Você está na página 1de 90

CAMINHADAS REGENERADORAS

10 TRILHOS MÁGICOS DE NORTE A SUL DO PAÍS


+ OS BENEFÍCIOS DE ANDAR A PÉ SEGUNDO A CIÊNCIA
A NEWSMAGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS WWW.VISAO.PT
. SEMANAL

DIREITO
FUTEBOL
OS PRÍNCIPES
Nº 1497 . 11/11 A 17/11/2021 . CONT. E ILHAS:

DE RESPOSTA
“MARCO GALINHA:
UMA VIDA ÁRABES
DE TRABALHO
E LIGAÇÕES
ÀS COMPRAS
TRANSPARENTES” DE CLUBES
E DE REPUTAÇÃO

HISTORIAS, POLEMICAS
E ALTA TENSAO EM BELEM
COMO OS PRESIDENTES ELEITOS USARAM OS SEUS PODERES.
OS CHOQUES E CONFLITOS COM GOVERNOS, PRIMEIROS-MINISTROS
E LÍDERES DA OPOSIÇÃO, E OS EMBATES DE MARCELO
VISÃO
11 NOVEMBRO 2021 / Nº 1497

10 Entrevista: Nélida Piñon

RADAR
16 Raio X
18 A semana em 7 pontos
20 Holofote
GETTY IMAGES

22 Inbox
23 Almanaque
24 Transições
25 Próximos capítulos
28 Imagens do mundo 58 COP26: O bom, o mau e os que virão
A VISÃO está na conferência do clima em Glasgow. À entrada da última
ronda de negociações, a cimeira ainda pode trazer algumas surpresas.
FOCAR O que já foi conseguido superou as (baixas) expectativas
74 Entrevista: Aguiar-Branco
80 Teletrabalho não agrada
a todos 32 Presidentes: Tensão, braços de ferro e dissoluções
Como exerceram os cinco Presidentes eleitos os seus poderes?
De que forma geriram os momentos de maior tensão com governos,
VAGAR primeiros-ministros e líderes da oposição? Agora, com a dissolução
do Parlamento, calha a vez a Marcelo
82 Entrevista: Paulina Chiziane
88 Viagens com Fábio Porchat
à volta de Saramago 44 A arte de caminhar
Andar a pé é bom até para ter ideias novas. É uma daquelas coisas que
sentimos na pele, mas que sabe bem confirmar com a ajuda da Ciência. De
VISÃO SETE que estamos à espera para calçar uns sapatos confortáveis e sair por aí?

62 Netflix à conquista do mundo em nome do negócio


Os originais internacionais da Netflix tornaram-se centrais para a sua
estratégia e podem ajudar a salvá-la de uma concorrência feroz

68 Os príncipes da bola
O futebol tornou-se irresistível para as petromonarquias do Golfo Pérsico.
91 Os vinhos do Pico A aquisição do Newcastle pela Arábia Saudita é apenas o último exemplo

OPINIÃO
6 José Eduardo Agualusa
8 Mafalda Anjos Online W W W.V I S A O . P T
14 Pedro Marques Lopes Últimos artigos no site da VISÃO
26 Bernardino Soares
78 José Carlos de Vasconcelos
90 Capicua
114 Ricardo Araújo Pereira
Manuel Delgado Inês Margarida Martins Luís Delgado
SAÚDE MODA LINHAS DIREITAS
A oportunidade A moda através Rio ou Rangel?
Interdita a reprodução, mesmo parcial, para uma estratégia dos tempos
de textos, fotografias ou ilustrações sob reformista na Saúde
quaisquer meios, e para quaisquer fins,
inclusive comerciais.
Todos os dias, um novo texto assinado por um dos 28 especialistas convidados

4 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


LINHA DIRETA Correio do leitor

Afinal, depois do Orçamento,


a vida que nos espera é...
mais uma crise. Não há mesmo
alternativa: vamos a votos
e o eleitorado logo dirá
Covid-19: Cobertura da VISÃO a vida que quer.
Luís Paixão, Amadora

