá nesteJivrp,.'.temjsentídcT no tratamento do eu moral por parte da administração societária:
diferente^ opõe uma versão concreta de universalismo moral, que na deve-se cultivar o eu moral sem se lhe soltar as rédeas; precisa ser
época moderna serviu apenas como declaração maldisfarçada da constantemente desbastado e mantido na forma desejada sem que
intenção de embarcar na Gleichschaltung, numa árdua campanha se sufoque seu crescimento e se desseque sua vitalidade. A adminis-
para amaciar as diferençasse sobretudo para eliminar todas as fon- tração social da moralidade constitui operação complexa e delicada
tes "selvagens" — autônomas, desregradas e incontroladas — de juízo que só pode precipitaTTnãis ambivalência do que consegue eliminar.
moral. Reconhecendo a presente diversidade de crenças morais e 6. Dado o impacto ambíguo dos esforços societários no campo da
ações promovidas institucionalmente, bem como a variedade passa- legislação ética, deve-se reter que a responsabilidade moral — sendo
da e persistente de posturas morais individuais, o pensamento e a para o Outro antesjle poder ser com o Outro — é a primeira realidade ^í
prática modernos consideram-na abominação e desafio fazendo ár- do eúT^õrrtõ~3é~partida antes que produto da sociedade. Precede a
duos esforços para superá-la. Não o fez, porém, tão abertamente, todo comprometimento com o Outro, seja mediante conhecimento, tf.
não com o pretexto de estender o próprio código pessoal preferido avaliação, sofrimento ou ação. Não tem, portanto, nenhuma "funda-
sobre populações habitadas por diferentes códigos e apertar a garra mentação" — nenhuma causa, nenhum fator determinante. Pela
com que mantinha populações já sob seu domínio — mas sub-repti- mesma razão pela qual não pode ser desejada ou manobrada para
ciamente sob o pretexto de uma única ética omniumana destinada a fora da existência, não pode oferecer argumento convincente da ne-
expelir e suplantar todas as distorções locais. Esses esforços, como cessidade de sua presença. Na ausência de uma fundamentação, a
vemos agora, não podem tomar outra forma senão a de propor re- questão: "Como é possível?", não tem nenhum sentido quando dirigida
gras éticas heterônomas, forçadas desde fora, no lugar da responsa- / à moralidade. Essa pergunta apela à moral para justificar-se a si
bilidade autônoma do eu moral (o que significa nada menos que a hL mesma - embora a moralidadg_não jenha nenhuma excusa,jyJ§tQ_
incapacitação, e mesmo destruição, do eu moral). Assim, seu efeikrf j que precede a emergência do contexto socialmente administrado
global não é tanto a "universalização da moralidade" como o silen- dentro^o~pjiai-os-ternios;sOTgemjCíem-sentido: Essa pergunfã~exige
ciamento do impulso moral e a canalização de capacidades morais que a~ffiõrãl"i(lãdê~ãprésente o certificado de sua origem — embora
para alvos socialmente planejados que podem incluir e incluem pro- não existajie^ihuin^u^nte^dxi-eujnor-alrSendo a moralidade a pre-
pósitos imorais.
sença última e não-determinada; certamente, um ato de criação ex
5. Desde a perspggtiy.a-da "ordem racional", destina-se a mo- nihilo, se é que houve algum. Aquela pergunta, finalmente, pressu-
ralidade a permanec^j£mcÍQtta/.-Bornni^7T7l^
. se põe tacitamente que a responsabilidade moral seja mistério contrá-
inclina à uniformidade e a procurar ação disciplinada e coordenada, rio à razão, que aqueles eus não seriam "normalmente" morais a não
a autonomia teimosa e elástica do eu moral constitui escândalo. Vê- ser por alguma causa especial e poderosa; para tornar-se morais, os
18 19
mum condição moral que precede a todos os efeitos diversificantes
eus devem primeiro ceder ou cortar algum outro constitutivo de si
mesmos (sendo o mais comum a premissa de que — sendo a ação
moral acaracteristicamente desinteressada - o elemento cedido é o
da administração social da capacidade moral, para não mencionar a
necessidade sentida de "universalização" administrada de maneira
vl
tD
O)
auto-interesse; o que aqui é pressuposto é que ser-para-o-Outro an- semelhante. Aunidade moral, ampla como a humanidade, é pensável,
tes que para si mesmo é "contrário à natureza" e que duas modalida- se é que o é, não como produto final de globalização do domínio de
de de ser estão em oposição). Todavia, a responsabilidade moral é poderes políticos com pretensões éticas, mas como o horizonte utópi-
precisamente o ato de autoconstituição. A capitulação, se é que existe, co de desconstrução das pretensões do tipo de "sem nós o dilúvio" de
^/T ocorreTnTcaminho que conduTHõ~êTTnTBral ao eu social, do ser-para nações-estado, nações em busca de se tornarem estado, comunida- O
> ao ser "meramente" com. Levou séculos de adestramento legal, am- des tradicionais e comunidades em busca de tradição, tribos e neo-
V parado pelo poder, e de doutrinação filosófica, para fazer com que o tribos, assim como seus porta-vozes e profetas nomeados ou auto- U»
posto parecesse evidentemente verdadeiro. nomeados; COJQO a remota (e^^endo^assim^-utópica) perspectiva da
7. O que segue é que, contrariamente à opinião popular e ao emancipação do eu nipral autônomo e a vindicação de sua responsa-
cálido triunfalismo do "tudo vai" de certos escritores pós-modernis-^ bilidade níoral; como umã~perspectivã do eu morãTque emerge, sem
tas, a perspectiva pós-mpderna acerca de^ fenômenos morais nãore- siFiténtâdo a escapar da inerente e incurável ambivalência na qual
j l vela o rêíativismo da moralidadg^Nemjevejgla invocar^ou recomen- aquela responsabilidade o lança e que já é sua sorte, ainda esperan-
v-1 dar indiretamente, um désarmarnentpjio tipo "nadajpodemos fazer do para ser relançado em seu destino.
a esse"respeitõ",_tendo em vista a variedade aparentemente irredu- Seguirei e explorarei esses temas por todo o meu livro, em cada
tíverdetódlgos éticos. Ocorre o contrário. As sociedades modernas capítulo sob ângulo diferente. O leitor ficará de sobreaviso: não emer-
praticam paroquialismo moral sob pretexto de promover ética uni- girá nenhum código ético no fim dessa exploração; nem se podia pre-
versai. Expondo a essencial incongruidade entre qualquer código ético tender um código ético à luz do que se encontrará em seu curso. É
amparado pelo poder, de um lado, e a condição infinitamente com- improvável que a espécie de entendimento da condição moral do eu,
plexa do eu moral, de outro, e expondo a falsidade da pretensão da que permite o ponto de vista pós-moderno, torne a vida moral mais
sociedade de ser o autor último e o único guardião confiável da mora- fácil. O mais com que se pode sonhar é torná-la um pouco mais moral.
lidade, a^grspectiYa^óg^moderna mostra^que aj-ejlatiyidade dos có-
digos éticos, e das práticas morais que eles recomendam ou apoiam, Foi privilégio meu beneficiar-me, pela quarta vez agora, das
é Tes^tadQ^ojpa^ó^^^^^^^Mcamênte promovido dos códigos primorosas capacidades e dedicação de David Roberts - o editor ex-
morais que pretendem serjmiverjais,jLnj»^^ traordinário que sabe fazer o balanço correto entre as rijas exigên-
codificada" ejdajconduta^ioral_queLÍny_ectiyam como paroquial^São cias da linguagem e o respeito pela teimosia do pensamento incura-
os códigos éticos que sofrem da praga do relativimo, não passando velmente idiossincrático do autor ...
essa praga de reflexo ou sedimento de paroquialismo tribal de pode-
res institucionais que usurpam autoridade ética. A superação da
variedade mediante estender o escopo e alcance de determinado po-
der institucional, político ou cultural (como os modernos lutadores
contra o rêíativismo moral exigiram quase em uníssono) só pode le-
var a substituição ainda mais completa de ética por moralidade, de
um código moral pelo eu moral, de heteronomia por autonomia. O
que a perspectiva pós-moderna conseguiu fazer, tendo posto de lado
as profecias da iminente chegada do tipo de universalidade ampara-
do pelo poder, foi penetrar o véu espesso dos mitos descendo à co-
20 21
BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. 2. ed. São Paulo:
Paulus, 1997. pp. 119-156.
sobreviveram, aos quais se endereçava: soa como confmamento vita-
lício na culpa. Afinal, muitos ajudaram as vítimas, mas poucos esta-
vam dispostos a se tornarem vítimas. O Vaticano reconheceu a excep-
cionalidade, a anormalidade do auto-sacrifício radical proclamando
santo o Padre Kolbe, que foi à morte para salvar a vida de outro
prisioneiro de Auschwitz. Sábios talmúdicos também não tiveram
dúvidas: é isso o que disseram em Trumot (8,10): O PARTIDO MORAL DE DOIS
Ulla bar Koshev estava sendo procurado pelo governo. Fugiu buscando asilo
junto do Rabi Joshua ben Levi em Lod. As forças governamentais vieram e
cercaram a vila. Eles disseram: "Se não no-lo entregardes, destruiremos a
vila". O Rabi Joshua foi ter com Ulla bar Koshev e persuadiu-o a se entregar.
Elias costumava aparecer ao Rabi Joshua, mas a partir daquele momento
parou com as aparições. "Espera-se que eu apareça a informantes?", ele per- Uma por uma, a modernidade foi despojando o homem de todas as
guntou. Rabi Joshua disse: "Eu segui a Lei". Elias replicou: "Mas porventura pompas "particulares", reduzindo-o ao (pretenso) cerne de "todo huma-
a lei é para os santos?" no" - o cerne do "ser moral independente, autônomo e, por conseguinte,
Os santos são santos porque não se escondem atrás dos ombros essencialmente não-sotial".1 A modernidade desde o início se dispôs a li-
largos da Lei. Eles sabem, ou eles sentem, ou eles agem como se bertar o homem de todas "as influências e desvios históricos que corro-
sentissem que nenhuma lei, por mais generosa e humana seja, pode em sua essência mais profunda", a fim de que — como se esperava - "pos-
exaurir o dever moral, traçar as conseqüências do "ser para" até a sa emergir nele como sua essência o que é comum a todos, o homem
seu fim radical, até a escolha extrema de vida ou morte. Não quer como tal".2 "O homem como tal" era naturalmente sigla para dizer o ser
dizer que para ser moral se precise ser santo. Não quer dizer tam- humano subordinado a um só poder e por ele movido: o poder legislador do
bém que escolhas morais sejam sempre, diariamente, questões de estado; ao passo que a emancipação, que se devia efetuarpara "ajessência" _
vida e morte: a maior parte da vida é levada em distância segura das poder brilhar com toda sua primitiva pureza, queria dizer a destruição
^\
^
escolhas extremas e últimas. Mas quer dizer que a moralidade, para ou nl§üT;rãliiãpFHe~€õ^
ser eficaz na vida mundana não-heróica, deve-se talhar segundo o cularizãntes"^ qtíé sãFótalíh a obra que o poder "uiüversaUzante" do esta:
tamanho heróico dos santos; ou, antes, manter a santidade dos san- do moderno se ésTòrçãyà paraTreãKzar. Ãbatalha para descobrir a "es-
tos por seu único horizonte. A prática moral pode ter só fundamenta- sêndãTmmana" era apenas uma dentre as muitas batalhas travadas
çõesjmgráíiças—Para ser o que ela é — a prática moral — ela_dgye_ na guerra pelo direito de legislar, e legislar monopolisticamente. Ou,
estáEeTecer-se padrões que não pode alcançar. E ela nunca pode apa- mais propriamente, a guerra para substituir a "mão morta" do costume
ziguar-se a si mesma com ãüíõ-segurançãs, oulseguranças de outras e da tradição (uma mão de fato muito viva graças aos mecanismos local-
pessoas, de que os padrões foram atingidos. É, em última análise, a mente entrincheirados de reprodução controlada) pela vontade do esta-
falta de autojustificação, e a auto-indignação que essa produz, que do como legislador exclusivo. As outras formas — consuetudinárias e tra-
são as trincheiras mais invencíveis da moralidade. dicionais - deviam ser esmagadas, desembaraçando-se delas, para se
poder revestir de roupa nova, agora feita pelo desenhista, o corpo e a
alma desnudos do "homem como tal".

1
Louis Dumont, Essays on individualism: Modem Theory in anthropological perspective,
University of Chicago Press, 1986, p. 25.
2
Georg Simmel, "Freedom and the individual", em On individuality and social forms, org.
Donald N. Levine, University of Chicago Press, 1971, pp. 219-220.

96 97

l
Despido da carapaça de seus laços "naturais", a "essência" do
"homem como tal" comprovou-se ser, entre outras coisas, uma soli-
dão associai. Os pensadores líderes da nova ordem artificialmente
planejada, como Hobbes ou Locke, imaginavam um indivíduo relacio-
r obedecer, e prometiam prestar o melhor serviço que há ou pode ha-
ver: as normas legais visavam a ajudar os indivíduos, estimulando-
os a buscar o que convém a seu interesse próprio, e prometiam mos-
trar como fazê-lo. O indivíduo legalmente definido era alguém que
nado à sociedade em geral (leia-se: a nação-estado) só externa e ins- tinha interesses que não eram interesses de outros. A distância en-
trumentalmente: não viam o fato de que o "ser parte da sociedade" tre o eu e o outro era traçada para além do risco de colisão pela
tinha a capacidade de "mudar ou alterar os indivíduos de algum modo separação e conflito (sempre possível) entre interesses individuais.
fundamental ou significativo", mas criam que as instituições sociais Um vez exiladas de sua moradia natural, a moradia da proximi-
"existiam para preservar, proteger e defender os interesses próprios dade, as afeições podiam ser redirecionadas para a totalidade abs-
dos indivíduos".3 Nesse modo de ver, poréni,^eclaraya-se livra n indi^ trata e imaginada da nação-estado ( ^vocabulário de Reinhold
víduo de^tô^as_asobjigaçjaes_para-com outros seres humanos (exceto, Niebuhr, podia-se reforjar o altruísmo in ividual em egoísmo grupai).
porem, das O que deixaria moralmente dessecada a imediata vizinhança do indi-
pafa-legtslãF"£nH]e aterra^). No sumário incisivo de Simmel: víduo, a companhia dos outros na qual se vivia a vida. O efeito, em
Assim, todas as relações com os outros são, em última análise, meras estações
parte planejado e em parte imprevisto, de tudo isso foi, por assim
ao longo da estrada pela qual chega a si o ego. Isso é verdade, quer se sinta o dizer, certa falta subseqüente de instrução moral: a incapacidade de
ego basicamente idêntico a esses outros porque ainda precisa do apoio desta o indivíduo estar à altura da presença do Outro e da afeição que essa
convicção porquanto tem que se valer sozinho confiando em si mesmo e suas presença evocava - misteriosa e ilegitimamente, como então se pre-
Xi
capacidades, quer seja bastante forte para agüentar a solidão de sua própria
sumia. Num mundo construído só de normas codificáveis, o Outro
4 condição, apresentando-se aí a multidão apenas para que cada indivíduo pos-
sa usar dos outros como
lidade de seu mundo.4
uma medida de sua incomparabilidade e da individua- assomava do lado de fora do eu como presença mistificante, mas
sobretudo como ambivalência desconcertante: como potencial anco-
A mônada hermeticamente fechada e solitária é abandonada no ragem da identidade do eu, mas ao mesmo tempo como obstáculo e
meio da multidão dos outros que estão bem perto se bem que infini- resistência à auto-afirmação do ego. Na ética moderna, o Outro era a
tamente distantes e estranhos sem conserto, apenas buscando em contradição encarnada e a mais terrível das pedras de escândalo na
cada intercurso uma oportunidade de nutrir sua identidade ... A^SQ; marcha do eu para sua realização.
ciedade moderna especializou-se na renovação do espaço_soçialLS- Se a pós-modernidade constitui uma retirada das aléias cegas a

i-s. sava a criar um espaço públjgoondi^nao^viã haver nenhuma proxi-


nuàade morãl^A proximidade é o campo da intimidade e moralidade;
a distanclãTô^mpTraa estraim'eira~e^^êlrDêvíã'haver entre o eu
que tinham levado as ambições radicalmente perseguidas da moder-
nidade, uma ética pós-moderna seria uma ética que readmitisse o Outro
como próximo, como alguém muito perto da mão e da mente, no cerne
e o outro distancia do eu moral, de volta da terra devastada dos interesses calculados à
nhuniã~imTuencÍ£Tfãlseante de~qualquer coisa jespjontâne.a_e-impre- qual ele foi exilado; uma ética que restaura o significado moral autôno-
visível, nenhum espaço pára poderes na medida que inconfiáveis e mo da proximidade; uma ética que lança novamente o Outro como a
resistentes à legislação universal tais~como osjprqcedentes^do^im- figura decisiva no processo pelo qual o eu moral chega ao que é seu.
pulâõ moral instável. Esperava-se que se obedecesse às normas le- Como postulou Alain Renaud, para remediar as negligências da filo-
gffislímã vez que apelavam aos interesses próprios dos chamados a sofia ética moderna, a nova ética precisaria focalizar a intersubje-
tividade como "a limitação imposta ao individualismo monadológico".5
Neste sentido, a ética de Lévinas é ética pós-moderna. Como sugeriu
3
Jean Bethke Elshtain, "Liberal heresies: existentialism and repressive feminism", em
Liberalism and the modem polity: essays in contemporary politícal theory, org. Michael J.
Gargas McGrath, Mareei Dekker, Nova York, 1978, p. 35.
5
* Simmel, "Freedom and the individual", p. 223. Alain Renaut, Vère de 1'individu, Gallimard, Paris, 1989, p. 61.

