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Constantino:

da história ao mito, do mito à lenda

por
Isidro P. Lamelas, ofm

Introdução: há 1700 anos

Em Fevereiro de 313, Constantino, depois de ter eliminado o seu ad-


versário Maxêncio e assumido o domínio total do ocidente, em confe-
rência com Licinius, que continuava a reinar no oriente, promulgou o cé-
lebre decreto de tolerância religiosa que garantia aos cristãos, depois de
três séculos de intermitentes mas violentas perseguições, a paz e a liber-
dade de culto. Celebramos assim 1700 anos do chamado «Édito de Mi-
lão» que, como o demonstra a historiografia mais recente, para além dos
factos históricos, constitui um dos elementos da complexa lenda constan-
tiniana. De facto, sabemos hoje que não se trata de um «Édito de Cons-
tantino», mas de um réscrito conjunto de Licínio e Constantino; nem «de
Milão», uma vez que foi tornado público primeiro em Nicomédia1.
A pretexto desta efeméride, propomo-nos não tanto revisitar a histó-
ria, tão rica como intrincada, da chamada «viragem constantiniana», mas
retomar, em forma de síntese atenta às recentes investigações, os aspetos
mais significativos do mito que nasceu dessa história.

Constantino sinal de contradição

Flavius Valerius Constantinus, nascido a 27 de Fevereiro de um ano


que desconhecemos (entre 273 e 280), filho mais velho do imperador
Constanço Cloro e Helena, tornou-se Augusto quando seu pai morreu,
em 23 Julho de 306. Depois de derrotar os rivais Maxêncio e Licínio, as-
sumiu-se como senhor absoluto do império romano2.
1
Cf. Ch. PIETRI, Constantin et l’inflexion chrétienne de l’Empire, in J.-M. MAYER - Ch.
PIETRI - A. VAUCHEZ - M. VENARD, Histoire du christianisme, II: Naissance d’une chré-
tienté (250-430), Paris 1995, 198-199.
2
Cf. MICHAEL GRANT, Constantine the Great: The Man and his Time, N. York 1993, 15-
17; 38; 48.

Itinerarium, LIX (2013) 191 - 227


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O primeiro imperador cristão mereceu assim o epíteto de Magnus.


Tão «grande» que não coube na história do seu tempo nem numa úni-
ca versão dos historiadores ao longo dos tempos. Um destes, Eusébio de
Cesareia, querendo demonstrar que só o seu imperador merecia realmen-
te o epíteto de «grande», argumenta que nem Alexandre da Macedónia
viveu e (sobretudo) morreu como um grande, se comparado com Cons-
tantino, que «começara a reinar no tempo em que o Macedónio deixara
de existir, teve uma vida muito mais longa e triplicou a duração do pró-
prio império»3.
Longa e fantástica será, realmente, a vida de Constantino Magno.
Grande sobretudo na imagem que a lenda dele foi esboçando, não tão
grande pela sua real dimensão humana e histórica; grande de qualquer
modo pela marca que deixou na história, ainda que cheia de contradições
e interrogações.
Foram, na verdade, múltiplas, diversas e até contraditórias as leitu-
ras que se fizeram do evento Constantino. Como conclui André Piga-
niol, «on pourrait constituer toute une galerie de portraits de Constan-
tin, si dissemblables qu’on aurait grand-paine à suposer qu’il s’agisse du
même personnage»4.
O que levou muitos a acreditar que nada podemos saber realmente do
Constantino histórico, uma vez que os testemunhos que nos restam são
redigidos ora por inimigos declarados, ora por amigos demasiado solíci-
tos5. O desacordo sobre a avaliação do fenómeno Constantino continuou,
por isso, até aos nossos dias. Libertador para uns, por ter restaurado a paz
da Igreja, após o terror das perseguições, culpado por outros por ter pos-
to em causa a pax deorum ao abandonar a tradicional pietas que assegu-
rava a proteção dos deuses e a salvaguarda do império6, desde a primei-
ra hora, a ambiguitas constantiniana está patente nas divergentes leituras
da sua intervenção histórica. De facto, entre o anticonstantinismo decla-

3
EUSÉBIO, Vita Constantini, I,8,1.
4
ANDRÉ PIGANIOL, L’Empire chrétien, Paris 1972, 77.
5
O desinteresse pelo Constantino histórico prolongou-se até meados do século XVI (1576,
quando Johannes Löwenklav centrou a atenção da historiografia sobre a História Nova de
Sózimo).
6
Cf. Ch. PIETRI, Constantin et l’inflexion chrétienne de l’Empire, in J.-M. MAYER - Ch.
PIETRI - A. VAUCHEZ - M. VENARD, Histoire du christianisme, 189.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 193

rado7 (Eunápio, Eutrópio, Juliano, Sózimo) e o filoconstantinismo incon-


dicional (historiografia cristã)8 são raras as tomadas de posição neutras.
Tal ambiguidade evidencia-se desde logo no modo como se entende
a «conversão» do imperador. De um lado, a leitura do paganismo resis-
tente que sublinha a ideia de continuidade com o período precedente; do
outro, a versão dos cristãos que acentua a ideia de viragem ou «revolu-
ção» (svolta)9. No primeiro caso, Constantino aparece como um legíti-
mo coerdeiro da tetrarquia e em linha de continuidade e fidelidade ao seu
pai Constanço Cloro; no segundo caso, o imperador é colocado em nítido
contraste com os seus antecessores perseguidores dos cristãos (Lctâncio,
De mortibus persecutorum). E, na Vita Constantini, Eusébio perfila o im-
perador convertido como o novo Moisés que conduz à liberdade o novo
povo de Deus, oprimido pelas travas do paganismo e da perseguição.
Estamos, de facto, perante «um dos acontecimentos decisivos da nos-
sa história, que se produziu em 312, no imenso Império Romano»10. Po-
demos discutir a vexata quaestio se Constantino se converteu ao Cristia-
nismo ou a que cristianismo, mas não há como pôr em causa a revolução
que significou o facto da aceitação pública de que a Igreja é uma realida-

7
A primeira reacção anticonstantiniana fez-se notar já entre o quarto e quinto século, nos
círculos pagãos conotados com a contrareforma de Juliano Apóstata. O melhor exemplo da rea-
ção pagã anticonstiantiniana é a lenda propagada por Juliano e retomada por Eunapius (preser-
vada por Sósimo) que contava que Constantino se tornara cristão porque só na nova religião ele
podia encontrar remissão para os seus crimes (morte da mulher e filho). Cf. JULIANO, Caesars
336B. O segundo momento coincidiu com a crítica e demolição do Constitutum Constantini (L.
VALLA, 1440) que, até então constituíra uma rocca forte dos poderes da Igreja. Um terceiro
momento será assinalado pelos estudos de Jacob Burckardt que repropôs uma imagem de um
Constantino hábil político que usa a religião como recurso do seu hábil estratagema político. Cf.
SALVATORE CALDERONE, Letteratura costantiniana e «conversione» di Costantino, in G.
BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesimo. Collo-
quio sul Cristianesimo nel mondo antico. Macerata, 18-20 Dicembre 1990, I, Macerata 1992,
231-235; 237-249.
8
Foi sobretudo depois de 324-325 (vitória de Constantino sobre Licínio e Concílio de Niceia)
que se multiplicaram as interpretações entusiastas de Constantino. Tais leituras eram, sem dúvida,
animadas por um imperador cada vez mais «convertido»: legislação pró-cristã, iniciativas em
benefício do culto cristão, papel no Concílio de Niceia, discursos e cartas; numismática (presença
do monograma de Cristo).
9
Cf. NICOLA BAGLIVI, De Diocleziano a Costantino: un punto di referimento «storiogra-
fico» in alcune interpretazioni tardoantiche, in G. BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino
il Grande dall’Antichità all’Umanesimo, 60-66.
10
PAUL VEYNE, Quando o nosso mundo se tornou cristão, Lisboa 2009, 9.
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de social de cariz religioso, um corpus christianorum ao qual se reconhe-


ce o direito de existir e manifestar publicamente11.
A partir dos anos 30 do século passado a «questão constantiniana»
tornou-se um dos temas preferidos dos estudiosos do mundo antigo12.
Desde então, recolocou-se a questão do real significado da «conversão»
de Constantino que, segundo alguns (Gregoire13), seria uma invenção da
11
Edward Gibbon usa a palavra «revolução» para se referir ao «estabelecimento público da
cristandade que se pode considerar como uma dessas importantíssimas e profundas revoluções»
que, segundo este historiador, acabou por causar a ruina do império. Declínio e queda do Império
Romano, I, Lisboa 1994, 308. John Bagnell Bury considerava, no início do século XX, que «a
revolução religiosa operada por Constantino em 312 foi talvez o acto mais audacioso que alguma
vez um autocrata realizou, desafiando … o que pensava a grande maioria dos seus súbditos»
(History of the Later Roman Empire from Deth of Theodosius I to the Deth of Justinian, N. York,
19232, 360. Cf. ANTÓNIO FONTÁN, La revolución de Constantino, in J. M. CANDAU-F.
CASCÓ-A. R. VERGER, La conversión de Roma. Cristianismo y Paganismo, Madrid 1990, 107-
150. Segundo A. DEMANDT (Die Spätantike. Romische Geschichte von Diokletian bis Justinian
(284-565 n. Chr.), München, 1989, 66) «a batalha da ponte Milvius é um dos acontecimentos
decisivos da história mundial, porque funda a vitória do cristianismo».
12
Assunto do Congresso internacional de História de 1955. Ver nota seguinte.
13
O belga Henri Grégoire que em 1930 rejeitou a autenticidade não apenas da conversão de
Constantino ao Cristianismo, como também da própria Vida de Constantino, bem como de toda a
tradição pró-constantiniana [La «conversion» de Constantin, in Revue Universitaire de Bruxelles
36 (1930) 231-272; 44 (1938) 561-583]. Entre os 1930 e 1940, o historiador e arqueólogo francês
André Piganiol (1883-1968) publicou dois estudos sobre Constantino e a formação do Império
Cristão (L’empereur Constantin, Paris 1933; 1972), onde contestava as falsas premissas dos estu-
dos que interpretam Constantino a partir de um realismo político (PIGANIOL, L’Empire Chré-
tien, Paris 1972, 78). Este estudioso sustenta que Constantino buscava o culto do Deus Supremo,
o que já significava uma evolução do sincretismo filosófico-religioso do século III. Muitos auto-
res seguiram desde então o mesmo caminho (cf. J. Moreau, Introduction. In Lactance. De la mort
des persécuteurs. Paris, 1954). Em 1948, Arthur Hugh Martin Jones publicava a obra Constantine
and the conversion of Europe, querendo mostrar que Constantino já venerava o Deus Supremo
(sob a forma de Sol invictus), acabando por identificá-lo com o Deus Cristão, visto como o mes-
mo Deus Supremo. Por sua vez, Ramsay MacMullen interpreta a conversão de Constantino como
um evento que mudou radical e rapidamente a situação religiosa do Império Romano (MAC-
MULLEN, Christianizing the Roman Empire (A.D. 100-400). New Haven-London, 1984, 43 ss.).
Os mais recentes estudos sobre o assunto tendem a tomar uma posição favorável a um Constanti-
no cristão. É o caso de T. G. Elliot (The Christianity of Constantine the Great, N. York 1996), e
de Charles Matson Odahl (Constantine and the Christian Empire, London 2004). Para o primeiro,
Constantino já estava orientado e até comprometido com o cristianismo desde a influência de seus
pais Constanço Cloro e Helena que já seriam cristãos. Quando se tornou imperador, Constantino
manifestou a sua persona christiana: daí as políticas favoráveis aos cristãos levadas a cabo logo
que assumiu o império. Semelhante parecer é seguido por Charles Odahl ao apresentar um retrato
histórico-biográfico de Constantino e do seu desenvolvimento religioso do paganismo ao cristia-
nismo. Também o reputado historiador Henry Chadwick, na sua obra The Church in Ancient So-
ciety: from Galilee to Gregory the Great, de 2001, defende que que as relações entre Constantino
e o cristianismo se desenvolveram desde os momentos iniciais de seu governo na Gália e Britânia.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 195

primeira historiografia cristã (Lactâncio e Eusébio), à qual se teria ade-


quado Constantino por oportunismo político. Tal leitura está hoje pos-
ta de parte, confirmando-se em grande parte a communis opinio de que,
durante a campanha contra Maxêncio, algo de excepcional sucedeu real-
mente na mente religiosa de Constantino que o leva a abandonar o paga-
nismo tradicional para aderir a um misterioso summus deus (dos filósofos
ou do culto solar?), agora identificado com o Deus dos cristãos.
Se o comportamento de Constantino provocou reacções entre o pa-
ganismo tradicionalista, não motivou menores perplexidades da parte de
muitos cristãos que até então estavam acostumados a constatar uma real
incompatibilidade entre as duas cidades e os dois reinos: o de César e
o de Deus14. Não admira pois que, após uma primeira euforia pela con-
quista da liberdade, se tenha gerado, também entre os cristãos, um cres-
cente anti-constantianismo (sobretudo da parte dos nicenos, e a partir do
momento em que o imperador mostrava favorecer claramente Ario e seu
partido, culminando com o seu baptismo pelas mãos de um filoariano)15

