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por
Isidro P. Lamelas, ofm
3
EUSÉBIO, Vita Constantini, I,8,1.
4
ANDRÉ PIGANIOL, L’Empire chrétien, Paris 1972, 77.
5
O desinteresse pelo Constantino histórico prolongou-se até meados do século XVI (1576,
quando Johannes Löwenklav centrou a atenção da historiografia sobre a História Nova de
Sózimo).
6
Cf. Ch. PIETRI, Constantin et l’inflexion chrétienne de l’Empire, in J.-M. MAYER - Ch.
PIETRI - A. VAUCHEZ - M. VENARD, Histoire du christianisme, 189.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 193
7
A primeira reacção anticonstantiniana fez-se notar já entre o quarto e quinto século, nos
círculos pagãos conotados com a contrareforma de Juliano Apóstata. O melhor exemplo da rea-
ção pagã anticonstiantiniana é a lenda propagada por Juliano e retomada por Eunapius (preser-
vada por Sósimo) que contava que Constantino se tornara cristão porque só na nova religião ele
podia encontrar remissão para os seus crimes (morte da mulher e filho). Cf. JULIANO, Caesars
336B. O segundo momento coincidiu com a crítica e demolição do Constitutum Constantini (L.
VALLA, 1440) que, até então constituíra uma rocca forte dos poderes da Igreja. Um terceiro
momento será assinalado pelos estudos de Jacob Burckardt que repropôs uma imagem de um
Constantino hábil político que usa a religião como recurso do seu hábil estratagema político. Cf.
SALVATORE CALDERONE, Letteratura costantiniana e «conversione» di Costantino, in G.
BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesimo. Collo-
quio sul Cristianesimo nel mondo antico. Macerata, 18-20 Dicembre 1990, I, Macerata 1992,
231-235; 237-249.
8
Foi sobretudo depois de 324-325 (vitória de Constantino sobre Licínio e Concílio de Niceia)
que se multiplicaram as interpretações entusiastas de Constantino. Tais leituras eram, sem dúvida,
animadas por um imperador cada vez mais «convertido»: legislação pró-cristã, iniciativas em
benefício do culto cristão, papel no Concílio de Niceia, discursos e cartas; numismática (presença
do monograma de Cristo).
9
Cf. NICOLA BAGLIVI, De Diocleziano a Costantino: un punto di referimento «storiogra-
fico» in alcune interpretazioni tardoantiche, in G. BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino
il Grande dall’Antichità all’Umanesimo, 60-66.
10
PAUL VEYNE, Quando o nosso mundo se tornou cristão, Lisboa 2009, 9.
194 ISIDRO P. LAMELAS
Mais recentemente, o historiador francês Paul Veyne, na obra Quand notre monde est devenu
chrétien (312-394), publicada em 2007, sustenta que o grande papel histórico de Constantino foi
o de fazer do Cristianismo sua religião pessoal, uma religião favorecida pelo poder imperial, ao
contrário do paganismo. Para este autor o motivo da conversão de Constantino é simples: «àque-
le que desejava ser um grande imperador, era necessário um grande deus. Um Deus gigantesco e
amante, que se apaixona pela humanidade, suscitava sentimentos mais fortes que a multidão de
deuses do paganismo, que viviam para si mesmos ignoravam; este Deus desenrolava um plano
não menos gigantesco para a salvação eterna da humanidade; Ele imiscuía-se na vida de seus fiéis
exigindo-lhes uma moral estrita» (p. 33). Esta leitura restitui a Constantino a importância que a
historiografia pós-iluminista lhe tinha retirado, fazendo dele um momento central na história da
humanidade, uma vez que sua conversão lançou bases para a cristianização do Império Romano
e da civilização ocidental. Sob o influxo das novas perspectivas abertas por Peter Brown, a estu-
diosa inglesa Averil Cameron procurou inserir Constantino num contexto histórico marcado por
transformações e continuidades que desembocaram num «novo Império». Seguindo as tendên-
cias dos seus antecessores, Constantino introduziu novos aspectos no âmbito político, administra-
tivos e religiosos que caracterizam esse novo império (El Bajo Imperio, Madrid 2001, 34). Con-
temporaneamente, o historiador italiano Arnaldo Marcone insiste ainda mais na ideia de uma
continuidade entre a idelologia do império pagão e a novidade trazida por Constantino ao abraçar
a nova religião. Também este autor entende a conversão de Constantino como um processo que
começou nos anos da crise de tetrarquia e culminou em 312 (Pagano e cristiano. Vita e mito di
Costantino, Roma 2001, 45-46).
14
Esta não era, contudo, a opinião unânime de todos os cristãos. Muitos destes, desde muito
cedo, viam mesmo no império romano uma ajuda providencial para a afirmação e expansão do
cristianismo. Cf. MELITÃO DE SARDES, in EUSÉBIO, História eclesiástica, IV,26,7-8; IRE-
NEU, Adv. haer. V,24,2-3; TERTULIANO, Apologeticum, 33.