98 99

L
François Laruelle, Lévinas é "lê penseur de 1'Autre"; "Lévinas 'in- total responsabilidade, que responde por todos os outros e por tudo nos outros,
vente' un Autre radicalement éthique, il dit 1'Autre par quoi il fut mesmo por sua responsabilidade. O eu sempre tem uma responsabilidade a
interpellé avant même de pouvoir en énoncer lês manières."6 Ou,
nas palavras de Marc-Allain Ouaknin: a ética de Lévinas é um
mais que todos os outros.9

O nó da subjetividade consiste em ir para o outro sem se importar com seu


6
"humanisme de 1'Autre homme". Sua ética é pós-moderna porque é movimento para mim. Ou, mais precisamente, consiste em se aproximar de
tal sorte que, acima e além de todas as relações recíprocas que não deixam de
pela se estabelecer entre mim e o próximo, eu tenha sempre dado um passo a mais
estratégia da abertura, que quebra a imanência monádica fazendo do sujeito
rumo a ele ... O próximo atinge-me antes de qualquer conjetura, antes de
qualquer desempenho aceito ou recusado ... Como que ordenado de fora, eu "
alguém que dá passo para fora de si mesmo, o sujeito de autotranscendência. sou traumaticamente comandado, sem interiorizar, por representações ou con-
„,/ Para Lévinas, é esse desbrochar [surgissement] de intersubjetividade que cons- ceitos, a autoridade que me comanda. Sem perguntar-me a mim mesmo: O
titui o sujeito, e não vice-versa.7 que então tem a ver comigo? Donde tirou ele o seu direito de comandar? O que
Numa ética pós-moderna, o Outro não mais seria aquele que, na eu fiz para de início me achar em débito?
melhor das hipóteses, seria a presa da qual pode-se alimentar o eu A face de um próximo para mim significa uma responsabilidade inexplicável,
para reabastecer seus humores vitais orgânicos, e — na pior das hipó- precedente a qualquer consentimento livre, a qualquer pacto, a qualquer con-
teses — contrariaria e impediria a constituição do eu. Ele será, ao in- trato.10
vés, o guardião da vida moral. Nas próprias palavras de Lévinas, "a Nenhuma liberdade é absoluta, oniabrangente, ilimitada. Não
humanidade do homem, a subjetividade, é uma responsabilidade pelo existe modo de se levantar de qualquer espécie de dependência
Outro, uma extrema vulnerabilidade. O retorno ao eu torna-se um senão com a alavanca de outrem. Cada luta de libertação tem por
interminável rodeio ..." E aquilo de que falam essas palavras é uma resultado, se triunfante, na substituição de uma constrição, penosa e
\ responsabilidade pelo Outro que chega antes de o Outro ter tido tem- vexante, por outra — ainda não experimentada ou vista como mal me-
po de exigir qualquer coisa; a responsabilidade "que é ilimitada por nor. Cada liberdade celebrada é uma liberdade da dependência mais
não ser medida por desempenhos, aos quais se referem a aceitação ou temida, mas não uma dependência como tal. A emancipação mo-
a recusa de responsabilidades".8 Entrou-se na responsabilidade antes derna tomou como ideal o homem socializado, guiago^por^ normas
de desempenhos, numa responsabilidade que é a medida a priori de racionalmente processadas, claramem^jexpjressas,legjihTient<^ en-
todos os desempenhos, antes de ser medida a posteriori por eles. dossadas e rebatizadas assmTcÕmo a Lei do País,jg[ue substituiria^
depenHenciã^íãs forças rebeldes e incontroladas, não-cqdificadas e,
f?£>>p07]U em conseqüência, "cegas^õlTinitTnTiôls e emoções humanos (para
A assimetria de eu-tu
DurKh^im7pòr exemplo, tirar as algemas constrangedoras de nor-
Numa das mais dramáticas inversões dos princípios da ética mas societariamente impostas não revelaria um indivíduo livre,
moderna, Lévinas concede ao Outro a prioridade que inquestiona- mas um escravo de paixões animais). Dejjutro lado, liberdadejdoeu,
velmente se atribuiu outrora ao eu. a quem se devolveu o direito de agir por sua própria responsabilida-
de mc«^l7semTíelíh1Im^rvêrgõnEã é sem nenhuma necessidade de
A relação intersubjetiva é uma relação não-simétrica. Nesse sentido, eu sou defender-se, só pode significar abandonar-se a um comando moral
resp8hsáver-pel'o~Outro seriTêsperar reciprocidade, mesmo que tivesse que que não conhece nenhum alívio e sempre exige majs do que o eu
morrer por isso. A reciprocidade é questão dele ... Eu sou responsável por uma
pode~ou^qilêTentrêgar.
6
François Laruelle, "Irrecusable, irrecevable", em Textes pour Emmanuel Lévinas, org.
François Laruelle, Jean-Michel Place, Paris, 1980, p. 9 9
Emmanuel Lévinas, Ethics and infinity: conversations with Philippe Nemo, Duquesne
7
Marc-Alain Ouaknin, Méditations érotíques, Balland, Paris, 1992, p. 129. University Press, Pittsburgh, 1985, pp. 98-99.
8 10
Emmanuel Lévinas, "No identity", em Collected philosophical papers, Martinus Nijhoff, Emmanuel Lévinas, Otherwise than being, or Beyond essence, Martinus Nijhoff, Haia,
1987, p. 149. 1981, pp. 84, 87, 88.

100 101

L
x/»

O campo do ser, o campo das normas, é também campo de signifi- O "significado absoluto e próprio" de proximidade, simplesmen-
cados. Espera-se das coisas e dos atos que portem significados e pos- te (ou néuTpor inteiro jü]^esmén^~"pressupõe 'humãniHadê^^?1 A
suam sentidos: ser possuidores de significados, e — sendo a proprieda- proxSãídãde do próximo é "obsessiva" - a espécie de imediatidade
de relacionamento de exclusão - ter significados que outras coisas e que está "dormindo no palco da consciência, não por falta mas por
atos não têm. A responsabilidade, na medida em que permanece apenas excesso, pela 'demasia' da aproximação". A proximidade está "além
moral, na medida em que nenhuma tentativa se fez para exauri-la numa da intencionalidade".12 A intenção já pressupõe um espaço medido,
lista de obrigações e direitos concedidos, não tem significado nesse uma distância. Para a intenção ser, deve haver primeinTseparaçããT
sentido. A face, com que a responsabilidade se confronta, levanta exigên- teiffpsnpãrãl-ifletir e ponderar, para "elaborar uma decisão", para
cias por sua insignificância, pela irrealização de seu potencial de assu- proclamar ou anunciar. A proximidade é o terreno de toda intenção,
mir e portar significados. Será somente mais tarde, quando eu reconhe- sem ser ela mesma intencional. Maurice Blanchot sugeriu que o
cer a presença da face como minha responsabilidade, que nós dois, eu Outro, no relacionamento ético, é "a atenção":
e o próximo, adquirimos significados: Eu_sou eu, quem sou responsa-' A atenção é esperar [L'attention est l'attenté]: não um esforço, tensão, nem
vel, ele é ele, a quen^eu atribuo o direito de fazer-me responsáyjel. E mobilização de conhecimento em torno de certa coisa com a qual se está preo-
nessa criação de significado do Outro, e assim também de mim mesmo, cupado. A atenção espera. Espera sem pressa, deixando vazio o que está vazio,
que chega a mim minhaliberdade, minha liberdade ética. E precisa- e evitando apenas a pressa, o desejo impaciente e, mais ainda, o horror do
vazio que nos incita a preencher o vazio prematuramente.13
meriíè por causada uriilateralidade, por causa da não-simêtria da res-
ponsabilidade, por causa da condensação de poder criativo inteiramente Tal atenção, tal esperar, não é possessivo; não visa despossuir o
do meu lado, é que a liberdade do eu ético seja talvez, paradoxalmente, Outro de sua vontade, de sua distintividade e identidade — através O
a única liberdade que se veja livre da sombra ubíqua da dependência. da coerção física, ou da conquista intelectual chamada de "a defini- O
Lévinas chama o campo do comando moral a ser responsável (e ção". A proximidade nem é distância superada por uma ponte, nem
assim a ser livre) de "proximidade". O termo - com suas conotações distância exigindo ser superada por uma ponte; não é um preâmbulo
espaciais - está mais uma vez sous rature: nada há de realmente para identificação e fusão, que pode, na prática, só ser ato de sucção
espacial na proximidade, certamente não no sentido do espaço físi- e absorção. A proximidade está satisfeita com ser o que ela é - proxi-
co, nem sequer no sentido do espaço social (o da densidade do mútuo midade. E está disposta a permanecer tal: estado de permanente
conhecimento). A contigüidade da proximidade não se refere ao encur- atenção, venha o que vier. Responsabilidade nunca completa, nunca
tamento da distância, aos dois seres vindos a ficar braço a braço ou exaurida, nunca passada. Esperar pelo Outro para que exerça o seu
face a face (literal ou metaforicamente), à^contigüidade ou à fusão de direito de comandar, direito que nenhum comando já dado e obedeci-,
identidades. Não se refere a qualquer coisa de relativo que possa ser do pode diminuir. (}
mapeado ou medido. A "proximidade" está pela única qualidade da si-
tuação ética - a qual "se esquece da reciprocidade, como no amor que
não espera ser partilhado". A proximidade não é uma distancia muito A aporia da proximidade I)o
pequena, nem sequer é superar, negligenciar ou negar a distância - Prestar atenção, esperar dessa maneira, é tarefa que desanima.
é, simplesmente (embora não por inteiro simplesmente), "uma su- Estira o eu até aos limites de sua capacidade de agüentar; chega
pressão da distância": muito perto desses limites em busca da possibilidade de se poder
Não se pode reduzir o relacionamento de proximidade a qualquer modalidade
de distância ou contigüidade geométrica, nem à mera "representação" de um 11
Lévinas, Otherwise than being, pp. 82, 100-101, 81.
próximo; ela já é uma adjudicação, uma adjudicação extremamente urgente — 12
Emmanuel Lévinas, "Language and proximity", em Collected philosophical papers, p.
uma obrigação, que precede no tempo a todo desempenho. Essa anterioridade 119.).13
é "mais velha" que o o príorí. Maurice Blanchot, L'Entretien infini, Gallimard, Paris, 1969, p. 174.

102 103
evitar a transgressão. Por quanto tempo pode alguém esperar, se A humanidade converte-se em crueldade por causa da tentação
nenhum fim se promete, se ao esperar se nega desde o início que virá de fechar a abertura, de recuar no processo de se estirar rumo ao
o conforto da realização? Não admira que o pensamento comece com Outro, de deixar de lutar contra o empurrão inexorável, se bem que
a responsabilidade buscando febrilmente sua própria negação. A ten- silencioso, do "comando não-falado". Este é um conflito, um conflito
tação de perguntar: "Sou eu o guarda de meu irmão?", inscreve-se no genuíno, um conflito experimentado muitas vezes por quem acha a
ser um. A "fuga da liberdade" de Erich Fromm não é nenhum impul- generosidade onerosa demais, e a prioridade incondicional da fra-
so tão opressivo como no estado da responsabilidade primitiva pré- queza do Outro sobre minha força exigente demais para se aceitar
ontológica, onde se apresenta a liberdade em seu grau mais absolu- para sempre. Com efeito, o conflito é tão comum e tão "normal" que é
to, sendo, em conseqüência, menos suportável. impossível contemplar a "natureza inata" do impulso moral sem
Mas revela-se o poder do Outro em sua negação. O que era tão admitir ao mesmo tempo a natureza endêmica da agressão. Donde
tentador como promessa de libertação (da responsabilidade impiedosa os intermináveis debates sem conclusão entre os pensadores que crê-
e insaciável e do interminável da espera) só tem o condão de me em que os homens são bons "por natureza", e os que afirmam a "na-
revelar o Outro como dependência minha. Sou agora verdadeiramente turalidade" do mal. Cada lado do debate dispõe de provas abundan-
refém (das pretensões impiedosas e insaciáveis do Outro e de sua tes em apoio de sua argumentação — demais abundantes para que o
lamúria interminável). Se no estado de proximidade o Outro era a outro lado se sinta confiante. Com efeito, a condição de proximidade,
autoridade que fundava a minha responsabilidade - minha liberda- o lugar de nascimento do eu moral^tende a se y^r_desde_g_imgip
de, minha unicidade - agora se torna ele uma força, uma resistên- dissociado pelo ImpuTso_de. ficar e ^elo_impulso de>
cia; aquele poder lá fora que traça uma fronteira ao redor de minha cão entre á atitude de abrir e a urgênciajd£jfechajrcojgg«^,bemjanle.s
liberdade, que me faz emboscada para roubar-me qualquer liberda- da razão7"êTãsTégülações éticas_que_a_razãp é_tjLO_c.apaz_de_prc)duzir
de que eu gostaria de conservar. A fragilidade do Outro suscita o eu começam a intervir.
moral em mim; sua força e militância, de outra parte, lança-me ao "Desarma-se a exigência incondicional logq_que_se substituija
campo de batalha e mantém-me lá. Como antes, o fim não está, po- proximidade pela distância medíãdãTpêla razão; a inatenção toma
rém, à vista. A luta, da mesms forma que o esperar, desconhece qual- entãcTcTlugarlía atenção, a impaciência substitui o esperar." Saó
quer fim, não admite qualquer resolução definitiva. agora atenção e esperar que precisam ser efetuados e postos no
Se no estado de proximidade é que a responsabilidade, sendo lugarrpfêclEãnrpassar^ilcrcfivo d^argumentação, suportar a de-
ilimitada, é menos suportável, é também no estado de proximidade fesa, In^strãíFsêlíuVsão adequados e "têm boas razões". Entramos
que o impulso de fugir da responsabilidade é mais forte. Donde o aqui" norcãnípõ~dõ^^sêr71iaquele diferente da moralidade, naquele
paradoxo: a mesma condição que sustenta a atenção desinteressada reino dtTéssências eTegrã^ Entramos também no campo dos con-
dá nascimento à mais impiedosa das lutas (nenhuma guerra é tão /Ziíos-quTeTSspéTãmp>or solução e buscam soluções, mediante vitória
impiedosa, deixa tão pouco espaço para a magnanimidade, como uma ou compromisso, e mediante manter o jogo dentro das regras. An-
guerra de desespero, uma guerra sem esperança de ganhar). O mes- tes ~dos cohfTítõiTê da soluçãõ~Sõ~cõnfTito há, porém, a aporia da
mo solo produz amor e ódio; o mais humano dos amores e o mais própria exigência incondicional; não um conflito, uma vez que con-
desumano dos ódios. O terreno da responsabilidade é também, ine- flitos são contradições que se podem resolver (ou se crêem
vitavelmente, lugar de crueldade. Só a ilimitação da crueldade pode resolvíveis), mas precisamente uma aporia, isto é, um estado en-
(ou tão logicamente levantar boatos de) preponderar (deixar de pre- volvido em contradição sem solução: uma condição que não se pode
ponderar - silenciar, ou banir do campo visual) a incondicionalidade realizar sem autonegação, que não se pode aluir por próprio esfor-
do comando ético. A proximidade é o terreno da glória mais des- ço de autoperfeição, auto-realização ... Uma condição cujo impulso
lumbrante da moralidade; mas também de suas mais ignóbeis der- para a autodestruição nasce de sua necessidade inata de lutar por
rotas. perfeição.
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L
a> , \j & v

A atenção ao Outro como um-outro, como a fragilidade que pro- seu perpétuo corolário. A identidade pode ser falaz, suposta; quer
voca minha força, como a presença outra que a mim resiste e se opõe genuína ou fantasiada, sempre será imputada. Mas a representação
(antes de ela ter tido o ensejo, ou antes de eu lhe dar, de se opor a do comando é a única forma de eu ouvir o comando distintamente; o
mim por sua resistência), vem antes do conhecimento. Com efeito, único comando sobre o qual eu posso agir.
ela termina no momento em que vem o conhecimento; em todo caso, O Outro é refundido como minha criação; agindo com o melhor
com a vinda do conhecimento, ela muda para além de reconhecimen- dos impulsos, eu roubei a autoridade do Outro. Sou eu agora quem
to: é agora uma decisão arrazoada antes que um impulso, exige (ou diz o que o comando comanda. Eu tornei-me o plenipotenciário do
exibe) explicações e garantias. Foi, porém, essa atenção antes do co- Outro, embora tenha eu próprio assinado o poder de procurador em
nhecimento que me pôs no caminho para o conhecimento e aplicou- nome do Outro. "O Outro pelo qual eu sou" é minha própria interpre-
me o primeiro impulso. Ser-para-o-Outro significa ouvir o comando tação daquele silêncio, daquela presença provocadora. E, sendo as-
do outro; esse comando é inexpresso (é essa precisamente a razão sim, posso vir a pensar (já estou pensando) que o que cheguei a ver
pela qual minha responsabilidade é ilimitada), mas meu ser-para não é o que eu quero, ou não é o que eu preciso para me incomodar
exige que eu o faça falar. Meu conhecimento é o único meio que te- excessivamente; a pergunta: "Sou o guarda do meu irmão?", segue
nho para fazê-lo falar. Se ser-para significa agir por causa do Outro, pronta e "naturalmente", e acabou-se o "partido moral" ... É verda-
é o bem-estar ou a dor do Outro que emoldura minha responsabili- de, ainda posso proceder aonde meu impulso moral incita-me a ir;
dade, dá conteúdo ao "ser responsável". Eu sou responsável de aten- ainda posso seguir o comando, reconhecer minha responsabilidade.
der à condição do Outro; mas ser responsável de maneira responsá- Será agora, porém, um comando a servir minha interpretação, res-
vel, ser "responsável por minha responsabilidade", exige que eu co- ponsabilidade pelo bem e dores do Outro "tal como se vê na interpre-
nheça o que é a aquela condição. É o Outro que me comanda, mas tação". Outra pergunta pode seguir, uma vez mais desde dentro do
sou eu que devo dar voz àquele comando, torná-lo audível a mim partido moral, mas já augurando sua abdicação: "Não sou eu juiz
mesmo. O silêncio do Outro manda-me falar-por, e falar-pelo-Outro melhor do que é bom para ele?" O Outro pode não conseguir reconhe-
significa ter conhecimento do Outro. cer-se na interpretação; se ele ficar em silêncio, como dentro do rela-
Mesmo que essa não tenha sido sua intenção (mais exatamente, cionamento moral ficaria, eu não teria nehuma meio de saber do
não sua intenção consciente, seu desígnio), a atenção leva-me a in- desagrado; se ele quebrar o silêncio, adquirirá voz própria provocada
quirir sobre a condição do Outro a quem dou atenção. Embarco na pelo som de minha voz, e assim começará a resistir, e agora temos
busca do conteúdo do comando. Mas não posso encontrar o conteúdo sua leitura própria contra a minha leitura em seu nome; e se quero
de qualquer forma exceto através de o "representar", de o colocar me assegurar que minha responsabilidade foi exercida plenamente,
junto como meu conhecimento. O que eu "encontro" é o comando do que nada foi deixado não-feito, omitido ou negligenciado, eu me sen-
Outro tal como articulado por mim; minha representação da voz do tirei obrigado a incluir em minha responsabilidade também o dever
Outro. O "encontrar" coloca uma distância entre o Outro enquanto de superar o que eu posso ver como nada mais que sua ignorância,
ele-pode-estar-por-si-mesmo e o Outro pelo-qual-eu-sou — a distân- ou sua interpretação errônea, de "seu melhor interesse próprio". Se
cia que não existia antes. O meu "ser por" agora é mediado. A primi- assim é, minha responsabilidade parece ficar, gratificantemente,
tiva proximidade inocente não mais existe ... E isso ocorre mesmo se reforçada: ingenuidade, imprudência, imprevidência do Outro real-
minha representação do comando for idêntica com o próprio coman- çam minha intuição, prudência e circunspecção.
do. (O que significaria mesmo essa identidade? Como se eu pudesse Seguindo sua própria lógica, imperceptível ou sub-repticiamente,
saber que este é o caso e se eu pudesse saber como descobrir se este sem falta minha ou má vontade, o cuidado converteu-se em poder. A
é o caso ... A ressonância entre o comando e sua representação sem- responsabilidade gerou opressão. O serviço ricocheteia como conflito
pre será afinal também construção minha.) A distância — inevitavel- de vontades. Porque eífsõu responsável, e porque eu não me esquivo
mente, por causa de ser distância — retém a não-identidade como de minha responsabilidade, eu devo forçar o Outro a submeter ao
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106