ganha cinco prémios de jornalismo PAÍSES INGOVERNÁVEIS


Como diz Mafalda Anjos [Não há países
ingovernáveis, só políticos aquém das
Onde estava a 13 de março de 2020? No dia anterior, o Governo decretava o fecho circunstâncias, V1496], é facto que,
das escolas e um País assustado fechava-se em casa. Na edição seguinte, a VISÃO em teoria, “não há países ingovernáveis,
só políticos aquém das circunstâncias”.
fazia capa com uma frase marcante: “Resistimos juntos!” Logo a seguir, a 26 de Mas, na prática, não serão esses políticos
março, fomos para a banca com uma reportagem essencial: dentro dos hospitais, fruto dos países ingovernáveis onde
com os médicos e os enfermeiros que lutavam contra a Covid-19. nasceram? Fica a reflexão…
Luís Filipe Amaral, Paço de Arcos
O trabalho Os heróis da linha da frente, da autoria de um coletivo de jornalistas
da VISÃO (texto de Vânia Maia, com Sara Belo Luís e Sónia Calheiros; e fotografias CARLOS MOEDAS
de José Carlos Carvalho, com Luís Barra e Marcos Borga), venceu a categoria de E A WEB SUMMIT
Imprensa do Prémio Jornalismo em Saúde atribuído pelo Clube de Jornalistas e “No próximo ano, prometo que vamos
pela Apifarma. Foi só o início de uma extensa cobertura da pandemia que definiu falar sobre o sonho da fábrica de
unicórnios de Lisboa.” As palavras de
(e ainda define) os nossos dias; foi também o primeiro de uma série de prémios de Carlos Moedas, presidente da Câmara
jornalismo que vieram distinguir o trabalho da VISÃO, credível, na linha da frente Municipal de Lisboa, a propósito da Web
do jornalismo de qualidade que nos caracteriza. Seguiram-se os trabalhos Mãe, Summit, não deixam de surpreender
quando esperava que o seu sonho
estás viva?, galardoado com o prémio de jornalismo Os Direitos da Criança em primeiro fosse uma solução para os sem-
Notícia; Natureza doente, humanos doentes, vencedor da 5ª edição do Prémio abrigo. A Web Summit é uma iniciativa
Centro Pinus de Jornalismo Florestal, e A longa estrada pós-Covid, distinguido criativa. No entanto, nem
com o segundo lugar na 9ª edição do Prémio de Jornalismo na Área da Dor. um episódio a favor dos deserdados
no meio de milhares de “invenções”.
Finalmente, O drama dos doentes sem Covid, da autoria das jornalistas Vânia A famosa frase “eu tive um sonho”,
Maia e Mariana Almeida Nogueira, venceu a categoria de Imprensa do Prémio de Martin Luther King, não ecoa
de Jornalismo 2020 atribuído pela Liga Portuguesa Contra o Cancro e pela socialmente na edilidade alfacinha.
AstraZeneca. 20 meses depois, continuamos a resistir juntos! É um pesadelo para a democracia
a existência dos sem-abrigo.
Ademar Costa, Póvoa de Varzim

Já nas bancas
Contactos
visao@visao.pt
As cartas devem ter um máximo
de 60 palavras e conter nome, morada
e telefone. A revista reserva-se
o direito de selecionar os trechos
que considerar mais importantes.

NOVA MORADA
CORREIO: Rua da Fonte da Caspolima
RANKING INDO-PACÍFICO ANIMAIS – Quinta da Fonte,
Melhores Empresa Tensão no novo Amigos Edifício Fernão Magalhães, 8,
para Trabalhar centro do mundo muito fixes 2770-190 Paço de Arcos

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 5


NEM TUDO É FICÇÃO

O vampiro
de Berlim
POR JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

T
enho diante de mim, na mesa em que Passei o ano 2000 na capital alemã, graças a
trabalho, três pequenas estatuetas em uma bolsa de criação literária. Certa noite, a minha
madeira e fibras vegetais, representando mulher sentiu-se indisposta. Era um domingo
dançarinos mascarados. No Nordeste de de inverno. Lá fora, um vento glacial golpeava
Angola, dançarinos reais, muito seme- as árvores e as casas. O nosso filho de 4 anos
ILUSTRAÇÃO: SUSA MONTEIRO

lhantes a estes, são conhecidos como mu- dormia no seu quarto. Sair àquela hora, em tais
quixes. As três estatuetas (uma das quais circunstâncias, em busca de uma clínica ou de um
perdeu a cabeça) foram-me oferecidas por hospital, pareceu-me uma loucura. Procurei na lista
um vampiro alemão, em Berlim, na virada telefónica o número de um médico, liguei para ele e,
do século. meia hora depois, soou a campainha. O médico era