15
Foi após os anos conturbados de 378-380 (Batalha de Adrianopoles, morte de Valente, to-
196 ISIDRO P. LAMELAS
A construção do mito
mada do trono por Teodosio que se recordou abertamente esse acontecimento: Constantinus ex-
tremo vitae suae tempore ab Eusebio Nicomediensi episcopo baptizatus in Arrianum dogma de-
clinat (JERÓNIMO, Chronicon). Os copistas medievais vão corrigir Constantinus para
Constantius, a fim de resolver o incómodo de tal informação histórica.
16
Na historiografia eclesiástica grega (Sócrates, Sozómeno, Teodoreto) continuam a colocar
o batismo de Constantino em Nicomédia, mas sem nomear o ministro que o baptizou. Aliás, o
nome de Eusébio de Nicomédia acabará por ser substituído, nalgumas fontes, por Eusébio de
Roma (que assumiu a sede de Pedro em Abril de 308) que, por sua vez, será substituído pelo papa
Silvestre. Posteriormente dir-se-á que Constantino, batizado por um ministro ortodoxo, só adiou
o batismo para tão tarde porque esperava ser batizado no rio Jordão (FÓCIO, Biblioteca, cod. 88).
Cf. SAMUEL LIEU, From History to Legend and Legend to History. The medieval and Byzantine
transformation of Constantin’s Vita, in SAMUAL N. C. LIEU – DOMINIC MONTSERRAT,
Constantine. History, Historiography and Legend, N. York 1998, 140-141.
17
Cf. FILIPPO CARLÀ - MARIA G. CASTELLO, Questioni tardoantiche. Storia e mito
della «svolta constantiniana», Roma 2010, 18.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 197
18
Poucos personagens históricos mereceram a esta sorte de se terem mantido vivos e omni-
presentes: na historiografia, na hagiografia, na fé popular, ou ainda na tradição culta. Tanto o
poder religioso como o poder político, a ocidente e a oriente, pelo menos até ao século XVI, farão
uso das forças regeneradoras deste mito. Cf. E. EWIG, Das Bild Constantins des Grossen in den
ersten Jahrhunderten des abendländischen Mittelalters, in Historisches Jahrbuch LXXV (1956)
1-46; A. LINDER, The myth of Constantine the Great in the West: Sources and Hagiographic
commemoration, in Studi Medievali 3ª s. 16 (1975) 43-95.
19
Cf. SAMUEL LIEU, From History to Legend and Legend to History. The medieval and
Byzantine transformation of Constantin’s Vita, in SAMUAL N. C. LIEU – DOMINIC
MONTSERRAT, Constantine. History, Historiography and Legend, N. York 1998, 152-
154.
198 ISIDRO P. LAMELAS
20
A rivalidade entre o oriente e o ocidente eclesiásticos, agravada pela controvérsia ariana
e pela animosidade que opôs Constantinopla e Roma, levou os orientais a proclamar
Constantino «igual aos apóstolos» (isapostolos), émulo de Pedro e comparável a Paulo.
Em contrapartida, no ocidente resistiu-se sempre à canonisação do imperador. Cf. E.
BECKER, ‘Protest gegen den Kaiserkult und Verherrlichung des Sieges am Pons Milvius
in der altchristlichen Kunst der konstantinschen Zeit, in Römische Quartalschrift Suppl.
20 (1913) 155-190. Para aprofundar, veja-se F. WINKELMANN, Das hagiograische
Bild Konstantins I im mittel-Byzantinischer Zeit, in: V. VAVŘINEK (ed.), Beiträge zur
byzantinischen Geschichte im 9.-11. Jahrhundert, Prague 1978, 179-203; A. KAZHDAN,
Constantin imaginaire. Byzantine legends of the ninth century about Constantine the Great,
in Byzantion 57 (1987) 196-250; S. N. C. LIEU, From History to Legend and Legend to
History, 136-176.
21
ARNALDO MARCONE, Pagano e cristiano. Vita e mito di Costantino, Roma 2002.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 199
22
Panegírico IX,2,3-5. Ao evocar os detalhes dos feitos militares da campanha de Constan-
tino, este orador atribui os seus sucessos à acção e protecção do deus ille mundi creator et domi-
nus (13,2). O panegirista termina com uma oração ao summe rerum sator (26,1) «que quis ter
tantos nomes quantas as línguas dos povos». A mudança de linguagem em relação aos tradicio-
nais panegíricos é clara: nestes, os nomes das divindades (Júpiter, Apolo, Vitória…) eram obriga-
toriamente nomeados. Cf. M. SORDI, I cristiani e l’impero romano, Roma 1990, 160-161.