Mais recentemente, o historiador francês Paul Veyne, na obra Quand notre monde est devenu
chrétien (312-394), publicada em 2007, sustenta que o grande papel histórico de Constantino foi
o de fazer do Cristianismo sua religião pessoal, uma religião favorecida pelo poder imperial, ao
contrário do paganismo. Para este autor o motivo da conversão de Constantino é simples: «àque-
le que desejava ser um grande imperador, era necessário um grande deus. Um Deus gigantesco e
amante, que se apaixona pela humanidade, suscitava sentimentos mais fortes que a multidão de
deuses do paganismo, que viviam para si mesmos ignoravam; este Deus desenrolava um plano
não menos gigantesco para a salvação eterna da humanidade; Ele imiscuía-se na vida de seus fiéis
exigindo-lhes uma moral estrita» (p. 33). Esta leitura restitui a Constantino a importância que a
historiografia pós-iluminista lhe tinha retirado, fazendo dele um momento central na história da
humanidade, uma vez que sua conversão lançou bases para a cristianização do Império Romano
e da civilização ocidental. Sob o influxo das novas perspectivas abertas por Peter Brown, a estu-
diosa inglesa Averil Cameron procurou inserir Constantino num contexto histórico marcado por
transformações e continuidades que desembocaram num «novo Império». Seguindo as tendên-
cias dos seus antecessores, Constantino introduziu novos aspectos no âmbito político, administra-
tivos e religiosos que caracterizam esse novo império (El Bajo Imperio, Madrid 2001, 34). Con-
temporaneamente, o historiador italiano Arnaldo Marcone insiste ainda mais na ideia de uma
continuidade entre a idelologia do império pagão e a novidade trazida por Constantino ao abraçar
a nova religião. Também este autor entende a conversão de Constantino como um processo que
começou nos anos da crise de tetrarquia e culminou em 312 (Pagano e cristiano. Vita e mito di
Costantino, Roma 2001, 45-46).
14
Esta não era, contudo, a opinião unânime de todos os cristãos. Muitos destes, desde muito
cedo, viam mesmo no império romano uma ajuda providencial para a afirmação e expansão do
cristianismo. Cf. MELITÃO DE SARDES, in EUSÉBIO, História eclesiástica, IV,26,7-8; IRE-
NEU, Adv. haer. V,24,2-3; TERTULIANO, Apologeticum, 33.
15
Foi após os anos conturbados de 378-380 (Batalha de Adrianopoles, morte de Valente, to-
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a que a literatura pró-constantiniana foi respondendo, pintando uma ima-


gem idílica de Constantino16.
Assim se explica, em parte, a falta de interesse pelo Constantino his-
tórico e a precoce tendência para envolver essa figura histórica, desde o
acontecimento de 28 de Outubro de 312, em contornos «fabulosos/míti-
cos» que escaparam desde a primeira hora ao controlo crítico da histo-
riografia moderna.

A construção do mito

Porque a figura histórica estava longe de ser consensual e de recepção


pacífica, teve muito maior aceitação a figura legendária que a histórica.
De facto, a ficção constantiniana foi-se desenvolvendo para atingir o seu
apogeu na idade média e ao longo de séculos temos vivido sob o mito de
Constantino e das muitas lendas que ele inspirou. Isto não quer dizer que
estamos perante uma «magna mentira», ou séculos de falsificação histó-
rica feita apenas de falsários do tipo da donatio constantiniana.
O mito de Constantino desenvolveu-se por etapas e com contornos
muito diversos ao longo dos tempos e conforme as situações, com va-
riantes nalguns casos surpreendentes e nem sempre coerentes17. Quem
visita, em Roma, a Basílica dei Santi Quatro Incoronati, pode contemplar
nos frescos da capela de S. Silvestre os passos mais marcantes da lenda
de Constantino que eram familiares aos autores antigos.

mada do trono por Teodosio que se recordou abertamente esse acontecimento: Constantinus ex-
tremo vitae suae tempore ab Eusebio Nicomediensi episcopo baptizatus in Arrianum dogma de-
clinat (JERÓNIMO, Chronicon). Os copistas medievais vão corrigir Constantinus para
Constantius, a fim de resolver o incómodo de tal informação histórica.
16
Na historiografia eclesiástica grega (Sócrates, Sozómeno, Teodoreto) continuam a colocar
o batismo de Constantino em Nicomédia, mas sem nomear o ministro que o baptizou. Aliás, o
nome de Eusébio de Nicomédia acabará por ser substituído, nalgumas fontes, por Eusébio de
Roma (que assumiu a sede de Pedro em Abril de 308) que, por sua vez, será substituído pelo papa
Silvestre. Posteriormente dir-se-á que Constantino, batizado por um ministro ortodoxo, só adiou
o batismo para tão tarde porque esperava ser batizado no rio Jordão (FÓCIO, Biblioteca, cod. 88).
Cf. SAMUEL LIEU, From History to Legend and Legend to History. The medieval and Byzantine
transformation of Constantin’s Vita, in SAMUAL N. C. LIEU – DOMINIC MONTSERRAT,
Constantine. History, Historiography and Legend, N. York 1998, 140-141.
17
Cf. FILIPPO CARLÀ - MARIA G. CASTELLO, Questioni tardoantiche. Storia e mito
della «svolta constantiniana», Roma 2010, 18.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 197

Na presente síntese, tocarei apenas os aspectos porventura mais rele-


vantes da complexa, mas sempre fascinante memória fantástica do pri-
meiro Imperador Cristão.
Não sendo este o lugar para nos espraiarmos em considerações sobre
os mitos históricos, assinalo apenas que, falando de «mito de Constan-
tino», nos referimos ao complexo de narrativas, imagens, metamorfoses
e adaptações que durante séculos conservaram viva e eficaz a memória
do primeiro imperador cristão. Interessa-nos, pois, sobretudo a memória
ideal de Constantino Magno, tal como ela se foi conservando, precisa-
mente na medida em que se foi alheando da figura histórica para se trans-
formar em mito duradoiro.
O mito histórico de Constantino compendia-se num conjunto comple-
xo de lendas e narrativas populares e hagiográficas ligadas à figura histó-
rica do primeiro imperador cristão, um dos mitos que mais influenciou o
mundo medieval e não morreu, pelo menos no Oriente, nos séculos pos-
teriores18.
A mitologia sacra constantiniana faz parte da própria história, mas ul-
trapassa, como já demos a entender, os factos históricos contemporâne-
os. É já significativo que essa não seja produto tardio, mas tenha surgido
quase contemporaneamente aos eventos. Por isso ela é tão fundamental
como os factos para compreendermos a situação histórico-religiosa da
era chamada «constantiniana».
Através de que vias chegou, pois, até nós esse outro Constantino «mi-
tificado»? Poderámos responder, enumerando as seguintes vias:
• A historiografia antiga, sobretudo a Vita de Eusébio;
• As cerca de 30 Vitae hagiográficas (elencadas na Bibliotheca Ha-
giographica Graeca, nn. 362-369)19;

18
Poucos personagens históricos mereceram a esta sorte de se terem mantido vivos e omni-
presentes: na historiografia, na hagiografia, na fé popular, ou ainda na tradição culta. Tanto o
poder religioso como o poder político, a ocidente e a oriente, pelo menos até ao século XVI, farão
uso das forças regeneradoras deste mito. Cf. E. EWIG, Das Bild Constantins des Grossen in den
ersten Jahrhunderten des abendländischen Mittelalters, in Historisches Jahrbuch LXXV (1956)
1-46; A. LINDER, The myth of Constantine the Great in the West: Sources and Hagiographic
commemoration, in Studi Medievali 3ª s. 16 (1975) 43-95.
19
Cf. SAMUEL LIEU, From History to Legend and Legend to History. The medieval and
Byzantine transformation of Constantin’s Vita, in SAMUAL N. C. LIEU – DOMINIC
MONTSERRAT, Constantine. History, Historiography and Legend, N. York 1998, 152-
154.
198 ISIDRO P. LAMELAS

• As tradições difundidas na Europa oriental20;


• A tradição da legenda da inventio crucis (‘Kreutzauffindungsle-
gende’) que desde os finais do século IV enriquece e alimenta o
mito constantiniano;
• As tradições narrativas posteriores, divulgadas nos séculos XIII e
XIV, que retomam tradições anteriores, como é o caso da legen-
da aurea e do Libellus de Constantino Magno eiusque matre He-
lena (séc. XIII), onde se narram as peripécias da vida fantasiada
de Helena e Constantino.

A Ponte Mílvio limiar do mito

Essas as fontes literárias, mas o grande momento fundante do mito


constantiniano coincide com os acontecimentos daquele dia 28 de Ou-
tubro de 312, que calhava no sexto jubileu da proclamação imperial
de Maxêncio, em que Constantino derrota este seu adversário na pon-
te Mílvio.
Nesse tempo, um império podia cair por intervenção dos deuses ou
dos homens, mas nunca só por vontade destes últimos. Por isso, em qual-
quer caso, havia que manter-se pio e não provocar a pax deorum. Tam-
bém por isso, o acontecimento da Ponte Mílvio é apresentado e interpre-
tado pelas fontes (cristãs) mais antigas como o episódio culminante de
uma guerra de religião entre Constantino inspirado pelo Deus dos cris-
tãos e Maxêncio movido pela pietas pagã21. Nesta interpretação «religio-
sa» do facto político foi fundamental a visão que terá decidido o desfe-

20
A rivalidade entre o oriente e o ocidente eclesiásticos, agravada pela controvérsia ariana
e pela animosidade que opôs Constantinopla e Roma, levou os orientais a proclamar
Constantino «igual aos apóstolos» (isapostolos), émulo de Pedro e comparável a Paulo.
Em contrapartida, no ocidente resistiu-se sempre à canonisação do imperador. Cf. E.
BECKER, ‘Protest gegen den Kaiserkult und Verherrlichung des Sieges am Pons Milvius
in der altchristlichen Kunst der konstantinschen Zeit, in Römische Quartalschrift Suppl.
20 (1913) 155-190. Para aprofundar, veja-se F. WINKELMANN, Das hagiograische
Bild Konstantins I im mittel-Byzantinischer Zeit, in: V. VAVŘINEK (ed.), Beiträge zur
byzantinischen Geschichte im 9.-11. Jahrhundert, Prague 1978, 179-203; A. KAZHDAN,
Constantin imaginaire. Byzantine legends of the ninth century about Constantine the Great,
in Byzantion 57 (1987) 196-250; S. N. C. LIEU, From History to Legend and Legend to
History, 136-176.
21
ARNALDO MARCONE, Pagano e cristiano. Vita e mito di Costantino, Roma 2002.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 199

cho da batalha e a «conversão» do imperador que combatera em nome


do «sumus deus».
O primeiro documento que testemunha, até aos nossos dias, esse
acontecimento é o Arco de Constantino, inaugurado no dia 25 de Julho
de 325, pelo 10º aniversário da sua proclamação como imperador, para
celebrar precisamente a victoria constantiniana. Já aí o motivo do triunfo
é atribuído à «inspiração divina» (instinctu divinitatis). Isto é, o impera-
dor assume-se como instrumento e ao serviço de um poder superior (di-
vino). É um acto de propaganda e legitimação do poder, mas é também o
primeiro passo da construção do mito.
O orador pagão que, em 313, proferiu em Treveri o panegírico do im-
perador, pergunta ao próprio ali presente que deus era esse em nome do
qual Constantino avançara para a batalha final: «Qual deus e qual prae-
sens maiestas o moveu»22. Depois de ler este discurso saído da boca de
um não cristão, não podemos negar que em 312 aconteceu algo de mui-
to importante.
Os autores cristãos que primeiro se referiram a esse acontecimento
(Lactâncio e Eusébio) não hesitam em assegurar que fora o Deus dos
cristãos que Constantino então abraçara definitivamente e lhe garanti-
ra a vitória:

EUSÉBIO LACTÂNCIO EUSÉBIO,


Hist. Eccl. De Moribus persec. Vita Constantini
IX,9,1-7 44,1-9 I,27-29
(313) (313-316) (entre 337 e 340)
Constantino, Constantino Constantino,
novo Moisés Salvador vitorioso novo São Paulo

I. «Constantino… I. «Constantino, I. «Constantino, bem consciente,


homem piedoso, fi- pronto para vencer devido às maléficas artes mágicas
lho de um homem ou morrer, usadas pelo tirano [Maxêncio],
muito piedoso», conduziu todas as da necessidade de obter um

22
Panegírico IX,2,3-5. Ao evocar os detalhes dos feitos militares da campanha de Constan-
tino, este orador atribui os seus sucessos à acção e protecção do deus ille mundi creator et domi-
nus (13,2). O panegirista termina com uma oração ao summe rerum sator (26,1) «que quis ter
tantos nomes quantas as línguas dos povos». A mudança de linguagem em relação aos tradicio-
nais panegíricos é clara: nestes, os nomes das divindades (Júpiter, Apolo, Vitória…) eram obriga-
toriamente nomeados. Cf. M. SORDI, I cristiani e l’impero romano, Roma 1990, 160-161.
200 ISIDRO P. LAMELAS

«foi suscitado pelo suas tropas para auxílio mais poderoso que o
rei soberano, Deus as proximidades das simples forças militares,
do universo e Sal- da cidade e procurava a proteção de um deus,
vador contra os ti- estabeleceu-se nas pois considerava de secundária
ranos e ímpios». cercanias da Ponte importância os exércitos e o
«Depois de ter in- Milvius. número de soldados...»
vocado, nas suas Era o dia 27 «Pensava, pois, qual o deus que
orações, como alia- de Outubro… deveria escolher como protetor.
do o Deus celeste e Constantino foi Enquanto refletia sobre isso veio-
seu Verbo e Salva- advertido num lhe à mente a seguinte reflexão:…
dor de todos, Jesus sonho enquanto Todos os predecessores que
Cristo. dormia para gravar tinham colocado a sua esperança
Avançou com todo nos escudos numa pluralidade de divindades...
o seu exército, pro- dos soldados o tiveram um fim infeliz...
metendo aos roma- sinal celeste e apenas seu pai, que seguira um
nos a liberdade» assim avançar caminho bem diferente dos outros
«O imperador, li- para a batalha. imperadores e condenara os erros
gado à aliança de Obedecendo, destes, honrara durante toda a sua
Deus atacou pri- mandou inscrever vida o deus único que domina
meiro…». sobre os escudos o todas as coisas e que considerara
«O próprio Deus nome de Cristo: um como salvador e guardião do
arrastou o tirano X atravessado pela império e autor de todos os bens».
para longe das por- letra I, dobrando a «Ponderando atentamente o facto
tas da cidade». sua extremidade… que os outros, embora confiados
Sucedeu em a muitos deuses, tinham caído em
Roma um tumulto grande número de desventuras,
e acusava- ao ponto de não deixaram nem
se o imperador família, nem descendência, nem
[Maxêncio] de raiz alguma… nem sequer um
não cuidar da rasto de memória do seu nome e
salvação pública e memória entre os homens» (27).
improvisamente o «Começou então a invocar o deus
povo… começou a de seu pai, pedindo e suplicando
gritar a uma só voz: que lhe mostrasse quem ele era
‘Constantino não e que o socorresse nas atuais
pode ser vencido!» circunstâncias.
II. «Maxêncio de- II. «Maxêncio… Enquanto o imperador estava
positava a sua con- consulta os Livros absorto nesta oração e dirigia
fiança nas artes da sibilinos e nestes a sua súplica com toda a
magia...” encontrou que neste sinceridade, apareceu-lhe um
«O mais ímpio dos dia verá perecer o sinal divino verdadeiramente
homens” (5). inimigo de Roma. extraordinário, no qual não seria
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 201

Este oráculo fácil acreditar se tivesse sido


despertou nele a outro a relatá-lo. Mas porque
esperança de vitória, o próprio vitorioso imperador,
pondo-se a caminho muito tempo depois, quando
para o campo de fomos honrados com a sua
batalha». amizade e familiaridade, revelou
«Depois que foi o sucedido diretamente a nós».
III. «O prodígio advertida a sua III. Prodígio: «Quando o sol
realizado outro- presença, o combate estava a meio do seu caminho e
ra contra os ímpios exasperou-se e o sol começa a declinar, ele viu
que a maioria recu- a mão de Deus com seus próprios olhos, como
sa acreditar como pairava sobre o ele mesmo disse, o sinal de uma
se se tratasse de re- combate. O exército cruz brilhando no céu mais que o
lato fabuloso, mas de Maxêncio sol, com estas palavras inscritas:
que para os crentes tomado de pânico “in hoc vince! (toÚtJ n…ka)”. Na
é digno de fé por- e ele mesmo, em sequência desta visão, ele próprio
que narrado nos Li- fuga, precipita- e todos os seus soldados que
vros sagrados, im- se para a ponte o acompanhavam no caminho
pôs-se pela sua que fora cortada que desconheço e tinham sido
própria evidência e, atropelado pela testemunhas do prodígio foram
a todos, a crentes e massa dos fugitivos, violentamente tomados de
não crentes, que vi- precipitou-se no espanto» (28).
ram estes prodígios Tibre». «Constantino, conforme seu
com seus olhos»(4). dizer, pôs-se a questionar sobre
«Do mesmo modo, o sentido desta visão. Enquanto
portanto, que no refletia e meditava nestes eventos,
tempo de Moisés… a noite chegou. Cristo de Deus
Deus precipitou no apareceu-lhe então durante o sono
mar os carros do com esse mesmo sinal que lhe
Faraó e seus exérci- fora mostrado no céu e mandou
tos, a elite dos seus que fizessem emblemas militares
cavaleiros e capi- segundo o modelo do sinal
tães, engolidos pelo visto no céu, para os usar em
mar Vermelho que combate como proteção contra os
os cobriu (Ex 15,4- inimigos.
5), assim também Mal despertou a aurora, levantou-
Maxêncio e seu se e contou aos seus amigos
exército…» (5). o segredo. De seguida, reuniu
«O exército que vi- junto de si ourives e artesãos
nha da parte de entendidos em pedras preciosas,
Deus com Cons- sentado no meio deles, esboçou
tantino atravessou o aspeto do sinal e ordenou que
202 ISIDRO P. LAMELAS

o rio que estava pe- reproduzissem em ouro e pedras


rante ele…” (5) preciosas um objeto semelhante
Ele mesmo [Ma- (30).
xêncio], primeiro, o «Tocado pela extraordinária
mais ímpio dos ho- visão, decidiu não venerar
mens, e depois os nenhum outro Deus, senão
seus escudeiros que aquele que vira com os próprios
o rodeavam afunda- olhos. Convocou os sacerdotes
ram-se como chum- depositários da sua doutrina e
bo nas águas impe- perguntou-lhes que Deus era este
tuosas (Ex 15,10), e o significado do sinal que lhe
como já anuncia- aparecera na visão» (32).
ra o oráculo divi- «Só então, munido das boas
no» (7). esperanças que colocara em
«De sorte que…os Deus, se moveu para extinguir o
que, graças a Deus, ameaçador incêndio ateado pelo
se tinham levantado tirano [Maxêncio] (33)
com a vitória, po- Escolheu, portanto, como seu
diam, como os se- Deus o senhor do universo e
guidores do grande invocou Cristo como salvador e
servo Moisés, en- socorro; colocou à cabeça do seu
toar o mesmo hino exército o troféu do seu Deus,
contra o ímpio e ti- que dá a vitória, isto é, o sinal
rano de então: Can- salvífico, e pôs-se à frente de
temos ao Senhor... todo o exército com o propósito
(Ex 15,1-2. 11) (8). de reconquistar para os Romanos
«Estas coisas e ou- a liberdade recebida dos seus
tras parecidas can- antepassados» (37,1).
tou Constantino «O imperador [Constantino] que
com suas obras ao tinha do seu lado a ajuda divina,
Deus supremo, cau- moveu guerra contra as forças do
sa da sua vitória, tirano…» (37,2).
e entrou triunfante «Quando já próximo de Roma,
em Roma… sendo para evitar que, por causa
acolhido por todo o do tirano, Constantino fosse
povo romano como obrigado a combater contra os
libertador, salvador romanos, o próprio Deus arrastou
e benfeitor» (9). o tirano, como por uma cadeia,
para bem longe das portas da
Urbe; e renovou com igual
potência os milagres que realizara
antigamente contra os ímpios…
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 203

Sucedeu do mesmo modo que no


tempo de Moisés… [cita Ex 15,4.
5. 11]» (37,1).
«Como grande servidor de Deus,
Constantino, com seus feitos,
elevou tais louvores em honra
do Senhor do universo e autor
da vitória… e fez o seu ingresso
triunfal em Roma...
que o proclamou como libertador,
salvador e benfeitor» (40,2).
«Este o modo como o imperador
caro a Deus, iluminado pela fé na
cruz vitoriosa, fez conhecer aos
romanos, em plena franqueza,
o filho de Deus. E todos os
habitantes da Urbe… como se
voltassem a respirar depois de um
domínio cruel e tirânico, tinham a
sensação de gozar de uma luz de
raios mais puros e de participar
no renascimento de uma vida
nova e extraordinária» (41,1).

Assim é relatado o acontecimento mais importante da vida de Cons-


tantino e facto original a partir do qual se construiu o mito associado ao
seu nome. A batalha da ponte Mílvio, enquanto evento histórico, é por to-
dos reconhecida um acontecimento crucial nos destinos do império e do
mundo antigo. Contudo, precisamente devido à sua relevância histórica,
essa «ponte» associada à conversão do primeiro imperador cristão e do
mundo pagão à cristandade, será mais evocada pelo seu valor simbólico
e fabuloso do que enquanto facto histórico.

In hoc signo, sob o signo do sacro

O sucedido naquele tempo é entendido como um evento sobrenatu-


ral e miraculoso23: Constantino é tocado por uma luz e uma voz celeste,
23
Cf. Ch. PIETRI, La conversion: propagande et réalités de la loi et de l’évergétisme, in Ch.
PIETRI, Constantin et l’inflexion chrétienne de l’Empire, in J.-M. MAYER - Ch. PIETRI - A.
204 ISIDRO P. LAMELAS

como sucedera com Paulo no caminho de Damasco. Tanto Eusébio como


Lactâncio, ao relatar os factos, tecem a narrativa já entremeada com as li-
nhas da história e os fios do sagrado. Ambos conheceram pessoalmente o
imperador: Lactâncio como perceptor de seu filho Crispo; Eusébio lidou
mais com ele nos últimos anos da sua vida (324-337), antes de escrever a
Vida de Constantino. Este último retrata um Constantino qual incarnação
da liberdade e piedade face à tirania e impiedade de seus predecessores e
adversários. Sublinha a sua «aliança» com Deus, assegurada pela presen-
ça da «mão divina» e da «força de Deus» que o protegem na batalha e o
levam à vitória sobre os inimigos que, embora em muito maior número,
morrem afogados, como por um milagre (paradoxia) que evidencia a in-
tervenção divina24. Para Eusébio, de facto, a batalha da ponte Mílvius não
é senão uma réplica da épica página bíblica da travessia do mar Verme-
lho (7-8)25. Constantino, o novo Moisés, persegue Maxêncio, o novo Fa-
raó. Enquanto este teima em manter o pacto com as divindades e supers-
tições pagãs, Constantino faz uma «aliança» com o verdadeiro Deus. O
povo que agora atravessa as águas da liberdade são os cristãos até então
perseguidos por tiranos como Maxêncio.
Note-se que o anónimo pagão Panegírico IX confirma, de algum
modo, esta interpretação dos factos, ao apresentar Maxêncio como víti-
ma da sua maldade, que morre, por isso, engolido pelas águas do Tibre
que, por sua vez, aparece personificado como uma divindade justiceira
que pune o adversário de Constantino26, do mesmo modo que salvara Ró-
mulo e seu irmão nas origens de Roma27.
Também Lactâncio coloca de um lado Maxêncio pagão, que consulta
os oráculos sibilinos para ter a seu favor os poderes superiores, do outro
VAUCHEZ - M. VENARD, Histoire du christianisme, II: Naissance d’une chrétienté (250-430),
Paris 1995, 193-196.
24
EUSÉBIO, História eclesiástica, IX,9,2-7.
25
Cf. Vita Constantini, I,12.
26
Embora a historiografia cristã e não só, para exaltar o nome de Constantino exagere nas
cores negras do retrato de Maxêncio como tirano e inimigo dos cristãos, sabemos que Maxêncio
não foi um perseguidor dos cristãos. Embora se tenha mantido fiel aos cultos pagãos, fez cessar a
perseguição em todo o território sob o seu domínio. Recorde-se, aliás, que sua mãe Eutrópia, no
final da sua vida abraçou a fé cristã.
27
Cf. M. GÉRARD NAUROOY, Constantin au Pont Milvius ou la naissance d’un mythe, in
G. BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesimo , II,
Macerata 1992, 285.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 205