6 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


um homem muito pálido, com os olhos esquivos de um Queria convidar-nos a visitar o estúdio de uma amiga,
seminarista. O cabelo grisalho, já um pouco ralo, caía- artista plástica. Faltou-nos coragem para dizer que não.
lhe sem alento pelos ombros frágeis. Entrou, estendeu- Por outro lado, movia-nos certa curiosidade mórbida, a
me uma mão frouxa e gelada e apresentou-se. Hans, mesma que leva os automobilistas a abrandarem a mar-
creio que se chamava Hans. Lembro-me de pensar cha, ao passarem por um veículo acidentado. No caso,
que se fosse uma personagem minha, de um conto ou suspeitávamos de que o carro estava a caminho do de-
de um romance, teria dificuldade em atribuir-lhe um sastre, e que seríamos nós os acidentados. Ainda assim,
nome. queríamos saber o desfecho.
Hans, digamos que fosse Hans, não encontrou O estúdio era um espaço apertado, com as paredes e
nenhuma doença grave na minha mulher. Receitou o teto cobertos de garrafas, ampolas e outros recipien-
algum medicamento anódino, entregou-me um cartão tes de vidro, tudo isto iluminado por uma luz vermelha,
de visitas, insistindo para que o chamasse sempre que quente e pesada, como a das antigas câmaras escuras. A
fosse necessário, abriu a porta e submergiu, como uma artista olhava para a minha mulher, como se esta fosse
sombra, na escuridão convulsa e gelada. uma espécie de prodígio – ou um petisco raro. Pare-
Tê-lo-íamos esquecido em pouco tempo. Hans não cia fascinada, em particular com o seu longo pescoço.
o permitiu. Dois ou três dias depois passou por nossa Trocou algumas palavras rápidas, em alemão, com Hans.
casa, apressado, para deixar uma caixinha de chocola- Depois voltou-se para mim:
tes. Na semana seguinte, depositou – A sua mulher é muito boni-
à nossa porta um enorme ramo de ta, uma verdadeira rainha africana
flores, com um cartão elogiando a O estúdio era um – murmurou, num inglês perfei-
“beleza exótica” da minha mulher. to. – Toda ela emana uma energia
Achámos graça. espaço apertado, com poderosa...
Um dia, Hans convidou-nos para as paredes e o teto Hans tomou coragem:
jantar. Levámos connosco um ami- – Gostaríamos que fosse ao nos-
go, Peter, dramaturgo e encenador. cobertos de garrafas, so próximo congresso, como convi-
Íamos na sobremesa quando Hans ampolas e outros dada especial. Esperamos vampiros
anunciou que tinha uma revelação recipientes de vidro, de toda a Europa...
importante a fazer: A minha mulher começou a
– Sou um vampiro! tudo isto iluminado ficar nervosa com o interesse
Rimo-nos, eu e a minha mulher, por uma luz vermelha, dos dois. “Vamos embora”, pe-
achando que fosse algum tipo de diu-me num sussurro. Fugimos.
piada germânica. Peter ficou sério. quente e pesada, Um mês depois embarcámos
Hans ainda mais. como a das antigas para Lisboa. Hans fez ques-
– Sou um vampiro – insistiu, câmaras escuras tão de nos levar ao aeroporto.
esticando o pescoço. – Pertenço a À despedida, ofereceu-nos os
uma prestigiada sociedade de vam- mascarados. Disse que os vira
piros... Entendam, o vampirismo é num antiquário e que pensara
um antigo culto pagão, que o cristianismo se esforçou em nós. Só agora, enquanto escrevo estas linhas,
por apagar e denegrir... Pior, por ridicularizar... Apesar percebo que por “nós” se referia a ele, a mim e à mi-
dessa perseguição, continua vivo em muitas cidades nha mulher. Desde então os três muquixes vêm-me
europeias... acompanhando nas minhas errâncias. Há cerca de
Não conseguiu acrescentar muito mais porque Peter um mês, deixei cair um deles. A cabeça quebrou-se.
o interrompeu num alemão áspero, próximo da ira. Tentei colá-la, mas sem sucesso, porque a madeira
Não sei o que disse. Hans ficou ainda mais pálido, o esboroa-se. Não sei que madeira é. Nunca vi nada
fantasma de um fantasma, levantou-se, lamentou ter assim. Uma semana depois recebi uma carta de
de nos deixar e abandonou o restaurante de cabeça Berlim. Reconheci o nome da artista plástica. Infor-
baixa. mava-me que Hans havia falecido dias antes, num
– É maluco – disse Peter, com um sorriso torto. – acidente de trânsito.
Berlim está cheia de malucos. Pelo sim, pelo não, vou colocar os dois muquixes
Hans ligou na manhã seguinte para se desculpar. sobreviventes num lugar mais seguro, talvez num
Três dias mais tarde passou pelo nosso apartamento. cofre. Não quero correr riscos. visao@visao.pt

