Você está na página 1de 5

Das margens do Tibre às margens do Cinzas!

A relíquia de Santo Inocêncio Mártir1


Autor: Marcos Aurélio de Assis1
Resumo
O trabalho a que nos dedicamos está relacionado ao estudo das identidades devocionais
estabelecidas a partir da introdução da relíquia de Santo Inocêncio Mártir na paróquia
Nossa Senhora da Conceição Aparecida, no município de Tomazina, Paraná. Trata-se dos
restos mortais de um mártir da igreja católica que, de acordo com os registros encontrados
no arquivo paroquial, foi martirizado no século III da era cristã e permaneceu nas
catacumbas de São Calixto até 1829 quando, por ordem do papa Leão XII foram retirados
e levados para veneração na Igreja de Santa Águeda em Lendinara, Itália. Nesta cidade
permaneceram até 1975 quando, por iniciativa do frei capuchinho Carlos Maria, abriu-se
a possibilidade do traslado das referidas relíquias para a cidade de Tomazina. Para este
evento trabalharemos com a imagem do esquife que representa Santo Inocêncio Mártir,
uma imagem de caráter bastante dogmático, que representou uma nova característica de
devoção para os fiéis de Tomazina.
PALAVRAS-CHAVE: Relíquia, esquife, identidade.
1 Universidade Estadual de Londrina. Mestrando. marcostomazina@yahoo.com.br
A relíquia de Santo Inocêncio Mártir, que atualmente encontra-se na paróquia Nossa
Senhora da Conceição Aparecida, na cidade de Tomazina – PR, faz parte de um processo
de translado de relíquia que teve seu início no ano de 1888. Neste período, com a abertura
das catacumbas de São Calixto, o padre Francesco Antônio Baccari recebeu do papa Leão
XII alguns corpos e relíquias de santos mártires que se encontravam depositados em uma
das alas da catacumba em questão. Por ter nascido na cidade de Lendinara, Pe. Francesco
enviou as relíquias para que pudessem ser utilizadas para a devoção nas igrejas locais.
Sobre a relíquia de Santo Inocêncio Mártir sabe-se que se trata de restos mortais
compostos de ossos das pernas, braços, tórax e fragmentos do crânio, que foram
revestidos em uma efígie de um jovem italiano do século XIX, deitado em uma posição
de descanso. A maior parte do corpo que compõe a efigie de Santo Inocêncio é composta
de pedaços de panos, que formam o enchimento da roupa que modela o corpo onde os
ossos estão depositados. Em partes específicas da efígie é possível ver, através de
aberturas de vidro, os ossos que compõem a relíquia (figuras 01 e 02). Os ossos do crânio
encontram-se revestidos por uma máscara de cera que compõe a cabeça da imagem do
santo mártir.

Imagem 01 – Arquivo Província dos Capuchinhos do Paraná e Santa Catarina

1
IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem - I Encontro Internacional de Estudos da Imagem - 07 a 10
de maio de 2013 – Londrina-PR
Imagem 02 – Arquivo Província dos Capuchinhos do Paraná e Santa Catarina
Atualmente, a relíquia encontra-se depositada em uma urna que fica em um altar lateral
da Igreja Nossa Senhora da Conceição Aparecida, na cidade de Tomazina, estado do
Paraná (figura 03). Fazem parte do conjunto desta relíquia, além da efígie e ossos do
mártir, um cálice onde, segundo registros documentais que compõe o arquivo paroquial,
existe restos de areia manchadas com o sangue do mártir e resquícios de pedras
encontrado na catacumba de São Calixto, local de onde a relíquia foi retirada.