lado Constantino que ouve a voz do Deus dos cristãos. O combate é des-
de então não entre dois exércitos e estrategas humanos, mas entre os deu-
ses antigos e o novo Deus: «A mão de Deus pairava sobre o combate»,
como pairara sobre o povo a caminho da terra prometida. Assim se de-
monstrava, mais uma vez, segundo a leitura tipológica inspirada na his-
tória bíblica, que quem sai vitorioso é o novo povo de Deus e o Deus dos
cristãos. Na primeira versão dos acontecimentos, Eusébio confessa que,
perante tal «prodígio realizado… a maioria recusava acreditar como se
tratasse de um relato fabuloso, mas que para os crentes era digno de fé
porque narrado nos livros Sagrados» e evoca imediatamente o que suce-
deu «no tempo de Moisés»28.
A analogia entre Constantino e Moisés vai mais longe, ao ponto de se
poder falar não só de paralelismo ou tipologia, mas de uma substituição.
Como Moisés, Constantino realiza grandes obras por intervenção divina.
«Segundo Moisés, os sonhos são enviados por Deus»29, por isso também
o sonho de Constantino é interpretado deste modo. O imperador cristão
substitui Moisés na nova economia da história da Igreja. Ele é o Moisés
deste novo povo no qual se estão a atuar as promessas e bênçãos do Deus
de Moisés: Constantino é servo de Deus e vencedor dos gentios (1,6);
como Moisés é educado por tiranos (1,12), a ambos Deus concede uma
aparição (epifania), o adversário é engolido pelas águas que assinalam a
vitória e a passagem para a liberdade, ambos vencem orando na tenda,
ambos combatem os ídolos; também Constantino se assume como sumo-
-sacerdote, deseja ser batizado no Jordão, embora não realize tal desejo;
até a sua ascensão ao céu é semelhante a Moisés (tal como se reproduz
nas moedas (3,74)30. Agora, porém, quem persegue não é o Faraó, mas
o novo Moisés: é Constantino que persegue e vence o «ímpio» Maxên-
cio. Invertendo, deste modo, os papéis, Eusébio quer ilustrar a «viragem»
(svolta) operada na ponte Mílvio, ao mesmo tempo que inscreve esse epi-
sódio na dinâmica da história da salvação.
28
EUSÉBIO, História eclesiástica, IX,9,3.
29
Cf. História eclesiástica, II,18,4.
30
Cf. R. FARINA, L’impero e l’imperatore cristiano in Eusebio di Cesarea. La prima teolo-
gia politica del cristianesimo, Zürich 1966, 189; FILIPPO CARLÀ, Le monete costantiniane:
propaganda politica e rassicurazione económica, in FILIPPO CARLÀ - MARIA G. CAS-
TELLO, Questioni tardoantiche. Storia e mito della «svolta costantiniana», Roma 2010, 87-93;
116-117.
206 ISIDRO P. LAMELAS

A narrativa de Lactâncio, por seu lado (Mort. Perseg. 44,1-9), acres-


centa à primeira versão eusebiana, ainda bastante sóbria, novos elementos
significativos para a evolução e desenvolvimentos posteriores do mito.
Escrevendo poucos anos depois do acontecimento, fala de uma aparição
de Cristo em sonho noturno, numa das noites precedentes à batalha, ro-
deando assim o acontecimento de uma atmosfera mítica. A cristofania su-
gerira a Constantino que mandasse gravar o sinal de Cristo nos escudos
dos seus soldados um chi cruzado com um rhô (crisma), ou a cruz mo-
nogramática (chi em forma de cruz, com a perna superior de modo a for-
mar um rhô). Este episódio constitui a medula à volta da qual se avolu-
mará, como bola de neve, a tradição posterior da fábula de Constantino.
Eusébio, que na primeira narrativa não introduz manifestações sobre-
naturais análogas às descritas no livro do Êxodo, ao redigir a Vida de
Constantino, depois da morte do imperador (entre 337 e 340), aproveita
para ornamentar os factos com novos dados e para corrigir e completar
algumas informações que expusera no resumo da História eclesiástica.
Constantino, filho de um imperador que já acreditava numa divindade
única, sem a identificar necessariamente com o Deus dos judeus ou dos
cristãos, adere também ele à mesma convicção, mas continuava em bus-
ca de um rosto e um nome para esse Deus. Constatando que de todos os
recentes imperadores só seu pai Constanço escapara a uma morte violen-
ta, pensa que tal se deveu ao facto de ter sido o único que não perseguiu
os cristãos. É nesta disposição de espírito (de busca e receptividade31)
que Deus se lhe manifesta através do prodígio (qeoshme…a tij ™pifa…
netai paradoxot£th): no céu surgiu, em pleno dia, o sinal da cruz com
a inscrição toÚtJ n…ka. Este sinal testemunhado também pelos soldados
em pleno dia, é confirmado, na noite seguinte, por um sonho no qual o
próprio Cristo aparece a Constantino acompanhado do mesmo sinal que
manda gravar nos estandartes (e não nos escudos, como em Lactâncio).
O imperador decide então criar o novo estandarte com o monograma de
Cristo (labarum).
Eusébio parece assim dar a entender que a narrativa de Lactâncio bem
como a sua primeira versão dos factos (Hist. ecl.), não bastavam para
transformar em mito cristão as peripécias narradas. Para mostrar que «o
31
Na véspera da sua conversão, Constantino renunciara, segundo Eusébio, aos deuses pagãos,
mostrando-se interessado em ser instruído sobre os mistérios cristãos.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 207

sinal da cruz era ainda mais brilhante que o sol» urgia que o prodígio se
desenrolasse à luz do dia, antes que sob a possível ilusão dum sonho no-
turno. Importava, de facto, ler neste acontecimento a vitória do verdadei-
ro «Sol de justiça» (Mal 3,20) sobre a divindade solar (Apolo, Sol Invic-
tus) então na moda e a que o próprio Constantino estava ligado até 31232.
Importava também conferir credibilidade a tais sucessos extraordinários;
razão pela qual agora Eusébio tem o cuidado de garantir que a sua fonte é
o próprio Constantino que «disse ter visto com os próprios olhos». Des-
ta forma, Eusébio conferia aos acontecimentos da ponte de Mílvio o ca-
riz maravilhoso e sobrenatural que faltava para a definitiva afirmação do
mito constantiniano, garantindo a credibilidade do mesmo.
Foi, pois, Eusébio quem deu o primeiro e maior passo para a consa-
gração do mito constantiniano ao acentuar a ligação e intervenção divina
na história e vida do imperador, tendendo a transformar em milagres to-
das as vitórias do imperador. O pai da historiografia eclesiástica quer, de
facto, demonstrar na biografia panegírica de Constantino (uma antologia
de atos piedosos) que a felicitas do imperador se deve à sua pietas. Mul-
tiplica, por isso, as revelações diretamente recebidas de Deus e os fac-
tos extraordinários que asseguram a vitória de Constantino querida por
Deus. O sistema simbólico eusebiano serve assim para afirmar a nova
ideologia imperial, concebida esta como organização política da fé cris-
tã, segundo o modelo em que a basileia assume um papel fundante para
o império necessitado de ser refundado33.
Para Eusébio, a visão do staurograma com as iniciais gregas de «Cris-
to» e a conversão são aspetos indissociáveis, na medida em que a visão
precede e origina a conversão. Segundo a sua narração, Constantino de-
cidiu imediatamente, após a visão, traduzir o sinal celeste numa insígnia
nova, o labarum, que é visto como um símbolo salutífero e instrumento

32
Os panegiristas pagãos confirmam que, de facto, Constantino, nos anos que antecederam os
acontecimentos de Outubro de 312, combatia sob a proteção do deus Apolo, uma divindade que,
desde o tempo do imperador Aureliano se tornara particularmente popular sob a designação de
Sol Invictus. Cf. M. GÉRARD NAUROOY, Constantin au pont Milvius ou la naissance d’un
mythe, in G. BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umane-
simo, II, Macerata 1992, 284-285.
33
Cf. PIERO PICCININI, Il tempo eterno della ‘Basileia’ di Costantino, in G. BONAMEN-
TE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesimo, 369.
208 ISIDRO P. LAMELAS

de proteção34. Eusébio, que por seu lado, na História eclesiástica, não fa-
lara, como advertimos, da visão miraculosa, relata que, querendo os habi-
tantes de Roma erigir uma estátua do imperador Constantino, este orde-
nou que na mão direita da mesma fosse colocado «o sinal do Salvador»,
isto é, a cruz, com a seguinte inscrição: «Com este sinal salvador que é a
verdadeira prova de poder salvei e libertei a vossa cidade do jugo do ti-
rano. E a libertei e restituí ao senado e ao povo romano no seu antigo re-
nome e esplendor»35.
Vemos assim que o sinal sacro da cruz é assumido como signo pode-
roso capaz de renovar e restituir as coisas ao seu estado ideal. Constanti-
no, entendendo os acontecimentos mais com a sua mente romana do que
com coração cristão, vê naquele signum, em primeiro lugar, uma fonte
de força mágica. Desde então sente-se habitado por esse poder-virtus di-
vino que lhe permite realizar sua missão e assume-se como o famulus, o
qer£pwn, da divindade36. «Movido pela força (dÚnamij) divina»37, ven-
ceu os seus inimigos políticos e os adversários de Deus. Daí que a sua vi-
tória tenha sido vista pelo próprio e por alguns cristãos como uma epifa-
nia através da qual Deus se manifesta a todos os homens38.
Tudo decorre, pois, sob o signo do «sacro». Antes da conversão, na
conversão, no Concílio de Niceia: toda a vida de Constantino se desenro-
la sob o signo do sagrado. O seu discurso inaugural na assembleia de Ni-
ceia faz pensar numa hierologia (veja-se Vita Const. III,9-12): o sagrado
e o profano político encontram-se sob o mesmo tecto. Algo que nada ti-
nha de novo: o contexto e protagonistas é que mudaram a partir da «mí-
tica» batalha da ponte Mílvio. Dois anos antes, em 310, numa outra cir-
cunstância delicada em que o imperador Maximiano tentara sublevar as
tropas contra si, Constantino recebera uma outra manifestação «divina»,
na qual Apolo lhe prometia três décadas de vitórias39. Alguns historiado-
res modernos viram nesta primeira visão o modelo que terá inspirado a
outra visão da ponte Mílvio. Sabendo nós que o culto de Apolo andava
34
EUSÉBIO, Vita Constantini, I,30-31. Lanctâncio não menciona o lábaro, limitando-se a
mencionar o monograma que o imperador mandou gravar nos escudos dos seus soldados.
35
EUSÉBIO, História eclesiástica, IX,11.
36
Cf. F. HEIM, La théologie de la victoire de Constantin a Théodose, Paris 1992, 43.
37
EUSÉBIO, Vita Constantini, II,28.
38
Cf. EUSÉBIO, Vita Constantini, II,42. 46.
39
Panegírico, VI [VII] 21, 4-6.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 209

intimamente ligado ao culto solar (Hélios), o referido episódio confirma


a progressiva aproximação de Constantino ao enotismo, bem como a sua
mente religiosa inseparável do homem político.
A conversão de Constantino ao cristianismo assinala, por isso, tam-
bém uma certa «conversão» dos cristãos aos modelos da salutologia e
ideologia romanas. O imperador servidor de Deus é sustentado nas suas
ações pela ajuda e proteção divina. Da pietas do príncipe depende a salus
dos súbditos e os destinos do império. O imperador vitorioso, porque fa-
vorecido por Deus devido à sua eusebéia40, é agora o intérprete e critério
da pietas que transforma em «impietas» a religião pagã e explica os no-
vos sucessos políticos e religiosos:
«Foi, pois, a este homem que do alto do céu, como um fruto digno da
sua piedade (eÙsebe…a), Deus concedeu os troféus da sua victória sobre
os ímpios» (¢seboj)41.
Estava assim criado o mito político do kosmokr£twr, vencedor cós-
mico dos inimigos de Cristo, unificador do império contra os tiranos, re-
presentantes do káos e deserdem42, e restaurador da pax. Finalmente re-
alizava-se o ideal de um só poder na terra como no céu (monarchia)43.
Eusébio desenvolve com algum cuidado o paralelo, bem helenístico da
monarquia celeste e terreste, sendo esta última a imagem da primeira. O
imperador é um privilegiado intermediário entre Deus e os homens e está
investido pelo alto de exercer sua missão na terra. Considera-se, por isso
«bispo dos de fora» e até a par dos apóstolos (isapostolos)44.
Mais do que discutir o (falso) problema da veracidade dos factos nar-
rados ou da atendibilidade dos narradores, importa-nos sublinhar a tradi-
ção do mito histórico que nasceu de um evento extraordinário (apresenta-

