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REVISTA CAP. Escrita Sobre Nada
REVISTA CAP. Escrita Sobre Nada
Resumo:
E se, tal como o poeta Manoel de Barros, tentássemos uma escrita sobre nada? Não o nada
metafísico, mas sim o nada mesmo, coisa nenhuma por escrito. Uma escrita que avança para
o começo, que ultrapassa os limites da memória, que repousa no estancamento das
significações, que diz do indizível, do inominável, inventando-os. E se não buscássemos
outra coisa que não fosse fazer o nada aparecer, não estaríamos assim próximos daquilo que
a Filosofia da Diferença, proposta por autores como Gilles Deleuze e Félix Guattari, acredita
ser o trabalho da escrita, o movimento próprio de um estilo? Não estaríamos nós em busca
da liberação de uma multiplicidade, de uma vida aprisionada, de uma sensação ainda não
experimentada, de um novo conteúdo, de um novo sentido? Quando a escrita dá de ombros,
se faz de louca e escapa no final de alguma linha, é preciso tentar acompanhá-la...
Introdução: Nada
“Tudo que não invento é falso”
(Manoel de Barros, Livro sobre nada)
E se fizéssemos como Manoel de Barros e tentássemos uma escrita sobre nada? Não
o nada metafísico, o nada existencial, mas sim o nada mesmo, coisa nenhuma por escrito.
Uma escrita que avança para o começo, que chega ao criançamento das palavras, lá onde
elas ainda urinam na perna e ainda não tenham sido modeladas pelas mãos (Barros, 2004,
p.47). Uma escrita que ultrapassa os limites da memória, que repousa no estancamento das
significações, que diz do indizível, do inominável, inventando-os. E se fizéssemos brinquedo
com as palavras, operássemos coisas desúteis, circulássemos pelos litorais da escrita,
desmanchando o que não se sabe fazer em frases? E se não buscássemos outra coisa que não
fosse fazer o nada aparecer (perder o nada é um empobrecimento, como já advertiu o velho
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Psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria, mestrando em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, dentro da linha de pesquisa “Filosofia da diferença e educação”, sob orientação da Profª. Drª.
Sandra Mara Corazza. Endereço eletrônico: espacoliso@hotmail.com
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Psicóloga pela Universidade Federal de Santa Maria, mestranda em Psicologia Social e Institucional pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dentro da linha de pesquisa “Modos de Subjetivações
Contemporâneos”, sob orientação da Profª. Drª. Rosane Neves da Silva. Bolsista CAPES. Endereço eletrônico:
marcelepr@hotmail.com
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Matéria de escrita
Para Manoel de Barros, qualquer coisa cujo valor pode ser disputado no cuspe à
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distância serve como matéria de poesia. Já Bukowski diz que o segredo mesmo é ficar longe
de igrejas, bares e museus, ser paciente e evitar essa sujeira toda, permanecendo apenas com
uma ou duas cervejas, por ora. Com Blanchot, descobrimos que não se trata de mostrar ou
fazer aparecer absolutamente nada, mas sim testemunhar o desaparecimento das coisas e de
si no que se escreve. Sutil vazamento. A necessidade da abertura de um espaço, criado e
povoado pela impossibilidade de um corpo pleno da escrita. De fato, a escrita não existe
enquanto há eu subjetivado, sendo que o movimento próprio da literatura é mesmo o de se
voltar contra aquele que escreve, como “um dardo na mão dos espíritos” (Blanchot, 1997,
p.56). Rosto extraviado, identidade deteriorada, desaparecimento, tornar-se imperceptível.
Kafka dizia escrever para morrer, para dar à morte aquilo que a ela era essencial, sua fonte de
invisibilidade, mas sabia também que para isso a morte precisaria, ao mesmo tempo, também
escrever nele. Era preciso que a morte fizesse do corpo kafkaniano o ponto vazio onde o
impessoal se afirma (Blanchot, 1987, p.148).