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 7


OPINIÃO
HISTÓRIAS
DA CAPA
A campanha
do “pisca-pisca”
P O R M A F A L D A A N J O S / Diretora
1

O
PS tem uma malapata com maio- tística. A tendência para a fragmentação do
rias absolutas. O trauma vem desde eleitorado e para a dispersão dos votos por
1985, a única vez em que, sem vários partidos dificulta que um, sozinho,
pudores, a solicitou. Almeida San- consiga uma fatia decisiva.
tos encheu o País com cartazes a A única forma que o PS ou o PSD têm
pedir 43% e conseguiu apenas uns de se aproximar desse desiderato será a
escassos 20,8%, os piores resulta- aposta no modelo catch-all dos modera-
dos de sempre conseguidos pelos dos, acenando com o risco de algo de que
socialistas. A chegada fulgurante do PRD, os portugueses não gostam nada: instabi-
que obteve quase 18%, fez encolher o par- lidade. O PS já começou a trabalhar para Uma capa sobre
tido à sua mínima escala. Um dos maiores o puxão de orelhas aos ex-parceiros de os poderes do
Presidente e os
arrependimentos de António Guterres em Geringonça, para tentar conseguir con-
momentos de
matéria política foi não tê-la pedido aberta- quistar alguns eleitores desiludidos com o
tensão pode ter
mente, em 1999, e acabar por lhe ter faltado Bloco de Esquerda e o PCP. O PSD terá de um ar de BD
“um bocadinho assim”, que é como quem falar à sua direita e roubar votos ao Chega
diz um deputado para desempatar. José e à Iniciativa Liberal, caminho já encetado,
Sócrates, sem a pedir com convicção em em antecipação, por Paulo Rangel. Mas isso
2005, acabou por conseguir a única maioria
absoluta do Partido Socialista. Mas quando,
não chega: os dois partidos terão de dar
tudo por tudo para tentar chegar ao elei-
2
nas eleições seguintes, finalmente a pediu, torado flutuante ao centro e apanhar estes
em 2009, não foi além da relativa. eleitores voláteis mais sofisticados e bem
António Costa tem seguido a esco- informados, determinantes para se conse-
la do partido e prefere falar guir uma maioria absoluta.
de maiorias “reforçadas”, de Por mais jogo de cintura
maiorias “expressivas”, de Tanto o PS que tenha António Costa e
maiorias “inequívocas”... fu- como o PSD quem no PSD se apresen-
gindo, como o diabo da cruz, vão tentar tar a votos, tentar estar bem
da palavra “absoluta”. E quan- com deus e com o diabo não
to mais convencidos estão os aproximar-se é tarefa fácil. Depois da ex-
líderes socialistas de que a da maioria periência com a Geringonça Mas talvez um
sinal de “alta
podem ter, mais fogem da pa- absoluta, e das cedências ao longo da
tensão” como
lavra para não ostracizarem o negociação deste Orçamen-
eleitorado que não gosta dela, apostando to, António Costa consegue
fundo resulte
melhor
seja por princípio seja por má no modelo falar melhor para esse
memória – o que acontece “catch-all” dos lado do espectro político.
sobretudo à esquerda, depois À direita, o rigor das contas
de duas maiorias absolutas
moderados é um trunfo, mas a mensa-
de Cavaco Silva. “As maiorias gem é mais difícil de passar,
absolutas não se pedem, conquistam-se”,
dizia Costa à VISÃO, em 2019. Agora, entre
graças às companhias vistas como “radi-
cais” que alguns temem que se tornem mais
3
a espada e a parede, não lhe resta outra al- exigentes. Do lado do PSD, a recordação
ternativa senão a de revistar estas palavras. dos tempos da Troika e de Passos Coelho
Está à vista que o seu mote para esta ainda pesa entre os moderados ao centro
campanha será o apelo ao voto útil e a a penderem para a esquerda. Sobretudo
uma maioria absoluta como solução de arriscando vir de lá uma coligação com
estabilidade governativa para o País. O partidos que estes moderados veem como
mesmo, aliás, deverá acontecer à direita, demasiado “direitolas”.
ganhe quem ganhar a liderança nas dire- A campanha eleitoral será determinan-
tas do PSD. te, e os erros podem pagar-se caros nos
Mas se pedir não custa, consegui-lo é próximos meses. Até dia 30 de janeiro,
hoje mais difícil do que alguma vez foi. vai ser como cantava Ruth Marlene: “Eles Agora é só acertar
Estes não são os tempos certos para se con- olham para a direita, e pisca, pisca / Eles a cor do fundo
da capa por forma
seguir a façanha, por cá ou lá fora. Muitos olham para a esquerda, e pisca, pisca.”
a destacar-se
veem-na como uma impossibilidade esta- manjos@visao.pt
em banca