"p
A M ofc&
que eu, na melhor das consciências, interpreto como "o seu melhor para" em geral, a condição moral como tal. Ou, em outras palavras,
bem". Não há razão para me acusar de ambição ou de possessividade, ã atitude moral, tãlTcomcTse representa no ensinamento ético dei
nem sequer de egoísmo: eu ainda estou agindo por causa do Outro, Lévinas, é uma metáfora do amor erótico: que generaliza e particu-
eu ainda sou um eu moral, não tocado por interesse próprio, não lariza ao mesmo tempo uma categoria-matriz e um caso esptrcíflco
contando meus custos, pronto para o sacrifício. "Realmente não há de amor.
nenhuma outra coisa a fazer, uma vez que sou reponsável" - assim O carinho desloca-se para o centro da visão de Lévinas no con-
responderei às acusações. texto de sua análise do impressionante paralelismo entre futuro e o
Essa é a genuína aporia da proximidade moral. Não existe ne- Outro. Futuro, o futuro genuíno, futuro que ainda-não-foi (divêrsã"-
nhuma" boa solução á~vistã.S¥ não ajo na minha" representação do mênte do futuro existindo na antecipação, o futuro de Bergson- (D
bem-estar do Outro, não sou culpado de indiferença pecaminosa? E Heidéggêf^Sartre, o "futuro presente"), é pjuejião^ode ser captado
se eu agir, até que ponto devo ir ao quebrar a resistência do Outro, de maneira alguma. A exterioridade do futuro é inteiramente diver- É
quanto de sua autonomia posso retirar? Como Bertrand Russel dis- sa da exterioridade espacial precisamente porque nenhuma exten-
se em outro contexto, a dificuldade neste caminho em que cada pas- são da mão será bastante para captá-lo. O futuro "cai sobre nós" e
so leva ao seguinte é que não se sabe em que passo parar de vocife-' "nos oprime". Em outras palavras, "Uavenir, c'est 1'autre". Olhando
rar ... Há apenas uma linha tênue entre cuidado e opressão, e a ar-^ para o futuro, da mesma forma que olhando para o Outro, o sujeito
madilhjjagg^iyisrejs(e^gtãrã''éspréitã^^que a c o n h ê c e m j _ ~ "ne peut rien pouvoir" - "não pode ser capaz de nada". O futuro, da
cedem cautelosamente cuidando para nãp transgirejiir ... mesma forma que o Outro, está (em seu ato de confrontar, em seu
face-a-face) simultaneamente "dado" e "escondido". Nenhum equi-
valente, sequer_semelhança,
_ do futuro pode-se
Moralidade como carinho e\ \ ÍA fel - contrar nojp£e^eji^,_naqujlo_qiLe_eu apreendo,. naquilo_que se pode
&^~< jki <z>é> Cfy^f^1^-^ apreender. Entre o presente e o futuro, um abismo. O futurojsempre
"Aéticapós-moderna, sugereMarc-Alain Ouaknin, "éjuma_éti- é novo nlíscimentòTcõmeçó absoluto. E assim éjo Outro.
ca de dãrmhgV* A mão, que acarinha, permanece, caracteristica- "O amorerotico reconhece essa alteridade absoluta; mais do que
mente, aberta, jamais se fechando em garra, nunca "pegando para isso, é oTcãráter absoluto da alteridade que torna possível o amor
reter"; ela toca sem apertar, ela se movimenta obedecendo à forma erótico.
do corpo acarinhado ...
Emmanuel Lévinas usou pela primeira vez a alegoria do cari- O pathos do amor consiste na insuperável dualidade de seres. O amor é rela-
cionamento com o que está para sempre escondido. Esse relacionamento não
nho em 1947, trinta anos antes de completar sua magna obra, neutraliza a alteridade, senão que a conserva. O pathos do desejo repousa no
Otherwise than being. A visão do carinho como paradigma do relacioj- fato de ser dois. O outro como outro não é objeto destinado a se tornar meu ou
namento moral apareceu pela primeira vez muito tempo antes da que ficou meu; ele se retira, pelo contrário, em seu mistério.15
primeira prêlnõm^õ^do^esjpaço pré-ontológfcojia ética,_antes da ex- A intencionalidade do desejo do amor não visa a um "fato futu-
ploraçãõTèüõmênológica da proximidadejejia articulação d^respõíf ro", mas ao futuro como tal, à sua absoluta alteridade e perpétua
sabilj^dj^imslimiíè^r Em seu sentido primário, o c^irinTíõTalítlvi- esquivança. O carinho, a atividade do desejo, não tem intenção ne-
dade doamor erótico: ele visualizálTquê no amor escãpã~à~visão~ele nhuma de "possuir, pegar, conhecer"; se tal fosse o caso, o carinho
serve para descrever^delhaneirã^qüe onãmor"naõ~serve. Na descri- visaria a aniquilar a alteridade no Outro e assim à autodestruição.
ção7o carinho estiTpêTo amor Na históTiãliirfflosofia^étlca de Lévinas,^ O carinho é "como um jogo com algo que se esconde, um jogo sem
o amorerotico lorneceu a moldura em que se devia delinear o "ser
15
Cf. Emmanuel Lévinas, Lê Temps et 1'autre, Presses Universitaires de France, Paris,
14 1991, pp. 64, 68, 71-72, 78.
Ouaknin, Méditations érotiques, p. 129.

108 " 109


nenhum projeto ou plano, jogado com algo que não se pensa que vá pediria de degenerar em narcisismo e interesse próprio? Sim.j_p
se tornar nosso ou nós, mas com algo outro, sempre outro, para sem- "patíips do amor" reconhece atualidade de ser como mais_flue_falha
pre inacessível, sempre por vir. O carinho é a atenção prestada ao temporária,mais do que a^uüo_au_e_até o momentoi permaneseu inju-
futuro puro, um futuro sem conteúdo".16 O amor erótico é o relacio- peràdo: jtcgitaji dualidade-coma.insuperay.el. E todavia não pode
namento com a alteridade, com o mistério, com o futuro, com o que dar expressão à aceitação senão Dentando, desde o início e enquanto
neste mundo, em que tudo existe, nunca existe ... durãfo atnojynegárl) que~ãssumiu - superar ojnsuper,ável: fazer
Pode-se argumentar, com Edith Wyschogrod,17 que a ética pré- seus próprios os sofrim^^o^p_pa£ceiro,Jíabsorver" os sentimentos
ontológica de Lévinas não se podia fundar nas faculdades do ver e do dolpãíãS-õTpartilhltf
ouvir, mas unicamente no sentido (ou antes, no meta-sentidó, no lhança do amado"), como sugere Iüerkegaard,^f.jazer de dois cprgps
arqui-sentido) do tato — naquela "pura aproximação, pura proximi- um, transformar os confins entre jos_corpos na sutura que afã num
dade", naquele "estar-perto do ser". Acrescente-se todavia que mais só corpo. Sem aquela cláusula que exige que se viva a dualidade
que a ética pode-se fundar no fenômeno do tato. O carinho e o assal- coniõ~desafio, para ser sentida como colarinho apertado demais, per-
to físico (reafirmação da alteridade, e invasão da privacidade do cor- cebida como condição que não se pode contemplar com serenidade, o
po) são ambos exemplos de tato, e - como tantos casos de tribunais amor não seria amor, mas alteridade pura e simples. Caindo a cláu-
mostraram - notavelmente difíceis de se distinguirem entre si. O sula, é assim que o amor definha, murcha e morre. Ouçamos Max
carinho é o gesto de corpo dirigindo-se a um outro e o alcançando; já, Frisch:
desde o começo, em sua "estrutura" interna, um ato de invasão, ain- Porque o nosso amor chegou ao fim, porque se gastou sua energia, aquela
da que seja apenas tentativo e exploratório. Ser convidado ou bem- pessoa terminou para nós ... Nós nos afastamos de nosso desejo de partilhar
vindo não é sua condição necessária. Nem o é sua reciprocação e ulteriores manifestações. Nós lhe recusamos o direito, que cabe a todas as
mutualidade. Mas essa "multifinalidade" do resultado, essa possibi- coisas vivas, de permanecer inagarráveis, e então ambos ficamos surpresos e
desapontados que o relacionamento parou de existir. "Tu não és", diz aquele(a)
lidade de ramificar-se em apropriação e violência - não são falha que foi desapontado(a), "o que pensei que eras". E o que era o que se pensou?
nem accidens do carinho, mas seu atributo, seu traço constitutivo; é, Um mistério - que afinal é o ser humano — um enigma excitante de que se
afinal, o que separa o tocar (aquela unilateralidade mas ...) do ver e cansou. E assim a pessoa cria para si uma imagem. Este é ato de desamor, a
traição.19
do ouvir (aquela unilateralidade pura e simples), e é essa a razão
pela qual se pode construir a "ética do amor" (ou, ter assumido aque- É verdade, opathos do amor nutre-se de mistério. Mas o misté-
le amor é o padrão segundo o qual se modela e se julga a atitude rio, de que se nutre, é mistério que espera arrombar. A curiosidade é
moral, também a "ética do Outro" em geral) sobre a faculdade do a esperança de conhecimento - e, desvanecida a esperança, a curio-
tato, mas não sobre as do ver e do ouvir. sidade abre vias à indiferença. Um mistério demasiado hermético,
No coragão^o carinho encontramos^uma vez mais ambivalência. que rejeita quaisquer lisonjas e molestações para se permitir abrir,
Não se admira se foi feita sob encomenda, como a marca do amor, perde seu poder de sedução. Mas também o perde um mistério de-
aquela condição que deve sua admirável capacidadede ajuntar o_ mais ansioso por se escancarar, de deixar de ser mistério, de exau-
separãdõTcle partilhar temores e repartir alegrias, precisamente à rir-se em rotina sem surpresa alguma. Portanto, de ambos os lados
sua ambivarélTciãliiã"ta~e imiixtricáyel. Com efeito, se o amor fosse da "dualidade insuperável", armadilhas malvadas estão à espreita
cimentp dsL^msuperável dualidade de seres", do amor infeliz. Pode-se envenenar o amor pela curiosidade cansada
que se diferenciaria do mero calejamentõrêlrídiferençá?~O que õlm-
18
Soren Kierkegaard, The lastyears: Journals, 1853-1855, Collins, Londres, 1968, p. 186.
19
Max Frisch, Sketchbook, 1946-1949, Harcourt Brace Jovanovich, Nova York, 1977, p.
16 17. "A solidão do amante", observou Roland Barthes, "não é solidão da pessoa ... é solidão do
Lévinas, Lê Temps et l'autre, p. 82.
17 sistema: eu estou só em fazer dela um sistema" (A Barthes Reader, org. Susan Sonntag, Jonathan
Cf. Edith AAfyschogrod, "Doing before hearing: On the primacy of touch", em Textes pour
Emmanuel Lévinas, org. François Laruelle, Jean-Michel Place, Paris, 1980, pp. 179-203. Cape, Londres, 1982, p. 453).

110 111

j L.
da satisfação adiada para sempre, ou pelo enfado da curiosidade sa-
tisfeita. Para evitar o primeiro laço, o amor pode "tomar a iniciativa
nas próprias mãos", colocando, sub-repticiamente, sua própria solu-
r cuidado, é a felicidade de seu objeto. Mas é, e deve ser, a visão que o
amante tem de felicidade que se propõe como horizonte do esforço do
amor. O primeiro, a necessidade existencial, milita contra o segun-
do, a necessidade pragmática, e por esta é contrariada. O jovem
ção no lugar do enigma. Para escapar do segundo laço, o amor ape-
nas precisa se retirar. Em ambos os casos, a cura da aporia do amor Lukács expressou essa aporia agudamente, se bem que talvez inad-
é não-amor. vertidamente, ao colocar lado a lado, na mesma página, duas carac-
Há ciladas em fileiras ao longo dos limites externos do amor, terísticas do amor, igualmente indispensáveis, todavia dissonan-
produzidas não por imposição externa, mas pelos impulsos internos temente incompatíveis. "Amar: tentar nunca ser comprovado certo".
do próprio amor, os anelos que o amor, sendo amor, não pode ficar E: "Amar de tal modo que o objeto do meu amor não fique no cami-
sem. Uma vez nas ciladas, ou movido somente pelo desejo de esca- nho do meu amor".21 A autodeterminação, o dom do amante ao par-
par delas, murcha ou morre o amor. Mas o que acontece quando os ceiro proclamado na primeira sentença, cancela-se na segunda. A
laços não passam de oportunidade externa, e o amor ainda está no primeira sentença anuncia a entrega do amante. A segunda é o ma-
que é seu? A ambivalência é o pão diário do amor. O amor precisa de nifesto da dominação do amante. O problema é que ambos são as-
dualidade que permaneça insuperáveJ^Mas o amorjvivejtêHiãndcr pectos do mesmo relacionamento; sua presença simultânea é o sine
ti superá=larO"sucésso, porém, é o toque de finados-do-amorr-Q-amor qua non do amor.
deixardé~vivér por sua omissão. j§ob circunstâncias, os trabalhos diá- Em esplêndido estudo de animais domésticos como produtos de
rios do amor são paliativos, meias soluções, quase-soluções, soluções amor, Yi-Fu Tuan diz que "afeição não é o oposto de dominação"; que,
que criam a necessidade de novas soluções. Uma visão daquilo com mais desconcertantemente ainda, "a própria afeição é possível so-
que pode parecer o parceiro quando verdadeiramente livre, forma-se mente num relacionamento de desigualdade": "a palavra cuidado
somente para logo depois se despedaçar pela liberdade "realmente exclui de tal modo humanidade que tendemos a esquecer sua mais
existente" do parceiro; é preciso eliminar a visão - afinal de contas, inevitável matização por paternalismo e condescendência em nosso
o florescer livre do parceiro é o que interessa ao amor (não seria mundo imperfeito". A afeição não é adorno, tempero ou suavização
amor se não se conduzisse como se esse fosse o caso); como se, seguindo da desigualdade — é a fonte constante e mais profusa de desigualda-
a audaz receita de Rousseau, se precisasse forçar o parceiro para ser de. Na onda do movimento para realizar-se a si mesmo plenamente,
livre... Todavia, um parceiro forçado não é mais livre e, sendo assim, para atingir completude e perfeição, afeição e cuidado - o cuidado de
não mais respeitado, e, sendo assim, não mais digno de interesse ... afeição, amor — tentam aquele que presta cuidados, aquele que ama
Como Jeffrey Blustein observou com razão, "as relações íntimas ten- a reduzir o objeto de amor e cuidado "a simulacros de objetos sem
dem de modo especialmente fácil a faltas de respeito manipuladoras vida e brinquedos mecânicos".22 Com efeito, o objeto do amor com
e paternalistas".20 Quanto mais íntimas forem as relações, tanto mais certeza não "se poria no caminho do meu amor" ... Em sua busca de
vulneráveis serão. Os trabalhos do amor perdem-se antes de come-, perfeição (perfeição de seu amor, que projetam como a perfeição da-
çarem. queles que eles amam), os amantes tendem a se converterem em
Há uma ambivalência, uma aporia no coração do amor. O que jardineiros-artistas, e seus parceiros em jardins onde se desenvolve
torna o amor insustentável é precisamente aquela intenção ideal
sem a qual o amor não pode ser ... A intenção do amor, de qualquer 21
Gyõrgy Lukács, "The foundering of form against life", em Soul and form, MIT Press,
Cambridge, Mass., 1974, p. 34. Enquanto o relacionamento permanece vivo, escreve Lukács,
20
Jeffrey Blustein, Care and commitment: taking the personal point of view, Oxford "ora um está certo, ora o outro; ora é um que é melhor, mais nobre, mais belo, ora o outro".
University Press, 1991, p. 176. E assim é precisamente, segundo o modo de ver de Blustein, Enquanto, porém, essa gangorra continua balançando, o objeto do amor mantém-se no cami-
porque o amor é "uma espécie de cuidado desinteressado" (p. 148). Quanto maior o cuidado, nho 22do amor...
tanto maiores a intimidade, a dependência mútua e a vulnerabilidade - e a perda do respeito, Yi-Fu Tuan, Dominance and affection: The making ofpets, Yale University Press, New
e depois a perda do cuidado desinteressado, em conseqüência. Haven, 1984, pp.1-5.

112 113

L
sua arte. E na continuidade suave dos passos, é difícil saber onde
parar de vociferar ... ser curável - mas a cura não passa de subterfúgio que é outra doen-
ça. Um distúrbio quejião se pode curar é a ambivalência, a essência
A íntima dialética de amor e dominação já foi notada há um
século por Max Scheler. Agape (contraposto a Eros, nunca verdadei- do amor.^Sfãstê-se essã^inb^aênciãT^nãò"è^stêmãlsMDãrETnõ"
ramente "imotivado"23 porque sempre tingido pelo pecado de concu- entantoptodos os remédios patenteãdõ^eíícc>melMMõs"pelos peri-
tos para os males do amor, tentam fazer precisamente isso.
piscência) é o ideal cristão do amor. O amor de Deus é o modelo per-
feito pelo qual se devem medir imitações humanas inadequadas: mas
Deus é onipotente. Ele com certeza não ama "visando a um fim" -
para obter para si algo que antes não tivesse possuído. O seu amor, Doenças e remédios e mais doenças do amor
agape, é doador de tudo e não tomador, e assim deve ser todo amor Aguilhoado por sua própria ambivalência, o amor é por nature-
que tenta imitar o exemplo de Cristo. Sendo assim, o "amor é renún- za inquieto: ímpeto contínuo de ultrapassar e assim transcender o
cia livre da própria abundância vital", manifestação do senso de se- que se~ãlcançou. A tran^celidencíãrnão é
gurança, completude, força, plenitude de poder. No ato de amor, "o da para frente, embora no tempo pareça ser assim; retrospectiva-
nobre condescende com o vulgar, o saudável com o doente, o rico com mente, parece mais semelhante a "fazer tudo o que pode para ficar
o pobre, o bonito com o feio, o bom e santo com o mau e comum, o no mesmo lugar" - uma condição de não se retirar. O amor há de
Messias com os pecadores e publicanos".24 Scheler escreveu sua vi- sempre sacar novos suprimentos energéticos para manter-se vivo.
são de agape em resposta a Nietzsche, que pintou em preto infernal Há de reabastecer-se e reafirmar-se cada dia de novo: uma vez acu-
o que em Scheler brilha com brancura angélica: para Nietzsche (veja- mulado, o capital é quase devorado se não for de novo provido.J)
se especialmente seu Anticristo), agape não passava de opressão amor é, portanto, insegurança inveterada. Admitindo que para a
nascida e alimentada pelo ressentimento, rancor e despeito surgidos maioria das pessoas insegurança é _
pela vista da diferença resoluta e confiante de si. Se Scheler, porém, táveTãlongo termo, pode-se esperar razoavelmente que se busquem
estivesse querendo pensar através de seu próprio retrato, manifes- duas estratégias: de fixaç^o_e_d^flutuação._
tamente antinietzscheano, do amor, não encontraria muita coisa para ^FíxãçaõTO esforço para emancipar o relacionamento de senti-
discutir. "Condescender com" o fraco, da parte do forte confiante em mentos erráticos e vacilantes, para assegurar que - aconteça o que
si, é no fim o ato de nascimento da dominação e hierarquia: a refun- aconter com suas emoções - os parceiros continuem a beneficiar-se
dição da diferença em inferioridade. A noção de agape de Scheler, dos dons do amor: o interesse, o cuidado, a responsabilidade do outro
como a de Nietzsche, está desde o começo tingida de complacência ê parceiro. Um esforço para alcançar o estado em que se possa conti-
condescendência, só que da maneira dúplice e autofalaz que Nietzs- nuar recebendo sem dar mais, ou dando não mais do que o padrão
che tentou desmascarar asperamente. estabelecido exige.
Má saúde é o normal do amor. Como os amantes mesmos, o amor Flutuação. A recusa de conceder o caráter árduo da tarefa e o
morre em função de sua mortalidade "pré-programada", e não em duro trabalho implicado. A estratégia de "cortar as próprias perdas",
função de doenças contingentes, evitáveis em princípio. A morte do de "não investir dinheiro bom em busca de mau", de desistir de bus-
amor é o produto das atividades da vida de amor. Cada car alhures outra tentativa uma vez que parece que os ganhos caí-
ram abaixo do nível das despesas que se precisam para assegurá-
u !'Cf j ^^l Nygren, Agape and Eros, Westminster Press, Filadélfia, 1953, p. 75. Amor los. Nessa estratégia, escapa-se da insegurança mais do que se luta
motivado , diz Nygren, é humano; amor espontâneo e "imotivado" é divino. Mas é tarefa dos com ela, na esperança de que se possa encontrar a segurança alhu-
Humanos lutar para soerguer seu amor ao padrão divino.
Max Scheler, Ressentiment, Free Press, Nova York, 1961, pp. 86-88. 0 amor é "essencial- res a custos mais baixos e com esforço menos oneroso.
é deSCÍda ao fraco> descida u
" " 4 e "nasce de espontânea superabundân- Ambas as estratégias tiveram (e ainda têm) seus praticantes e
seus filósofos.
114