40
Títulos usados por Eusébio relativamente a Constantino: nikht¾j, Nikht¾j Megistoj
SebastÒj, Nikht¾j BasileÚj. Cf. R. FARINA, L’impero e L’imperatore cristiano in Eusebio di
Cesarea. La prima teologia politica del cristianesimo, Zürich 1966, 171.
41
EUSÉBIO, História eclesiástica, X,9,1: ToÚtJ men oân ¥nwqen ™x oÙranoà karpÕn
eÙsebe…aj ™p£xion t¦ trÒpaia tÁj kat¦ tîn ¢sebîn pare‹ce n…khj.
42
Cf. PIERO PICCININI, Il tempo eterno della ‘Basileia’ di Costantino, 783.
43
Augusto instaurara no século II o compromisso entre o politeísmo ortodoxo dos deuses da
cidade e o monoteísmo institucional que via no imperador um divus; 400 anos depois, Constanti-
no concilia o culto do único Deus com o império monárquico exercido agora sobre os corpos e as
almas.
44
S. MAZZARINO, L’Impero Romano, 2, Roma 1990, 658-665; JOSÉ M. S. ROSA, Mono-
teísmo, trindade e teologia política, 2008; http://www.lusosofia.net/, 11-18.
210 ISIDRO P. LAMELAS

do como revelação divina), donde parte toda a lenda que quer confirmar
o facto histórico do primeiro imperador cristão. Já sabemos que «mito»
não significa falsificação ou adulteração fantástica da história. Teremos é
que inserir os acontecimentos e a leitura que dele se faz no contexto men-
tal e cultural que os proporcionou e potenciou45.
Averiguámos, pois, que desde muito cedo a propaganda política e reli-
giosa se apercebeu do potencial do episódio da ponte Mílvio. Por isso, no
futuro, não só se tendem a avolumar os elementos do maravilhoso, como
também se vão completando os «vazios» da narrativa com novos relatos
fantasiosos. De facto, já a partir dos finais do século IV e inícios do sé-
culo V o núcleo original do milagre constantiniano (com as suas compo-
nentes: sonho, visão diurna, chrismon, labarum) se viu enriquecido com
novos elementos de que falaremos a seguir.

A lenda constantiniana

Precisamente porque não foi visto como o clímax de uma mera cam-
panha militar ou de um conflito pessoal (entre Constantino e Maxêncio),
nem sequer um simples acontecimento histórico, mas como um momen-
to renovador prenhe de expetativas algo utópicas, não foram precisos
muitos anos para surgir no seio do próprio cristianismo um desencanto
e até um «anticonstantinianesimo» crescente na ponderação dos factos.
Os últimos anos da vida de Constantino, marcados por compromis-
sos com o arianismo e episódios domésticos de inaudita violência, des-
mentiam a tão aclamada pietas de Constantino e a utopia sonhada com
o advento do primeiro imperador cristão46. Os factos que se sucederam à
45
Bastaria, por exemplo, recordar que o panegírico proferido em Treveri, em 313, por autor
anónimo, insere o mesmo acontecimento no contexto de uma intervenção sobrenatural [fala-se de
uma «mente divina» e «sugestão divina» (divino instinctu), no Arco de Constantino lemos instinc-
tu divinitatis]. Segundo este panegirista, Constantino elevou, na ocasião, uma oração ao «Sumo
Criador do mundo». Estamos, portanto, perante factos que pouco tinham de extraordinário para a
mentalidade de um romano contemporâneo, mas que é usado propagandisticamente para afirmar
definitivamente o novo senhor do império. Cf. Historia Augusta, Vita Aureliani, 25,4.
46
Eusébio dá-nos uma ideia do optimismo ingénuo com que muitos cristãos encararam, num
primeiro momento, a vitória definitiva de Constantino, depois de derrotar também Licínio, em
322: «Enquanto Licícnio jazia por terra, prostrado desta maneira, Constantino, o vencedor máxi-
mo, que sobressaía pela sua perfeita virtude religiosa, e seu filho Crispo, imperador amado de
Deus e semelhante em tudo a seu pai, retomaram o Oriente que lhes era devido e restauraram o
império romano na unidade que tinha antigamente, sujeitando ao seu pacífico ceptro todas as re-
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 211

sua morte depressa se encarregaram de contradizer o cenário idílico pin-


tado pela propaganda constantiniana. O império viu-se, de novo, envol-
vido em conflitos de sucessão e lutas no seio da própria família impe-
rial; o mundo «cristão» que Constantino almejou pacificar e unificar em
nome de «um único Deus», continuou dilacerado por conflitos religio-
sos, no seio da própria Igreja. E só a morte repentina de Constanço, em
361, impediu uma nova guerra entre os últimos descendentes da família
de Constantino47. O caso de Juliano Apóstata é a prova final de que o so-
nho constantiniano não encontrou lugar na história e, por isso mesmo, se
condensará em mito. Compreendemos assim melhor por que razão a fu-
tura imagem e ideal de Constantino prescindiu da história para desenvol-
ver sobretudo a perspectiva ideológica e mítica.
Efectivamente, desde muito cedo a imagem do Constantino «históri-
co» acabou por se tornar um peso e uma memória difícil de gerir. Mas,
porque se tratava do primeiro imperador cristão, que concedera a liber-
dade e tantos outros benefícios à Igreja, em vez da sua damnatio memo-
riae, inventou-se um «novo Constantino».
O oriente, baseando-se na eusebiana Vida de Constantino optou por
«santificar» diretamente o imperador, que juntamente com sua mãe He-
lena, se comemora no calendário hagiográfico no dia 21 de Maio. Assim
se colocava um ponto final em todas as sombras que pairavam sobre a fi-
giões da terra, desde o sol nascente até ao mais recôndito lugar do ocidente, no norte ao sul. Em
consequência, era eliminado de entre os homens todo o medo causado pelos que antes os pisote-
avam. Celebravam-se brilhantes e concorridos dias de solenes festas. Tudo transbordava de luz.
Os que antes andavam cabisbaixos olhavam-se mutuamente com rostos sorridentes e olhos ra-
diantes. Com danças e cânticos nas cidades e aldeias eles adoravam, primeiro Deus, o Rei dos
reis, conforme tinham sido ensinados, depois o pio imperador com seus filhos caros a Deus. Os
males antigos eram perdoados e esquecida toda a impiedade. O gozo dos bens presentes era har-
monizado com os bens esperados no futuro. Por toda a parte eram publicadas disposições do vi-
torioso imperador cheias de humanidade e leis que levavam a marca da munificência e verdadei-
ra piedade. Desta forma, toda a tirania era extirpada e o império que lhes correspondia
reservava-se seguro e indiscutível somente para Constantino e seus filhos, os quais, depois de
eliminar do mundo antes de tudo o ódio a Deus, conscientes dos bens que Deus lhes havia outor-
gado, tornaram manifesto seu amor à virtude e a Deus, sua piedade para com Deus e sua gratidão,
mediante obras que realizavam publicamente à vista de todos os homens» (História eclesiástica,
X,9, 6-9). Descontados os pormenores que se devem ao género panegírico, não há dúvida de que
estas palavras exprimem bem o impacto e a euforia pública que tal novidade causou na maioria
dos cristãos. Finalmente o Rei dos reis e o rei dos homens, em vez de se contraporem, estavam
em sintonia, graças à pietas do novo príncipe.
47
A falência do desígnio político e religioso de Constantino era patente e pouco mais ficará
(e não é pouco) desse desígnio senão o processo irreversível de cristianização do estado romano.
212 ISIDRO P. LAMELAS

gura histórica e política de Constantino, para criar um modelo definiti-


vo de Soberano cristão isento dos imponderáveis da histórica real. Cons-
tantino permanecerá como Melquisedec, rei e sacerdote. Teodósio II é
aclamado como «Novo Constantino» e também como «sumo sacerdo-
te» nos Atos do Sínodo de Constantinopla de 448. Seu sucessor Marcião,
três anos mais tarde, por ocasião do concílio de Calcedónia, é chamado
ierèus: sua esposa Pulquéria foi apelidada de Nova Helena e ele de No-
vus Constantinus48.
Tudo decorreu como se a figura real de Constantino não encontrasse
enquadramento adequado na história, ou como se a história convencional
não estivesse preparada para lidar com a novidade de um imperador cri-
stão, ainda por cima pouco ortodoxo. Surgiu assim a necessidade de in-
ventar um outro Constantino: ideal, menos contraditório consigo e com
as convicções cristãs, e, portanto menos histórico. Desta forma, a história
foi dando lugar ao fenómeno e ao mito.

Helena e a reabilitação de Constantino

A reabilitação de Constantino de que temos vindo a falar ganhou novo


vigor sobretudo a partir de 395, com a morte de Teodósio, reabilitação a
que muito ajudou sua mãe Helena e o bispo Ambrósio, ao escrever o De
obitu Theodosii. Os capítulos 41-51 desta obra são ocupados com uma
longa descrição da inventio crucis pela mãe de Constantino, que peregri-
nou até Jerusalém para assegurar a proteção divina (ou a regeneração)
para o seu filho.
Ambrósio, retomando uma tradição que já circulava nos finais do
século IV (a descoberta da cruz por S. Helena), é o primeiro a dar-lhe tal
relevo e crédito, acabando por operar uma inteligente manobra de «la-
vagem» da memória inconveniente de Constantino. Deste modo, corri-
gindo a história e ignorando intencionalmente as suas sombras, o bispo
milanês acaba por dar vida a um novo Constantino sem mácula e todo or-
todoxo.