Como referem Deleuze e Guattari (1997, p.21), o escrever é “atravessado por
estranhos devires que não são devires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo,
etc.”, lembrando que isso não se trata de imitar, nem mesmo identificar-se, mas sim de
“encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade, ou de indiferenciação, tal que já não
seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal ou de uma molécula” (Deleuze,
1997, p.11), com o artigo indefinido não remetendo a uma generalidade, mas sim a uma
singularidade. Espécie de involução, de uma composição e contágio entre heterogêneos,
onde a forma não pára de ser dissolvida para liberar tempos e velocidades. Involução não
como sinônimo de regressão, de ir até o menos indiferenciado, mas sim, estar “entre3 os
termos postos em jogo, e sob as relações assinaláveis” (Deleuze; Guattari, 1997, p. 19). A
involução é criadora, o devir é involutivo. A animalidade da língua fazendo-a alcançar o seu
limite. Pular a cerca das boas maneiras. Como diz Deleuze:
Bem, o filósofo Deleuze lida com a escrita e o faz dizendo que há uma música e uma
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“Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma
direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói
suas duas margens e adquire velocidade no meio” (Deleuze; Guattari, 1995, p.37).
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pintura próprias da escrita. Efeitos de sons, sonoridades e cores que se elevam acima das
palavras. É através das palavras, entre as palavras que se vê e que se ouve. Essa música de
palavras, essa pintura com palavras, que fazem com que as próprias palavras silenciem,
incapazes de atingir tal limite de sensação. Um limite alcançado pela escrita onde a
linguagem, tal como a conhecemos, já não é suficiente. Uma mudança de códigos silenciosa,
necessária, respondendo ao apelo do conteúdo até então anônimo.
Passaremos do limite? Iremos longe demais? Um passeio rápido por entre o universo
de Manoel de Barros e logo, com ele, podemos dizer: uma rã me pedra. Transgredido para
pedra, retirado dos limites do ser humano e ampliado para coisa, largado no chão a criar
musgos para tapetes de insetos (Barros, 1998, p.13). O silêncio das palavras aí é corrompido,
invadido, pode-se arrancar um pouco do que nele transita, com o que não operamos de outro
modo.
Como escreve Bruno Schulz (1996, p.49), “a matéria goza de uma fecundidade
infinita, uma força vital inesgotável e, ao mesmo tempo, um poder de sedução que nos leva a
moldá-la” e como bem disse Paul Klee (2001, p.43), a questão na pintura é a de tornar visível
o não visível, e não apenas reproduzir o visível; da mesma forma, na escrita, trata-se de dar
voz àquelas intensidades desconhecidas, àquele povo anônimo e afásico até então sufocado
pela impossibilidade de sua fala. Espécie de busca pela multiplicidade liberada nela mesma,
sem uma forma ou um clichê que a contenha. A multiplicidade em sua potência múltipla,
extraída de qualquer unidade que a possa sobredeterminar.
Para Deleuze e Guattari (1995, p.8), a multiplicidade é a própria realidade, não
supondo assim nenhuma unidade, não entrando em nenhuma totalidade e tampouco
remetendo a um sujeito. Subjetivações, totalizações e unificações, dizem eles, “são processos
que se produzem e aparecem nas multiplicidades”4. Ora, estamos no plano da expressão,
tratamos com substâncias, matérias formadas, estratificações no corpo do texto, e a grande
questão é a de saber o que seremos capazes de fazer com isso. Tom Zé (2003, p.22), falando
sobre suas primeiras maquinações com a música, conta da ambição que tinha em limpar o
campo musical, de sua necessidade de acabar com a sujeira impregnada na canção
tradicional da época, passando à margem do corpo-cancional já instituído e que dizia ser para
ele inatingível. Experimentava então uma cantiga feita de outra matéria, plasmada com
outras substâncias que não fossem aquelas já previsíveis e tacitamente aceitas. No caso da
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Como refere Deleuze, todos os processos se produzem numa multiplicidade assinalável: “as unificações,
subjetivações, racionalizações, centralizações não têm qualquer privilégio, sendo freqüentemente impasses e
clausuras que impedem o crescimento da multiplicidade, o prolongamento e o desenvolvimento de suas linhas, a
produção do novo” (Deleuze, 1992, p. 182).