L 115
A primeira estratégia, a da fixação, visa de modo geral à substi- ter-se em hábito. Fazer o que a rotina exige pode afinal não ser agra-
tuição de normas e rotinas para o amor, a simpatia e outros senti- dável. Essa, porém, é uma espécie de não-agradabilidade diferente
mentos considerados demasiado inconfíáveis e custosos para fundar da causada dia a dia pela incompletude e incerteza crônicas do amor:
relacionamento seguro. A formulação clássica dessa estratégia foi essa é uma não-agradabilidade que se pode agüentar justamente
fornecida por Kant no limiar dos tempos modernos e foi desde então por seu caráter rotineiro: nada mais assoma no horizonte: não pare-
tacitamente aceita como o axioma em que se funda a estratégia da ce haver nenhuma alternativa; poupa-se à pessoa a hesitação an-
fixação. Na versão de Downie e Talfer, por exemplo, gustiosa das encruzilhadas. Essa é uma não-agradabilidade tran-
podemos nós passar sem (a simpatia), pois, se devemos crer em Kant, é possí-
qüila, uma não-agradabilidade que gera tristeza mas não instiga à
vel cumprir o dever sem simpatia ... Pode ser possível pôr os movimentos ex- ação. A não-agradabilidade de um cemitério, é-se tentado a dizer.
ternos das ações que condizem com o dever sem simpatia ativa.25 Com efeito, o dever é a morte do amor - de seus esplendores assim
Desenvolveu-se a mesma idéia, todavia mais lucidamente, no como também de seus tormentos ...
estudo popular de Francesco Alberoni e Salvatore Veca sobre o al- A passagem seguinte é um belo trecho do primeiro ensaio de
truísmo moral: Lukács onde se traça o laço fatal entre certeza e morte com toda sua
certeza terrível — e mortal:
Não podemos nos obrigar a amar alguém ... Nossa razão, porém, é capaz de
conceber o dever como uma necessidade. Se falta a espontaneidade do senti- Alguém morreu. E os sobreviventes encaram a penosa questão, para sempre
mento do amor, a moralidade seria não obstante possível graças à existência familiar, da eterna distância, do vazio intransponível entre um ser humano e
do dever. O dever preenche o vazio deixado pelo amor ... Uma vez que não outro. Nada fica em que possam pegar, pois a ilusão de entender a outra pes-
podemos contar com o amor, esse sentimento espontâneo, aceitamos volunta- soa só se nutre pelos renovados milagres, pelas surpresas antecipadas de cons-
riamente seu equivalente que tem as mesmas conseqüências práticas. A tante companheirismo ... Tudo o que uma pessoa pode conhecer sobre outra é
moralidade força-nos a agir como se estivéssemos no amor. O dever "parece" só expectação, só potencialidade, só desejo e temor, adquirindo realidade só
com o amor.26 como resultado do que acontecer mais tarde; e essa realidade também logo se
dissolve em potencialidades ...
O dever substitui o amor, como a rotina confortavelmente fami- A verdade, a formalidade da morte, é ofuscantemente clara, mais clara que
liar substitui frenéticos esforços e aventuras. O amor é luta árdua, o qualquer outra coisa, talvez porque só a morte, com a força cega da verdade,
dever vai sem esforço - quando praticado consistentemente - conver- arrebata a solidão dos braços de eventual fechamento — aqueles braços que
estão sempre abertos para novo abraço.27
25
R. S. Downie e Elisabeth Talfer, Respect for persons, Allen & Unwin, Londres, 1969, pp. A morte significa que nada mais vai acontecer. Nenhum mila-
25-26. Os autores acrescentam, porém, que "o exercício criativo e imaginativo da vida moral" gre, nenhuma surpresa - nenhum dasapontamento também. A mor-
(o que quer que possa significar) "não é possível sem simpatia ativa" (P. 26). "Simpatia ativa"
é definida pelos autores, seguindo W. G. Maclagan, como "interesse prático pelos outros", te da pessoa amada é a segurança do amante; agora o amante está
diversamente da "simpatia passiva", que donota somente empatia e identificação emocional. livre, real e plenamente livre, sem sequer um "mas", para pintar o
A simpatia que os autores consideram como condição de vida moral "criativa e imaginativa" retrato da pessoa amada usando sua própria palheta - é somente
tem, portanto, o mesmo estatuto ontológico que as normas: ela usa faculdades intelectuais dos
agentes morais como seus materiais de construção.
26
agora que se atingiu plena e verdadeiramente a liberdade. Mas o
Francesco Alberoni e Salvatore Veca, UAltruisme et Ia morale, Ramsay, Paris, 1990, p. que vem de seus pincéis permanecerá para sempre retrato de morto,
77. Os autores sugerem que, ao passo que a moralidade do amor é moralidade de alegria, a
moralidade do dever é moralidade de esforço (p. 79). Não é isso, porém, o que se sugeriu por
nossa própria análise. Talvez se pudesse fazer uma justaposição mais adequada entre esforço 27
contínuo de um lado, e rotina e hábito de outro. Gyõrgy Lukács, "The moment and form", em Soul andform, pp. 107-108, 109. Notemos,
Em seu agudo e intuitivo relato do predicamento do amor moderno (Dos ganz normale porém, que o amor é "destinado à morte" também quando evita o namoro com a completude -
Chãos der Liebe, Frankfurt am Main, 1990), Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim decla- certamente noresultado desse evitar. "Acondição de todo amor genuíno é o desejo desesperada-
ram que os conselhos e as terapias do "kit de primeiros socorros doméstico" da moderna mente difícil/de deixar ir, não uma vez mas sempre e sempre de novo: deixar ir os estereótipos e
racionalidade fazem "parte da doença que pretendem curar"; a espontaneidade que buscam, a expectativas que ferem o amante e o amado em mutilantes camisas de forças; deixar ir de teu
ressonância de sentimentos, são contrários à promessa controlada. "Certeza contratual cance- controle, mesmo em certos sentidos de tua pretensão sobre a outra pessoa; deixá-los ser livres
la o que devia tornar possível: o amor" (p. 205). Isso porque a arte simbólica, a capacidade de para sei/íeles mesmos, e a ti para seres tu mesmo... O caminho do amor é uma série de contratos
sedução, a firmeza do amor, todas crescem com sua impossibilidade (p. 9). "O amor", diz Beck, de pequenas mortes; e a morte física é somente o último deixar-ir" (Gordon Mursell, Out ofthe
é "comunismo no capitalismo" (p. 232). deep: tàrayer as protest, Darton, Longman & Ibdd, Londres, 1989, pp. 38, 39).

116 117
•^ _-*•"

máscara mortuária. O abraço final, o dois-em-um com que o amor, - sendo assim a humanidade um estado de perpétua infância e uc
sendo amor, sempre sonhou e que inspirou todos os seus muitos tra- possibilidade nunca plenamente realizada, embora todos os esforços
balhos, finalmente chegou. Mas o momento é a morte, e o lugar, o que marcam a existência humana visem a "amadurecimento", dei-
cemitério. xando para trás essa infância. A humanidade está destinada a im-
O dever é o ensaio da morte; ensaio rotineiro, repetição diária plementar-se a si mesma no perpétuo esforço de evadir-se de seu
antes do fato; a vida de hoje colonizada pela morte de amanhã; ten- predicamento ...
tativa de roubar a tranqüilidade, a caridade da morte, quando ainda Jacques Derrida escreveu da intenciohalidade dos atos lingüís-
incontaminada por finalidade, a cavilação da morte. Para todos os ticos déTuma maneirarem que caberiam sem mais as peregrinações
fins práticos, a pessoa amada está agora morta, e também o amor do do smõrfA intenção, diz Derrida,
amante. Não como um sopro do fado, porém; mas como a última es- necessariamente pode e não deve atingir a plenitude para a qual não obstante
tação na peregrinação do amor para a autoperfeição. A"exterioridade" ela tende. A plenitude é seu telos, mas a estrutura desse telos é tal que, se
da rotina foi uma tendência "interna" do amor por todo o tempo. atingida, ela, assim como a intenção, desparecem ambas, ficando paralisadas,
Com efeito, foi por ser tal tendência que guardou o amor vivo; uma imobilizadas, ou morrendo...
A plenitude é o fim (a meta), mas, se fosse atingida, seria o fim (morte)...
condição necessária da possibilidade do amor. O amor não pode rea- A plenitude é o que imediatamente orienta e faz periclitar o movimento inten-
lizar-se a si mesmo sem fixação, ele permanece inseguro de si mes- cional ... Não há nenhuma intenção que não tenda para ela, mas também
mo, insaciado, temeroso e inquieto. É essa inquietude que o faz amor nenhuma intenção que a atinja sem desaparecer com ela.29
— só que não seria realmente amor se o admitisse e o aceitasse sem O que permite à linguagem manter-se afastada do perigo, a so-
opor resistência. Para ser amor, tinha que tomar a fixação (amor breviver à sua própria tendência suicida que não obstante é o seu
para sempre, venha o que vier; para melhor ou pior; até que a morte spirítus movens, é — assim sugere Derrida — a iterabilidade; aquela
nos separe) por seu ideal, e assim tratar a sede e a agitação como curiosa repetição/nãojjgpetiçáo, um "acontecer de
sinais de sua própria imperfeição. E, no entanto, quanto mais perto repetir o que aconteceu antes, aquela habilidade,.jdisJficj.ic06.sjda.se.-
chega do ideal, menos sobra dele; o ideal do amor é sua tumba, e o reriTseparaclas do contexto intencional que lhes deu origem, e.serem
amor pode chegar lá apenas como cadáver. É como se Thánatos ar- ^-líias sóaparentemente, visto que cada
rastasse a carruagem de Eros. , um renascimento, um
Talvez essa não seja a ruína só do amor. Parece que o amor par- rejuveHeicimênfo7^ue"süga os sucos vitais de_ outros j;£ntextos_e
tilha das conseqüências de seu caráter aporético, da "ambivalên- outras intenções (as locuções são iteradas,não re-iteradas). A ambi-
cia no cerne", com muitas outras intenções, da mesma forma impul- valénciã"ênd'è^nica da iterabilidade, antes que a fixidez sonhada da í
sionadas por um telos que elas podem alcançar somente à custa da Eiriãeüfigkeit, é a única prevenção, ou antídoto, contra os perigos 0
vida. Parece que o amor não passa de um caso (provavelmente um dos inerentes à ambivalência endêmica dõlê/õíjdjJiii^nçáõrRêdiízida
casos mais espetaculares, românticos e inspiradores) daquele pre- aos~esseircteil7Trãõ~sefiãm"pia.ndes novidades, porém: o que signi-
dicamento humano mais geral de que Jean-François Lyotard escre- fica, em síntese, é a banal observação de que a única medicina plena-
veu: mente preventiva contra a morte é a vida (a estranha vida que é, e
não pode não ser, vida-para-a-morte).
Despojada de discurso, incapaz de ficar de pé, hesitante acerca dos objetos de O impulso de fixação (a desesperada tentativa de alcançar a
seu interesse, inepta para calcular suas vantagens, não sensitiva à razão co- plenitude antes de a morte a trazer sem ser rogada) só deslinda a
mum, a criança representa eminentemente o humano porque sua penúria
anuncia e promete as coisas possíveis.28 ambivalência interna e a precariedade incurável do amor que segue.
28 29
Cf. Jean-François Lyotard, The inhuman: Reflections on time, Polity Press, Cambridge, Jacques Derrida, "Afterword: towards an ethic of discussion", em Limited Inc.,
1991, pp. 2-7. Northwestern University Press, Evanston, 1988, pp. 128-129.
___ _ —-
118 119
T
O amor é precário e compelido a permanecer tal enquanto for movi- descrevo não passa de variante, usando termos de MichelJFoucauld,
do por intenção amorosa, e a sede de fixação, sendo assim, nunca da dominação típica do "poder pastoral", uma das maisTnsidlosas'
será abrandada. Legisladores éticos o sentiram (intuíram, ainda que das multas formãs^deílominãçao, uma vez~qne chantageia seus obje-
se tenham abstido de apresentar relato da intuição), e seus projetos tos em obediência e embala seus agentes em autojustificação, apre-
mais vigorosos e imaginosos estiveram ladeados pelo desejo esma- sentando-se como auto-sacrifício em nome da "vida e salvação do
gador do amor de escapar de sua própria fragilidade, de segurar firme- rebanho". Mas em ocasiões não muito raras eles substituem uma
mente o seu objeto, amável porque misterioso e inabarcável, em vez evasiva agradável por uma fria e implacável crueldade com que "os
de "meramente" acariciá-lo. Curiosamente, foi demasiado para os melhores interesses" dos outros lhes são empurrados por suas gar-
legisladores éticos elevar a proclividade natural do amor às alturas gantas. O que quer que seja, as emoções se foram. A receita utilitá-
de um princípio abstrato, e chamar depois os agentes a seguirem o ria para a felicidade universal difere de cuidado amoroso da mesma
princípio antes que suas proclividades, a atingirem (em teoria, e na forma que a última lista de distribuição beneficente de comida dife-
prática precedida pela teoria) precisamente isso: a aparição fantas- re do partilhar uma refeição. Na escalada aos padrões do cuidado
magórica do amor depois da morte; galvanização do cadáver, com o rotineirizado, o amor é o primeiro peso a se lançar ao mar.
aguilhão dos princípios, na imitação espectral dos movimentos ou- A fixação não é calamidade não-diluída, porém; não para todos,
trora feitos pelo corpo vivo inspirado pelo impulso amoroso. Nenhu- em todo caso. Para muitos recipientes de serviços que o amor pode
ma outra filosofia ética realizou a façanha de maneira mais comple- prestar, a rotina fixada pode constituir verdadeiro abrigo, talvez o
ta que o utilitarismo, que faz da original intenção do amor — o cuida- único abrigo contra as fantasias do amor. Para um lado mais fraco
do pela felicidade do Outro - o preceito dominante de toda ação racio- do relacionamento de amor, a escolha pode ser não entre o corpo vivo
cinada. Na outra face dele, o utilitarismo ergueu andaime de aço e o esqueleto do amor, mas entre ser amado (de qualquer forma ou
para firmar o edifício frágil construído sobre os impulsos do amor. maneira) e ser abandonado. O amor é, como lembramos, um relacio-
Mas somente em face dele. Como se expressa no veredicto de Stuart namento inerentemente precário para qualquer envolvido; mas ra-
Hampshire, ramente é o grau de precocidade igual para os dois lados. Ambos os
parceiros passam perpetuamente pelos tormentos da incerteza, se
o sentido original da soberana importância dos seres humanos, e de seus sen- bem que com toda probabilidade um deles se sinta ainda mais inse-
timentos, converteu-se por exagero em seu oposto; um sentido segundo o qual
estes fins originais da ação constituem, ou podem tornar-se em breve, proble- guro que o outro; para o parceiro menos seguro, o compromisso de
mas relativamente manejáveis na ciência aplicada ... cuidado rotineirizado e fixado em normas pode ser mal menor. Pode-
O hábito utilitário da mente acarretou uma nova crueldade abstrata na políti- se, argumentar, portanto, que a rotineirização do elemento de cuida-
ca, uma probidade sombria e destrutiva.30 -
do presente no amor (todavia não o próprio amor; o amor, como vi-
O suave toque do amor torna-se garra de aço do poder. Nada, mos, não suporta nenhuma rotina) carrega certa proteção para o
exceto o vocabulário (ou, mais exatamente, a retórica) do amor e do fraco (é por essa razão que o forte, em geral, resiste a ela e recusa-se
cuidado sobreviveram à transformação. "Cuidado pelo outro", "fazê- a aceitá-la senão forçado). Injetar o volátil impulso erótico com a
lo por causa do outro", "fazer o que é melhor para o outro", e ditos mistura solidificante das leis matrimoniais, ou atar os impulsos
semilares, os motivos do amor são agora fórmulas legitimantes da parentais com as normas que definem os deveres familiares, são os
dominação. Na maior parte do tempo, elas acompanham burocratica- casos mais evidentes quanto ao tema. Pode-se esperar que não será
mente rotinas simplificadas de limpeza-de-consciência: o que aqui o fraco a aceitar de bom grado a estratégia alternativa, a estratégia
da flutuação, como o remédio contra a incerteza do amor.
30
Stuart Hampshire, "Morality and pessimism", em Public andprivate morality, org. Stuart A flutuação é a proposta que mais diz aos ouvidos do forte. Ela
Hampshire, Cambridge University Press, 1978, pp. 3, 4. Nas mãos de filósofos utilitários, a suaviza os tormentos do amor abaixando as apostas e permitindo
moralidade torna-se, diz Hampshire, "uma espécie de engenharia física que mostra a maneira
de induzir estados mentais desejados ou valorizados". saída antes de as coisas se tornarem insuportavelmente quentes. O
120 121
amor é alegria contínua, mas também sacrifício contínuo; a flutuação importantes (importantes porque articulados, barulhentos, lança-
promete preservar a primeira sem precisar pagar o pesado preço do dores de modelos). É essa experiência que fornece o material para a
segundo. Ou, melhor dizendo, ela limita os pagamentos ao tempo em análise de Giddens, que, naquela "dupla hermenêutica" que, como
que alegrias, recebidas ou ainda esperadas, continuam excedendo a Giddens explicou em suas obras anteriores, é obra da sociologia, co-
pena dos gastos. E aplica-se isso igualmente aos dois parceiros: am- loca-se a tarefa da hermenêutica "de segundo grau". (Se a palavra
bos assumem livremente o relacionamento, e cada qual é livre para inglesa "experience" não tivesse nivelado os dois sentidos que a lín-
optar sair. Igualdade é certamente neste caso a ideologia do parceiro gua alemã separa, poderíamos dizer que o método de Giddens é le-
mais forte e não passa de auto-engano do mais fraco. O relaciona- vantar o Erleben notoriamente inefável dos agentes ao nível da
mento de amor só se pode criar se ambos os parceiros consentirem; Erfahrung, onde pode ser discursivamente articulado e, por assim
para terminá-lo, porém, basta a decisão de um dos parceiros. Os sen- dizer, "racionalizado"). Naquela experiência primária, que oferece o
timentos e os desejos do outro parceiro não contam mais. A flutuação recurso e o tema para a análise de Giddens, as considerações morais J
não constitui nenhuma cura para a dominação, a armadilha cons- fazem-se de fato notar por sua ausência. É uma das mais impressio-
tante do amor. nantes características da intimÍdãde_Rflsjãoderna. que^a espécie
Em recente estudo de Anthony Giddens encc-ntramos o mais de intimidade buscada e praticada por homensjijmujheres _quejie-
abrangente levantamento e a mais coerente análise até o momento" vam o estilo de vida pós-moderno, que ela tenda a se libertar de
das tencfênTíiãFcontemporâneas nas formas do amor. Ele aponta com compu}sõ"es"inõrãTFde que se conhece que ao mesmo tempo motivam
precisão o lugar, cada vez mais importante, ocupado pela flutuação e cdfljem-a- r
(não termo de Giddens) entre as estratégias de amor prevalentes Podemos dizer que, por analogia com a ciência, que estabeleceu
sob as condições contemporâneas, dos fins dos tempos modernos e sua identiHãde~médiãnte proibição e eliminação (mediante banir de
do pós-modernismo. A prática da flutuação é bem apreendida por sua linguagem todos os termos teológicos), a experiência pós-moder-
dois conceitos de Giddens: puro relacionamento, e amor confluente. na da intimidade deriva sua identidade do eliminar toda referência
a deveres e obrigações morais.. Com_efêito, j)ara_a experiência de
Um puro relacionamento nada tem a ver com pureza sexual, constituindo con-
ceito limitante mais que apenas conceito descritivo. Refere-se a uma situação intimidade ser pós-moderna, o critério de "o que pode^
em que se entra numa relação social por causa dela mesma, pelo que pode por cada pessoa da associação" deve ser bastante para dar conta
provir para cada pessoa de uma associação mantida com o outro; e que é con- dos casos delnTimidãdé,~ muito semelhante ao critério de que "o que
tínua apenas na medida em que ambas as partes pensam que ela proporciona é o cãüõ" devia ser o solo a se usar para a representação da realida-
satisfação bastante para cada indivíduo permanecer dentro dela ...
Amor confluente é amor ativo, contingente e, por isso, luta com as qualidades de "séFcientífica. E, assim, "haurir satisfação" por parte de cada par-
"para sempre", "um só e único" do complexo do amor romântico.31 ceiro ~è o sentido de o relacionamento ser "por causa de si mesmo",
7 Em nenhuma das duas definições há referência a motivos mo- e a única justificação que se pode dar para manter viva a relação
rais ou significado ético (na verdade, não achamos os verbetes "éti- íntima.
ca" ou "moralidade" no índex aliás escrupulosamente minucioso do Basicamente se trata de reprodução do conceito platônico de
livro dedicado às correntes transformações da intimidade). E justa- philia (um relacionamento que comprime numa só coisa o que hoje
mente, visto que o "puro relacionamento" e o "amor confluente" des- chamamos de amor e amizade), que afirmava que um objeto adequa-
tinam-se a servir de urdidura e trama na rede conceituai em que se do de afeição deve ser útil ao sujeito da afeição, "útil" no sentido de
poderia captar melhor certa experiência contemporânea importan- proporcionr o que de outra forma faltaria ao sujeito; um homem su-
te, ou seja, a hodierna experiência de alguns homens e mulheres ficiente por si mesmo, ou seja, um homem a quem nada falta, conse-
qüentemente não amará ninguém. Também uma pessoa, cujas ne-
31
Anthony Giddens, The transformation ofintimacy: Sexuality, love and eroticism in modem
cessidades foram satisfeitas (ou cujo objeto de afeição parou de pro-
societies, Polity Press, Cambridge, 1992, pp. 58, 61. porcionar os bens que lhe faltam, não tem razão nenhuma para dar
122 123
T
continuidade a seu amor.32 (É isso exatamente o que quero dizer filhos, afetados muito obviamente pelos altos e baixos do "amor con-
aqui por "flutuação do amor"). O "puro relacionamento" de Giddens fluente" de seus pais). O jneu amor temQms£miências,ejeujEiSjSiceito-.~
é puro não só pelo fato de ser emancipado (na autoconsciência dos junto comjts responsjtbilidades novas e crescentesuque decorrem^A,
parceiros, mesmo se não objetivamente) das funções sociais a que se forníãTpos-moderna de intmüdade^sóé^posgíyel, porém. com_a condi-
pensava outrora servirem relações íntimas, mas também, e eu diria ção^lê~se negar essejmcadeamento dejxmseqüências, QUjde_se_lhe_
primariamente, pelo fato de neutralizar impulsgsjngrais e também recusãrjsignificajio conativo,joude!Sje rejeitar sua_autoridade^
eliminar considerações morais das definições dos parceiros^ de suas Relações puras (porque são puras no sentido acima) e o amor
considerações acerca deüüà intimidade. "Puro relacionamento", su- confluente (porque é confluente) são por natureza "vividos" como
germa ê!I7ea intimidade de pessoas que suspendem sualcfentidãcTé episódicos, por mais tempo que afinal possam durar. Ser vivido como
de suJBtos mõTãlsHüfãdouramente. "Éuro relacionamento" é intimi- episódicos significa, certamente, que não se assumemj^té que a morte
dadB~dFsêticizidà. nos^separe^,^endo_adtninistrados de acordo; que se pensam como
Aquilo de que o relacionamento-em-busca-de-pureza desemba- tend^põjtõ final iminente, embora,nãp-definidornojnoménto^e^air;
raça-se em primeiro lugar são os laços do dever moral: aquele ato são em^ojd^o^mpmento^de sua duração apenas "até segundo aviso".
constitutivo de toda moralidade, minha (ilimitada) responsabilida- Mas ser episódico significa também algo mais: a saber, que o que
de pelo Outro. Somente quando a responsabilidade se desembaraça quer que hoje aconteça não amarra o futuro, que nada de sólido está
desses laços é que se pode buscar e praticar a fuga das aporias do sedimentado, que o estar-juntos dos parceiros não se "acumula" com
amor pelo expediente da flutuação. Em minha responsabilidade pelo o tempo, exaurindo-se, ao invés, inteiramente nas intimidades de
outro, ser responsável por meu impacto sobre o Outro desempenha momentos presentes sucessivos. Ser episódicos significa, em outras
papel na verdade decisivo e unitivo. Há os efeitos de meu próprio palavras, não ter^^nenhuma_canse,qüencia,4Íelo»menos-nenhuma^^ con-
"estender-me para fora", de meu toque de carinho, a serem consi- seqüênciadwradozíra^is^p_é,jconseqüência que dure mais tempo que
derados; posso ter solicitado reciprocidade no amor, posso ter conse- o "obter satisfação").
guido abrir meu parceiro para mim, posso ter feito meu parceiro A ambivalência da fixação, como vimos antes, consiste em de-
dependente de minha resposta à sua resposta ao meu carinho. Deste senvolver simultaneamente as perspectivas de segurança e de de-
modo minha responsabilidade cresce em vez de diminuir no itinerá- pendência à maneira de escravo. A ambivalência "da flutuação con-
rio de seu exercício; as exigências morais crescem ao se lhes obede- siste, pelo contrário, em combinar a promessa de liberdade com o
cer, da mesma forma que o apetite cresce com o comer. O traço deixa- espectro da insegurança. Com muita freqüência, a reobtenção da li-
do pela história do amor condensa-se e amplia-se com o tempo e fica berdade por um parceiro tem o efeito de terremoto nas oportunida-
cada vez mais difícil apagá-los. Meus deveres morais para com o des do outro parceiro. Amor flutuado deixa em sua esteira denso
parceiro no amor multiplicam-se e crescem como conseqüência de precipitado de miséria.
meu amor. Eu sou responsável pelos efeitos de meu amor (e isso Mas a utilidade da flutuação repousa não só na possibilidade de
mesmo se eu deixar fora de conta, como os parceiros de um "puro escapar unilateralmente do embaraço de um amor que se sente ser
relacionamento" fazem com freqüência, minha responsabilidade pe- demasiado angustiante; se isso fosse a única coisa que a flutuação
los efeitos "colaterais" que meu amor produziu - como, por exemplo, pudesse fazer, a fuga não seria nem proposta atraente nem verda-
deira fuga em absoluto, visto que o preço em termos da responsabili-
32
dade moral ferida (que pode ser silenciada pelas convenções do amor
Cf. A. W. Price, Love and friendship in Plato and Aristotle, Clarendon Press, Oxford, confluente, mas nunca verdadeiramente apagada) seria demasiado
1989, pp. 4-6. A interpretação baseia-se principalmente no texto de Lísias. Segue também —
indiretamente — do mesmo texto que, segundo Lísias, as pessoas mais semelhantes umas às alto para valer a pena tentar os ganhos. A utilidade da flutuação é
outras são também as mais cheias de inimizade, rusgas e ódio, a afeição - realizada uma vez real somente se o direito a renúncia unilateral estender-se para a
sua "função" (isto é, saciadas as necessidades do sujeito da afeição) - tenderá a se converter
em inimizade mútua dos antigos parceiros; se eram diferentes ontem, são semelhantes hoje... natureza moral da relação; se, em outras palavras, cada parceiro