48
Nas atas do II Concílio de Niceia (787), o imperador é chamado «novo Constantino» e sua
mãe «nova Helena». Cf. Actas de II Concílio de Niceia, IV sessão (J. D. MANSI, Sacrorum Con-
ciliorum, XIII, 129).
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 213

O signo da cruz continua a ser o fio condutor que associa as diversas


lendas ao mito constantiniano: «Veio, pois, Helena e descubriu os san-
tos lugares e o espírito inspirou-a a fim de que encontrasse o madeiro
da cruz» (43: Venit ergo Helena, coepit revisere loca sancta, infundit ei
spiritus, ut lignum crucis requieret). E, continua, o bispo de Milão mais
adiante, «a mui inspirada Helena, que coroou com a cruz a cabeça dos reis
para que a cruz de Cristo se adorasse entre os reis... e se convertessem em
pregadores os que costumavam ser perseguidores» (48: Sapienter Hele-
na, quae crucem in capite regum locavit, ut Christi crux in regibus adore-
tur... ut sint praedicatores, qui persecutores esse consueverant...).
A cruz, signo sob o qual Constantino triunfara, assume, desde então,
uma nova dimensão não apenas para a cristandade, mas também como
símbolo salutológico carregado da virtus de que todos os poderes se que-
rem servir. À epifania da ponte Mílvio sucede-se esta ocorrida em Jeru-
salém. Depois deste reencontro com a cruz de mãe e filho, o mais impor-
tante símbolo cristão, até então ocultado como «escândalo e loucura»49,
sofre a sua maior metamorfose, para se afirmar como troféu da cristan-
dade vitoriosa.
Desta forma, a mãe de Constantino ficará para sempre associada ao
seu filho para confirmar a intervenção providencial do Príncipe ideal de-
fensor da fé e protector dos lugares santos:
«O bem-aventurado Constantino que teve uma mãe tal que conseguiu
o favor divino em benefício do governo do seu filho de modo que no seu
reinado se sentisse seguro na guerra e se visse livre de perigos. Grande
mulher esta que proporcionou muito mais conveniências ao imperador
do que as que dele recebeu. Mãe preocupada com o seu filho, a quem foi
confiado o império romano, correu pressurosa a Jerusalém e buscou o lu-
gar da paixão do Senhor» (ibid. 41).
Sete anos após o relato de Ambrósio, encontramos uma versão mais
breve da inventio crucis, pela mão de Paulino de Nola (402-403). Mas é
bem provável que o primeiro registo historiográfico desta tradição len-
dária que coloca a «invenção da cruz» em relação com a peregrinação
de Santa Helena à Terra Santa tenha sido a História eclesiástica de Ge-
lásio, bispo de Jerusalém que continuou a História eclesiástica de Eu-
49
Veja-se o excelente estudo de LUIGI PADOVESE, Lo scandalo della croce: la polemica
anticristiana nei primi secoli, Roma 1988.
214 ISIDRO P. LAMELAS

sébio. Esta História não chegou até nós, mas sabemos que dela depen-
dem as Histórias ecleisásticas posteriores, entre as quais a de Rufino de
Aquleia que viveu em Jerusalém entre 374 e 397. Facto é que tanto a ver-
são de Paulino como a de Rufino já apresentam novos dados da referida
lenda: Fama crescit eundo.
A invenção da cruz assumiu, desde então, um singular significado,
como nova teofania que servirá não apenas para recuperar a mística dos
lugares santos e tornar próximos os sinais palpaveis da Salvação, mas
também para fazer destes sinais novas garantias de proteção e salvação
do Imperador e seu império.
À sombra da santidade de sua mãe, Constantino foi assim reabilitado
pelos Padres da Igreja que no Concílio de Éfeso louvam a sua recta fides.
E, na segunda década do século VI, Severo, bispo de Antioquia, já o apre-
senta como um campeão da ortodoxia:
«Não foi de um homem ou através de um homem que veio o mandato
do eleito Constantino, o amado rei, mas através de Jesus Cristo, do me-
smo modo que o grande apóstolo Paulo. Tendo visto no céu o resplan-
dente sinal em forma de cruz, acreditou que aquele que é Deus desde o
princípio, a Palavra do Pai feita carne para nossa salvação, sem sofrer
mudança e se fez verdadeiro homem; e como rei, rejubilando na sua força
e tendo exultado na sua salvação, como o grande profeta David canta,
chamando e convocando a si os pregadores da fé ortodoxa dos quatro
cantos, e expulsando da Igreja a maldade de Ario que ousou chamar cria-
tura a Palavra que é antes do tempo»50.

Constantino e o papa Silvestre

Mas como manter viva a leitura providencialista do reino de Constan-


tino, após o desastre de Adrianópolis (378) e sobretudo depois da queda
de Roma nas mãos Alarico, em 410?51. A história parecia, de facto, teimar
50
SEVERO DE ANTIOQUIA, Hinos, 200, 1-II.
51
Jerónimo, na sequência da tomada de Roma pelas tropas de Alarico, em 410, exclama: «a
chama do mundo tinha-se apagado e na ruina de uma só cidade todo o género humano perece».
Um século antes, um outro cristão, Eusébio de Cesareia referia-se à vitória de Constantino na
ponte de Mílvio com palavras que auguravam um futuro diverso: «um dia sereno e límpido res-
plende, não obscurecido por qualquer nuvem… a terra inteira é submetida sob a paz do império»
(História eclesiástica, X,1,8; 9,6). O contraste das cores usadas para pintar as duas situações é
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 215

em dar razão aos resistentes pagãos que viam no abandono dos deuses da
antiga Roma, imposto pelos imperadores cristãos, o motivo da atual ruína
do império. É a leitura dos historiadores pagãos como Eutrópio (meados
do século IV) que vê em Constantino um homem ambicioso e sem es-
crúpulos, ou, mais tarde (início do século VI) Sózimo52. Aos olhos deste,
Constantino não passa de um medíocre oportunista, homem de má índo-
le que encontrou no cristianismo a forma de lavar sua consciência man-
chada por graves crimes.
S. Agostinho responde, ao redigir a Cidade de Deus, distinguindo a ci-
dade terrena do império romano e desvinculando Constantino do destino
desse império (Civitate Dei, V, 25). Mas esta leitura teológica e racional
não era suficiente, sobretudo no Ocidente, onde a «biografia» de Cons-
tantino escrita por Eusébio não era lida.
Surgiu então a lenda que associa Constantino à vida do papa Silves-
tre, tradição já registada no Liber Pontificalis (séc. V)53, que parece ter
sido o veículo da posterior difusão. A mesma tradição é, de facto, retoma-
da com extensão e novos elementos romanescos na Vita Silvestrti (Actus
Beati Sylvestri54), da segunda metade do século V55.
evidente e tem a ver com a profunda modificação de sentimentos e atitudes que estão na génese
da lenda.
52
Em contraponto com a piedosa hagiografia cristã, a historiografia pagã tenderá a descons-
truir esta imagem idealizada. Sózimo, que nada simpatiza com Constantino, na sua Nova história
(II,16,1-4; II,29,1-5) não só dissocia os dois acontecimentos que a tradição mantém unidos (a
batalha da ponte Mílvio e a conversão do imperador), como ignora os aspectos «transcendentes»
da historiografia cristã: não refere a visão do chrismon nem menciona qualquer sonho de Cons-
tantino, abstendo-se de falar dos seus sentimentos religiosos. Segundo este historiador pagão, o
imperador ter-se-á convertido apenas em 324, depois de ter assassinado seu filho Crispo e a espo-
sa Fausta. Vendo-se manchado por tão graves crimes, ter-se-á voltado para o cristianismo para
obter o perdão te tais faltas (Nova história, II,29,1-5).
53
Liber Pontificalis, 34,1-2: «Silvester, natione Romanus, ex patre Rufino, sedit ann. XXIII
m. X d. XI. Fuit autem temporibus Constantini et Volusiani, ex die kal. Feb. usque in die kal. Ian.
Constantio et Volusiano consulibus. Hic exilio fuit in monte Seracten et postmodum rediens cum
gloria baptizauit Constantinum Augustum, quem curauit Dominus a lepra, cuius persecutionem
primo fugiens exilio fuisse cognoscitur» (PL 127, 1511-1512).
54
PL LIX, 161. Cf. V. AIELLO, Costantino, la lebbra e il battesimo di Silvestro», In G. BO-
NAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesimo. Colloquio
sul Cristianesimo nel mondo antico,16- 58.
55
Cf. Ch. PIETRI, Roma christiana, I, 14-21; 69-77; 168-187. É provável que a nova versão
do baptismo de Constantino pela mão do próprio papa quisesse corrigir a imagem pouco ortodoxa
de um Constantino baptizado por um bispo oriental e ariano (Eusébio de Nicomédia) e apenas no
final da sua vida.
216 ISIDRO P. LAMELAS

Esta lenda hagiográfica ocidental, que remonta aos finais do sécu-


lo IV56, propagada, posteriormente através da Legenda Aurea de Jaco-
po da Voragine (séc. XIII), pinta-nos uma imagem de Constantino que
está longe do perfil heroico e paradigmático de Eusébio ou o modelo de
rei e sacerdote proposto pela tradição oriental. Primeiro inimigo e perse-
guidor dos cristãos, o filho de Helena é castigado por Deus com a doen-
ça da lepra57. Recorre, em vão, às artes terapêuticas dos médicos pagãos.
Os sacerdotes pagãos aconselham-no então a banhar-se no sangue ino-
cente de crianças. Comovido pelo pranto das mães, o imperador não exe-
cuta tão cruel prescrição médica. Num sonho em que lhe aparecem Pedro
e Paulo, estes apóstolos aconselham-no a pedir ajuda para a sua doença
ao papa Silvestre que durante a perseguição se encontrava refugiado no
monte Sarate. Constantino vai então em busca do bispo de Roma que o
cura e batiza.
Mais uma vez, sob a moção sacral do sonho, opera-se a svolta do pa-
ganismo ao cristianismo, da doença à salvação, da perseguição à paz e à
liberdade. Tal «conversão» é apresentada ao mesmo tempo como um ver-
dadeiro «milagre» e resultado deste.
Como sucede com outros relatos do género, também nesta lenda se
mistura muita fantasia com alguma verdade. Constantino nunca foi le-
proso, nem baptizado em Roma, nem pelo papa Silvestre (na sede ro-
mana entre 324 e 335). Mas parece que sofria realmente de um proble-
ma de pele58, e veio de facto a Roma sob o pontificado de Silvestre para
participar nas festas das suas Vicennalia (20 anos de reinado, depois da
nomeação como César), celebradas a 18 de Julho de 32659. Nesta visi-

56
A Lenda Áurea retoma estas tradições; Dante alude a elas; Claderón de La Barca inspira-se
nas mesmas, no seu auto La lebra de Constantino.
57
A lógica que preside a este drama nutre-se da velha ideologia constituída em tese no De
mortibus persecutorum: os inimigos e perseguidores do verdadeiro Deus e seus seguidores estão
condenados a sofrer grandes males e a um fim infeliz. Veja-se, por exemplo, De mortibus, 33,5:
o imperador Galério toma consciência do terrível «poder» do Deus cristão, quando se vê punido
por uma atroz doença, tendo-se então voltado para os cristãos, pedindo que «pedissem ao seu
Deus pela sua salus».
58
Pelo menos segundo o seu biógrafo bizantino Kedrenos, no século XI (Synopsis historiôn).
Cf. M. GÉRARD NAUROOY, Constantin au pont Milvius ou la naissance d’un mythe, in G.
BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesimo. Colloquio
sul Cristianesimo nel mondo antico, 1992, 303.
59
Cf. ANDRÉ PIGANIOL, L’Empire chrétien, Paris 1972, 38-40.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 217

tou sua mãe Helena a quem concedera, em 325, o título de Augusta e


que morava perto da residência Papal em Laterão. É mais que prová-
vel que se tenha encontrado nesta altura também com o Papa a quem
10 anos antes doara o batistério de Laterão. Tais indícios históricos são,
contudo, de uma enorme desproporção face ao que a lenda desenvolveu
à volta da lepra, cura e batismo papal de Constantino. Certo é que esta
viagem a Roma marca o fim do «estado de graça» do imperador: nunca
mais voltará a Roma, para se fixar definitivamente no oriente, e se apro-
ximar mais do partido ariano, depois desse ano negro marcado por gra-
ve tragédia familiar.
Entretanto a tradição de Constantino pagão e leproso, purificado e cu-
rado pelo batismo do bispo de Roma irá prosseguir como um dos temas
fortes do mito constantiniano. Estamos mesmo perante uma das maiores
fábulas papais (Papstfabel, segundo Döllinger60) que muito contribuiu
para a reposição da figura imaginária de Constantino.
Mais uma vez, a história de Constantino batizado in articulo mortis,
pelo filo-ariano Eusébio, bispo de Nicomédia, porque não se coadunava
com a imagem ideal do imperador, foi substituída pela lenda. Esta revia
radicalmente a história, transferindo o acontecimento no tempo e no es-
paço: transferindo-o do Oriente (sede do imperador) para o Ocidente-Ro-
ma, sede da Igreja; passando-o do momento in extremis para a fase inicial
da conversão do imperador; em vez de um bispo oriental ariano convinha
que fosse o próprio papa Silvestre a baptizá-lo.
Deste modo, deslocava-se também o acento da esfera histórica e po-
lítica, para a esfera espiritual de uma verdadeira «conversão», esta últi-
ma, muito mais propícia à fantasia. Por detrás de tal lenda assaz ingénua,
mantém-se vivo um desígnio político: mostrar o papel determinante do
bispo de Roma na conversão de Constantino e reforçar a posição papal,
colocando César sob a sua primazia.
A lenda acaba, assim, por ser uma encenação imaginária do proces-
so histórico em curso. Ela funda-se na nova visão providencialística se-
gundo a qual a economia do mesmo acontecimento se desenrola confor-
me um paralelismo de presenças e forças: a secular e a religiosa. Havia
que mostrar que o trânsito do império pagão para o império cristão que
se estava a operar envolvia não apenas a autoridade suprema do império
60
Die Papstfabeln des Mittelalters. Ein Beitr. z. Kirchengeschichte, Stuttgart 1890.
218 ISIDRO P. LAMELAS

mas também e de forma clara a autoridade máxima da Igreja. O bonum


spirituale e físico obtido pelo soberano e, através dele, pelo império, en-
contra paralelo e analogia no utile publicum alcançado pelo papa e atra-
vés dele, pela Igreja.
É nesta atmosfera que se insere o espírito das donationes ou benefi-
cia recíprocos que vão desde 313-33061 até ao à pseudo-donatio constan-
tiniana (na alta Idade Média). Esta reciprocidade terá como resultado da
conversão do império à religião da Igreja, a conversão da Igreja à menta-
lidade ou lógica política do império62.

