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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca analisar a discussão surgida há algumas décadas


sobre o formato da cruz, partindo do argumento comumente usado pelos membros do
Corpo Governante das Testemunhas de Jeová de que o formato usado pelos cristãos
é falso e fruto de uma alteração feita pelo imperador Constantino I.
O objetivo será avaliar se a cruz como conhecida hoje realmente não era o
símbolo reconhecido pelos cristãos primitivos ou se esta acusação tem pouco
fundamento. Visto a cruz ser símbolo de grande valor para toda religião cristã, mais
especialmente para as denominações mais antigas do protestantismo e pela Igreja
Católica Apostólica Romana e a Igreja Ortodoxa Oriental, uma mudança tão
fundamental de um símbolo tão sacralizado beiraria ser considerada como blasfema.
Foram utilizados escritos antigos que possam elucidar sobre algo que seja tão
minucioso quanto o formato de um objeto simples de punição capital, visto que as
buscas por soluções no campo da etimologia se demonstraram ineficazes por conta
de limitações linguísticas.
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2 A FIGURA DO IMPERADOR CONSTANTINO

Sem dúvida, Flavius Valerius Constantinus (272-337 d.C.), conhecido como


Constantino I, foi o imperador que marcou a maior mudança de cenário para toda
cristandade. Após a morte de Diocleciano, que realizou uma última grande
perseguição aos cristãos dentro do Império Romano, Constantino foi o primeiro
imperador a se tornar cristão e, com isso, conceder mais do que apenas liberdade
religiosa à Igreja (que em diversos momentos antes foi garantida), mas uma posição
de favor aos seus olhos.1
Existe muito debate acerca do tema se Constantino realmente se converteu,
mas o assunto não será debatido com profundidade aqui, visando focar apenas no
impacto que ele teve sobre a religião cristã e seu símbolo principal, a cruz.

2.1 A BATALHA DA PONTE MÍLVIA

Para a compreensão de como Constantino entrou em contato com a figura da


cruz e com o cristianismo em geral, é importante conhecer o relato que o historiador
Eusébio de Cesareia apresenta sobre a visão que Constantino afirma ter recebido
enquanto se preparava para batalhar contra Maxêncio. É relatado por Eusébio que,
antes de batalhar contra Maxêncio, Constantino decidiu por fazer um apelo às forças
divinas.2 Considerando que já era monoteísta, sabemos que este apelo era destinado
à apenas um ser superior e divino que, como Bryan M. Litfin afirma, teria sido o Sol
Invicto, deus adorado por seu pai, Constâncio.3
Segundo Eusébio, enquanto orava, foi dada a Constantino a visão de uma cruz
no sol do meio-dia e então se fez um a súplica pelo favor deste Deus que havia o
revelado tal símbolo. Segundo o relato, atrás desse sinal visto no céu, estava a
inscrição que dizia “Por este sinal vencerás”. 3 Segundo Litfin, Constantino teria,
inicialmente, atribuído esta visão a uma manifestação do deus Apolo devido à

1 Para mais detalhes sobre a perseguição de Diocleciano e a mudança no período de Constantino,


vide LITFIN, Bryan M. Conhecendo os Mártires da Igreja Primitiva: uma introdução evangélica (VIDA
NOVA, 2019, p.169-171)
2 História de Constantino (Livro I) de Eusébio de Cesaréia (ESCRIBA DE CRISTO, 1969, Cap. 27);

LITFIN, Bryan M. Conhecendo os Mártires da Igreja Primitiva: uma introdução evangélica (VIDA
NOVA, 2019, p.175)
3 História de Constantino (Livro I) de Eusébio de Cesaréia (ESCRIBA DE CRISTO, 1969, Cap. 29)
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presença de guirlandas de luz que afirma ter visto junto do sinal e, apenas
posteriormente, teria buscado por alguém que o orientasse e então recebeu o ensino
de que se tratava da cruz de Cristo. Após um período de provavelmente dois anos,
entre 310 e 312 d.C., ocorreu durante o sono do futuro imperador mais uma visão,
onde afirma que lhe apareceu o Cristo e lhe revelou que, para ganhar a batalha, ele
deveria usar aquele sinal que havia visto no céu há muito.4
Rapidamente após a segunda visão, Constantino reuniu seus homens e passou
a confeccionar este símbolo para usar em batalha. Foi feita uma grande lança com
uma barra transversal sobre ela, ambas revestidas de ouro e, na ponta, uma coroa de
ouro e pedras preciosas com o símbolo conhecido como ChiRho gravado sobre esta,
visto que este símbolo é composto pelas duas iniciais do nome de Jesus Cristo em
grego (X e P).5
Segundo Bruce L. Shelley, após a grande derrota de Maxêncio diante de Constantino
na ponte Mílvia e após a publicação do Édito de Milão em 312 d.C., os líderes cristãos
passaram a ser beneficiados com a isenção de impostos que outros sacerdotes
pagãos antes desfrutavam com exclusividade, o imperador também baniu as batalhas
de gladiadores e a execução por crucificação.6