200 ISIDRO P. LAMELAS
«foi suscitado pelo suas tropas para auxílio mais poderoso que o
rei soberano, Deus as proximidades das simples forças militares,
do universo e Sal- da cidade e procurava a proteção de um deus,
vador contra os ti- estabeleceu-se nas pois considerava de secundária
ranos e ímpios». cercanias da Ponte importância os exércitos e o
«Depois de ter in- Milvius. número de soldados...»
vocado, nas suas Era o dia 27 «Pensava, pois, qual o deus que
orações, como alia- de Outubro… deveria escolher como protetor.
do o Deus celeste e Constantino foi Enquanto refletia sobre isso veio-
seu Verbo e Salva- advertido num lhe à mente a seguinte reflexão:…
dor de todos, Jesus sonho enquanto Todos os predecessores que
Cristo. dormia para gravar tinham colocado a sua esperança
Avançou com todo nos escudos numa pluralidade de divindades...
o seu exército, pro- dos soldados o tiveram um fim infeliz...
metendo aos roma- sinal celeste e apenas seu pai, que seguira um
nos a liberdade» assim avançar caminho bem diferente dos outros
«O imperador, li- para a batalha. imperadores e condenara os erros
gado à aliança de Obedecendo, destes, honrara durante toda a sua
Deus atacou pri- mandou inscrever vida o deus único que domina
meiro…». sobre os escudos o todas as coisas e que considerara
«O próprio Deus nome de Cristo: um como salvador e guardião do
arrastou o tirano X atravessado pela império e autor de todos os bens».
para longe das por- letra I, dobrando a «Ponderando atentamente o facto
tas da cidade». sua extremidade… que os outros, embora confiados
Sucedeu em a muitos deuses, tinham caído em
Roma um tumulto grande número de desventuras,
e acusava- ao ponto de não deixaram nem
se o imperador família, nem descendência, nem
[Maxêncio] de raiz alguma… nem sequer um
não cuidar da rasto de memória do seu nome e
salvação pública e memória entre os homens» (27).
improvisamente o «Começou então a invocar o deus
povo… começou a de seu pai, pedindo e suplicando
gritar a uma só voz: que lhe mostrasse quem ele era
‘Constantino não e que o socorresse nas atuais
pode ser vencido!» circunstâncias.
II. «Maxêncio de- II. «Maxêncio… Enquanto o imperador estava
positava a sua con- consulta os Livros absorto nesta oração e dirigia
fiança nas artes da sibilinos e nestes a sua súplica com toda a
magia...” encontrou que neste sinceridade, apareceu-lhe um
«O mais ímpio dos dia verá perecer o sinal divino verdadeiramente
homens” (5). inimigo de Roma. extraordinário, no qual não seria
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 201
lado Constantino que ouve a voz do Deus dos cristãos. O combate é des-
de então não entre dois exércitos e estrategas humanos, mas entre os deu-
ses antigos e o novo Deus: «A mão de Deus pairava sobre o combate»,
como pairara sobre o povo a caminho da terra prometida. Assim se de-
monstrava, mais uma vez, segundo a leitura tipológica inspirada na his-
tória bíblica, que quem sai vitorioso é o novo povo de Deus e o Deus dos
cristãos. Na primeira versão dos acontecimentos, Eusébio confessa que,
perante tal «prodígio realizado… a maioria recusava acreditar como se
tratasse de um relato fabuloso, mas que para os crentes era digno de fé
porque narrado nos livros Sagrados» e evoca imediatamente o que suce-
deu «no tempo de Moisés»28.
A analogia entre Constantino e Moisés vai mais longe, ao ponto de se
poder falar não só de paralelismo ou tipologia, mas de uma substituição.
Como Moisés, Constantino realiza grandes obras por intervenção divina.
«Segundo Moisés, os sonhos são enviados por Deus»29, por isso também
o sonho de Constantino é interpretado deste modo. O imperador cristão
substitui Moisés na nova economia da história da Igreja. Ele é o Moisés
deste novo povo no qual se estão a atuar as promessas e bênçãos do Deus
de Moisés: Constantino é servo de Deus e vencedor dos gentios (1,6);
como Moisés é educado por tiranos (1,12), a ambos Deus concede uma
aparição (epifania), o adversário é engolido pelas águas que assinalam a
vitória e a passagem para a liberdade, ambos vencem orando na tenda,
ambos combatem os ídolos; também Constantino se assume como sumo-
-sacerdote, deseja ser batizado no Jordão, embora não realize tal desejo;
até a sua ascensão ao céu é semelhante a Moisés (tal como se reproduz
nas moedas (3,74)30. Agora, porém, quem persegue não é o Faraó, mas
o novo Moisés: é Constantino que persegue e vence o «ímpio» Maxên-
cio. Invertendo, deste modo, os papéis, Eusébio quer ilustrar a «viragem»
(svolta) operada na ponte Mílvio, ao mesmo tempo que inscreve esse epi-
sódio na dinâmica da história da salvação.