124 125
T
puder não só terminar o relacionamento de amor, mas também anun- de que tal é o caso chega, como o Messias de Kafka, um dia depois de
ciar a insigniíicância moral do ato, junto com a insignificância moral sua chegada.
do Outro agora afastado. No fim do amor confluente, tal condição de Estimamos falhas as duas estratégias de se escapar da aporia
irrelevância moral só se pode estabelecer por um ato que em si mes- do amor. Sua própria ambivalência (medida pela ambivalência de
mo é imoral. Como Lévinas muitas vezes insistiu, a justificação das seus efeitos, antecipados ou não) não é menos intensa e incômoda
dores do Outro é o começo e o caroço duro de toda imoralidade;33 e as que a ambivalência que eles se esforçam para resolver ou pelo me-
convenções do puro relacionamento constroem-se de tal forma a per- nos mitigar. Cada remédio comprovou-se de mais a mais eficaz no
mitirem o direito à liberdade de escapar para justificar a dor da pes- tratamento de um mal particular, evidenciando-se, porém, como le-
soa de que se fugiu. Do outro lado ou além dos confins do amor con- tal para o amor como todo. A fixação alarga a vida de amor, mas
fluente, estende-se o mundo em que regras de etiqueta e normas de apenas na forma de aparição pairando sobre a tumba; ao passo que
procedimento substituem os impulsos morais, e em que muitos atos a flutuação cancela o laço irritante entre estabilidade e não-liberda-
diários não são elegíveis para condenação moral. Para os amantes, de à custa de impedir o amor de visitar as profundezas que ele, aliás
porém, a única vereda àquele mundo passa pela crueldade de um alegremente, se bem que perigosamente, intui. Parece que não pode
ato imoral. sobreviver o amor às tentativas de curar sua aporia; que ele pode^
Notemos que, embora seja a dor que recai sobre o Outro, e so- perdurar, como amor, somente em sua ambivalência. Com o amor,
mente aquela dor que se considera como "o preço" de se terminar o como com a própria vida, é a mesma novela de novo: somente a mor-
caso, aliás justificada em termos da emancipação do eu, o eu não te é sem ambigüidade, e a fuga da ambivalência é a tentação de
emerge necessariamente do caso de amor como irrestritamente ga- Thánatos. /•> / __— ,
nhador. A saída de um amor confluente é por definição unilateral, r y U-\TO
mas para entrar numa relação de amor confluente requerem-se dois
- e é o volume e a qualidade de recursos disponíveis a cada um que
determinam a oportunidade sucesso. A negação do encadeamento de
conseqüências - a pretensão de que um amor confluente não empe-
nha o futuro - é decepção de dois gumes: uma enganosa consolação
para o parceiro abandonado, mas também uma auto-ilusão para aque-
le que abandona. O não-encadeamento das conseqüências só é credível
junto com a crença conseqüente de que a soma de alternativos "amo-
res confluentes" não diminui com o tempo; mas essa última crença
constitui erro potencialmente custoso. O "puro relacionamento", um
relacionamento sem "nenhum laço agregado", sem nenhum dever
mútuo e sem nenhuma garantia de duração, parece ser oferta de que
não se vê nenhuma razão para recusar enquanto a soma de alterna-
tivas parece inexaurível. A riqueza da soma, porém, não passa do
reflexo da amplidão dos próprios recursos de alguém; assim como se
encolhem os recursos, como inevitavelmente se encolhem com a ida-
de, assim também se encolhe a soma. No entanto, o descobrimento

33
Compare, por exemplo, The provocation of Lévinas: Rethinking the Other, org. Robert
Bernesconi e David Wood, Routledge, 1988, p. 163.

126 127
BAUMAN, Zygmunt. A Ética é possível num mundo de
consumidores? Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 115-148.
· 3 ·

Liberdade na era líquida moderna

O jogo segue em frente, não importa o que façamos, anotou Günther


Anders pela primeira vez em 1956, embora tenha continuado a repetir isso
até o fim do século, em edições sucessivas de A antiguidade do homem:
“Quer joguemos ou não, o jogo está sendo jogado conosco. O que quer que
façamos ou nos abstenhamos de fazer, nossa retirada não irá mudar nada.1
Meio século depois, ouvimos as mesmas preocupações expressadas por
grandes pensadores do nosso tempo. Pierre Bourdieu, Claus Offe e Ulrich
Beck podem diferir consideravelmente em suas descrições deste mundo que
joga conosco, compelindo-nos, do mesmo modo, a participar de um
imaginário jogo de “livres” participantes – mas todos eles lutam para
alcançar em suas empreitadas descritivas o mesmo paradoxo: quanto maior
nossa liberdade individual, menos pertinente ela é para o mundo em que a
colocamos em prática. Quanto mais tolerante o mundo se torna em relação
às escolhas que fazemos, menos o jogo, o fato de jogarmos e o modo como
jogamos estão abertos à nossa escolha.
O mundo não se mostra mais dócil para amassar e moldar; em vez disso,
ele parece nos ofuscar – pesado, espesso, inerte, opaco, impenetrável e
inexpugnável, inflexível e insensível a qualquer de nossas intenções,
resistente a nossas tentativas de torná-lo mais hospitaleiro para a
coexistência humana. A face que ele nos apresenta é misteriosa e
inescrutável, como o rosto dos mais experimentados jogadores de pôquer.
Não parece haver alternativa alguma para este mundo. Nenhuma
alternativa que nós, os jogadores, por nossos esforços deliberados, isolada,
separadamente ou juntos pudéssemos pôr em seu lugar.
Extraordinário. Desconcertante. Quem esperaria por isso? Pode-se apenas
dizer que durante os últimos dois ou três séculos, desde o grande salto de
autonomia e de autodeterminação humanas identificado de formas variadas
como “Iluminismo” ou “advento da Era Moderna”, a história seguiu numa
direção não planejada, não prevista, indesejável. O que torna esse caminho
tão impressionante e desafiador para nossa compreensão é que esses dois a
três séculos começaram com a resolução humana de conduzir a história sob
administração e controle humanos – mobilizando para esse fim, tido como a
mais poderosa das armas humanas (uma habilidade humana sem falhas para
conhecer, predizer, calcular e, com isso, elevar o “é” ao plano do “tem que
ser”); e esse tempo foi preenchido por um diligente e engenhoso esforço
humano para atuar segundo essa resolução.
Na edição de abril de 1992 da Yale Review, Richard Rorty relembra a
melancólica confissão de Hegel, de que a filosofia é, no limite, “seu próprio
tempo apreendido no pensamento”. Eu poderia acrescentar: é isso que, de
um modo ou de outro, a filosofia se esforça por fazer – apreender seu
tempo, conter seus inquietos e caprichosos solavancos num leito esculpido
firmemente em pedra com o afiado cinzel da lógica afixado no cabo da
razão.
“Com Hegel”, sugere Rorty, “os intelectuais começaram a trocar as
fantasias de conquistar a eternidade pela de construir um futuro melhor.” Eu
poderia acrescentar: eles esperavam primeiro aprender por onde o rio do
tempo fluía, e chamaram a isso “descoberta das leis da história”. E,
desapontados e impacientes com a lentidão da corrente e as voltas e voltas,
mais tarde decidiriam tomar as decisões para si: endireitar o curso do rio,
revestir as margens de concreto para prevenir transbordamento, selecionar o
estuário e arranjar a trajetória que o rio do tempo deveria seguir. Eles
denominaram isso “projetar e construir uma sociedade perfeita”. Até
quando fingiam humildade, os filósofos mal podiam esconder sua
autoconfiança. De Platão a Marx, sugere Rorty, esses pensadores
acreditavam que “deve haver extensos caminhos teóricos para se descobrir
como dar fim à injustiça, em vez de pequenos caminhos experimentais".2
Não acreditamos mais nisso, e poucos de nós estaríamos preparados para
jurar que ainda cremos, embora muitos busquem desesperadamente abafar a
humilhante descoberta de que nós, os intelectuais, afinal podemos não ser
nada melhores que nossos concidadãos para apreender nosso próprio tempo
no pensamento. A descoberta de que o tempo se recusa com obstinação a
manter obediente o leito esculpido pela razão; de que ele sem dúvida
quebraria qualquer receptáculo de pensamento destinado a contê-lo; de que
nenhum mapa foi ou poderá ser traçado para mostrar esse leito; e de que
não há nenhum lago ou mar chamado “sociedade perfeita” no distante final
de seu fluxo – quer dizer, se houver final para esse fluxo.
Rorty, pelo menos uma vez, se alegra com a perda de autoconfiança dos
intelectuais e dá boas-vindas à nova modéstia que necessariamente viria a
seguir. Ele deseja que os intelectuais admitam – para os outros e para si
mesmos – que não há “nada em particular que nós saibamos e todo mundo
também não saiba”. Ele quer que eles “se libertem da ideia de que sabem,
ou deveriam saber, algo sobre forças profundas, sub-reptícias – forças que
determinam os destinos das comunidades humanas”. Ele quer que eles
recordem a observação de Kenneth Burke: “O futuro realmente é
descoberto descobrindo-se aquilo sobre o que as pessoas podem cantar.”
Mas também que se lembrem da sóbria, saudável, advertência de Václav
Havel de que em qualquer ano tomado ao acaso provavelmente não se
poderá adivinhar que canções serão entoadas no ano seguinte.

Se um dia já houve, como insiste Jürgen Habermas, um “projeto de


modernidade”, ele foi a intenção de substituir a heteronomia humana
coletiva e individual por uma autonomia também coletiva e individual (da
espécie humana em relação aos perigos e contingências da natureza e da
história, das pessoas humanas em relação às pressões e aos
constrangimentos externos e artificiais). Essa autonomia de duas pontas
representou a esperança e a expectativa de que ela produziria e asseguraria
uma liberdade de autoafirmação também de dois níveis, individual e com as
dimensões da espécie. Esperava-se que as duas linhas de frente na guerra
pela autonomia fossem profundamente interdependentes. A autonomia da
humanidade servia para assegurar e proteger a dos indivíduos, enquanto os
indivíduos, uma vez autônomos e livres para pôr em atividade seus poderes
racionais, se encarregariam de que a humanidade ciosamente vigiasse sua
recém-adquirida autonomia e a explorasse para promover e proteger a dos
indivíduos.
Se um dia já houve projeto de Iluminismo, ele serviu de envoltório para a
ideia de emancipação. Antes que a liberdade tivesse chance de introduzir a
humanidade e todos os seus membros no mundo da autonomia e da
autoafirmação, essa humanidade precisava ser libertada da tirania. Para
desamarrar suas mãos e permitir que celebrasse o emparelhamento entre
razão humana e história humana, a humanidade teve de ser liberada da
escravidão física e espiritual – da escravidão física que impedia os homens
de fazer o que eles fariam caso tivessem permissão a fim de desejar
liberdade para seguir seus desejos; e da escravidão espiritual que impedia
os homens de serem guiados pela razão em seus desejos, e de desejar,
assim, o que deveriam ter desejado (desejando o que serviria melhor a seus
interesses e à sua natureza humana).
Tenha a coragem de fazer uso de seu próprio entendimento! Este é o lema
do Iluminismo, escreveu Kant. A máxima do pensar de forma autônoma –
isso é o Iluminismo. Para Denis Diderot, o ser humano ideal era alguém que
ousava pensar por si próprio, passando por cima do preconceito, da
tradição, da antiguidade, das crendices populares, da autoridade – em suma,
por cima de tudo que escraviza o espírito. E Jean-Jacques Rousseau
convocou seus leitores a agir de acordo com as máximas de seus próprios
julgamentos. Pensava-se que, uma vez que essas convocações à liberdade
espiritual fossem escutadas, de fato ouvidas e obedecidas, viria o fim da
escravidão física, mas a condição de escuta e obediência às chamadas à
autonomia espiritual era justamente a abolição da escravidão física. E,
assim, a briga contra a infâmia do preconceito e da superstição tem de
seguir de mãos dadas com a luta contra o ultraje do despotismo político.
Nesse segundo front, a cidadania, a República e a democracia são as
principais armas. Na síntese de Alexis de Tocqueville para o capítulo
político da emancipação inspirada pelo Iluminismo, tentar libertar os
indivíduos do domínio arbitrário de um déspota, enquanto os deixa à mercê
de seus próprios e privados instrumentos e preocupações (condição descrita
por Isaiah Berlin como liberdade negativa), simplesmente não funcionará;
mais que qualquer outra coisa, é necessário haver liberdade positiva: o
direito de e a disposição para se associar a seus concidadãos, para tomar
parte dos assuntos da arena política comum – em particular, legislar.
Autonomia coletiva significa não obedecer a qualquer regra, exceto as
decididas e tornadas obrigatórias por aqueles que se espera que as
obedeçam. A dupla vitória em ambas as frentes levaria – ou pelo menos era
nisso que todos os citados pais espirituais da modernidade acreditavam – a
um mundo transparente, previsível, manejável e amistoso ao uso, um
mundo hospitaleiro à humanidade dos homens.
Mas não foi isso que aconteceu. Dois a três séculos depois, o mundo que
habitamos ainda é tudo, menos transparente e previsível. Nem é um lar
seguro para a espécie humana, muito menos para a humanidade. Pode-se
concordar com Habermas, que o projeto do Iluminismo está inconcluso.
Mas esse estado de incompletude do projeto, sem dúvida, não é uma
descoberta nova. Novidade, mesmo, é que hoje já não acreditamos que o
projeto possa ser concluído. E mais uma novidade: muitos de nós, talvez a
maioria de nós, não ligamos muito para isso. É por causa dessas duas
novidades que alguns de nós vivemos uma inquietação com o fato de que a
liberdade, compreendida como a autonomia de uma sociedade de
indivíduos autônomos, se encontra em tempos difíceis – tempos nada
confortáveis e nada convidativos.
Meio século atrás, Anders demonstrava preocupação com a ideia de que,
muito possivelmente, seus contemporâneos se dedicavam a construir um
mundo para o qual eles não encontrariam saída, um mundo que eles não
tinham mais o poder de compreender, imaginar e absorver de forma
emocional. É possível, hoje, que aquilo que há meio século pôde ser tratado
como premonição desordenadamente sombria, talvez sombria demais, tenha
desde então adquirido o grau de uma declaração de fé pública e exija um
apoio cada vez mais ampliado, quando não universal.

