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Resumo
A comunicação tem como objetivo apresentar como ocorreu a passagem da arte imperial
monumental para arte cristã destacando a imagem do Cristo Pantocrator no período do
imperador Constantino após o Edito de Milão, quando cristianismo deixou de ser religião
perseguida. Para compreensão desse evento será preciso: entender o que foi o arianismo, passar
pela convocação do Concílio de Niceia, suas decisões mais relevantes, a importância da arte
para os teólogos da época e a atuação dos artistas imperiais no desenvolvimento da arte cristã
bizantina. A base para essa pesquisa serão as obras do arqueólogo André Grabar e de seus
comentadores.
Introdução
O Édito de Galério em 311 (HOLMES, 2006, p. 45), que encerrou a perseguição aos
cristãos, a vitória de Constantino sobre Maxêncio na Ponte Milvia (312), e o Édito de Milão
(313) determinaram o triunfo do Cristianismo sobre o Império Romano. A arte deixou as
catacumbas e pôde se expandir pelas igrejas. Foram construídos grandes edifícios em Roma sob
a ordem imperial (MÂLE, 1950, p. 261).
Para Boespflug, o fator decisivo da reviravolta pós-constantiniana da arte cristã não teria
sido a mudança de status do Cristianismo, mas a necessidade tanto da Igreja como do Estado,
então estreitamente solidários, de uma defesa da ortodoxia contra a doutrina ariana.
Ário se apresentava como um teólogo conservador, defensor estrito do monoteísmo e
negava que Cristo fosse Deus ou igual a Deus. O Filho era posterior ao Pai, Ário sustentava que
“houve um tempo em que o Cristo não era” (BOESPFLUG, 2008, p. 77).
∗
Doutora em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: e-mail
wilmatommaso@uol.com.br.
1. Imagens, Ário e o Império Romano
Em 325, o Concílio de Niceia convocado por Constantino foi o primeiro Concílio
Ecumênico que afirmou solenemente que Cristo era: “nascido do Pai, único engendrado, luz
nascido da luz, verdadeiro Deus nascido de verdadeiro Deus, engendrado não criado, da mesma
natureza (homoousios) que o Pai” (BOESPFLUG, 2008, p. 77).
Além da condenação de Ário, os bispos do Concílio também entraram em acordo sobre
uma nova declaração de fé à luz da questão:
Nós cremos em Deus Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis,
e em um único Senhor, Jesus Cristo, filho unigênito do Pai, feito da essência do Pai,
Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado,
consubstancial ao Pai e por quem tudo foi criado, no Céu e na Terra, e que virá julgar os
vivos e os mortos. E no espírito Santo1. (HILL, 2009 p. 80-81.)
Ao longo dos séculos que seguiram o Concílio, a preocupação de confirmar a
consubstancialidade do Filho com o Pai se traduziu na arte e na liturgia pelo cristocentrismo
bem marcado e nesse tempo apareceram as primeiras representações do Pantocrator
(SENDLER, 2001, p. 27).
1 Esse símbolo de Niceia viria a se tornar o mais importante texto cristão jamais produzido, base do Credo de Niceno que é ainda
hoje recitado nas igrejas.
2 Lactâncio conheceu Constantino antes de este se tornar imperador e foi chamado à corte onde viveu provavelmente muitos anos.
Ele nunca cessou de maldizer as imagens pagãs, sobretudo as estátuas. Em sua obra apologética Instituições divinas, não há nada
que aponte que ele encoraje as imagens cristãs.
Que imagens do Cristo procuras? Seria a verdadeira, imutável, aquela que possui por
natureza suas características próprias, ou seria aquela que (o Cristo) assumiu para nós
quando se revestiu da figura (schema) da forma de escravo?... Pois ele possui duas
formas, mas eu mesmo não posso pensar que busques uma imagem da forma divina; na
verdade, o próprio Cristo te ensinou que ninguém conhece o Pai, a não ser o Filho, e que
ninguém foi digno de conhecer o Filho a não ser o Pai que o engendrou (Mt11,27); o que
se deve pensar portanto, é que a procuras (a imagem) da forma de escravo e de carne que
ele se revestiu para nós. Ora, desta ficamos sabendo que ela misturou-se à glória da
divindade e que o que é mortal foi tragado pela vida. (Apud SCHÖNBORN, 1986, p. 56.)