28
EUSÉBIO, História eclesiástica, IX,9,3.
29
Cf. História eclesiástica, II,18,4.
30
Cf. R. FARINA, L’impero e l’imperatore cristiano in Eusebio di Cesarea. La prima teolo-
gia politica del cristianesimo, Zürich 1966, 189; FILIPPO CARLÀ, Le monete costantiniane:
propaganda politica e rassicurazione económica, in FILIPPO CARLÀ - MARIA G. CAS-
TELLO, Questioni tardoantiche. Storia e mito della «svolta costantiniana», Roma 2010, 87-93;
116-117.
206 ISIDRO P. LAMELAS
sinal da cruz era ainda mais brilhante que o sol» urgia que o prodígio se
desenrolasse à luz do dia, antes que sob a possível ilusão dum sonho no-
turno. Importava, de facto, ler neste acontecimento a vitória do verdadei-
ro «Sol de justiça» (Mal 3,20) sobre a divindade solar (Apolo, Sol Invic-
tus) então na moda e a que o próprio Constantino estava ligado até 31232.
Importava também conferir credibilidade a tais sucessos extraordinários;
razão pela qual agora Eusébio tem o cuidado de garantir que a sua fonte é
o próprio Constantino que «disse ter visto com os próprios olhos». Des-
ta forma, Eusébio conferia aos acontecimentos da ponte de Mílvio o ca-
riz maravilhoso e sobrenatural que faltava para a definitiva afirmação do
mito constantiniano, garantindo a credibilidade do mesmo.
Foi, pois, Eusébio quem deu o primeiro e maior passo para a consa-
gração do mito constantiniano ao acentuar a ligação e intervenção divina
na história e vida do imperador, tendendo a transformar em milagres to-
das as vitórias do imperador. O pai da historiografia eclesiástica quer, de
facto, demonstrar na biografia panegírica de Constantino (uma antologia
de atos piedosos) que a felicitas do imperador se deve à sua pietas. Mul-
tiplica, por isso, as revelações diretamente recebidas de Deus e os fac-
tos extraordinários que asseguram a vitória de Constantino querida por
Deus. O sistema simbólico eusebiano serve assim para afirmar a nova
ideologia imperial, concebida esta como organização política da fé cris-
tã, segundo o modelo em que a basileia assume um papel fundante para
o império necessitado de ser refundado33.
Para Eusébio, a visão do staurograma com as iniciais gregas de «Cris-
to» e a conversão são aspetos indissociáveis, na medida em que a visão
precede e origina a conversão. Segundo a sua narração, Constantino de-
cidiu imediatamente, após a visão, traduzir o sinal celeste numa insígnia
nova, o labarum, que é visto como um símbolo salutífero e instrumento
32
Os panegiristas pagãos confirmam que, de facto, Constantino, nos anos que antecederam os
acontecimentos de Outubro de 312, combatia sob a proteção do deus Apolo, uma divindade que,
desde o tempo do imperador Aureliano se tornara particularmente popular sob a designação de
Sol Invictus. Cf. M. GÉRARD NAUROOY, Constantin au pont Milvius ou la naissance d’un
mythe, in G. BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umane-
simo, II, Macerata 1992, 284-285.
33
Cf. PIERO PICCININI, Il tempo eterno della ‘Basileia’ di Costantino, in G. BONAMEN-
TE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesimo, 369.
208 ISIDRO P. LAMELAS
de proteção34. Eusébio, que por seu lado, na História eclesiástica, não fa-
lara, como advertimos, da visão miraculosa, relata que, querendo os habi-
tantes de Roma erigir uma estátua do imperador Constantino, este orde-
nou que na mão direita da mesma fosse colocado «o sinal do Salvador»,
isto é, a cruz, com a seguinte inscrição: «Com este sinal salvador que é a
verdadeira prova de poder salvei e libertei a vossa cidade do jugo do ti-
rano. E a libertei e restituí ao senado e ao povo romano no seu antigo re-
nome e esplendor»35.
Vemos assim que o sinal sacro da cruz é assumido como signo pode-
roso capaz de renovar e restituir as coisas ao seu estado ideal. Constanti-
no, entendendo os acontecimentos mais com a sua mente romana do que
com coração cristão, vê naquele signum, em primeiro lugar, uma fonte
de força mágica. Desde então sente-se habitado por esse poder-virtus di-
vino que lhe permite realizar sua missão e assume-se como o famulus, o
qer£pwn, da divindade36. «Movido pela força (dÚnamij) divina»37, ven-
ceu os seus inimigos políticos e os adversários de Deus. Daí que a sua vi-
tória tenha sido vista pelo próprio e por alguns cristãos como uma epifa-
nia através da qual Deus se manifesta a todos os homens38.