Quando foi pela primeira vez proclamado, em meio ao cativante furor


revolucionário na França, o lema Liberté, Égalité, Fraternité era a sucinta
declaração de uma filosofia de vida, uma carta de intenções e um grito de
guerra, tudo isso no mesmo pacote. A felicidade é um direito humano, por
isso a busca da felicidade é uma inclinação humana natural e universal;
assim, tornou-se um pressuposto tácito, factual, da filosofia – e para
alcançar a felicidade, os homens precisavam ser livres, iguais, e realmente
fraternos, uma vez que, na irmandade, a mútua simpatia,a o auxílio e a ajuda
de irmãos são direitos de nascimento, não privilégios que precisam ser
conquistados e demonstrados como conquistas, nem serem considerados
concessões.
Como John Locke memoravelmente argumentou,3 mesmo que “haja
apenas um” caminho para a felicidade eterna a ser escolhido e perseguido
pelos homens (o caminho da devoção e da virtude, levando à eternidade no
céu, como séculos de memento mori [“lembra-te de tua mortalidade”]
ensinaram as pessoas a acreditar), “ainda se duvida qual é o certo, entre a
grande variedade de trajetórias que os homens tomaram. Ora, nem o
cuidado da comunidade nem o direito de decretar leis revelam essa via que
conduz ao céu, com certeza maior para o magistrado, que o exame e o
estudo de cada homem em particular revela para si mesmo”.
A insistência de Locke na busca da felicidade como o propósito
principal, simultâneo, das empreitadas de vida individuais e da associação
de indivíduos numa comunidade raras vezes foi questionada ao longo da
Era Moderna. Na maior parte desse período, a raça humana também não
questionou a ideia de que liberdade, igualdade e fraternidade eram tudo de
que os homens precisavam para serem capazes de perseguir sua felicidade,
desimpedidos e imperturbados. Ou seja, para buscarem a felicidade –
embora não necessariamente para atingi-la; a descrição de Locke era em
grande parte uma versão terrena, mundana, “deste mundo”, da incerteza de
Lutero ou Calvino a respeito da resolução final do dilema salvação ×
danação.
Mas seja em sua versão de outro mundo seja na deste, a busca da
felicidade em si, mais que um certo summum bonum (bem supremo) a
espreitar na outra – e até onde sabemos, teimosamente indeterminada –
ponta da estrada, era o que oferecia a verdadeira felicidade. Esta se igualou
à liberdade de experimentação: a liberdade de dar passos certos e errados,
para ter sucesso e falhar, para inventar, experimentar e testar cada vez novas
variedades de experiências aprazíveis e agradáveis, para escolher e correr o
risco de errar. A infelicidade significava ter barrada essa liberdade; ser
privado do direito de escolher livremente; e, em vez disso, por bem ou por
mal, à força ou por fraude, se ver “protegido” de escolhas erradas.
Dois pressupostos tácitos (desde então vistos como patentes),
axiomáticos, deram suporte a esse projeto tripartite. O programa de
liberdade, igualdade e fraternidade implicava, literalmente, que era dever da
comunidade prover e salvaguardar as condições favoráveis para a busca da
felicidade entendida como tal. A busca da felicidade era um assunto, uma
preocupação, um destino e um dever individual, algo a ser conduzido
individualmente; cada um e todo indivíduo mobilizavam recursos possuídos
ou administrados em termos individuais, mas o chamado para a busca da
felicidade foi endereçado da mesma forma a indivíduos e a sociedades; se
esse chamado seria respondido adequadamente, isso é algo que depende da
forma daquilo que chamamos “commonwealth” ou “comunidade”b – a
sociedade entendida como o lar compartilhado e uma conjunta preocupação
e produção de les hommes et les citoyens, os homens/os cidadãos.
A outra suposição axiomática não dita, mas amplamente aceita, era a
necessidade de se conduzir a batalha pela felicidade em duas frentes.
Enquanto os indivíduos precisaram conquistar e desenvolver a arte de levar
uma vida feliz, os poderes que davam forma às condições sob as quais essa
arte poderia ser praticada tiveram eles próprios de rever suas formas na
direção de algo mais “amigável ao uso dos praticantes”. A busca da
felicidade não tinha nenhuma chance de se elevar ao grau de um direito
genuinamente universal, a menos que aqueles poderes tomassem conta de
maneira adequada dos parâmetros da “boa sociedade” – e a igualdade e a
fraternidade eram os mais preeminentes e decisivos.
Foi esse pressuposto de ligação íntima e inquebrável entre a qualidade da
commonwealth e as possibilidades de felicidade individual que perdeu, ou
vem perdendo, depressa seu domínio axiomático sobre o pensamento
popular, assim como sobre os produtos de sua reciclagem intelectualmente
sublimada. Talvez por essa razão, as supostas condições de felicidade
individual estão sendo deslocadas para longe da esfera supraindividual da
Política com p maiúsculo, para o domínio das políticas de vida individuais,
postulado como um campo de empreendimentos sobretudo individuais, no
qual os tipos de recursos mais mobilizados, se não aqueles mobilizados com
exclusividade, são aqueles individualmente comandados e administrados.
A mudança reflete as variáveis condições de vida resultantes de
processos líquidos modernos de desregulamentação e privatização (ou seja,
de “subsidiarização”, “terceirização”, “subcontratação”, ou de alguma
forma de renúncia das sucessivas funções antes assumidas e executadas
pelas instituições do estado de direito). A fórmula que agora emerge com a
(inalterada) finalidade de buscar a felicidade pode ser mais bem expressada
passando-se de Liberté, Égalité, Fraternité para Sécurité, Parité, Réseau
(segurança, paridade, rede).
O verdadeiro trade-off c chamado “civilização” voltou ao ponto inicial,
encerrando um ciclo completo, em 1929, quando Sigmund Freud, em O
mal-estar na civilização, apontou pela primeira vez o cabo de guerra e o
quiprocó entre os dois valores que lhe são mais indispensáveis e caros, mas
que incomodamente resistiam a se conciliar. Em menos de um século, o
contínuo progresso em direção à liberdade individual de expressão e
escolha alcançou um ponto no qual o preço pago por esse progresso, a
perda de segurança, começou a ser visto por um número cada vez maior de
indivíduos liberados (ou indivíduos deixados soltos, sem que lhes
perguntassem se queriam isso) como algo exorbitante, insustentável e
inaceitável. Os riscos envolvidos na individualização e na privatização da
busca pela felicidade, unidos ao gradual mas regular desmantelamento das
redes de segurança societalmente projetadas, construídas e mantidas, e das
garantias societalmente endossadas contra o infortúnio, provaram-se algo
enorme; e a aterrorizante incerteza daí resultante, um verdadeiro fantasma.
O valor chamado “segurança” é aquele que empurra a liberdade para fora.
Uma vida imbuída de um pouco mais de certeza e segurança, ainda que
compensada por uma liberdade de alguma maneira menos pessoal, de
repente ganhou em poder de atração e sedução.
“Os tempos modernos”, como disse Albert Camus, “desabrocham em
meio ao estrondo de muralhas.”4 Como sugere Ivan Karamázov, de
Dostoiévski (seguindo e conduzindo a integralização do legado de uma
longa cadeia de pensadores, iniciada pelo menos com Pico della Mirandola,
o arauto renascentista da onipotência divina do homem), como a criação
divina era declarada falha, e a imortalidade, uma noção nebulosa, o “novo
homem” tem permissão para e é exortado e empurrado a “tornar-se Deus”.
No entanto, ensaios desse novo papel demonstraram-se inconclusivos e
sobretudo muito menos agradáveis que o esperado. Tatear no escuro sem
uma bússola confiável ou um mapa oficialmente endossado parecia
carregado de agudos desconfortos, dificilmente compensados pelas
esporádicas, breves e frágeis alegrias da autoafirmação. E, assim, o Grande
Inquisidor descobriu que os homens preferem a libertação da
responsabilidade à liberdade de indicar e manter separados o bem e o mal.
Quanto mais avança o progresso dessa liberdade humana, com seus
requisitos de risco e responsabilidade, mais intensamente aumenta o
desagrado humano com a crescente insegurança e indeterminação; e como a
segurança levou vantagem na atração percebida e no valor atribuído, os
privilégios da liberdade perderam muito de seu esplendor. Freud
provavelmente inverteria seu já secular veredicto e atribuiria os males e
doenças psicológicas atuais às consequências de trocar uma medida muito
grande de segurança em prol de maior liberdade.
Na constelação de condições (e também de perspectivas esperadas) para
uma vida decente e agradável, hoje a estrela da paridade brilha cada vez
mais luminosa, enquanto a da igualdade fenece. De modo enfático,
“paridade” não é “igualdade”; ou melhor, é uma igualdade reduzida à
habilitação para o reconhecimento, ao direito de estar e de ser deixado em
paz. A ideia de nivelar por cima riqueza, bem-estar, comodidades e
perspectivas da vida e, ainda mais, a ideia de partilhar parcelas iguais na
corrida da vida comum e nos benefícios que ela tem a oferecer estão
desaparecendo das agendas políticas, agora cheias de postulados realistas e
objetivos. Todas as variedades de sociedade líquida moderna estão cada vez
mais reconciliadas com a permanência da desigualdade econômica e social.
A imagem de condições de vida uniformes, universalmente compartilhadas,
é substituída pela da diversificação acima de tudo ilimitada; e o direito de se
tornar igual é substituído pelo de ser e permanecer diferente, sem ter por
isso negados a dignidade e o respeito.
As disparidades verticais no acesso aos valores universalmente
aprovados e cobiçados tendem a crescer em marcha cada vez mais
acelerada, encontrando pouca resistência e ativando, na melhor das
hipóteses, apenas medidas corretivas esporádicas, estreitamente localizadas
e marginais; enquanto isso, as diferenças horizontais se multiplicam,
superlouvadas, celebradas e várias vezes promovidas de forma ativa pelos
poderes político e comercial, assim como pelos produtores de ideias.
Guerras por reconhecimento ocupam agora o lugar que era das revoluções;
o que está em jogo nesses combates não é mais a forma do mundo que virá,
mas como ter um lugar tolerável e tolerado neste mundo; já não são mais as
regras do jogo o que está em questão, mas a simples admissão à mesa. É
nisso que afinal consiste a “paridade”, o avatar emergente da ideia de
justiça: o reconhecimento do direito de participar do jogo, suprimindo um
veredicto de exclusão ou repelindo a chance de esse mesmo veredicto ser
pronunciado no futuro.
Finalmente, a rede. Se a “fraternidade” sugeria uma estrutura preexistente
que predeterminava e predefinia as regras de estabelecimento da conduta, as
atitudes e os princípios de interação, as “redes” não têm história prévia: elas
nascem no curso da ação e são mantidas vivas (ou, melhor, contínuas,
repetitivas, recriadas/ ressuscitadas) apenas por sucessivos atos de
comunicação.
Ao contrário de um grupo ou qualquer outro tipo de “todo social”, uma
rede é atribuída ao e centrada no individual – o indivíduo é o foco, o hub,d
sua única parte permanente e irremovível. Presume-se que cada indivíduo
carrega sua própria e singular rede em ou ao redor de seu corpo, como um
caracol transportando sua casa. A pessoa A e a pessoa B podem ambas
pertencer à rede de C; entretanto, A pode não pertencer à rede de B, e B não
pertencer à de A – circunstância não permitida no caso de totalidades, como
nações, igrejas ou vizinhanças.
Entretanto, as características mais determinantes das redes são a
incomum flexibilidade de seu alcance e a extraordinária facilidade com que
sua composição pode ser modificada: itens individuais são adicionados ou
removidos sem um esforço maior do que o necessário para se digitar ou
apagar um número na agenda de um telefone celular. Os laços que
conectam as unidades da rede são gritantemente rompíveis, tão fluidos
quanto a identidade do hub daquela teia, seu único criador, proprietário e
gerente. Nas redes, o “pertencimento” se torna um (leve e inconstante)
sedimento de identificação. Ele é transferido do “antes” para o “depois” da
identidade e segue com presteza e pouca resistência as sucessivas
renegociações e redefinições da identidade.
Pelo mesmo motivo, relações fixadas e sustentadas pela conectividade no
estilo da rede se aproximam do ideal de uma “pura relação”, baseada em
laços unidimensionais e facilmente dissolvíveis, sem duração determinada,
liberados de fios que atem e aliviados de compromissos de longo prazo. Em
oposição acentuada aos “grupos de pertencimento”, sejam estes atribuídos
ou de adesão, uma rede oferece a seu proprietário/gerente o sentimento
reconfortante (ainda que nada factual) de controle total e seguro sobre suas
obrigações e lealdades.

Uma das observadoras e analistas mais precisas e inspiradas da mudança


intergeracional, e em particular dos novos estilos de vida dela oriundos,
Hanna Swida-Ziemba notou que as “pessoas de gerações passadas se
situavam tanto no passado quanto no futuro”. Para os novos jovens, os
contemporâneos, porém, ela diz que existe apenas o presente: “Os jovens
com quem falei durante a pesquisa que realizei entre 1991 e 1993
perguntavam: por que há tanta agressão no mundo? É possível alcançar uma
felicidade completa? Essas perguntas não têm mais nenhuma importância.”5
Hanna falava da mocidade polonesa. Mas, em nosso mundo de acelerada
globalização, ela encontraria tendências bastante parecidas qualquer que
fosse o país ou continente em que centrasse sua pesquisa. Os dados
coletados na Polônia – um país recém-emergido de longos anos de um
domínio autoritário que tinha artificialmente conservado modos de vida em
outras terras deixados para trás – apenas condensaram e permitiram
amplificar e observar as tendências mundiais, tornando-as mais gritantes e,
com isso, mais salientes e um pouco mais fáceis de notar.
Quando você pergunta “De onde provém a agressão?”, o que
provavelmente o impele a indagar é um desejo de fazer algo a respeito; é
porque se fica mobilizado por isso, desejando fazer cessar a agressão ou
responder que se deseja descobrir onde estão fincadas suas raízes. Deve-se
presumir que você esteja disposto a chegar até as regiões em que os
impulsos e esquemas de agressão são gerados e se desenvolvem, a fim de
incapacitá-los e destruí-los. Se essa suposição estiver correta, então você
terá de lamentar o fato de que o mundo é uma infusão de agressões e vê-lo
como algo desconfortável ou absolutamente impróprio para a vida humana;
e, por isso mesmo, iníquo e indesejável. Mas você também terá de acreditar
que esse mundo pode se tornar mais hospitaleiro e amigável para o ser
humano – e que, se tentar, como deveria, você poderia se tornar parte da
força destinada a e capaz de produzir esse mundo. Além disso, quando você
pergunta se a felicidade completa pode ser atingida, provavelmente acredita
que se possa chegar, individual ou coletivamente, a uma forma mais
agradável, válida e satisfatória de viver a vida – e está disposto a
empreender tal esforço (ou até a aguentar o sacrifício) como demanda
qualquer causa digna de seu nome. Em outras palavras, quando você
formula essas perguntas, insinua-se que, em lugar de aceitar as coisas de
modo humilde – uma vez que elas pareçam em algum momento demonstrar
pouco ou nenhum sinal de que mudarão –, você tende a medir sua força e
sua habilidade pelos padrões, tarefas e metas que você fixou para sua
própria vida, e não o contrário.
Você seguramente deve ter feito e seguido tais suposições. Caso
contrário, não seria incomodado por esses questionamentos. Para que
questões como essas lhe ocorram, você precisa, antes de mais nada,
acreditar que o mundo a seu redor não é “determinado”, “indiscutível”, de
uma vez por todas; precisa crer que ele pode ser mudado, e que você
próprio pode ser mudado ao se aplicar nesse trabalho. Você tem de presumir
que o estado do mundo pode ser diferente do que é agora; quão diferente ele
pode se tornar no fim desse processo dependerá do que você fizer; você
precisa acreditar que nada menos que o estado – passado, presente e futuro
– do mundo pode depender do que você faça ou deixe de fazer. Em outras
palavras, você acredita ser a um só tempo um artista capaz de criar e moldar
coisas e o produto dessa criação e moldagem.
Como sugeriu Michel Foucault, só uma conclusão surge da proposição de
que a identidade não é determinada: precisamos criá-la, da mesma maneira
que são criadas as obras de arte. Para todos os efeitos, “Pode a vida de todo
indivíduo humano se tornar uma obra de arte?” é uma pergunta retórica; é
possível respondê-la sem um argumento elaborado. Considerando a
resposta positiva uma conclusão óbvia, Foucault pergunta: “se uma
lamparina ou uma casa podem ser obras de arte, por que não uma vida
humana?”6 Suponho que tanto o “novo jovem” quanto as “gerações
passadas” que Hanna Swida-Ziemba compara teriam sinceramente
concordado com as sugestões de Foucault, mas presumo também que os
membros de cada um dos dois grupos etários teriam outra coisa em mente
ao pensar em “obras de arte”.
Os jovens das gerações passadas provavelmente consideravam a obra de
arte algo de valor duradouro e imperecível, resistente ao desgaste do tempo
e aos caprichos do destino. Seguindo os hábitos dos antigos mestres, eles
preparariam meticulosamente suas telas antes de aplicar a primeira
pincelada, e da mesma forma selecionariam com cuidado os solventes –
para terem certeza de que as camadas de tinta não se desfariam ao secar e
manteriam o frescor colorido por muitos anos, quiçá pela eternidade.
A geração mais jovem, por sua vez, buscaria imitar padrões e práticas
dos artistas mais célebres da atualidade – nos populares “happenings” e
“instalações” do mundo da arte. Com os happenings, sabe-se apenas que
ninguém (nem seus produtores e atores principais) terá certeza do caminho
que tomarão; que suas trajetórias são reféns do (“cego”, incontrolável)
destino; que, de acordo com seu desenrolar, qualquer coisa pode acontecer,
mas nada é certo. Já com as instalações – reuniões de elementos frágeis e
perecíveis, de preferência degradáveis –, todos sabem que as obras não
sobreviverão ao fim da exposição; que para a próxima mostra da galeria ela
precisará ser esvaziada dos (agora inúteis) pedaços remanescentes da
anterior. Os jovens também podem associar obras de arte aos cartazes e
outros impressos que eles afixam por cima dos papéis de parede e da
pintura de seus quartos. Eles sabem que os cartazes, assim como o papel de
parede e a tinta, não são destinados a adornar seus quartos para sempre.
Cedo ou tarde, precisarão ser “atualizados” – derrubados para dar espaço a
imagens dos próximos ídolos do momento.
Ambas as gerações (a passada e a atual) imaginam obras de arte a partir
de seus padrões de mundo peculiares; presume-se que a natureza e o
significado deles serão desnudados e julgados. Espera-se que o mundo se
torne mais inteligível, talvez até totalmente compreendido, graças à
atividade dos artistas. Mas, muito antes de isso acontecer, as gerações que
“passam por” este mundo sabem disso por “autópsia”, por assim dizer, a
partir do exame de suas experiências pessoais e das histórias em geral
contadas para narrar suas experiências e a elas dar sentido. Não surpreende,
então, que, em total oposição às gerações anteriores, o novo jovem não
acredite que se possa navegar pela vida com uma rota projetada antes do
começo da viagem; nem que creia que o destino casual e a decisão
incidental sejam o caminho.
De alguns dos jovens poloneses que entrevistou, Hanna Swida-Ziemba
diz, por exemplo: “Eles notam que um camarada subiu aos altos escalões da
empresa, foi promovido várias vezes e alcançou o topo, até que a
companhia foi à falência e ele perdeu tudo que havia ganhado. Por isso, eles
bem podem abandonar os estudos em que estão indo bem e ir para a
Inglaterra, trabalhar em canteiros de obras.” Outros não pensam no futuro
(“É um desperdício de tempo, não?”) nem esperam que a vida revele
qualquer lógica; em vez disso, procuram o golpe de sorte ocasional
(possivelmente) e as cascas de banana na calçada (de forma também
provável) – portanto, “querem que cada momento seja prazeroso”. De fato:
cada momento. Um instante de prazer não ganho é um momento perdido.
Uma vez que é impossível calcular que tipo de lucros futuros um sacrifício
presente pode trazer, se houver algum lucro, por que se deveria abrir mão
do prazer imediato capaz de se tirar do aqui e agora, de se desfrutar ali
mesmo?
A “arte da vida” pode significar coisas diferentes para os integrantes de
gerações mais velhas e mais novas, mas todos eles a praticam e
possivelmente não poderiam deixar de fazê-lo. O percurso da vida e o
significado de cada episódio que se segue, assim como o “propósito global”
ou o “destino final” da existência, são tidos hoje como atividades do tipo
faça-você-mesmo, ainda que consistam apenas em selecionar e montar o
tipo certo de kit padronizado em caixas de papelão das lojas de móveis
modulados. Espera-se que cada um e todo praticante da vida, assim como se
espera dos artistas, assuma toda a responsabilidade pelo resultado do
trabalho, e que seja elogiado ou culpado por seus efeitos. Hoje, cada
homem e cada mulher é um artista não tanto por escolha, mas, por assim
dizer, por decreto do destino universal.
“Ser artista por decreto” significa que a inação também conta como ação;
nadar e navegar, assim como se deixar levar pelas ondas, são a priori
considerados atos criativos de arte e serão registrados retroativamente como
tal. Mesmo aqueles que se recusam a acreditar na sucessão lógica, na
continuidade, na consequência das escolhas, das decisões e dos
empreendimentos, e na viabilidade e plausibilidade de se tentar domar a
sorte – ou seja, domar a providência ou o destino e manter a vida num curso
pré-designado e preferido –, mesmo estes não cruzam os braços, não podem
relaxar; eles ainda precisam “ajudar o destino”, cuidando das intermináveis
tarefazinhas que o fado decretou para eles executarem (como a de seguir os
esquemas dos kits de monte você mesmo). Como aqueles que não veem
nenhum sentido em postergar a satisfação e decidem viver “para o
momento”, os que se preocupam com o futuro e desconfiam de estar
minando as oportunidades que virão estão convencidos da volatilidade das
promessas da vida.
Todos parecem estar reconciliados com a impossibilidade de se tomar
decisões à prova de falhas; de se predizer quais dos passos sucessivos se
provarão corretos, ou quais das sementes de futuro espalhadas trarão frutos
abundantes e saborosos, quais bulbos de flor murcharão e enfraquecerão
antes que uma rajada súbita de vento ou uma vespa eventual possam
polinizá-los. Assim, no que quer que acreditem mais, todos concordam que
é preciso se apressar, que nada fazer, ou fazer qualquer coisa de forma lenta
e indiferente, é um grave erro.
Isso é verdade em especial para os jovens: como registrou Hanna Swida-
Ziemba, eles colecionam experiências e credenciais “por via das dúvidas”.
Os jovens poloneses dizem moze; britânicos da mesma idade diriam
perhaps; os franceses, peut-être; os alemães, vielleicht; os italianos, forse;
os espanhóis, tal vez; em português, diriam “talvez” ou “pode ser” – mas
todos gostariam, em grande medida, de dizer a mesma coisa: se não há
ciência para isso, quem pode saber se um ou o outro bilhete será o vencedor
da próxima extração da loteria da vida?