8 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


Nélida Piñon Escritora

A barbárie desloca
a Humanidade para lugares
onde ela vai criar redutos
mais progressistas.
As mudanças são sempre
difíceis de prever, mas a
nossa capacidade de reabilitar
a civilização é imensa
SARA BELO LUÍS LUÍS BARRA

10 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


É
conglomerado pode ser um país, e um padrão comportamental, cada pessoa
país pode ser uma nação. tem o direito de eleger a sua conduta,
Também é essa a lição do Infante D. mas, nessa linhagem, nessa sequência
Henrique? de valores, ela corresponde a tudo.
Exatamente, o espírito audacioso do Ainda faz sentido ser feminista em
Infante D. Henrique. Na primeira 2021?
vez que fui a Sagres, percebi-o Faz, mas não com a violência de agora.
logo. Foram aquelas ventanias Olhe que eu sou feminista, não da
enlouquecidas que impuseram uma década de 20-30, mas da década de
cartografia oceânica aos portugueses. 60. Estava em Nova Iorque no apogeu
Havia que ir embora, eles não podiam de 1968, invadi casas, estive presente
ficar aqui parados no Litoral. Os em rebeliões, conheci feministas de
ventos daquela região mudaram a primeira linha, como Gloria Steinem
imaginação do mundo. ou a Betty Friedan. Vivi o que havia
É delicada no trato, dura nas O que pensa de todo o debate pós- de mais fascinante em todo aquele
palavras. E imensamente generosa colonialista? feminismo que brotava com grande
na forma como, aos 84 anos, ainda Esse debate não me pertence. Sabe sabedoria das universidades. Foi neste
está disponível para conversar. porquê? Não pertence a ninguém, feminismo que me formei. Também
Começamos pelo romance que está fora de tempo. Era a época que sempre admirei o movimento black.
acaba de lançar entre nós (Um Dia havia a viver. É como se nós agora Quando vivi em Nova Iorque, andava
Chegarei a Sagres, publicado pela começássemos a pensar em retificar de metro de madrugada e fazia questão
Temas e Debates) e acabamos nos o passado, ajoelhar, pedir perdão... de não me sentar perto dos brancos. Só
200 anos da independência do Brasil, Podemos? Não, o mundo precisa é de me sentava junto dos negros, porque,
que em 2022 se comemoram. Pelo saber o que aconteceu e não voltar a como brasileira, era ali que eu me
meio, entusiasma-se quando fala repeti-lo. sentia protegida. É como se percebesse
do movimento feminista dos anos Conhecer a História... que o branco tinha idiossincrasias
60 e emociona-se ao recordar as Sim, conhecer a História. Agora, perigosas e secretas, e que o negro,
suas origens galegas. Académica ridicularizar e criticar o que como vítima e perseguido, era
reconhecida e escritora premiada, foi a aconteceu? Todos temos de carregar obrigado a expor as suas dificuldades.
primeira mulher a presidir à Academia os nossos erros, os quais, de um modo Em 2019, deu uma entrevista ao
Brasileira de Letras, em 1996. geral, nas suas épocas, não eram erros. Jornal de Letras em que dizia: “O
Simplificando, diria que o seu livro Os escandinavos também erravam que mais me agita, incomoda e faz
mistura Camões, Descobrimentos quando chegavam à costa britânica e chorar é a violência.” Portanto, do
e uma certa melancolia. O que matavam. Era a natureza deles, seria a racismo ao feminismo, as lutas
lhe agrada neste modo de ser nossa, é a nossa. Temos instintos que continuam a fazer todo o sentido,
português? nem sempre correspondem à nossa mas não com agressividade?
Ao longo da História, nos séculos alma, que quer ser sublime. É o que está a acontecer. Não
XII, XIII e XIV, os portugueses Hoje [na semana passada, dia 4], podemos imitar o nosso inimigo (ou
tinham a reputação de ser mestres a atriz Fernanda Montenegro, adversário, para suavizar), acho que
casamenteiros. Casaram Isabel sua grande amiga, é eleita para a temos de lhe mostrar as diferenças
com Carlos I, que viria a ser Carlos Academia Brasileira de Letras. que existem entre nós e ele. Talvez
V e imperador do Sacro Império Você não vai acreditar, estou chorando não dê em nada, mas historicamente
Romano-Germânico. E como é que os desde manhã. Admiro-a por causa resulta, vamos deixando pegadas.
portugueses tinham essa habilidade? da minha paixão pelo teatro, é uma Jô Soares [comediante brasileiro
Tinham sentimentos, não sei se estes atriz brilhante. Mas não só: como eu, a e apresentador de talk shows]
surgiram do mar, isso é um mistério... Fernanda também vem de uma família convidou-me, várias vezes, para ir aos
Mas foi por conta desses casamentos de migrantes, ambas damos um valor programas dele e, uma vez, disse-
que os portugueses espalharam a extraordinário aos migrantes que me que eu era uma pessoa acima de
melancolia portuguesa pelo mundo. foram para o Brasil. todos. Senti que tinha de fazer um
Veja-se o caso de Filipe II, filho de E que valor é esse? reparo e respondi-lhe: “Agradeço
Isabel, ele era um melancólico. Até os É quase uma banalidade dizer isto: que reconheça que sou uma mulher
brasileiros, que são tidos como alegres, ela é uma brasileira que deu certo. De gentil, mas pronuncia-se como se a
são melancólicos! Aliás, acho que toda certo modo, todo o mundo dá certo, delicadeza fosse uma programação
a gente finge que é carnavalesco... do seu jeito, com a sua maneira de da alta burguesia, da burguesia ou do
Mas a personagem principal do ser (não imponho excelências nas mundo dos intelectuais. E eu não sou
livro é um camponês simples. minhas relações com as pessoas)... Mas isso, sou uma escritora. Sou gentil,
Sim, Mateus é filho de uma prostituta, a Fernanda tem, digamos, um grande não por razões sociais, obrigações de
foi educado pelo seu avô. Mas índice de brasilidade: é corajosa uma sociedade que, inclusive, muitas
descobre que é filho dessa grandeza e tem posturas políticas notáveis, vezes, eu não admiro. Sou gentil
de Portugal. Graças a um professor, mesmo que possamos discordar delas. porque a minha gentileza impede que
o menino percebe que, por causa Também a admiro como feminista eu o bofeteie se for grosseiro comigo.
dessa grandeza, uma aldeia pode ser histórica que sou. Não creio que todas Tenho de ser gentil para impedir a
um conglomerado de aldeias, um as mulheres tenham de ter o mesmo minha vontade de o matar.”