Não se deve ter em conta que a carta tenha sido a última palavra do que pensava
Eusébio, muito menos represente a posição da Igreja sobre as imagens no século IV. Para
Boespflug, convém não exagerar na importância desse documento, pois não está explícita a
defesa do emprego não cultual das imagens religiosas em geral, mas somente contra a ideia de
uma imagem devocional do Cristo (BOESPFLUG, 2008, p. 78).
O Cristo Deus na arte do império, colocado na abside, foi destinado para ser visto
primeiro por quem entrava na basílica, e em toda igreja cristã até o século XIV, como se o fiel
que entrasse no edifício fosse acolhido por Deus. A basílica, a princípio, não era a casa de Deus,
mas o lugar de reunião do povo. Ao fundo das igrejas, aparecia, dali em diante, a poderosa
figura do Cristo em busto, imperator, o Pantocrator (BOESPFLUG, 2011, p. 106-107).
Na divindade de Cristo exibe-se, em resposta ao Concílio de Niceia, Sua verdadeira
identidade: “Deus nascido de Deus, verdadeiro Deus nascido do verdadeiro Deus, da mesma
substância que o Pai”, expressão esta que traduz em tese o neologismo grego homoosius. Os
heréticos arianos recorreram nesse contexto à palavra homoiosius que se limita a afirmar uma
semelhança entre o Pai e o Filho; não mais uma identidade substancial, de natureza de ser do
Pai e do Filho, apenas uma relação de semelhança.
Por conseguinte, os Pais da Igreja tiveram que elaborar uma doutrina para fixar a
identidade de Jesus. Os artistas resolveram esse problema recorrendo principalmente ao modelo
imperial ou ao modelo de Júpiter. A imagem do imperador imita a imagem dos deuses do
Pantheon, em particular a de Júpiter (BOESPFLUG, 2011, p.108-111).
3 Professora de Iconografia Cristã e de Teologia Simbólica na Universidade Gregoriana e no Instituto Oriental de Roma.
4 Neste caso o Anticristo é o bárbaro que ameaça Roma.
[...] o édito de Constantino significa, antes de tudo, que toda forma de religiosidade, em
razão da frágil organização que a Igreja podia dar até esse momento, ficaria a cargo do
Império; dessa forma, os temas cristãos buscaram, para se expressar, o repertório próprio
da arte pagã, mas sua formulação indica que é sempre a ideologia imperial, encorajando
as imagens de triunfo, de poder, que são propostas como momento essencial da nova
religião. É por isso que não são quase nunca representados nem os dogmas, nem as
concepções teológicas, para os quais faltam, aliás, modelos expressivos: ao contrário, é o
poder divino que é representado por esses artistas habituados a expressar, através de uma
iconografia oficial, as façanhas do monarca. (Apud MUZJ, 2005, p. 96.)
No início do século V a Igreja se deu conta do que realmente poderia fazer, no que diz
respeito à iconografia, se assumisse a direção ideológica de seus programas, pois na primeira
fase fora inspirada apenas pela iconografia do império. Segundo Grabar:
A mais antiga iconografia cristã empregava normalmente motivos e fórmulas de uso
mais ou menos corrente em todos os setores da arte contemporânea; o que aconteceu no
século IV é semelhante, mas distinto. Todo o “léxico” de uma linguagem triunfal ou
imperial transpôs o “dicionário”, até aí limitado e pouco adaptado ao tratamento das
ideias abstratas que serviam à iconografia cristã. No futuro, isso seria profundamente
modificado e o que foi criado permaneceu fundamental para a arte cristã. Hoje, ainda,
graças a essa tradição tenaz, a maior parte dentre nós empresta à representação das
realidades divinas os traços mais ou menos confusos que remontam à arte do Baixo-
Império: o Cristo sentado solenemente sobre um trono; ele faz o sinal da bênção; está
rodeado por anjos ou de santos em pé ao seu lado; ele está coroado e coroa os santos [...].
O empréstimo da iconografia imperial sobre a arte é reconhecido por todos e por muitas
maneiras; apropriação de temas e de objetos; empréstimo dos detalhes iconográficos,
utilização de modelos mais antigos para criação de imagens análogas. Foi para o tema do
poder supremo de Deus que a arte imperial mais contribuiu, e isso é natural, pois era o
tema-chave do repertório iconográfico do chefe do Império. (Apud MUZJ, 2005, p. 97.)