Eu, de minha parte, pertenço a uma dessas “gerações passadas”.


Quando eu era jovem, como a maioria de meus contemporâneos, li
atentamente as instruções de Jean-Paul Sartre relativas à escolha de um
“projeto de vida” – aquela escolha pretendia ser a “escolha das escolhas”, a
metaescolha que determinaria, de uma vez por todas, do princípio ao fim,
todo o resto de nossas (subordinadas, derivadas, executivas) opções. Para
cada projeto (assim aprendemos da leitura de Sartre) haveria, atrelados a
ele, um mapa de estrada e um conjunto de detalhadas instruções específicas
de como seguir o itinerário. Não tivemos dificuldade alguma para entender
a mensagem de Sartre, e a julgamos compatível com aquilo que o mundo a
nosso redor parecia anunciar ou insinuar.
No mundo de Sartre, assim como no compartilhado por minha geração,
os mapas envelheciam devagar, quando chegavam a envelhecer (alguns
deles reivindicaram ser até “definitivos”); as estradas eram construídas de
uma vez por todas (no entanto, elas podiam ser recapeadas de vez em
quando, para permitir maiores velocidades) e prometiam conduzir ao
mesmo destino toda vez que fossem iniciadas; os sinais nas encruzilhadas
eram várias vezes repintados, mas suas mensagens jamais mudavam.
Eu (embora novamente na companhia de outros jovens de minha idade)
também assisti com paciência, sem murmúrio de protesto, muito menos
rebelião, às aulas de psicologia social baseadas nas experiências de
laboratório com famintos ratos húngaros num labirinto, em busca da
primeira e única sucessão correta e adequada de movimentos – ou seja, o
primeiro e único itinerário com um desejado pedaço de banha de porco no
final –, a fim de aprendê-la e memorizá-la para o resto da vida. Não
protestamos contra aquilo porque, no empenho e nas preocupações dos
ratos de laboratório, assim como nos conselhos de Sartre, ouvíamos ecos de
nossas próprias experiências de vida.
A maioria dos jovens de hoje, porém, pode enxergar a necessidade de
memorizar o caminho para fora do labirinto como uma questão para os
ratos, não para eles. Dariam de ombros ao serem aconselhados por Sartre a
fixar o destino de suas vidas e delinear por antecipação os movimentos
seguros para alcançá-lo. De fato, eles chegariam a contestar: como eu
saberei o que o próximo mês trará, para não falar no próximo ano? Só posso
ter certeza de uma coisa, de que o próximo mês e ano, e certamente os anos
que se seguirão, serão diferentes do momento que estou vivendo agora; e,
sendo diferentes, invalidarão muito do conhecimento e da experiência que
exercito agora (embora não haja suposição alguma de quais de suas muitas
partes perderão a validade); muito do que aprendi terei de esquecer, e serei
obrigado a me livrar de muitas (embora não haja suposição de quais) coisas
e inclinações que agora exibo e ostento; escolhas julgadas hoje as mais
razoáveis e louváveis serão amanhã depreciadas como tolas e infames
asneiras.
A consequência disso é que a única habilidade que eu preciso adquirir e
exercer é a flexibilidade – a competência para se livrar depressa das
aptidões inúteis, de esquecer logo e se desfazer logo dos recursos do
passado, que se transformaram em deficiências, de mudar de conduta e de
caminho depressa e sem pesar, e de evitar juramentos de lealdade vitalícia a
qualquer coisa ou pessoa. Afinal, momentos favoráveis tendem a aparecer
de repente e de lugar nenhum; também desaparecem de forma abrupta; pior
para os tolos, que, por desígnio ou descuido, se comportam como se fosse
para ficar presos a essas coisas.
Hoje parece que, embora alguém ainda possa sonhar em escrever um
roteiro para toda a vida com antecedência, e até tente tornar esse sonho
realidade, agarrar-se a qualquer roteiro, por mais glorioso, sedutor e
aparentemente à prova de falhas que ele seja, é algo que se arrisca a
considerar uma opção suicida. Os enredos de outrora podem ficar datados
antes que a obra entre na fase de ensaios; se eles sobreviverem à primeira
sessão, a temporada pode ser abominavelmente curta. Então, comprometer
o teatro da vida nessa peça por um tempo considerável é igual a recusar a
oportunidade para muitas produções (não se sabe quantas) mais atuais e,
por isso, de maior sucesso. As oportunidades, afinal, batem à porta, e não
há nada que antecipe em que porta e quando elas baterão.
Tomemos o caso de Tom Anderson. Tendo estudado arte, ele
provavelmente não adquiriu muito conhecimento de engenharia e tinha
poucas noções sobre como funcionam as maravilhas tecnológicas. Como a
maioria de nós, era apenas um usuário dos modernos produtos eletrônicos;
como a maioria de nós, deve ter passado pouquíssimo tempo meditando
sobre o que há dentro do gabinete de um computador e por que isto em vez
daquilo aparece na tela quando ele aperta esta e não aquela tecla. Ainda
assim, mais do que de repente, talvez para sua própria e grande surpresa,
Tom Anderson foi aclamado no mundo da computação como criador e
pioneiro das “redes sociais” e gerador do que logo foi apelidado de
“segunda revolução da internet”. Seu blog, talvez mais um passatempo
privado em suas intenções, em menos de dois anos converteu-se na empresa
MySpace, invadida por um verdadeiro enxame de internautas muito jovens
(os usuários mais velhos da web, se chegassem a ouvir falar da nova
empresa, provavelmente a depreciariam ou zombariam dela como outra
moda passageira, ou mais uma ideia tola com a expectativa de vida de uma
borboleta, de que a grande rede estava lotada). A “empresa” ainda não
gerava qualquer lucro digno de nota, e Anderson não fazia ideia alguma de
como (e provavelmente também não tinha intenção firme de) torná-la
financeiramente lucrativa.
Mas, em julho de 2005, Rupert Murdoch, por iniciativa própria,
ofereceu… 580 milhões de dólares pelo MySpace, que então operava com
não muito mais que dois tostões. A decisão de Murdoch de fazer a compra
disse “abre-te, sésamo” nesse mundo, sem dúvida mais que a magia dos
feitiços mais engenhosos e sofisticados. Não surpreende que os caçadores
de fortuna tenham invadido a web à procura de novos diamantes brutos. O
Yahoo! comprou outro site da categoria das redes sociais por um bilhão de
dólares, e, em outubro de 2006, o Google separou 1,6 bilhão de dólares para
obter ainda outro, o YouTube – que fora seu start-up apenas um ano e meio
antes, também criado nas feições de indústria caseira por um par de
entusiastas amadores, Chad Hurley e Steve Chan. Em 8 de fevereiro de
2007, o New York Times informou que, por sua bem-sucedida ideia, Hurley
foi pago em ações do Google no valor de 345 milhões de dólares, enquanto
Chan recebeu ações com um valor de mercado de 326 milhões de dólares.
“Ser descoberto” pelo destino, encarnado na pessoa de um rico e
poderoso protetor ou diligente mecenas à procura de talentos até pouco
tempo não reconhecidos ou não adequadamente avaliados tem sido, desde o
fim da Idade Média e o começo do Renascimento, um tema popular no
folclore biográfico sobre pintores, escultores e músicos. (Isso, entretanto,
não ocorria no mundo antigo, no qual a arte era vista como o modo de
representar de forma obediente e com fervor a magia da criação divina: os
gregos “não podiam conciliar a ideia de criação sob os auspícios da
inspiração divina com a de recompensa monetária pela obra criada”.7 Ser
um artista era algo mais associado à renúncia e à pobreza, a “estar morto
para o mundo”, do que a qualquer tipo de sucesso mundano, ainda mais o
pecuniário.)
O mito etiológico de ser descoberto por um rico e poderoso
provavelmente foi inventado no limiar da Era Moderna para explicar os
casos (ainda poucos e concentrados) sem precedentes de artistas individuais
que de repente alcançaram fama e fortuna numa sociedade que deu à luz
sentenças perpétuas e não permitia qualquer espaço para o self-made man, o
“homem que faz a si mesmo” (e muito menos, claro, para a “mulher que faz
a si mesma”, a self-made woman) – e explicar esses casos extraordinários
de um modo que reafirmaria a norma, em vez de arruiná-la –, na ordem
mundana de poder, força e direito à glória. De origem humilde, quando não
desterrados, os futuros mestres das artes estabeleceram como regra (pelo
menos é isso que o mito insinua) que até o maior dos talentos, somado a
uma determinação obstinada, como raramente se vê, e a um zelo
missionário incrível e incansável, não era o bastante para cumprir seus
destinos, a menos que uma mão benevolente e poderosa se estendesse a eles
para trazê-los à inalcançável terra da fama, da riqueza e da admiração.
Antes do advento da modernidade, a lenda do “encontro com o destino”
praticamente se restringia aos artistas; não surpreende que, como os
profissionais das belas-artes, a exemplo de pintores ou compositores,
fossem quase as únicas pessoas que conseguiam se elevar além de seu
humilde status original e acabar à mesa de príncipes e cardeais, quando não
de reis e papas. À medida que a modernidade avançou, porém, as fileiras de
rompedores de barreiras de classe se ampliaram. Com o número de novos-
ricos multiplicado, as histórias inspiradas por seus encontros com o destino
se democratizaram. Essas sagas agora dão forma às expectativas de
qualquer um e de todos os “artistas da vida”, os profissionais seculares da
arte secular da vida secular; e isso quer dizer todos nós ou quase todos.
Decretou-se que somos portadores do direito de nos “encontrar com o
destino” e, por meio desse “encontro fatal”, de saborear o sucesso e
desfrutar uma vida de felicidade. Uma vez que esse direito foi declarado
universal, num instante se transforma em dever universal.
É verdade que são principalmente dos artistas (mais precisamente, das
pessoas cujas práticas, graças à sua aquisição súbita do status de
celebridade, foram, sem necessidade de maiores argumentos, classificadas
como belas-artes) aquelas cujas provações e tribulações formam a trama das
fábulas de ascensão milagrosa, dos trapos à riqueza; e são sobretudo eles
aqueles de pronto lançados à ribalta e publicamente celebrados. (Por
exemplo, temos a famosa saga da menina que estava vendendo por duas
libras cinzeiros de vidro de cinquenta pence tendo coladas no fundo, sem
muito cuidado, fotografias de ídolos pop recortadas de jornais. Ela passava
o tempo numa pequena loja de uma ruazinha banal no leste de Londres, até
que um dia parou uma limusine que conduzia um grande mecenas,
destinado a transformar a cama há muito desfeita da menina num
inestimável trabalho da mais elevada arte – como a fada madrinha de
Cinderela fez uma carruagem banhada a ouro de uma abóbora.)
Histórias de artistas prósperos (mais precisamente, de meninos e meninas
por mágica transformados nisso) têm a vantagem de nos chegar preparadas
pelos séculos da antiga tradição de contar histórias; porém, elas também
encaixam muito bem no estado de espírito de nossos tempos líquidos
modernos, porque, ao contrário das histórias do começo da modernidade –
por exemplo, a lenda do pequeno engraxate que se tornou milionário –,
omitem as questões espinhosas e desconcertantes sobre paciência, trabalho
árduo e o sacrifício que o sucesso na vida em geral requer. Histórias de
artistas visuais e performáticos celebrados desvalorizam a questão do tipo
de atividade que a pessoa deveria escolher e buscar para se tornar
merecedora de atenção e da estima públicas; e de como se deveria fazer
essa escolha (de todo modo, num mundo líquido moderno, espera-se, e com
razão, que pouquíssimas atividades meritórias sejam capazes de manter os
méritos por muito tempo). Trata-se, mais que isso, de um princípio geral no
qual estão centradas as histórias líquidas modernas típicas: numa
combinação com destino benévolo, qualquer ingrediente pode fazer os
brilhantes cristais do sucesso sedimentarem na escura solução chamada
vida. Qualquer ingrediente: não necessariamente labuta, abnegação e
sacrifício sugeridos nas clássicas histórias de sucesso modernas.
Considerando essas condições, a invenção de redes computadorizadas
veio bem a calhar. Uma das muitas virtudes da internet (e uma das
principais causas de sua desconcertante taxa de crescimento) é que ela
liquida a incômoda necessidade de se tomar partido diante da antiga e agora
fora de moda e malcompreendida oposição entre trabalho e lazer, esforço e
descanso, ação dotada de propósito e frivolidade, ou empenho e indolência.
O que são as horas gastas em frente ao computador abrindo caminho em
meio à floresta de sites? Obrigação ou diversão, trabalho ou prazer? Não se
pode dizer, não se sabe, mas deve-se ser perdoado do pecado da ignorância,
uma vez que não há resposta confiável para esse dilema, nem pode haver,
antes que o destino apresente suas cartas.
Não surpreende então que, em 31 de julho de 2006, se contassem
cinquenta milhões de blogs na world wide web, e que, de acordo com os
últimos cálculos, esses números tenham crescido desde então, numa média
de 175 mil por dia. Sobre o que informam esses blogs ao “público da
internet”? Eles nos dão informações sobre tudo que possa ocorrer a seus
proprietários/autores/ operadores, seja o que for que possa sair de suas
cabeças – pois não há conhecimento estabelecido sobre o que pode (se é
que algo pode) chamar a atenção dos Rupert Murdoch ou dos Charles
Saatchi deste mundo.
Criar uma “página pessoal”, um blog, é apenas outra variedade de loteria:
você segue, por assim dizer, comprando bilhetes “por via das dúvidas”, com
ou sem a ilusão de que haja regras que permitam a você (ou a qualquer
outro) predizer quais deles estão premiados – pelo menos o tipo de regra
que você poderia aprender e se lembrar de observar, fiel e efetivamente, em
suas próprias práticas. Como informou Jon Lanchester, que examinou
grande número de blogs, um blogueiro registra em todos os detalhes o que
ele consumiu no café da manhã; outro descreve as alegrias obtidas no jogo
da noite anterior; uma blogueira reclama das deficiências íntimas de seu
namorado na cama; outro traz uma horrível fotografia do cachorro de
estimação do autor; outro ainda medita sobre os desgostos da vida de
policial; e mais um coleciona deliciosas façanhas sexuais de um americano
na China.8 Ainda assim, um traço comum foi encontrado em todos eles:
uma sinceridade, uma franqueza sem pudores para exibir em público as
experiências mais particulares e as aventuras mais íntimas – falando sem
papas na língua, com um ímpeto ardente e uma evidente falta de inibição
para pôr a si mesmo (ou, pelo menos, algumas partes ou aspectos de si
próprio) no mercado.
Talvez um pedacinho ou outro possa dar uma picada no interesse e
inflamar a imaginação de possíveis “compradores” – talvez até algum rico e
poderoso investidor –, ou pelo menos das pessoas comuns, mas em número
elevado o bastante para chamar atenção de alguns poderosos, inspirá-los a
fazer ao blogueiro uma oferta irrecusável, empurrar aos céus seu valor de
mercado. A confissão pública (quanto mais suculenta melhor) dos assuntos
mais pessoais e mais apropriados para serem guardados em segredo é um
tipo de moeda de substituição, ainda que de valor baixo: é uma moeda à
qual podemos recorrer quando não pudermos dispor das habitualmente
usadas por investidores mais “sérios” (leia-se, mais ricos).
Muitos críticos de arte eminentes sugerem que as obras de arte
conquistaram agora o mundo inteiro dos vivos. Os sonhos supostamente
inalcançáveis da vanguarda do último século foram realizados – embora
não necessariamente da forma que os vanguardistas desejavam e
esperavam. Em particular, e ainda frustrante: hoje parece que, como a
vanguarda venceu, é possível que as artes já não precisem mais das obras
para manifestar sua existência.
Há não muito tempo, sem dúvida lá pelos dias de alcíone da vanguarda,
as artes lutavam para provar seu direito de existir documentando sua
utilidade para o mundo e seus habitantes; elas precisaram de provas sólidas,
duráveis, tangíveis, irremovíveis, indestrutíveis e eternas dos valiosos
serviços que prestavam. Agora elas dão conta disso sem ter de deixar
sólidos rastros de sua presença; ainda parecem evitar profundamente as
pegadas, e antecipam sua veloz e eficaz eliminação. Os artistas hoje
parecem ter se especializado sobretudo em montar e logo desmontar suas
criações; pelo menos eles tratam essas duas atividades como variantes
igualmente válidas, meritórias e indispensáveis da criatividade artística.
Um grande artista americano, Robert Rauschenberg, pôs à venda uma
folha de papel na qual havia antes um desenho de outro grande artista
americano, Willem de Kooning, que fora completamente apagado; a
contribuição criativa específica de Rauschenberg, pela qual se esperava que
os colecionadores pagassem, foram os rastros frouxos, ilegíveis, de sua ação
de passar uma borracha. Dessa forma, Rauschenberg alçou a destruição ao
grau de criação artística; era o ato de aniquilar os rastros deixados no
mundo, não de imprimi-los, que seu gesto pretendia representar como o
valioso serviço que as artes oferecem a seus contemporâneos. Ao enviar
essa mensagem, Rauschenberg não ficou de forma alguma sozinho entre os
artistas contemporâneos mais famosos e influentes. O embaçamento de
traços que cobrem os rastros foi naquele momento, e continua a ser, algo
colocado no plano antes ocupado apenas pela gravação ou pela impressão
(para a eternidade, esperava-se); talvez até num plano ainda mais alto,
superior, no qual as ferramentas de vida mais urgentemente necessárias são
experimentadas, e onde os desafios mais graves da condição existencial
humana estão situados, são enfrentados e tratados.
Tudo dito até aqui sobre as recentes transformações nas belas-artes
aplica-se ao gênero de arte mais comum, universalmente praticada, a arte da
vida. Na realidade, as transformações fatais ocorridas nas belas-artes
parecem ter sido o resultado dos esforços dos artistas para emparelhá-las
com as mudanças na arte da vida, pelo menos em suas variedades mais
ostensivamente exibidas. Como em tantos outros campos, também neste
caso a arte replica a vida: na maioria das vezes, mudanças nas belas-artes
ficam para trás em relação às transformações nos modos de vida, embora os
criadores artísticos façam o melhor possível para se antecipar a essas
alterações e (por vezes são bem-sucedidos), inspirando ou facilitando uma
mudança e suavizando seu ingresso e seu estabelecimento nas práticas de
vida cotidianas. Antes de os artistas a descobrirem, a “destruição criativa”
já era amplamente praticada e estava arraigada na vida mundana como um
de seus expedientes mais comuns, aplicado de forma rotineira. O gesto de
Rauschenberg poderia ser então interpretado como uma tentativa de
atualizar o significado de “pintura figurativa”. Quem quer que deseje
desnudar, pôr à mostra e tornar inteligíveis as experiências humanas (tanto
em sua forma de Erfahrungen quanto na de Erlebnissee), quem quiser que
sua obra represente fielmente essas experiências deverá seguir o exemplo
de Rauschenberg, desmascarando, tornando salientes e abertas à avaliação
as conexões íntimas entre criação e destruição.
Praticar a arte de vida, tornar a vida uma obra de arte, em nosso mundo
líquido moderno, equivale a estar em estado de permanente transformação,
redefinindo a si mesmo de forma perene, tornando-se alguém diferente do
que se era até então; “tornar-se outra pessoa” corresponde a deixar de ser o
que se foi, a quebrar e jogar fora a velha forma, como uma cobra faz com
sua pele ou alguns moluscos com suas carapaças – rejeitando e esperando
varrer para longe, uma a uma, as personae usadas, desgastadas, apertadas
demais, ou não suficientemente satisfatórias, configurações em que elas são
comparadas com as novas e aprimoradas ofertas e oportunidades. Para pôr
um novo self em exposição pública e admirá-lo diante de um espelho e aos
olhos dos outros, é preciso remover o velho self de seu campo de visão e do
dos outros, e possivelmente também das memórias de si e dos outros.
Quando se “autodefine” e se “autoafirma”, pratica-se a destruição criativa.
Cotidianamente.
Para muitas pessoas, em particular para os jovens que deixam para trás
apenas poucos rastros, e de forma rasa, fácil de desaparecer, essa nova
versão da arte da vida pode parecer atraente e agradável.
Reconhecidamente, isso não acontece sem uma boa razão. Esse novo tipo
de arte oferece uma longa trilha de alegrias – em aparência, uma trilha
longa ao infinito. Além disso, ele promete que os que buscam essa vida
jovial, satisfatória, jamais sofrerão uma derrota suprema, definitiva,
irrevogável; promete que, após cada retrocesso, haverá uma chance de
recuperação; que será permitido reduzir as perdas e recomeçar, “começar do
(novo) começo”, e, assim, reconquistar ou ser compensado pelo que foi
perdido, “nascendo de novo” (ou seja, aderindo a outra – e, espera-se, mais
fácil de usar e mais afortunada – “única escolha”); as parcelas destrutivas
dos sucessivos atos de destruição criativa podem ser facilmente esquecidas,
e o sabor amargo que fica na boca é suprimido pela doçura de novas
perspectivas e de suas promessas ainda não experimentadas.