Constitutum Constantini:
a lenda ao serviço da afirmação do poder

A lenda de Constantino fundida com a hagiografia do Papa Silvestre


preparou o solo para a germinação de mais um elemento do mito cons-
tantiniano de grandes consequências para a história. Naturalmente agra-
decido pela cura da lepra e pelo baptismo, Constantino teria retribuído,
concedendo significativos privilégios à Igreja de Roma. Assim nasceu a
Doação de Constantino63, documento forjado por um clérigo romano, na
segunda metade do séc. VIII, segundo o qual o imperador transferia em
boa parte da sua soberania para o papa Silvestre, concedendo à Igreja de
Roma (isto é, ao papado) legitimas pretensões temporais sobre os territó-
rios ocidentais64 (não apenas sobre o Patrimonium Petri), e o primado do
bispo de Roma sobre as outras Igrejas.
Desta forma, o próprio Constantino raconhecia aos pontífices roma-
nos uma potestade superior à do imperador e justificava a transferência
da capital para o Oriente com o argumento de que não era justo «que o
imperador terreno tivessa a sede do seu poder na mesma capital da reli-
gião cristã instituída em Roma pelo imperador celeste».
61
Cf. EUSÉBIO, História eclesiástica, X,7,1-2.
62
Cf. MAURILIO ADRIANI, La cristianita antica dalle origini alla «Città di Dio», II. Roma
1981, 390.
63
Cf. HORST FUHRMANN, Constitutum Constantini, Fontes Iuris Germanici Antiqui ex
Monumentis Germaniae Historicis, X, Hannover 1968, 56-98.
64
Cf. BERTELLONI. El pensamiento político papal em la Donatio Constantini, aspectos
históricos, políticos y filosóficos del Documento Papal, in Leopoldianum, 44 (1988) 33-53; 38-
41.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 219

Sabemos a importância e consequências que teve esta lenda até que


Lorenzo Valla desmascarou a sua falsidade. Ao longo de séculos os de-
fensores da hierocracia pontifícia apoiaram-se no Constitutum Constan-
tini para justificar a teoria da plenitudo potestatis papalis. E, contudo, tal
invenção assentava pelo menos num fundo histórico: Constantino foi,
de facto, um grande benemérito da Igreja católica65. Aliás, sabemos hoje
que a Donatio Constantini nasceu não tanto para apoiar pretensões terri-
toriais, mas é, antes de tudo, a consignação escrita de uma lenda romana,
apoiada sobre o facto seguro da entrega por Constantino de seu palácio
lateranense a Silvestre I66, numa época em que causas externas compe-
liam Roma a definir sua postura relativa ao trono que se sentia herdeiro
de Constantino, Bizâncio67.

Caballus Constantini:
Constantino imagem do príncipe Cristão

A mais famosa estátua equestre do mundo é a do imperador Marco


Aurélio que, desde 1979, se encontra no museu do Capitólio de Roma.
Esculpida no ano 176 d.C., foi colocada no séulo VIII na praça de La-
terão e, por vontade do papa Paulo III, transferida em 1538 para o Capi-
tólio, no centro da praça desenhada por Miguel Ângelo. Este exemplar
único de estátua equestre de um imperador romano só se conservou in-
tacta porque se julgava que ela representava o imperador cristão Cons-
tantino68, sendo por isso conhecida por Caballus Constantini. Só no Re-
nascimento, graças ao confronto com outras representações da esfinge

65
Cf. EUSÉBIO, História eclesiástica, X,7,1-2; X,5,15-17. Edição crítica da Donatio Con-
stantini, por H. FUHRMANN, Das Constitutum Constantini (Fontes Iuris Germanici Antiqui X)
1968.
66
Cf. LO GRASSO, Ecclesia et Status, nº. 167 e 171, e SILVA-TAROUCA, nº 252. LEVIN-
SON, Konstantinische Schenkung, 159; G.MARTINI, Traslazione dell‘Impero e Donazione di
Constantino nel pensiero e nella política di Innocenzo III, Roma 1933, 66-67.
67
O essencial do Constitutum reduz-se ao seguinte esquema: a) Primazia da Igreja Romana
sobre as quatro Igrejas patriarcais do Oriente; b) Direitos da cúria romana aos atributos e insígnias
imperiais; c) Direitos sobre o Ocidente.
68
THOMAS GRÜNEWALD, «Constantinus Novus»: Zur Constantin-Bild des Mittelalters,
In G. BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesimo.
Colloquio sul Cristianesimo nel mondo antico. Macerata, 18-20 Dicembre 1990, I, Macerata
1992, 461-462.
220 ISIDRO P. LAMELAS

de Marco Aurélio, se percebeu que nem o cavalo era de Constantino nem


Constantino era o homem do cavalo.
Mas mais uma vez, o mito fintou a história: Marco Aurélio, filóso-
fo estoico pagão, perseguidor dos cristãos (recordem-se os mártires de
Lião e Justino e companheiros), durante séculos permaneceu no centro
da Roma dos papas. O imperador filósofo pagão, escondido sob o nome
do imperador cristão proposto como modelo a imitar. Afinal, em nenhum
dos casos interessava a história, mas o paradigma, o modelo do príncipe
(equestre), exemplum do Soberano desejado.
Sabemos, de facto, o influxo que teve nos séculos posteriores o ideal
de Basileia e o modelo de imperador (Constantino) desenhado por Eusé-
bio (Vita Constantini e De laudibus Constantini) que acabou por se im-
por como protótipo da imagem do imperador cristão69.
Fazendo um balanço da viragem provocada pela conversão de Cons-
tantino, Ambrósio, no já citado De obitu Theodosii, afirma que Constan-
tino «como primeiro imperador dos imperadores crentes, deixou depois
de si aos outros príncipes a herança da fé» (40). E, desde então, «a cruz
de Cristo foi adorada na coroa dos reis» (48), e «dele derivam os outros
príncipes cristãos» que se lhe seguiram (51).
Tal tologia política, associada aos erros «piedosos» da história pos-
terior («Édito de Milão», Donatio Constantini, Caballus Constantini)
ajudaram a transferir o velho poder imperial (temporal) simbolizado em
Constantino para o poder papal, ao mesmo tempo que se garantia ao po-
der temporal a dimensão sacral que o cristianismo combatera na era pré-
-constantiniana. A imagem mítica de Constantino servia muito melhor
que a história para alimentar a aliança dos dois poderes, secular e espiri-
tual, a coroa e a cruz. Deste modo se perpetuava o modelo do imperador
cristão como «novo Constantino».
Constantino é efectivamente o modelo que preside à construção da
figura de monarcas cristãos nos séculos sucessivos. É o caso de Clodo-
veu, rei dos Francos (466-511) que, no retrato que dele faz Gregório de
Tours (Historiarum libri), é apresentado como o Novus Constantinus, su-
blinhando as analogias entre os dois príncipes: «Como um novo Constan-

69
Cf. N. GRAMACCINI, Zur Rezeption des Marc Aurel in Mittelalter und Renaissance, in
Natur und Antike in der Renaissance, Frankfurt 1985, 53.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 221

tino ele se aproxima da pia batismal, para se curar da doença de uma ve-
lha lepra e para se purificar com água fresca das manchas sórdidas dos
feitos passados»70.
À imagem de Constatino, também Clodoveu se converte durante a ba-
talha de Tolbiac71; para evitar o massacre dos seu exército invocou o Se-
nhor, prometendo converter-se à fé cristã já professada por sua esposa
Clotilde72. A esta miraculosa conversão, ditada pela necessidade, seguiu-
-se a definitiva adesão de Clodoveu à fé católica por intervenção do bispo
de Reims, Remigio que o baptiza. Também ele, como o primeiro impera-
dor cristão, é escolhido e colocado, qual novo Moisés, à frente do novo
povo Deus, os Francos, para conquistar a terra prometida: A Gália. Tam-
bém aqui temos uma aliança entre Deus e o povo que legitima o poder de
Clodoveu e seus descendentes.
Carlos Magno que, como sabemos, de bom grado assumia o epíteto de
«Novo Constantino»73 (confirmou a Doação pseudo-costantiniana). A le-
genda constantiniana foi ainda motivo de inspiração na definição das re-
lações entre Otão III (980-1002) e Gerberto de Aurillac, que, não por aca-
so veio a ser o papa Silvestre II. Constantino servia assim de modelo para
uma restauração, ainda que efémera, do império. Também Otão III assu-
me o título e função de servus Iesu Christi, retomando a ideia de missão
apostólica do imperador elaborada por Eusébio relativamente a Cons-
tantino e que fora assimilada pela linguagem política e litúrgica bizanti-
na. Sob esse título de servus Iesu Christi estão condensadas as concep-
ções de hegemonia imperial romana e o ideal carolíngio de expansão do
cristianismo a partir do modelo constantiniano do imperador servus Dei.
Sabemos que na tradição bizantina esta colagem do monarca ao para-
digma constantiniano goza de uma história ainda mais rica e continuada.
O imperador Heráclius (612-641) auto-intitulava-se de «Novus Constan-
tinus», como no-lo documenta a numismática da época, e seu filho assu-
70
GREGÓRIO DE TOURS, Hist. Franc. II,31: «Procedit novus Constantinus, ad lava-
crum, deleturos leprae veteris morbum, sordentesque maculas gestas antiquitas recenti latice
deleturus».
71
GREGÓRIO DE TOURS, Hist. Franc. II 30-31.
72
GREGÓRIO DE TOURS, Hist. Franc. II 30.
73
Cf. THOMAS GRÜNEWALD, «Constantinus Novus»: Zur Constantin-Bild des Mittelal-
ters, In G. BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesi-
mo, 476-482.
222 ISIDRO P. LAMELAS

miu o nome de Constantino (III). Mas são mais de 15 os monarcas bizan-


tinos com o nome de Constantino74.
Na Russia, como noutras partes, era bastante comum encontrar ima-
gens de S. Constantino, em que o primeiro imperador cristão é apresenta-
do como modelo de governante perfeito e ideal. Quando se queria digni-
ficar e glorificar um imperador, comparava-se com Constantino Magno,
isto até ao século XVIII.
E fiquemos por aqui, para não nos alongarmos mais numa história re-
cheada de muitos mais episódios da metamorfose do mito constantiniano.