Em geral, essa tendência da arte monumental dos séculos IV e V foi interpretada como
expressão plástica da ideia do triunfo da religião cristã. Grabar, todavia, propôs, ao contrário,
outra interpretação que, afastando-se dessa perspectiva ideológica, traz melhor compreensão
para a composição de um novo ciclo de imagens cristãs:
nós acreditamos, com efeito, que essa arte tenha figurado não o triunfo do Cristianismo,
mas a vitória do Cristo, autor desse triunfo. A diferença pode parecer insignificante. Mas
em se adotando, pode-se esclarecer a via pela qual os artistas cristãos podiam chegar
praticamente a usar as composições típicas da arte imperial. (Apud MUZJ, 2005, p. 98.)
Para os cristãos, essas imagens mostravam a todos os espectadores a onipotência de
Deus e do Cristo; que ela se estende sobre o céu e a terra, e sobre a terra engloba o império e os
povos bárbaros, ou seja, todo o universo habitado: o Pantocrator. Grabar afirma que é
significativo que a iconografia cristã de alcance universal tenha vindo de um chefe de Estado.
Segundo Grabar:
se a mesma iniciativa tivesse partido da Igreja, pode-se imaginar como consequências
prováveis que essa escolha cairia sobre os temas iconográficos aos quais se dava
prioridade: seria a comunidade cristã, notadamente, e não o Estado romano, que teria
sido chamado a figurar a totalidade do mundo cristão. (GRABAR, 2009, p. 78-79.)
Para o autor, as imagens de princípios cristãos não foram traduzidas segundo as
definições cristológicas do espírito da época, nem a partir de dogmas da Igreja, pois não foi
antes do ano 400 que o alto clero se deu conta de que poderia se lançar no domínio da
iconografia e que esse seria um instrumento expressivo da piedade privada e pública.
A teologia da imagem pôde se desenvolver graças à cristianização da arte grega e não da
helenização do Cristianismo. Os especialistas em arte bizantina concordam que esta arte se
inspirou no savoir-faire dos técnicos em arte da arte imperial e na filosofia neoplatônica, o que
conferiu à arte um conteúdo dogmático e litúrgico. Exemplo disso é o Pantocrator de Saint-
Apollinaire-in-classe de Ravena da época justiniana.
Figura 1: Mosaico Cristo Pantocartor. Basílica de Santo Apolinário o Novo, Ravena, Itália, fins do séc. V ou
inícios do séc. VI dC.
Conclusão
André Grabar e Léonid Ouspensky reconhecem que em se tratando de arte bizantina há
a herança da Antiguidade, sem esquecer as influências da arte oriental e a criação de uma arte
cuja novidade se impunha pela necessidade de representar a essência do Cristianismo: o
senhorio do Cristo. Para Grabar, não só a técnica da pintura bizantina e o modo dos gestos, o
drapeado e as formas das paisagens de arquitetura remontam à Antiguidade, “mas também a
arte grave e solene, majestosa e nobre, características de tantas obras bizantinas, ou ainda as
belas representações ‘teofânicas’ das visões de Deus” (GRABAR, 1992, p. 16).
Uma das características que mais impressiona na arte bizantina é o hieratismo, que já foi
interpretado como sinal de rigidez; entretanto, deve ser compreendido não apenas como
expressão de solenidade, mas como a impassibilidade própria da santidade. Esse hieratismo
pode confrontar à placidez própria da arte do Oriente, pois difere por seu fundamento espiritual
que foge ao naturalismo mais presente na arte ocidental (COPSIDAS, 2009, p. 67).
A arte bizantina não representa regressão em relação à arte da Antiguidade, que seria
consequência da imperícia ou ignorância de seus artistas, mas sim seu apogeu. A linguagem
artística de Bizâncio é bem mais sábia que aquela praticada outrora e é a essa atividade, de
geração em geração, de técnicos e de eruditos de Constantinopla a quem a arte deve (GRABAR,
1992, p. 12-13).
Referências
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______. La pensée des images: entretiens sur Dieu dans l’art, avec Bérénice Levet.
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COPSIDAS, Marina. Le Christ Pantocrator: présence et rencontre. (Préface du Père Boris
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GRABAR, André. Les origines de l'esthétique médiévale, Paris, Macula, 1992
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HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Edições Rosari, 2009.
HOLMES, J. Derek; BICKERS, Bernard. W. História da Igreja Católica. Lisboa: Edições 70,
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MÂLE, Emile. L’art chrétien primitif; l’art byzantine. In: ______ (org.) Histoire Genérale de
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SCHÖNBORN, Christoph. L’icône du Christ: fondements théologiques. Paris: Les Éditions du
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