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 11


Isso também é uma postura secreta, nos sentimentos, na nobreza.
política?
Não temos Veja, por exemplo, como os pobres são
Completamente, e foram os meus pais grandes apaixonados pela família. Agora, não
que ma incutiram, uma aprendizagem tenho dúvidas de que os intelectuais
extraordinária. Estudei num colégio
políticos, temos desempenham uma função nobre,
alemão, onde também aprendi oportunistas, mas acho que não podem exceder-se.
posturas comportamentais que têm Não podem julgar que são donos da
influência nas minhas reflexões de
corruptos verdade do mundo, donos da teologia,
hoje. Quando vivemos com contrastes e interesseiros. donos de Deus.
e oposições, ou rebentamos e não Tem sido uma observadora
resistimos ao impacto da diferença ou
Não temos privilegiada de Portugal. Como vê a
então aperfeiçoamo-nos. Até a minha aqueles políticos, atual situação política?
religião não me fez raivosa contra Não me sinto senhora das
Lutero ou contra Carlos V. Nunca me
aqueles loucos circunstâncias. Conheci uma Espanha
senti escrava de uma religião ou de insanos, como e um Portugal miseráveis. Quando
uma teologia. É muito interessante vim para cá, em menina, trouxemos
como, ao longo dos anos, a nossa
o Infante um espanto de bagagem, malas, malas
formação se vai fazendo... D. Henrique, e malas de comida, feijão e arroz,
Como viveu estes dois últimos anos sabão e sabonete, fazendas e sapatos...
da pandemia? Conseguiu escrever?
capazes de vencer Nem se imagina. E dinheiro, para
A primeira versão de Um Dia o cabo Bojador nos podermos sustentar na Galiza e
Chegarei a Sagres foi escrita em também para dar à família. O que era a
Lisboa, em 2018. Depois, fui para o Europa no pós-guerra? É isso, vamos
Brasil, fiz mais umas sete ou oito e, ser responsáveis, vamos estudar
praticamente, acabei o livro no início História. Portanto, para responder
da pandemia. Fora a minha profunda à sua pergunta, acho que Portugal
solidariedade com a dor, as pessoas de reabilitar e de fazer reparos à melhorou muitíssimo. Não posso
que morreram, as que estavam civilização é imensa. Somos seres discutir questões mais ideológicas,
famintas, as que perderam os seus como que voltados para renovar a mas vejo que Portugal tem feito
empregos, as incertezas do futuro (a cultura. alianças sólidas no Parlamento. Há
incertitude, como se diz em espanhol, Vale a pena ser otimista? uma palavra que ainda não entendi o
uma palavra de que eu gosto muito), Vale. Agora, há outra coisa que quero que significa...
tudo isso me abalou, mas, fora isso, dizer sobre os nossos tempos: não Geringonça? É um aparelho
estava absolutamente tranquila com temos estadistas. Não temos grandes improvisado, com defeitos, mas
a minha condição humana. O que políticos, temos oportunistas, minimamente funcional.
também se deve à minha paixão pela corruptos e interesseiros. Não temos Formidável, é isso. Portugal tem um
História. aqueles políticos, aqueles loucos prémio Nobel da Literatura, artistas
Em que sentido? insanos, como o Infante D. Henrique, e escritores importantes, preserva
Como estudo História desde menina, capazes de vencer o cabo Bojador. a língua portuguesa, que é um feito
conheço a tragédia, os genocídios, as Acho que não temos esses homens. histórico muito difícil. Tem saúde e
grandes pragas... Alguém sabe que a E isso é que eu temo, temo a falta de educação grátis, coisas que traduzem
varíola liquidou milhões de pessoas? diálogo e de paixão utópica. um enorme progresso.
Também adoro Boccaccio, conheço Que papel podem os intelectuais, No Brasil, 2022 vai ser um
toda a sua obra. Foi ele que abandonou os escritores e os artistas ano importante. Há eleições
o medieval e, através de uma criação desempenhar nesse caldo explosivo, presidenciais e comemoram-se os
importantíssima, abriu as portas ao digamos, de afastamento entre o 200 anos da independência...
Renascimento. Divina Comédia era povo e as elites políticas? Ah, ia criticá-la se não me falasse
apenas Comédia, e foi Boccaccio Vou-lhe dizer uma coisa que talvez nisso [risos]: vou agora ser eleita vice-
que o renomeou, chamando-lhe não aprecie: primeiro que tudo, o presidente da Academia Brasileira
Divina Comédia e, assim, revalorizou intelectual precisa de perder a sua de Letras e quero lutar por esses
Dante. É a obra de arte, a praga, o arrogância. Acho o intelectual muito 200 anos de independência. D. João
fracasso tremendo da Humanidade, arrogante. Julga ter preceitos – VI foi importantíssimo no Brasil, D.
os genocídios, as mortes... As imutáveis, segundo ele – que devem Pedro I também, mas D. Pedro II era
pessoas eram bárbaras, mas criaram ser preservados, seguidos pelo povo, um génio! Vamos ter de trabalhar a
civilizações. A barbárie desloca a e que o povo não entende o que eles sua figura. Era um grande estudioso,
Humanidade para lugares onde ela vai dizem porque o pensamento dele é lia literatura francesa, adorava
criar redutos mais progressistas. sublime. No meu romance, Mateus Victor Hugo. Um dia, quis visitar
Aceita a tragédia e a miséria, é isso? representa a pobreza. Tenho uma Victor Hugo, escreveu-lhe, mas não
Não, não quer dizer que eu aceite atração profunda pelos pobres. Não, obteve resposta. Então, apanhou um
a tragédia e a miséria, mas sei não quero que eles permaneçam fiacre, bateu à porta e, quando lhe
que saímos dela. Não sei como, as pobres, quero que eles saiam da perguntaram quem ele era, D. Pedro II
mudanças são sempre difíceis de miséria. Gosto deles porque há neles respondeu: “Sou o segundo imperador
prever, mas a nossa capacidade um resguardo antigo, uma língua do Brasil.” sbluis@visao.pt

12 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


POLITICAMENTE CORRETO

Menos trincheiras
e mais pontes
P O R P E D R O M A R Q U E S L O P E S / Colunista