Imagem 03 – Arquivo pessoal


Mártires: Os primeiros santos
Na história do cristianismo católico, a figura dos martírios foi de grande importância para
a estruturação da religião crista primitiva. As perseguições empreendidas pelos romanos
àqueles que professavam os ensinamentos de Cristo deram origem aos primeiros locais
de devoção e aos primeiros santos da igreja católica.
Na cristandade, os primeiros cultuados como santos foram os mártires, e os cultos a eles dirigidos
tiveram origem espontânea. Desde a primeira geração de cristãos, alguns dos seguidores de Jesus
Cristo eram vistos como especiais por terem dado a vida como testemunho de sua fé. Assim, antes
do final do primeiro século da cristandade, o termo santo era reservado somente ao mártir, que
quer dizer testemunho. (PEIXOTO, 2006, p. 53 e 54)
Ao contrário do que se pensa, a perseguição aos cristãos ocorreu em períodos e
intensidade específicos, ora se tornando mais intensas em uma ou outra região do Império
Romano (CUNNINGHAM, 2011). Não se nega que essas perseguições ocorreram e
foram significativas na construção do pensamento dogmático e devocional do
cristianismo. O que se afirma, é que houve um período em que o combate aos cristãos
ocorreu que se estende, segundo a tradição católica, desde a vida terrena de Jesus até o
século IV, mas que essas perseguições não eram práticas ininterruptas empreendidas pelo
governo romano.
Quais os motivos que levaram especificamente o poderoso império romano a perseguir
uma pequena seita que se formou em torno dos ensinamentos de um líder messiânico?
Será que os cristãos representavam uma ameaça ao poder do império? A resposta ao
motivo das perseguições ainda é algo que não está totalmente esclarecido. Sabe-se que
bastava ser cristão para que ocorresse a intervenção do estado romano (CUNNINGHAM,
2011).
É provável que os romanos vissem os cristãos como questionadores da virtude cívica pietas: aquela
mistura de amor e medo que reinava como um ideal na família romana, com as crianças
demonstrando pietas pelos pais, que por sua vez, a demonstravam pelo Estado, enquanto este a
manifestava pelos deuses. A recusa cristã em demonstrar pietas pelos deuses, parecia, do ponto de
vista romano, um ato de traição. (CUNNINGHAM, 2011, p. 23 e 24)
Outro aspecto a ser destacado é o caráter de divinização dos imperadores romanos. No
início do império, a figura divina dos imperadores só acontecia após a morte. Augusto
aceitou as honras divinas somente nas províncias, enquanto em Roma era visto somente
como filho de Deus (ELIADE, 2011). Após Augusto, a deificação dos imperadores, bem
como a organização de culto imperial se intensificou. Assim,
Do século II em diante, a recusa a celebrar o culto imperial foi a causa mais notável das
perseguições aos cristãos. No início, com exceção da carnificina ordenada por Nero, as medidas
anticristãs foram encorajadas sobretudo pela hostilidade da opinião pública. No decurso dos dois
primeiros séculos, o cristianismo foi considerado religio illicita; os cristãos eram perseguidos
porque praticavam uma religião clandestina, que não contava com a autorização oficial. Em 202,
Septímo Severo publicou o primeiro decreto anticristão proibindo o proselitismo. (ELIADE, 2011,
p. 319)
Porém, é importante ressaltar que os apologistas cristãos tentaram de diversas formas
defender sua religião das ameaças recebidas dentro do império. Mas, essa tarefa era algo
muito complicado de se executar, uma vez que as criticas ao cristianismo se faziam de
diversas formas. Os cristãos eram acusados de traição ao imperador, crime de lesa
majestade, além de acusações de todas as espécies como prática de orgias, incesto,
infanticídio e antropofagia (ELIADE, 2011). E, além disso, os defensores do cristianismo
mostravam-se inábeis nos argumentos utilizados para justificar sua fé frente às
autoridades romanas e pagãs.
Justino (martirizado por volta de 165) empenhou-se em demonstrar que o cristianismo não
desprezava a cultura pagã; fez elogio da filosofia grega, mas lembrou que ela se inspirava na
revelação bíblica. Retomando os argumentos do judaísmo alexandrino, Justino afirmou que Platão
e os outros filósofos gregos conheceram a doutrina professada muito tempo antes deles pelo
“profeta” Moisés. O fracasso dos apologistas era, aliás, previsível. (ELIADE, 2011, p. 320)
Neste contexto também destacamos que os apologetas também buscavam ressaltar frente
aos governantes romanos que
A crença dos cristãos (apesar de rumores grosseiros sobre orgias sexuais, conspirações secretas e
até canibalismo) não era imoral ou nociva ao bem comum e, mais ainda, que a relutância dos
cristãos em honrar as divindades romanas não significava, a priori, que eles fossem maus cidadãos
ou, pior ainda, inimigos subversivos do Estado romano. (CUNNINGHAM, 2011, p. 25)
O conhecimento que temos a respeito dos primeiros mártires do cristianismo foram
produzidos a partir de uma vasta literatura que se desenvolveu tendo como principal
objetivo organizar textos que pudessem ser utilizados como documentos para se recordar
e divulgar os sofrimentos dos que eram martirizados. Dentre estes documentos, as Atas
dos processos judiciais nos mostram o quanto objetivo eram as sentenças dadas aos
primeiros cristãos. O processo que condenou Justino determinava que aqueles que não
oferecem sacrifícios aos deuses e não se rendem ao comando do imperador sejam punidos
e levados para decapitação, de acordo com a lei. (CUNNINGHAM, 2011).
A santidade dos primeiros mártires se dá principalmente através do testemunho de fé que
os mesmos professavam durante todo o processo que os levavam ao suplicio em nome da
doutrina cristã. Inúmeros relatos aparecem na literatura produzida pelos apologistas,