Tudo decorre, pois, sob o signo do «sacro». Antes da conversão, na
conversão, no Concílio de Niceia: toda a vida de Constantino se desenro-
la sob o signo do sagrado. O seu discurso inaugural na assembleia de Ni-
ceia faz pensar numa hierologia (veja-se Vita Const. III,9-12): o sagrado
e o profano político encontram-se sob o mesmo tecto. Algo que nada ti-
nha de novo: o contexto e protagonistas é que mudaram a partir da «mí-
tica» batalha da ponte Mílvio. Dois anos antes, em 310, numa outra cir-
cunstância delicada em que o imperador Maximiano tentara sublevar as
tropas contra si, Constantino recebera uma outra manifestação «divina»,
na qual Apolo lhe prometia três décadas de vitórias39. Alguns historiado-
res modernos viram nesta primeira visão o modelo que terá inspirado a
outra visão da ponte Mílvio. Sabendo nós que o culto de Apolo andava
34
EUSÉBIO, Vita Constantini, I,30-31. Lanctâncio não menciona o lábaro, limitando-se a
mencionar o monograma que o imperador mandou gravar nos escudos dos seus soldados.
35
EUSÉBIO, História eclesiástica, IX,11.
36
Cf. F. HEIM, La théologie de la victoire de Constantin a Théodose, Paris 1992, 43.
37
EUSÉBIO, Vita Constantini, II,28.
38
Cf. EUSÉBIO, Vita Constantini, II,42. 46.
39
Panegírico, VI [VII] 21, 4-6.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 209
40
Títulos usados por Eusébio relativamente a Constantino: nikht¾j, Nikht¾j Megistoj
SebastÒj, Nikht¾j BasileÚj. Cf. R. FARINA, L’impero e L’imperatore cristiano in Eusebio di
Cesarea. La prima teologia politica del cristianesimo, Zürich 1966, 171.
41
EUSÉBIO, História eclesiástica, X,9,1: ToÚtJ men oân ¥nwqen ™x oÙranoà karpÕn
eÙsebe…aj ™p£xion t¦ trÒpaia tÁj kat¦ tîn ¢sebîn pare‹ce n…khj.
42
Cf. PIERO PICCININI, Il tempo eterno della ‘Basileia’ di Costantino, 783.
43
Augusto instaurara no século II o compromisso entre o politeísmo ortodoxo dos deuses da
cidade e o monoteísmo institucional que via no imperador um divus; 400 anos depois, Constanti-
no concilia o culto do único Deus com o império monárquico exercido agora sobre os corpos e as
almas.
44
S. MAZZARINO, L’Impero Romano, 2, Roma 1990, 658-665; JOSÉ M. S. ROSA, Mono-
teísmo, trindade e teologia política, 2008; http://www.lusosofia.net/, 11-18.
210 ISIDRO P. LAMELAS
do como revelação divina), donde parte toda a lenda que quer confirmar
o facto histórico do primeiro imperador cristão. Já sabemos que «mito»
não significa falsificação ou adulteração fantástica da história. Teremos é
que inserir os acontecimentos e a leitura que dele se faz no contexto men-
tal e cultural que os proporcionou e potenciou45.
Averiguámos, pois, que desde muito cedo a propaganda política e reli-
giosa se apercebeu do potencial do episódio da ponte Mílvio. Por isso, no
futuro, não só se tendem a avolumar os elementos do maravilhoso, como
também se vão completando os «vazios» da narrativa com novos relatos
fantasiosos. De facto, já a partir dos finais do século IV e inícios do sé-
culo V o núcleo original do milagre constantiniano (com as suas compo-
nentes: sonho, visão diurna, chrismon, labarum) se viu enriquecido com
novos elementos de que falaremos a seguir.
A lenda constantiniana
Precisamente porque não foi visto como o clímax de uma mera cam-
panha militar ou de um conflito pessoal (entre Constantino e Maxêncio),
nem sequer um simples acontecimento histórico, mas como um momen-
to renovador prenhe de expetativas algo utópicas, não foram precisos
muitos anos para surgir no seio do próprio cristianismo um desencanto
e até um «anticonstantinianesimo» crescente na ponderação dos factos.
Os últimos anos da vida de Constantino, marcados por compromis-
sos com o arianismo e episódios domésticos de inaudita violência, des-
mentiam a tão aclamada pietas de Constantino e a utopia sonhada com
o advento do primeiro imperador cristão46. Os factos que se sucederam à
45
Bastaria, por exemplo, recordar que o panegírico proferido em Treveri, em 313, por autor
anónimo, insere o mesmo acontecimento no contexto de uma intervenção sobrenatural [fala-se de
uma «mente divina» e «sugestão divina» (divino instinctu), no Arco de Constantino lemos instinc-
tu divinitatis]. Segundo este panegirista, Constantino elevou, na ocasião, uma oração ao «Sumo
Criador do mundo». Estamos, portanto, perante factos que pouco tinham de extraordinário para a
mentalidade de um romano contemporâneo, mas que é usado propagandisticamente para afirmar
definitivamente o novo senhor do império. Cf. Historia Augusta, Vita Aureliani, 25,4.