2.2 A ACUSAÇÃO QUE PARTE DESTA HISTÓRIA

Como Shelley aponta, existem alguns fatores que levam muitos a desconfiar da
suposta conversão do imperador como sendo mera manobra política, como o fato dele
ter mantido o seu título de Pontifex Maximus, título este com cunho religioso. Diante
desse fator, muitos levantam suspeitas sobre a influência que Constantino pode ter
exercido sobre a religião cristã, afirmando que o mesmo teria alterado
substancialmente diversos elementos do cristianismo primitivo. Entre essas
acusações, levantam-se os membros do Corpo Governante das Testemunhas de
Jeová que afirmam que, devido às palavras gregas usadas na Bíblia para identificar o
objeto onde Jesus havia sido pendurado (“Stauros” e “Xýlon”) poderem ser traduzidas

4 LITFIN, Bryan M. Conhecendo os Mártires da Igreja Primitiva: uma introdução evangélica (VIDA
NOVA, 2019, p.176 e 178)
5 História de Constantino (Livro I) de Eusébio de Cesaréia (ESCRIBA DE CRISTO, 1969, Cap. 30 e 31)
6 SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: Uma obra completa e atual sobre a trajetória da igreja

cristã desde as origens até o Século XXI (THOMAS NELSON, 2018, p.114)
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apenas como “estaca”, Constantino teria deturpado o símbolo e substituído pelo que
teve em sua visão. A cruz como conhecemos, de acordo com estes, é um símbolo
pagão.7
É fato que as palavras utilizadas para indicar o objeto de execução de Jesus
na Bíblia, assim como a sua variante latina, podem ser simplesmente traduzidas como
“estaca” e, também, que um símbolo tão simples quanto duas linhas retas que se
cruzam transversalmente, tenha sido utilizado por outras religiões anteriormente.
Segundo a revista “Despertai!”, Cristo havia sido
pendurado em uma estaca única de tortura e, segundo
ilustrações posteriormente usadas pela mesma, com seus
braços cruzados sobre sua cabeça e atravessados por um
prego único. Esta representação é chamada Crux
Simplex. Se considera o fato de os Testemunhas de Jeová
ainda reconhecerem que haviam crucificações realizadas
em objetos de punição como a cruz conhecida hoje, então
não será abordado esse quesito e haverá apenas o foco
na execução de Cristo e como ela foi representada nos
tempos antigos.

Figura 1: Crux Simplex

2.3 PEQUENA EVIDÊNCIA INTERNA SOBRE O FORMATO DA CRUZ

Além do fato de que os braços cruzados sobre a cabeça de Jesus dificultariam


o posicionamento de uma placa legível sobre esta (e não sobre seus braços, como
relatado em Mateus 27:37), existem duas pequenas evidências no texto bíblico sobre
o assunto. Os textos são os de João 20:25, onde Tomé pede para ver as marcas de
onde os pregos (plural) atravessaram as mãos de Cristo, que indica que as mesmas
foram deixadas separadas na execução, e o de João 21:18-19, onde Cristo afirma que
Pedro morreria com os braços estendidos. Considerando o segundo texto e o
associando ao relato tradicional de que Pedro foi executado em uma cruz, que se

7Despertai! (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA DE BÍBLIAS E TRATADOS DO BRASIL, 22 de março


de 1975, pp. 27-29)
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afirma ser da mesma forma como Jesus, porém de cabeça para baixo 8 , há um
argumento de que Cristo também havia sido executado em uma cruz com haste
transversal.