O
Presidente da República, na declaração Quis recordar aos vários intervenientes políticos a
pública em que anunciou a dissolução do importância da negociação, do diálogo e do compro-
Parlamento e a data das próximas elei- misso.
ções legislativas, limitou-se a repetir o que A democracia é um sistema em que se acredita que
dizia desde que se começou a perceber que o melhor para a comunidade vem sempre da con-
havia mesmo a possibilidade de uma crise vergência de vontades, de se pensar que uma solução
política. Acrescentou, porém, algo de im- negociada é sempre melhor do que outra imposta.
portante: lembrou os três orçamentos que As posições políticas têm de ser ponto de partida
viabilizou enquanto líder do PSD. para uma negociação, não redutos inexpugnáveis.
Serviu como complemento à admoes- O clima de polarização, de insulto, de barrica-
tação que estava explícita na referência à sua convicção da que se vive no cenário político é a negação do
de que o povo português não tinha compreendido esta espírito democrático. O arrastamento do espírito de
crise (o que as sondagens confirmam) e como forma de rede social para o jogo político é um fenómeno que
aviso para as negociações do próximo orçamento. causa danos significativos no edifício democrático.
No entanto, a leitura mais popular foi a de que ha- E perturba ver políticos com notoriedade e respon-
via ali uma sugestão de uma espécie de bloco central. sabilidades a utilizar discursos típicos de caixas de
Na forma que o próprio Marcelo, como presidente do comentários.
PSD, escolheu, ou outra do mesmo género. Como se pode esperar um bom diálogo e sã nego-
Prever qual será o próximo quadro parlamentar é ciação entre pessoas que se insultam?
impossível. Nem as sondagens desta altura nos po- Por outro lado, o desenho constitucional do Parla-
dem ajudar a discernir sequer tendências. mento não facilita, bem pelo contrário, a obtenção de
Não sabemos quem vai ser o líder da oposição e maiorias absolutas. Quando foi feito, era exatamente
que impacto essa escolha terá no centro, centro-di- esse o efeito desejado. As instituições democráticas
reita e centro; é uma enorme incógnita quem o elei- estavam a dar os primeiros passos e as intermédias
torado de esquerda vai culpar, na altura, pelo chumbo eram débeis – infelizmente, ainda são. Os partidos
do orçamento ou, sequer, se isso vai entrar na decisão também serviam para suprir parte dos checks and
do voto. Porém, só um improvável terramoto muda- balances que essas organizações normalmente tra-
ria o nosso quadro político-partidário de forma que zem para as democracias.
não fosse possível aos dois partidos do centro terem a Impondo a busca de consensos, tentava-se cultivar
esmagadora maioria dos votos. o espírito de negociação. A intenção era boa e, durante
Que Marcelo Rebelo de Sousa sabe, e fez questão de algum tempo – até pela amizade pessoal que existia
salientar, que seria gravíssimo que destas eleições não entre políticos de vários quadrantes –, as pontes fo-
saísse uma solução estável, não há qualquer dúvida. ram sendo feitas e utilizadas, mas a cultura de diálogo
Se, em qualquer circunstância, andar a viver crises não se consolidou.
políticas constantes traria problemas gravíssimos, A demasiada facilidade com que se elegem de-
imagine-se o que seria numa altura em que a chegada putados – fenómeno que a nossa legislação eleitoral
de fundos pode significar uma mudança radical no facilita e que foi sendo desprezado –, somada à dete-
nosso país ou mais um longo período de estagnação. rioração dos partidos tradicionais, levou a uma ato-
Países como Itália aguentam – e, mesmo assim, a mização da representação política. E, claro, quantos
duras penas – esses condicionalismos; para um país mais interlocutores, mais difícil o diálogo.
pequeno, pobre e com uma economia débil como Num clima crispado, sem uma cultura de negocia-
Portugal, seria pouco menos do que uma catástrofe. ção e de compromisso dos atores políticos somada a
Entendo que o Presidente sugeriu que qualquer um Parlamento com muitas vozes diferentes, todos os
solução é melhor do que esse pântano e que os en- apelos à tolerância e aos entendimentos são poucos.
tendimentos ao centro não são de excluir – anda tudo Dando o seu exemplo, o Presidente da República
esquecido, mas a democracia portuguesa construiu-se não estava a cantar nenhuma ode ao bloco central, es-
através de consensos, nos temas fundamentais, entre tava tão-só a dizer que a democracia é um sistema de
o PS e o PSD e, se quisermos ver reformas, é entre eles pontes, não de trincheiras. E só assim funciona.
que se poderão fazer –, mas quis ir bem mais longe. visao@visao.pt

14 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


RAIO X

Ameaça persistente Apesar do esforço de redução do armamento


nuclear levado a cabo desde o fim da Guerra Fria,
são vários os países que dele não abdicam

M A N U E L B A R R O S M O U R A mbmoura@visao.pt

Inventário de ogivas nucleares por país


RÚSSIA EUA

OGIVAS ESTÃO
IMPLANTADAS
em mísseis intercontinentais, bases
1 600
IMPLANTADAS
1 800
IMPLANTADAS
aéreas para bombardeiros pesados
e em bases onde existem sistemas
operacionais com capacidade
de curto e médio alcance

OGIVAS DE RESERVA
estão armazenadas, mas prontas
para ser implantadas
2 897
DE RESERVA
2 000
DE RESERVA
em sistemas de disparo

1 760 1 750
OGIVAS RETIRADAS
ainda estão intactas, mas já em
espera para serem desmanteladas RETIRADAS RETIRADAS
Estima-se que a Rússia esteja a As estimativas apontam para que
RÚSSIA

6 257
desmantelar entre 200 e 300 ogivas os Estados Unidos da América tenham
nucleares retiradas de circulação por 20 mil núcleos de plutónio, 4 mil
ano, mas os serviços secretos componentes secundários de urânio
norte-americanos acreditam que e de detritos de lítio, que sobraram
Tsar Bomba existam mais ogivas ainda em armazém das ogivas nucleares já desmanteladas

EUA

A Rússia
e os Estados Unidos
5 550
Fat Man
da América detêm Apesar de, em todo o mundo, os números exatos
cerca de 90% relativamente ao armamento existente serem
de todas as ogivas mantidos em segredo de Estado, foi possível fazer ÉPOCA DA
estimativas do arsenal nuclear global através GUERRA FRIA
nucleares O arsenal nuclear mundial
existentes de fugas de informação, registos oficiais 70 300 diminuiu significativamente
e algumas indiscrições desde o pico da Guerra Fria,