46
Eusébio dá-nos uma ideia do optimismo ingénuo com que muitos cristãos encararam, num
primeiro momento, a vitória definitiva de Constantino, depois de derrotar também Licínio, em
322: «Enquanto Licícnio jazia por terra, prostrado desta maneira, Constantino, o vencedor máxi-
mo, que sobressaía pela sua perfeita virtude religiosa, e seu filho Crispo, imperador amado de
Deus e semelhante em tudo a seu pai, retomaram o Oriente que lhes era devido e restauraram o
império romano na unidade que tinha antigamente, sujeitando ao seu pacífico ceptro todas as re-
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 211
48
Nas atas do II Concílio de Niceia (787), o imperador é chamado «novo Constantino» e sua
mãe «nova Helena». Cf. Actas de II Concílio de Niceia, IV sessão (J. D. MANSI, Sacrorum Con-
ciliorum, XIII, 129).
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 213
sébio. Esta História não chegou até nós, mas sabemos que dela depen-
dem as Histórias ecleisásticas posteriores, entre as quais a de Rufino de
Aquleia que viveu em Jerusalém entre 374 e 397. Facto é que tanto a ver-
são de Paulino como a de Rufino já apresentam novos dados da referida
lenda: Fama crescit eundo.
A invenção da cruz assumiu, desde então, um singular significado,
como nova teofania que servirá não apenas para recuperar a mística dos
lugares santos e tornar próximos os sinais palpaveis da Salvação, mas
também para fazer destes sinais novas garantias de proteção e salvação
do Imperador e seu império.
À sombra da santidade de sua mãe, Constantino foi assim reabilitado
pelos Padres da Igreja que no Concílio de Éfeso louvam a sua recta fides.
E, na segunda década do século VI, Severo, bispo de Antioquia, já o apre-
senta como um campeão da ortodoxia:
«Não foi de um homem ou através de um homem que veio o mandato
do eleito Constantino, o amado rei, mas através de Jesus Cristo, do me-
smo modo que o grande apóstolo Paulo. Tendo visto no céu o resplan-
dente sinal em forma de cruz, acreditou que aquele que é Deus desde o
princípio, a Palavra do Pai feita carne para nossa salvação, sem sofrer
mudança e se fez verdadeiro homem; e como rei, rejubilando na sua força
e tendo exultado na sua salvação, como o grande profeta David canta,
chamando e convocando a si os pregadores da fé ortodoxa dos quatro
cantos, e expulsando da Igreja a maldade de Ario que ousou chamar cria-
tura a Palavra que é antes do tempo»50.
em dar razão aos resistentes pagãos que viam no abandono dos deuses da
antiga Roma, imposto pelos imperadores cristãos, o motivo da atual ruína
do império. É a leitura dos historiadores pagãos como Eutrópio (meados
do século IV) que vê em Constantino um homem ambicioso e sem es-
crúpulos, ou, mais tarde (início do século VI) Sózimo52. Aos olhos deste,
Constantino não passa de um medíocre oportunista, homem de má índo-
le que encontrou no cristianismo a forma de lavar sua consciência man-
chada por graves crimes.
S. Agostinho responde, ao redigir a Cidade de Deus, distinguindo a ci-
dade terrena do império romano e desvinculando Constantino do destino
desse império (Civitate Dei, V, 25). Mas esta leitura teológica e racional
não era suficiente, sobretudo no Ocidente, onde a «biografia» de Cons-
tantino escrita por Eusébio não era lida.
Surgiu então a lenda que associa Constantino à vida do papa Silves-
tre, tradição já registada no Liber Pontificalis (séc. V)53, que parece ter
sido o veículo da posterior difusão. A mesma tradição é, de facto, retoma-
da com extensão e novos elementos romanescos na Vita Silvestrti (Actus
Beati Sylvestri54), da segunda metade do século V55.
evidente e tem a ver com a profunda modificação de sentimentos e atitudes que estão na génese
da lenda.
52
Em contraponto com a piedosa hagiografia cristã, a historiografia pagã tenderá a descons-
truir esta imagem idealizada. Sózimo, que nada simpatiza com Constantino, na sua Nova história
(II,16,1-4; II,29,1-5) não só dissocia os dois acontecimentos que a tradição mantém unidos (a
batalha da ponte Mílvio e a conversão do imperador), como ignora os aspectos «transcendentes»
da historiografia cristã: não refere a visão do chrismon nem menciona qualquer sonho de Cons-
tantino, abstendo-se de falar dos seus sentimentos religiosos. Segundo este historiador pagão, o
imperador ter-se-á convertido apenas em 324, depois de ter assassinado seu filho Crispo e a espo-
sa Fausta. Vendo-se manchado por tão graves crimes, ter-se-á voltado para o cristianismo para
obter o perdão te tais faltas (Nova história, II,29,1-5).