O mito de Constantino na história de Portugal

Na abóbada da nave da igreja de Santo António dos Portugueses, em


Roma (1870), pode ver-se representado o chamado milagre de Ourique,
onde um anjo estende para Afonso Henriques uma bandeira com a divisa
constantiniana: In hoc signo vinces75.
Vimos que a conversão de Constantino, ou o modo como dela se apro-
priaram, constitui em grande parte um mito (histórico) fundador. Como
afirma António José Saraiva, «os mitos históricos são uma forma de
consciência fantasmagórica com que um povo define a sua posição e a
sua vontade na história do mundo»76.
Por isso, nenhum povo pode viver sem a inspiração mítica de si pró-
prio e, no caso português, o mito de Ourique constitui realmente uma das
pedras angulares da portugalidade. Na génese deste mito do império está
o relato do milagre de Ourique de que é protagonista D. Afonso Henri-
ques, narrado pela primeira vez na Crónica de Portugal de 141977. Sabe-
mos que esta narrativa, também ela envolta na auréola da lenda78, visava

74
Cf. FOSS CLIVE, Emperors named Constantine, In Revue numismatique, 161 (2005 ) 93-
102. O autor elenca 18 príncipes com o nome de Constantino, cf. Ibid. 100-101.
75
Cf. MANUEL J. GANDRA, A cristofania de Ourique. Mito e profecia, Lisboa 2002, 127.
76
ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA, «As épocas da Cultura Portuguesa», in A Cultura em Portu-
gal: Teoria e História, I, Lisboa, Gradiva, s.d. [1994], p. 112.
77
Cf. Cf. MANUEL J. GANDRA, A cristofania de Ourique. Mito e profecia, Lisboa 2002,
sobretudo 86-92. 121-150. Para os testemunhos desta tradição na iconografia nacional, cf. Ibid.
151-234.
78
António Verney já considera que «a aparição [de Cristo] ao rei Afonso, assim como a redo-
ma que veio do céu a Clodoveu e outras destas coisas que se acham nas histórias, são boas para
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 223

pintar uma imagem épica de D. Afonso Henrique, atribuindo a sua sobe-


rania a uma vontade e linhagem oriunda directamente de Deus79.
Desta forma, o mido de Ourique significa aos olhos do mundo que
Portugal era um reino fundado no querer divino e a sua independência
fruto de um direito superior. Para Camões, este mito significa uma con-
cepção de Portugal como um povo destinado ao combate e difusão da fé,
um povo de características messiânicas... (cf. Os Lusíadas, Canto III, 42-
53); uma ideia que perpassa a história de Portugal80.
O relato refere-se a uma batalha que terá tido lugar ao sul do Tejo
contra vários reis «mouros», entre eles um enigmático rei «Ismar», mas
todos eles escapam à verosimilhança histórica81. Na véspera da peleja
anunciada, um ermitão aparece ao futuro rei Afonso, enquanto mediador
divino, dizendo-lhe: «... e Ele me manda por mim dizer que quando ou-
vires tanger esta campainha que em esta ermida está, que tu saias fora.
E Ele te aparecerá no ceo assi como ele padeçeo pelos pecadores» (III).
Num ulterior trecho da crónica, narra-se a aparição nestes termos: «E
quando foi ante menham hûa meia ora, tangêsse a campam. E ele saios-
se-se fora da sua tenda, e assi como ele disse e deu testemunho em sua
estoria, vio Nosso Senhor Jesus Cristo em a Cruz pela guisa que lh’o ir-
mitom dissera. E adorouo com grande ledise e com lágrimas de prazer
de seu coração» (ibid.).
O milagre é, logo a seguir, transposto no próprio símbolo da bandei-
ra do futuro reino, «...por sempre se nembrar da merçee que lhe Deos em
aquele dia fizera, acrescentou em suas armas sinais que fossem demons-
trados em remembrança das cousas que lhe aconteceram e esso mesmo
da mercee que lhe Deos fizera. E, pelo aparecimento que lhe Nosso Se-
nhor Jesu Christo aparecera em a cruz, pos sobre as armas brancas que
ele trazia hua cruz toda azul; e pelos cinco reis que lhe Deus fizera ven-
cer departio a cruz em cinco escudos e meteo trinta dinheiros em cada
divertir rapazes; e os críticos as conservam todas no mesmo armário em que guardam as penas da
fénix», Verdadeiro método de estudar, V,1.
79
Não espanta que, na sequência de tais eventos, no século XVIII se tenha constituído mesmo
o processo de beatificação de Dom Afonso Henriques. Cf. COSTA BROCHADO, O milagre de
Ourique, in Brotéria, 41 (1945) 58-63.
80
Cf. MANUEL J. GANDRA, A cristofania de Ourique. Mito e profecia, Lisboa 2002, so-
bretudo 66-106.
81
Cf. J. MATOSO, História de Portugal, I, Lisboa 1993, 70.
224 ISIDRO P. LAMELAS

hûm dos escudos em reverençia da morte e paixão de Nosso Senhor Jesu


Christo» (ibid.)82.
As analogias com o precedente constantiniano não são meras coinci-
dências. O «sonho de Constantino» é figura de Ourique e, por metoní-
mia, enquanto evento fundador, comparável e motivador de toda a histó-
ria de Portugal. A visão e vitória de Constantino, em sua analogia com o
feito de Afonso Henriques, inspiravam agora as ações lusitanas. A cruz (a
vera crux), como tema central, passará, desde então, a marcar toda a sim-
bólica nacional aquém e além-mar83.
Mormente em períodos em que Portugal mais necessitou de reavivar
a sua identidade e autonomia política, o mito constantiniano na sua ver-
são nacional voltou a ser tema forte na literatura laica e pregação eclesi-
ástica84.
Entre os pregadores franciscanos este tema parece mesmo ter mere-
cido um particular relevo. Num sermão pregado a 18 de Dezembro de
1641, Frei João da Conceição, pregador de nomeada da Província Fran-
ciscana dos Algarves, faz remontar a legitimidade e dignidade real ao
«santo Rei Dom Afonso Henriques a quem Deus elegeu-o Rei como a
David, em o Campo de Ourique, onde lhe apareceu o Crucificado antes
de dar aquela célebre batalha aos mouros, e alcançasse vitória dos cinco
Reis bárbaros»85. Apenas uns quatro anos mais tarde, o mui ilustrado Frei
Cristóvão de Lisboa, pregando o sermão da Imaculada Conceição, reto-
mava o mote e o mito86.
Mesmo quando o paralelo com a visão de Constantino não é explíci-
ta, esta está bem presente como paradigma ideológico e simbólico. O so-
nho e o Milagre de Ourique aproximam intencionalmente Afonso Henri-
82
Texto in MANUEL J. GANDRA, A cristofania de Ourique. Mito e profecia, Lisboa 2002,
86-91.
83
Convirá, contudo, recordar que só quase três séculos depois da pretensa batalha de Ourique
o milagre da aparição de Cristo a D. Afonso se tornou numa renovada dimensão da lenda heróica
do fundador de Portugal. Sabe-se, contudo, que a fundação do mosteiro de Santa Cruz já se deveu
ao milagre de Ourique.
84
Como bem no-lo mostra o recente trabalho de JOÃO FRANCISCO MARQUES, Utopia
do Quinto Império e os pregadores da Restauração, Vila Nova de Famalicão 2007.
85
Em JOÃO FRANCISCO MARQUES, Utopia do Quinto Império e os pregadores da Res-
tauração, 44. Cf. Ibid. 53.
86
Cf. JOÃO FRANCISCO MARQUES, Utopia do Quinto Império e os pregadores da Res-
tauração, 412.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 225

ques de Constantino, Ourique de Roma, o reino de Portugal do Império


Romano, Ismar de Maxêncio, os Mouros dos Pagãos. Essa operação ana-
lógica e fundante (fundação de Portugal) assenta na mesma visão provi-
dencialista e profética da história que pressupõe sempre uma ligação com
o Eterno, com o idêntico que se repete, embora de maneira diferente, ao
longo da história da humanidade.

Conclusão

CONSTANTINUS / PER CRUCEM / VICTOR / A S. SILVESTRO


HIC / BAPTIZATUS / CRUCIS GLORIAM / PROPAGAVIT
Estas as palavras, esculpidas em 1588 na base que sustém o obelisco
da praça de Laterão, conservam hoje apenas a memória de uma lenda rica
e complexa nas suas consequências históricas. Neste registo tardio reen-
contramos os pontos nodais da tradição historiográfica e popular elabora-
da e mantida durante 12 séculos no seio da Igreja romana. Pontos centrais
de uma lenda em que a história se mistura com a hagiografia popular. Du-
rante longos séculos vigorou essa memória mítica de Constantino e, na
hora de recolocar o obelisco lateranense no século XVI, com intuitos cla-
ramente contrarreformistas, e em resposta ao Constantino histórico que a
cultura humanística e protestante nessa altura repropunha, a intenção era,
no fundo, a de perpetuar o paradigma constantiniano.
Tal memória mítico-lendária assentou na idealização da conversão do
imperador e na transfiguração da simbólica sagrada que permitiu trans-
formar o «escândalo» da cruz em troféu vitorioso e estandarte de uma
nova ideologia do poder e da vitória87. Por outro lado, a memória de um
Constantino baptizado pela mão do bispo de Roma e benfeitor da Igreja,
serviu para restaurar e afirmar o poder papal e justificar o poder reivindi-
cado sobre as demais Igrejas (orientais).
A partir da «conversão» de Constantino assim idealizada, passou-se
bastante depressa a ver nele o protótipo e personificação das ideias força
que marcaram a Idade Média europeia, nomeadamente no que se refere à
concepção e uso do poder e nas relações Igreja Estado. Um processo que

87
Segundo a narrativa de Ambrósio, Sta. Helena, mãe de Constantino, quando chegou ao lu-
gar do Gólgota, em demanda do santo lenho, terá exclamado: «Ecce locus pugnae, ubi est victo-
ria?» (De obitu Theodosii, 43).
226 ISIDRO P. LAMELAS

consagrava em simultâneo a ideologia do «imperialismo papal» e a ide-


ologia monárquica como regime querido por Deus (deo servire regana-
re est) foi-se concretizando sob a forma de «império romano-cristão» ou
«Sacro Império Romano-Germânico». Podemos mesmo garantir que as
monarquias e principados europeus mantiveram viva a aurea de Constan-
tino até à Revolução francesa. Essa ideologia monárquica, enquanto ca-
tegoria tipológica, marca assim toda a tradição europeia e as relações de
poder entre a Cruz e a Coroa.
O mito constantiniano desenvolveu-se sobretudo à volta de duas
ideias complementares, a julgar pela vitalidade que tiveram na história.
Primeiro enquanto «Acto fundacional» sob o signo do sagrado que, como
tal, tende a ser duradouiro e imitado nas futuras gerações. E, de facto a
«fundação» constantiniana perdurou nas múltiplas tentativas e formas de
império romano-cristão. Neste sentido, podemos afirmar que a conver-
são (e vida) de Constantino não significa apenas a sua pessoal regenera-
ção, mas também a criação duma nova realidade histórica: a Europa cris-
tã. Não será por acaso que S. Silvestre, figura determinante, segundo a
lenda, na conversão de Constantino, se celebra no último dia do ano88.
A outra ideia expressa no mesmo mito tem a ver com a própria nature-
za do Império fundado por Constantino, caracterizado pela total integra-
ção das duas ordens, secular e religiosa; e a interferência da autoridade
imperial nos dois âmbitos (constantino legislador, construtor e pacifica-
dor de Igrejas, defensor da ortodoxia).
Retomando importantes aspectos da ideologia e salutologia romana,
e aproveitando o ambiente favorável à divinização do príncipe, a propa-
ganda constantiniana conseguiu realmente inventar um mito que marcará
o futuro da Europa. Por isso, a discussão à volta da matriz cristã do velho
continente não pode ignorar o pepel de acontecimentos como a «viragem
constantiniana», mas também não pode ignorar a força e significado do
mito que estará presente noutras grandes «viragens» da história do velho
continente. Na verdade, «a conversão» de constantino sob a admonição
divina (in hoc signo vinces) ainda que não seja «histórica», influenciou
mais nos destinos dos povos da Europa que o próprio Constantino histó-

88
Edward Gibbon apresenta Constantino com o fundador da nova Europa cristã, depois de ter
sepultado, com a sua conversão o velho mundo pagão (Decínio e queda do Império Romano, I,
Lisboa 1994, 274-275).
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 227

rico. Muita coisa decorreu, desde então, até à idade moderna sob este sig-
no que, para o bem e para o mal, foi impondo um determinado modelo de
sociedade, de Igreja e de cultura de que ainda somos herdeiros.
O estudo das lendas que mantiveram vivo o mito de Constantino a
oriente e ocidente mostra que o influxo histórico do primeiro imperador
cristão, longe de constituir um capítulo conclusivo da história romana, é
realmente um dos mitos fundantes da Europa (cristã) no sentido lato (até
Bizâncio).
O que acabámos de dizer mostra-nos que, mesmo quando a lenda
prescinde da história, os historiadores não podem prescindir da lenda e
mitologia, uma vez que esta faz parte do quadro histórico dos aconte-
cimentos. No caso em análise estamos, podemos dizer, ante uma lenda
paradoxalmente histórica ou uma história que apela e potencia a lenda.
Nunca entenderemos, portanto, a história pós-constantiniana se a abor-
darmos com os preconceitos do criticismo contemporâneo89.

89
Cf. MAURILIO ADRIANI, La cristianità antica dalle origini alla «Città di Dio», II. Roma
1981, 185.

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