sendo as passiones ou Martyrium os mais antigos relatos. Nestes textos encontramos o
testemunho de fé que faziam os mártires a associarem seus suplícios a um fim de vida
similar ao do supremo mártir da fé cristã, Jesus, que morreu após a condenação anunciada
por uma autoridade romana (CUNNINGHAM, 2011).
Seus testemunhos davam conta de que os cristãos que iam ser martirizados se colocavam
como instrumentos da vontade de Deus e, para tanto, deveriam estar preparados para
mostrar aos executores, aos pagãos e aos governantes romanos que o suplício
representava para eles a glória do Reino dos Céus. Na carta de Inácio de Antioquia aos
romanos tal fato fica evidente quando o mesmo relata:
Deixem-me ser alimento para as feras selvagens, por meio do que alcançarei deus. Sou o trigo de
Deus e serei moído pelos dentes das feras para provar que sou pão puro (...) então serei um
verdadeiro discípulo de Jesus Cristo, quando o mundo não mais vir o meu corpo.
(CUNNINGHAM, 2011, p. 27)
Desta forma, observamos que a prova do martírio pela qual algum cristão era submetido
não se resumia ao suplício, mas completava-se pelo testemunho oral de que o sofrimento
era decorrente da adesão à fé cristã, algo aceito de forma ampla por quem seria
martirizado. (PEIXOTO, 2006).
A partir da aceitação do culto cristão dentro do império romano, no governo de
Constantino, passou-se a organizar de forma solene o culto e as peregrinações aos locais
de martírio. Com isso, tudo o que estava ligado aos mártires, seus restos mortais ou
objetos que tinham sido utilizados pelos mesmos, passam a ser de suma importância
dentro da institucionalização do cristianismo católico.
A partir de 356, a Igreja Católica passou a mandar cadáveres para Constantinopla, iniciando as
práticas de trasladação e da invenção”, com a descoberta e veneração de “novos” restos mortais,
de procedência duvidosa, acompanhado pela distribuição de relíquias. (...) As histórias das vidas
dos santos formaram, nesses séculos de constituição do cristianismo, uma literatura popular,
edificante e de exaltação ao poder dessas personagens, que completava esse conjunto de elementos
de louvação. Mesmo sem confiabilidade histórica e factual, essa hagiografia revela muito sobre a
representação da santidade elaborada no período aqui considerado. (PEIXOTO, 2006, p. 56 e 57)
Desta forma, os mártires se tornaram os primeiros santos do cristianismo, sendo o seu
culto institucionalizado e utilizado de diversas formas pela igreja católica ao longo de sua
história. Com o término da era dos primeiros mártires do cristianismo, a santidade
assumiu outras formas.
A partir do processo de expansão territorial do culto dos mártires do cristianismo, as
relíquias tornaram-se um objeto de catequização e de estruturação de um espaço territorial
cristão. Nesse período, era impensável a existência de uma cidade, igreja ou até mesmo
altar sem uma relíquia (CYMBALISTA, 2006, p.133). A sacralidade do santo estava em
suas partes, até nas menores, possibilitando desta forma a fragmentação e a distribuição
de relíquias por todas as partes do mundo cristão.
Porém, o grande salto ao culto das relíquias se dá com a expansão dos objetos sagrados
pela institucionalização dos dogmas do catolicismo. O surgimento das imagens
tridimensionais, principalmente aquelas que continham relíquias no seu interior, colocou
os restos mortais dos santos mártires em um patamar sem precedentes na história do
cristianismo. Vale destacar que, dentro das listas de objetos sacros, as imagens sem a
presença de relíquias ocupam um espaço considerado fora da economia de transitus,
ficando numa posição inferior à da eucaristia, da cruz, das Escrituras, dos vasos sagrados
e das relíquias propriamente ditas (SCHMITT, 2007, P. 59). Neste contexto percebemos
a relevância das relíquias no que concerne ao status que as imagens tridimensionais
adquiriram ao longo da Idade Média.
No caso da relíquia de Santo Inocêncio Mártir e sua efígie podemos pensá-la de acordo
com SCHIMITT onde,
O que faz dele uma relíquia é o “autêntico” que o identifica, garantindo sua origem humilde e seu
poder. (...) Mas esse reconhecimento unânime exige uma encenação material, imagística e ritual.
Se a relíquia autenticada exige um relicário, pode-se dizer que o relicário que faz a relíquia.
Visualmente, publicamente, o que contém prevalece sobre o contido, cuja presença mais se
advinha do que se vê. (SCHMITT, 2007, p. 288).
Desta forma, as relíquias necessitam de uma presentificação, uma vez que aquilo que está
ausente através dos restos mortais dos mártires, adquirem autonomia para a devoção, uma
vez que a imagem-relicário passa a personificar o mártir, associando sua vida e seu
testemunho aos elementos que foram construídos através da efígie. Neste caso, podemos
analisar a constituição da efígie de acordo com os anseios da sociedade, uma vez que os
elementos que compõe a imagem-relíquia fazem parte do meio social que o construiu.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
CUNNINGHAM, Lawrence S. Uma breve história dos santos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2011.
CYMBALISTA, Renato. Sangue, ossos e terras: os mortos e a ocupação do território
luso-brasileiro – séculos XVI e XVII. São Paulo, 2006. 430p. Tese. FAUUSP.
ELIADE, Mircea. História das crenças e ideias religiosas: de Gautama Buda ao triunfo
do cristianismo. Rio de janeiro: Zahar, 2011.
LOPES, José Rogério. Imagens e Devoções no Catolicismo Brasileiro. Fundamentos
Metodológicos e Perspectivas de Investigações. Rever, São Paulo, SP, ano 3, n. 3, p.1-
29, 2003. Disponível em: <www.pucsp.br/rever/rv3_2003/t_lopes.htm>. Acesso em: 10
set. 2011.
SCHIMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade
Média. Bauru, SP: EDUSC, 2007

Você também pode gostar