53
Liber Pontificalis, 34,1-2: «Silvester, natione Romanus, ex patre Rufino, sedit ann. XXIII
m. X d. XI. Fuit autem temporibus Constantini et Volusiani, ex die kal. Feb. usque in die kal. Ian.
Constantio et Volusiano consulibus. Hic exilio fuit in monte Seracten et postmodum rediens cum
gloria baptizauit Constantinum Augustum, quem curauit Dominus a lepra, cuius persecutionem
primo fugiens exilio fuisse cognoscitur» (PL 127, 1511-1512).
54
PL LIX, 161. Cf. V. AIELLO, Costantino, la lebbra e il battesimo di Silvestro», In G. BO-
NAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesimo. Colloquio
sul Cristianesimo nel mondo antico,16- 58.
55
Cf. Ch. PIETRI, Roma christiana, I, 14-21; 69-77; 168-187. É provável que a nova versão
do baptismo de Constantino pela mão do próprio papa quisesse corrigir a imagem pouco ortodoxa
de um Constantino baptizado por um bispo oriental e ariano (Eusébio de Nicomédia) e apenas no
final da sua vida.
216 ISIDRO P. LAMELAS
56
A Lenda Áurea retoma estas tradições; Dante alude a elas; Claderón de La Barca inspira-se
nas mesmas, no seu auto La lebra de Constantino.
57
A lógica que preside a este drama nutre-se da velha ideologia constituída em tese no De
mortibus persecutorum: os inimigos e perseguidores do verdadeiro Deus e seus seguidores estão
condenados a sofrer grandes males e a um fim infeliz. Veja-se, por exemplo, De mortibus, 33,5:
o imperador Galério toma consciência do terrível «poder» do Deus cristão, quando se vê punido
por uma atroz doença, tendo-se então voltado para os cristãos, pedindo que «pedissem ao seu
Deus pela sua salus».
58
Pelo menos segundo o seu biógrafo bizantino Kedrenos, no século XI (Synopsis historiôn).
Cf. M. GÉRARD NAUROOY, Constantin au pont Milvius ou la naissance d’un mythe, in G.
BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesimo. Colloquio
sul Cristianesimo nel mondo antico, 1992, 303.
59
Cf. ANDRÉ PIGANIOL, L’Empire chrétien, Paris 1972, 38-40.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 217
Constitutum Constantini:
a lenda ao serviço da afirmação do poder
Caballus Constantini:
Constantino imagem do príncipe Cristão
65
Cf. EUSÉBIO, História eclesiástica, X,7,1-2; X,5,15-17. Edição crítica da Donatio Con-
stantini, por H. FUHRMANN, Das Constitutum Constantini (Fontes Iuris Germanici Antiqui X)
1968.
66
Cf. LO GRASSO, Ecclesia et Status, nº. 167 e 171, e SILVA-TAROUCA, nº 252. LEVIN-
SON, Konstantinische Schenkung, 159; G.MARTINI, Traslazione dell‘Impero e Donazione di
Constantino nel pensiero e nella política di Innocenzo III, Roma 1933, 66-67.
67
O essencial do Constitutum reduz-se ao seguinte esquema: a) Primazia da Igreja Romana
sobre as quatro Igrejas patriarcais do Oriente; b) Direitos da cúria romana aos atributos e insígnias
imperiais; c) Direitos sobre o Ocidente.
68
THOMAS GRÜNEWALD, «Constantinus Novus»: Zur Constantin-Bild des Mittelalters,
In G. BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesimo.
Colloquio sul Cristianesimo nel mondo antico. Macerata, 18-20 Dicembre 1990, I, Macerata
1992, 461-462.
220 ISIDRO P. LAMELAS
69
Cf. N. GRAMACCINI, Zur Rezeption des Marc Aurel in Mittelalter und Renaissance, in
Natur und Antike in der Renaissance, Frankfurt 1985, 53.
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 221
tino ele se aproxima da pia batismal, para se curar da doença de uma ve-
lha lepra e para se purificar com água fresca das manchas sórdidas dos
feitos passados»70.
À imagem de Constatino, também Clodoveu se converte durante a ba-
talha de Tolbiac71; para evitar o massacre dos seu exército invocou o Se-
nhor, prometendo converter-se à fé cristã já professada por sua esposa
Clotilde72. A esta miraculosa conversão, ditada pela necessidade, seguiu-
-se a definitiva adesão de Clodoveu à fé católica por intervenção do bispo
de Reims, Remigio que o baptiza. Também ele, como o primeiro impera-
dor cristão, é escolhido e colocado, qual novo Moisés, à frente do novo
povo Deus, os Francos, para conquistar a terra prometida: A Gália. Tam-
bém aqui temos uma aliança entre Deus e o povo que legitima o poder de
Clodoveu e seus descendentes.