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escrita, talvez seja isso também. Limpar o campo, mas apenas para liberar o espaço para
novos elementos, novas poluições, infecções e contágios. Uma nova sujeira, sem tantos
ranços. Uma sujeira inventada, tramada, ainda por vir.
e vice-versa, em uma espécie de câmara de ecos, de filtros capazes de modificar aquilo que
por eles perpassa.
São justamente esses movimentos interplanos, essas relações de ressonância entre
domínios diversos que possibilitam a criação, assegurados pelo fascínio que as sensações
criadas na arte exercem sobre o universo propriamente filosófico. Como bem lembram
Corazza, Tadeu e Zordan (2004, p.170), o estilo é o próprio método da filosofia da diferença,
estando ligado tanto à política quanto à estética, uma vez que escrever com estilo é escrever
para colocar a língua sempre em variação contínua, escrever para devir, tornar-se. O estilo em
filosofia é aquele que acompanha o movimento do conceito ao mesmo tempo em que o
movimenta, submetendo a língua a variações. Ligação da filosofia com a escrita em
desequilíbrio, com a prática, com o estilo. A necessidade de arrancar da linguagem suas
figuras mais subversivas, de uma desmontagem contínua da sintaxe enquanto forma de
expressão organizada. “É preciso sempre fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma
dimensão superior, mas, ao contrário, de maneira simples, com sobriedade, no nível das
dimensões que se dispõe, sempre n-1” (Deleuze; Guattari, 1995, p. 14-15). Escrever a n-1,
arrancando a unidade, o único, da multiplicidade a ser constituída, da vida a ser liberada.
Uma escrita para nada, escrita suja, carnal e fecunda, vizinha do estrangeiro, da falta
de representação, pois atravessada por devires, não consegue tomar distância de uma política,
de um modo de estar no mundo, de uma maneira de ser que inventa seus próprios meios de
respirar. Talvez seja essa mesma a nossa tarefa, deixar-se apaixonar pelos vazios e não pelos
cheios, ao modo daquele menino que gostava de carregar água na peneira, sabedor de que os
primeiros são maiores e até infinitos (Barros, 1999). Se o terreno de nossa prática é mesmo o
da página, que nele possamos então encontrar um tanto mais de vazio, um tanto mais de nada.
Escrever para nada, com nada, pelo nada. Mesmo que assim nada passe e se não
passar não grude e se não grudar não fique e se não ficar não vá e se não for não passe e se
não passar não ressoe e se não ressoar não se curve e daí bem se saiba, bem se insista na
permanência, bem se vire no assim mesmo. Mas se virar já é uma outra coisa, e a idéia
talvez seja essa mesmo. Não há nenhum problema nisso. Só assim se cansa, só assim dança -
ao menos por enquanto - só assim esgota, só assim tropeça, só assim se perde, só assim
desiste. Escrever transpondo a faca do mendigo, atirando lírios aos anjos, sentando no meio
de um refrão, dançando apenas quando a agulha salta. Escrever apreciando o odeia eu diário,
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esquecendo memórias, abstrações e fantasmas. Escrever pelos cérebros que estão mal, por
tanto(s) nó(s) e por aquele pequeno e solitário ponto sem contraponto, por aquela pintinha
qualquer que sonha com a massa, que quer ser elemento de uma constelação, animal em uma
matilha, multiplicidade de sardas sobre um rosto... Escrever como um cão que faz seu
buraco, um rato que faz sua toca (Deleuze E Guattari, 1977, p.28), encontrando assim seu
próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio deserto. Escrever
escavando a linguagem, fazendo-a seguir em uma linha errante, sóbria, em condições
revolucionárias no seio de uma língua estabelecida. Tornar-se o nômade de sua própria
língua. Assim, quem sabe se possa correr o risco de dar em nada...
Referências Bibliográficas:
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BLANCHOT, Maurice. A Parte do Fogo. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1997.
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COLEBROOK, Claire. Gilles Deleuze. Londres: Ed. Routledge, 2002.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
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