2.4 A EVIDÊNCIA EXTERNA

Existe um número considerável de textos dos cristãos primitivos influentes (o


período da chamada patrística) que foram preservados, e muitos destes foram escritos
séculos antes do nascimento de Constantino. Destacar-se-ão dois que falam
explicitamente sobre o formato da cruz, os contidos na Epístola de Pseudo-Barnabé e
nos escritos de São Justino de Roma.
O primeiro documento, escrito possivelmente entre os anos 96 ou 131 d.C.,
contém dois trechos importantes sobre a cruz. O
primeiro trecho de destaque é onde o autor associa o
relato de Êxodo 17, onde Moisés estendia seus
braços durante a batalha entre Israel e Amelec, como
um símbolo da cruz e seu poder.9 O segundo trecho
se refere à uma análise de Gênesis 9, onde o autor
afirma encontrar sinais sobre a futura vinda de Cristo
e crucificação, então infere que a cruz teria um
formato similar à letra “T” (pronunciada “ταυ”, do
alfabeto grego).10 Esta forma alternativa da cruz, onde
não há sobra da tábua vertical acima da transversal,
é conhecida como Cruz Tau ou Crux Comissa.
Figura 2: Crux Comissa

O segundo documento foi escrito em data incerta, deixando apenas a certeza


de que foi antes do martírio do autor, ocorrido no ano 165 d.C. Trata-se de um debate
entre Justino, filósofo cristão romano, e possivelmente o rabino Tarfão acerca da
mensagem do evangelho e do Antigo Testamento. Neste, Justino afirma da mesma

8 LITFIN, Bryan. Após Atos: Explorando as vidas e as lendas dos apóstolos (BVBOOKS, 2018, p.
151153)
9 Carta de Barnabé 12:2. Padres Apostólicos (PAULUS, 1995, p. 305)
10 Carta de Barnabé 9:8. Padres Apostólicos (PAULUS, 1995, p. 301)
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forma que o autor da Epístola de Barnabé sobre o relato da batalhe entre Israel e
Amelec, indicando que esta interpretação era provavelmente comum entre os cristãos.
Mais adiante, o autor afirma que a cruz seria como “os chifres do unicórnio” citados
em Deuteronômio 33, que são duas estacas, uma vertical e outra transversal.11 Assim
também, associa o cordeiro pascal com Cristo, afirmando que este cordeiro era
assado em duas estacas, uma vertical e uma transversal, que prefiguravam a cruz.12
Além destes dois, poderíamos ponderar sobre o
relato de Tertuliano acerca do uso do sinal da cruz no
cotidiano cristão 13 e como este sinal seria estranho
caso fosse um símbolo de uma única estaca vertical,
levando em conta que é outro texto escrito muito antes
do nascimento de Constantino. Porém, a presente
análise é suficiente para levantar informações
importantes sobre o assunto.

Figura 3: Crux Immissa

11 Diálogo com Trifão 91:1, 2. Justino de Roma: I e II Apologias / Diálogo com Trifão (PAULUS, 1995,
p. 252)
12 Diálogo com Trifão 40:3. Justino de Roma: I e II Apologias / Diálogo com Trifão (PAULUS, 1995, p.

169)
13 TERTULIANO, De Corona Militis 13:1-2 (THE TERTULLIAN PROJECT, 2002, disponível em:

http://www.tertullian.org/latin/de_corona.htm)
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levadas em conta todas as informações até aqui, são evidentes os registros


como de grande importância para o debate sobre o formato do madeiro. Enquanto
alguns defendem que Cristo tenha sido pendurado em uma estaca individual (Crux
Simplex), baseando-se na etimologia das palavras sobre sua execução, há no texto
bíblico detalhes que parecem indicar o contrário, assim como existem explícitas
evidências externas sobre o formato reconhecido pelos primeiros cristãos acerca do
símbolo.
Certamente, poder-se-ia levantar outro debate sobre a cruz original ser em
formato da Crux Comissa (ou Cruz Tau, Figura 2) ou no formato mais comumente
conhecido, a Crux Immissa (Figura 3), visto que a Epístola de Pseudo-Barnabé afirma
a primeira e o texto de Justino aparenta afirmar a segunda. Porém este debate seria
de menor importância para muitos cristãos, pois os dois símbolos são historicamente
reconhecidos.14
Há forte caso em defesa da cruz utilizada pelos cristãos e ausência de
testemunho patrístico mais antigo em contraposição. Porém, mais importante do que
isso, é evidenciado que a cruz é um símbolo cristão de presença e influência mais
antiga do que a figura de Constantino I, derrubando a tese de que este teria introduzido
o símbolo na religião.

14 Um exemplo do uso da Crux Comissa na história cristã popular vem dos relatos sobre a vida

de São Francisco de Assis, que costumava marcar os ferimentos curados e as celas que visitava com
o símbolo da Cruz Tau.

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