Carlos Magno que, como sabemos, de bom grado assumia o epíteto de
«Novo Constantino»73 (confirmou a Doação pseudo-costantiniana). A le-
genda constantiniana foi ainda motivo de inspiração na definição das re-
lações entre Otão III (980-1002) e Gerberto de Aurillac, que, não por aca-
so veio a ser o papa Silvestre II. Constantino servia assim de modelo para
uma restauração, ainda que efémera, do império. Também Otão III assu-
me o título e função de servus Iesu Christi, retomando a ideia de missão
apostólica do imperador elaborada por Eusébio relativamente a Cons-
tantino e que fora assimilada pela linguagem política e litúrgica bizanti-
na. Sob esse título de servus Iesu Christi estão condensadas as concep-
ções de hegemonia imperial romana e o ideal carolíngio de expansão do
cristianismo a partir do modelo constantiniano do imperador servus Dei.
Sabemos que na tradição bizantina esta colagem do monarca ao para-
digma constantiniano goza de uma história ainda mais rica e continuada.
O imperador Heráclius (612-641) auto-intitulava-se de «Novus Constan-
tinus», como no-lo documenta a numismática da época, e seu filho assu-
70
GREGÓRIO DE TOURS, Hist. Franc. II,31: «Procedit novus Constantinus, ad lava-
crum, deleturos leprae veteris morbum, sordentesque maculas gestas antiquitas recenti latice
deleturus».
71
GREGÓRIO DE TOURS, Hist. Franc. II 30-31.
72
GREGÓRIO DE TOURS, Hist. Franc. II 30.
73
Cf. THOMAS GRÜNEWALD, «Constantinus Novus»: Zur Constantin-Bild des Mittelal-
ters, In G. BONAMENTE – F. FUSCO (cur.), Costantino il Grande dall’Antichità all’Umanesi-
mo, 476-482.
222 ISIDRO P. LAMELAS
74
Cf. FOSS CLIVE, Emperors named Constantine, In Revue numismatique, 161 (2005 ) 93-
102. O autor elenca 18 príncipes com o nome de Constantino, cf. Ibid. 100-101.
75
Cf. MANUEL J. GANDRA, A cristofania de Ourique. Mito e profecia, Lisboa 2002, 127.
76
ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA, «As épocas da Cultura Portuguesa», in A Cultura em Portu-
gal: Teoria e História, I, Lisboa, Gradiva, s.d. [1994], p. 112.
77
Cf. Cf. MANUEL J. GANDRA, A cristofania de Ourique. Mito e profecia, Lisboa 2002,
sobretudo 86-92. 121-150. Para os testemunhos desta tradição na iconografia nacional, cf. Ibid.
151-234.
78
António Verney já considera que «a aparição [de Cristo] ao rei Afonso, assim como a redo-
ma que veio do céu a Clodoveu e outras destas coisas que se acham nas histórias, são boas para
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 223
Conclusão
87
Segundo a narrativa de Ambrósio, Sta. Helena, mãe de Constantino, quando chegou ao lu-
gar do Gólgota, em demanda do santo lenho, terá exclamado: «Ecce locus pugnae, ubi est victo-
ria?» (De obitu Theodosii, 43).
226 ISIDRO P. LAMELAS
88
Edward Gibbon apresenta Constantino com o fundador da nova Europa cristã, depois de ter
sepultado, com a sua conversão o velho mundo pagão (Decínio e queda do Império Romano, I,
Lisboa 1994, 274-275).
CONSTANTINO, DA HISTÓRIA AO MITO, DO MITO À LENDA 227
rico. Muita coisa decorreu, desde então, até à idade moderna sob este sig-
no que, para o bem e para o mal, foi impondo um determinado modelo de
sociedade, de Igreja e de cultura de que ainda somos herdeiros.
O estudo das lendas que mantiveram vivo o mito de Constantino a
oriente e ocidente mostra que o influxo histórico do primeiro imperador
cristão, longe de constituir um capítulo conclusivo da história romana, é
realmente um dos mitos fundantes da Europa (cristã) no sentido lato (até
Bizâncio).
O que acabámos de dizer mostra-nos que, mesmo quando a lenda
prescinde da história, os historiadores não podem prescindir da lenda e
mitologia, uma vez que esta faz parte do quadro histórico dos aconte-
cimentos. No caso em análise estamos, podemos dizer, ante uma lenda
paradoxalmente histórica ou uma história que apela e potencia a lenda.
Nunca entenderemos, portanto, a história pós-constantiniana se a abor-
darmos com os preconceitos do criticismo contemporâneo89.
89
Cf. MAURILIO ADRIANI, La cristianità antica dalle origini alla «Città di Dio», II. Roma
1981, 185.