Pressões são mais difíceis de resistir, combater e repelir quando não


recorrem à coerção explícita e não ameaçam com a violência. Uma ordem –
“Você tem de fazer isto (ou você não pode fazer isto), ou então…” – incita o
ressentimento e gera rebelião. Em comparação, uma sugestão – “Se você
quer isto, você pode tê-lo, então vá em busca” – favorece um amour de soi
constantemente faminto por elogios, nutre a autoestima e encoraja a
experimentação – de acordo com o desejo e em nome do prazer.
Em nossa sociedade de consumidores, o ímpeto de reproduzir o estilo de
vida hoje recomendado pelas últimas ofertas de mercado e elogiado por
porta-vozes contratados e voluntários desses mesmos mercados (e, por
conseguinte, a compulsão para se revisar de modo perpétuo a identidade e a
persona pública) não são mais associados à coerção externa (e, assim,
ofensiva e aborrecida); esse ímpeto tende a ser percebido, em vez disso,
como mais uma manifestação e mais uma prova da liberdade pessoal. É
apenas quando se tenta renunciar e se retirar dessa caçada em busca de uma
identidade que se mostra evasiva, sempre incompleta – ou quando se é
rejeitado e afugentado da caçada (cenário verdadeiramente horripilante), ou
quando se tem a admissão recusada a priori –, que se aprende quão
poderosas são as forças que administram a pista de corridas, guardam as
entradas e mantêm os maratonistas em ação; apenas aí se entenderá quão
severo é o castigo impingido aos desafortunados e insubordinados. Esse
caso é muito bem conhecido de todos aqueles que, por falta de conta
bancária e cartão de crédito, não podem pagar o preço do ingresso no
estádio. Para muitos outros, tudo isso pode ser intuído das premonições
sombrias que os assombram à noite, depois de um longo dia de compras –
ou das advertências que chegam quando suas contas bancárias entram no
vermelho e seu crédito disponível chega a zero.
Placas de estrada que sinalizam a trajetória da vida hoje aparecem e
desaparecem com pouco ou nenhum aviso; mapas do território que a
trajetória deve cruzar em algum ponto são atualizados quase todo dia
(embora de forma irregular e sem qualquer advertência). Esses mapas são
impressos e postos à venda por muitos editores e estão disponíveis em
qualquer banca de jornal, em grande quantidade, mas nenhum deles é
“chancelado” por um departamento que reivindique com credibilidade o
controle sobre o futuro; seja qual for o mapa de escolha, fica-se responsável
e opta-se sempre por própria conta e risco. Em resumo, a vida dos
caçadores/construtores/reformadores da identidade é tudo, menos fácil; sua
arte da vida em particular demanda bastante dinheiro, esforço ininterrupto
e, em muitas ocasiões, nervos de aço. Não surpreende então que, apesar de
todas as alegrias e dos momentos felizes que ela promete e em geral
oferece, pouquíssimas pessoas vejam essa vida como um tipo que elas
próprias, dada a genuína liberdade de escolha, desejariam pôr em prática.
Diz-se com frequência que essas pessoas são indiferentes à liberdade,
quando não completamente hostis a ela, ou que ainda não são crescidas ou
não amadureceram o bastante para desfrutá-la. O que sugere que sua não
participação no estilo de vida dominante na sociedade líquida moderna de
consumidores tende a ser explicada por um ressentimento ideologicamente
despertado contra a liberdade ou pela inabilidade de pô-la em prática. Na
melhor das hipóteses, contudo, tais explicações são apenas parcialmente
verdadeiras. A fragilidade de toda e qualquer identidade (mesmo sua
solidez pouco confiável) joga nas costas dos caçadores de identidade o
dever de se dedicar diária e intensamente a esse trabalho. O que poderia ter
começado como um empreendimento consciente pode se transformar, com
o passar do tempo, numa rotina irrefletida, por meio da qual a afirmação
eterna e sempre repetida de que “você pode se tornar alguém diferente de
quem é” é reformulada na frase “você tem de se tornar alguém diferente de
quem é”.
É esse “tem” que para muitas pessoas não soa equivalente à liberdade, e é
por isso que elas se melindram com o “tem”, se rebelam contra ele. Como a
pressão dessa obrigatoriedade permanece firme e dominante, conforme se
possuam ou não os recursos requeridos por esse “fazer o que tem de ser
feito”, o “tem” soará mais como escravidão e opressão do que como algum
imaginável avatar da liberdade. Numa carta para um jornal britânico muito
considerado e popular, um leitor reclamou que “os quatro itens
fundamentais, obrigatórios” para um homem respeitável, na primavera de
2007, indicados na seção de “moda” do jornal (sobretudo cáqui, camisa
gola de padre, suéter com gola em v e jaqueta de marinheiro), custariam um
total de 1.499 libras esterlinas (cerca de quatro mil reais). Então, alimento
para uns, veneno para alguns (muitos? a maioria dos?) outros? Se “ser
livre” significa ser capaz de agir pelos próprios desejos e perseguir os
objetivos escolhidos, a versão líquida moderna, consumista, da arte da vida
pode prometer liberdade para todos, mas a entrega é escassa e seletiva.

“À medida que a necessidade de serviços públicos aumentou, os eleitores


americanos se mostraram favoráveis a reduzir o suprimento de seguridade
fornecido pelo governo, e muitos indicaram justamente as famílias
prejudicadas como o principal contribuinte da seguridade”, escreve Arlie
Hochschild.9 Esses eleitores, no entanto, saem da frigideira para cair no
fogo.
As mesmas pressões consumistas que associam a ideia de “seguridade” a
um inventário de artigos de consumo como suco de laranja, leite, pizza
congelada e fornos de micro-ondas despem as famílias de suas habilidades e
seus recursos socioéticos; desarmam-na na luta morro acima para lidar com
os novos desafios – desafios apoiados e incentivados pelos legisladores, que
tentam reduzir os déficits financeiros do Estado motivados pela expansão
do “déficit da seguridade” (cortando fundos para mães solteiras, deficientes,
doentes mentais e idosos).
Um Estado é “social” quando promove o princípio do seguro
comunalmente endossado, coletivo, contra o infortúnio individual e suas
consequências. É sobretudo esse princípio – declarado, posto em operação e
objeto da confiança de que funcionará – que recicla a de outra forma
abstrata ideia de “sociedade” como uma experiência de comunidade
percebida e vivida, substituindo a “ordem do egoísmo” (para usar os termos
de John Dunn), fadada a gerar uma atmosfera de mútua desconfiança e
suspeita, pela “ordem da solidariedade”, inspiradora de confiança e de
igualdade. É o mesmo princípio que eleva os membros de uma sociedade ao
status de cidadãos – ou seja, torna-os partes interessadas, além de
acionistas, beneficiários, mas também agentes –, tanto tutores quanto
tutelados do sistema de “benefícios sociais”, indivíduos com um forte
interesse no bem comum, compreendido como a rede de instituições
compartilhadas que podem ser objeto de confiança e das quais se pode
esperar, de forma realista, a garantia de solidez e confiabilidade da “apólice
de seguro coletiva” emitida pelo Estado.
A aplicação desse princípio pode, e muitas vezes consegue, proteger
homens e mulheres da pestilência da pobreza; o que é mais importante,
porém, é que ele pode se tornar uma profusa fonte de solidariedade, capaz
de reciclar a “sociedade” num bem comum compartilhado, apropriado de
forma comunal e cuidado em conjunto, graças à defesa que provê contra os
horrores gêmeos da miséria e da indignidade – isto é, do terror de ser
excluído; de cair ou ser lançado fora do acelerado veículo do progresso; de
ser condenado à “redundância social”; de ter negado o respeito devido aos
homens e ser classificado como “refugo humano”.
De acordo com sua intenção original, um “Estado social” deveria ser um
arranjo para servir a esses propósitos. Lord Beveridge, a quem devemos o
projeto do Estado de bem-estar britânico do pós-guerra, acreditava que sua
perspectiva de um seguro inclusivo, coletivamente endossado, para todos,
era a consequência inevitável, mais que isso, o complemento indispensável
da ideia de liberdade individual tal como concebida pelos liberais (no
sentido europeu), além de condição necessária para a democracia. A
declaração de guerra de Franklin Delano Roosevelt contra o medo se
baseava na mesma suposição. Aliás, era uma suposição razoável: afinal,
liberdade de escolha só pode ser acompanhada de incontados e incontáveis
riscos de fracasso, e muitas pessoas estão sujeitas a achar esses riscos
insuportáveis, temendo que eles excedam sua habilidade pessoal de
combatê-los. Para muitos, a liberdade de escolha permanecerá um evasivo
fantasma e um sonho indolente, a menos que o medo de derrota seja
mitigado pela apólice de seguro emitida em nome da comunidade, uma
política em que eles podem confiar e com que podem contar no caso de
fracasso pessoal ou de um golpe grotesco do destino.
Se a liberdade de escolha é concedida em termos teóricos, mas
inacessível na prática, a dor da desesperança, sem dúvida, será coroada
com a infâmia da infelicidade – uma vez que o teste diário da habilidade
para lidar com os desafios da vida é a própria oficina na qual a
autoconfiança dos indivíduos, seu senso de dignidade humana e sua
autoestima são fundidos numa liga, ou simplesmente derretidos. Além
disso, sem o seguro coletivo dificilmente haveria muito estímulo para o
engajamento político – e nenhum para a participação no ritual democrático
das eleições, assim como nenhuma salvação vem de um Estado político que
não seja, e se recuse a ser, um Estado social. Sem direitos sociais para
todos, um número amplo e muito provavelmente crescente de pessoas
acharia seus direitos políticos inúteis e desmerecedores de atenção. Se eles
são necessários para colocar os direitos sociais no lugar, estes são
indispensáveis para manter os direitos políticos em operação. Os dois
direitos precisam um do outro para sobreviver; essa sobrevivência só pode
ser uma conquista comum de ambos.
O Estado social é a suprema incorporação moderna da ideia de
comunidade; ou melhor, é uma encarnação institucional da ideia de
comunidade em sua forma moderna – uma totalidade abstrata, imaginada,
tecida de dependência recíproca, compromisso e solidariedade. Os direitos
sociais – o direito ao respeito e à dignidade – atavam a totalidade imaginada
às realidades cotidianas de seus membros e baseava aquela perspectiva
imaginária no chão sólido das experiências de vida; esses direitos
certificam, simultaneamente, a veracidade e a factibilidade da confiança
mútua e da confiança na rede institucional partilhada que endossa e valida a
solidariedade coletiva.
A sensação de “pertencimento” é traduzida como uma confiança nos
benefícios da solidariedade humana e nas instituições que dela surgem. Ela
promete servi-la e assegurar sua confiabilidade. Há pouco, todas essas
verdades foram enunciadas no programa do Partido Social-Democrata
Sueco de 2004:
Todo mundo é frágil em algum momento do tempo. Precisamos um do outro. Vivemos
nossas vidas no aqui e no agora, com os outros, apanhados em meio a mudanças. Todos
seremos mais ricos se cada um de nós tiver a possibilidade de tomar parte e ninguém for
deixado de fora. Seremos todos mais fortes se houver tranquilidade para todos, não
apenas para alguns.

Da mesma maneira que o poder de carga de uma ponte não é medido pela
resistência média de seus pilares, mas pela resistência do pilar mais fraco, e
este é construído a partir dessa resistência, a confiabilidade e a desenvoltura
de uma sociedade são medidas pela segurança, a desenvoltura e a
autoconfiança de suas seções mais fracas, e crescem acompanhando as
últimas. Ao contrário do que sugere a suposição dos defensores da “terceira
via”, justiça social e eficiência econômica, lealdade à tradição do Estado
social e habilidade para se modernizar depressa (e, de modo mais
significativo, com pouco ou nenhum dano para a coesão e a solidariedade
sociais) não precisam ficar e não estão às turras uns com os outros. Em vez
disso, como a prática socialdemocrata dos países nórdicos demonstra e
confirma, “a busca de uma sociedade mais coesa socialmente é a
precondição necessária para a modernização consentida”.10
Ao contrário do que consta nos grotescos obituários prematuros do que
foi promovido e anunciado como a terceira via, o modelo escandinavo é
hoje tudo, menos uma relíquia de esperanças passadas e agora frustradas, ou
uma planta baixa dispensada por consentimento popular, considerada algo
antiquado. Pode-se ver como são atuais e vivos seus princípios de
sustentação, e como são fortes suas chances de inflamar a imaginação
humana e a inspiração para agir, nos recentes triunfos de Estados sociais
emergentes ou ressuscitados na Venezuela, na Bolívia, no Brasil e no Chile,
que estão gradual, mas infatigavelmente, transformando a paisagem política
e o estado de espírito popular daquela parcela do hemisfério ocidental, e
carregando todas as marcas daquele “gancho de esquerda” com que (como
mostrou Walter Benjamin) todos os golpes decisivos tendem a ser
desferidos na história humana. Por mais duro que seja admitir essa verdade
no fluxo cotidiano das rotinas consumistas, esta é a verdade.
Para evitar mal-entendidos, deixemos claro que o Estado social na
sociedade de consumo não é nem planejado nem posto em prática como
uma alternativa ao princípio de liberdade do consumidor – assim como ele
não tencionava ser, nem atuou como, uma alternativa para a ética do
trabalho na sociedade de produtores. Os países com princípios e instituições
de Estado social firmemente estabelecidos na sociedade de consumidores
também têm níveis altíssimos de consumo; da mesma maneira, aqueles com
princípios e instituições de Estado social firmemente estabelecidos nas
sociedades de produtores eram países de indústria próspera.
O propósito do Estado social na sociedade de consumidores, assim como
na sociedade de produtores, é defender a sociedade contra o “dano
colateral” que o princípio guia da vida causaria caso não fosse monitorado,
controlado e constrangido. Esse Estado foi indicado para proteger a
sociedade da multiplicação de fileiras de “vítimas colaterais” do
consumismo – os excluídos, os desterrados, as subclasses. Sua tarefa é
resguardar a solidariedade humana da erosão e proteger o sentimento de
responsabilidade ético do desvanecimento.

aEmbora a palavra sympathy (“colocar-se no lugar” relativamente ao sofrimento do outro)


não corresponda ao sentido mais usual do vocábulo “simpatia” em português (afinidade
moral e sentimental entre duas pessoas, em geral a partir da maneira como alguém age),
optou-se por mantê-la na tradução. (N.T.)
b O termo commonwealth, de origem britânica, habitualmente traduzido como
“comunidade” – em especial em construções como Comunidade das Nações
(Commonwealth of Nations) –, refere-se também ao sentido genérico que atribuímos a
“comunidade”, um agregado de pessoas que partilham um mesmo interesse ou uma mesma
lógica; mas diz respeito, sobretudo, a uma “comunidade política”, ou, mais
especificamente, ao país (ou grupo de países) em sua dimensão republicana, democrática,
liberal (em sentido amplo), aposta moderna de garantia de common wealth, riqueza
comum, ou seja, o estado de direito baseado no bem comum. Optou-se por usar as formas
comunidade, commonwealth e estado de direito, todos com sentidos aproximados nesse
contexto. (N.T.)
c Preferimos manter a expressão trade-off no original, dada sua recorrência nessa forma,
sobretudo no discurso econômico. Trata-se de um balanço entre perdas e ganhos,
equilibrando perdas num valor com ganhos em outro. Nesse trecho, o autor refere-se ao
jogo de compensação descrito por Freud, de se perder parte da liberdade individual e
ganhar, em compensação, um quinhão maior de segurança (na civilização). (N.T.)
dUm hub, ou “concentrador”, é um ponto de redistribuição ou um ponto central a partir do
qual o que está em fluxo na rede é enviado para vários outros pontos ao mesmo tempo.
Preferiu-se manter aqui a palavra em inglês por ser este termo consagrado no vocabulário
sobre redes, sobretudo na área de informática. (N.T.)
e Erfahrunger se refere à experiência no sentido empírico, do experienciar, das
experiências vividas, de “uma experiência” em particular. Erlebnisse, em sentido mais
abstrato, designa o caráter experimentado do homem, “a experiência” em sentido amplo.
(N.T.)

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