Nº TOTAL DE
13 132
em 1986, altura em que se
estima que existissem mais de
O arsenal chinês OGIVAS NUCLEARES HOJE 70 mil ogivas em todo o mundo
aumentou de forma 13 132
significativa na última
década, e os serviços
secretos dos EUA
acreditam que venha
a duplicar até 2030
ATIVOS ATIVOS
280 120
DE RESERVA DE RESERVA

10 105
CHINA FRANÇA REINO UNIDO PAQUISTÃO ÍNDIA ISRAEL COREIA DO NORTE

350
DF-41
DE RESERVA 290
AN-11-Bomb
225
Yellow Sun
165 DE RESERVA
Shaheen 1A
160
Agni-V
DE RESERVA 90 DE RESERVA
Jericho II
45 DE RESERVA
Pukguksong – 5

FONTE Federação dos Cientistas Americanos e Visual Capitalist INFOGRAFIA MT/VISÃO

16 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


7
PONTOS DA SEMANA

POR
SARA BELO LUÍS*
GETTY

O NOSSO GRANDE FALHANÇO


Se traduzíssemos workism à letra, seria
qualquer coisa como “trabalhismo” – e
se, a partir daqui, avançássemos para
no fim, defende que, para lá da tragédia,
a disrupção provocada pela Covid-19 terá
conduzido a um “great rethink” (mais
uma conversa em português, o mais certo uma vez, numa tradução muito livre, um
era termos um diálogo pouco produti- “grande repensar”). “A experiência da
vo e cheio de mal-entendidos. A palavra pandemia pode ter levado muitos traba-
workism pouco tem de esquerda ou de lhadores a explorar oportunidades que
direita, sintetiza a crença de que o traba- não tinham visto previamente”, escreve
lho não é apenas central para a atividade Krugman.
económica, mas também para a própria Se se trata de uma revolução ou apenas
identidade dos indivíduos. É verdade que de uma reação do pós-pandemia, ainda
a nossa profissão nos define (em particu- estamos para descobrir. Há cerca de um
lar, numa economia como a portuguesa, mês, na VISÃO, quando demos conta do
em que as mudanças ao longo da vida ati- fenómeno do The Great Resignation, já
va são casos raros), mas daí a entendê-la havia sinais de que a tendência estaria
como o sentido da nossa vida… diz-nos a a acontecer em Portugal. Consultoras e
sensatez que vai uma grande distância. empresas tecnológicas (naturalmente,
Vem isto a propósito de uma tendência mais próximas da realidade americana),
que, nos EUA, era visível antes do verão mas também responsáveis da hotelaria
e que poucos foram capazes de prever: a e da restauração, diziam perder mão de
The Great Resignation ou The Big Quit obra. A questão é saber como podem os
(há expressões para todos os gostos, mas, trabalhadores, em países com economias
em português, é qualquer coisa como A frágeis e pouco competitivas, dar-se ao
Grande Demissão). Milhares de pessoas, luxo dessa liberdade. Um estudo divul-
sobretudo no setor do retalho, com tra- gado esta semana, da autoria de Eugé-
balhos pouco qualificados e salários mais nio Rosa, consultor da CGTP, aponta
baixos, estão a despedir-se. Apesar de para um aumento de 96 euros do salário
o emprego se situar a milhas dos níveis médio português (1 048 euros), enquan-
pré-pandemia, o fenómeno acentua- to o salário mínimo nacional subirá 200
-se ao ponto de já haver especialistas a euros (705 euros). A “distorção salarial”,
considerar que a cultura do workism – como lhe chama o economista, significa
que, durante décadas, não só alimentou a que o salário mínimo nacional representa
maior economia do mundo mas também uma proporção cada vez maior do salário
um certo modo de vida americano – está médio: “Este facto está a transformar
a ser posta em causa. Na sua coluna de Portugal num país de salários mínimos.”
opinião, publicada no The New York Muitos desses trabalhadores são jovens
Times, Paul Krugman pergunta: “Os tra- qualificados, outros serão os “essen-
balhadores estão claramente a sentir-se ciais” dos lockdowns – alguém ainda se
fortalecidos. Porquê?” No mesmo artigo, lembra deles? E isto pode ser não o nosso
o Nobel da Economia tenta encontrar “grande repensar” mas o nosso grande
explicações, elenca algumas variáveis e, falhanço coletivo.
*Subdiretora
sbluis@visao.pt

18 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


351 mil
NÚMERO FRASE

“O que está em jogo é estratégico para


a direita radical em Portugal: capturar
o partido que tem os votos, o PSD”
Número de José Pacheco Pereira, historiador e antigo dirigente
social-democrata, na sua coluna semanal do Público,
pessoas sobre a disputa pela liderança do PSD e as próximas
vacinadas com eleições antecipadas
a dose de reforço
contra a Covid-19
Iniciado há um mês, o ARTES
processo de vacinação
com a terceira dose Serralves na
contra a Covid-19 e,
simultaneamente,
gestão do MAAT
contra a gripe está a O Museu de Arte,
decorrer a um ritmo Arquitetura e Tecnologia
lento. Até dezembro, (MAAT) e a Central Tejo vão
1,5 milhões de utentes passar a ser geridos pela
estarão elegíveis para Fundação de Serralves,
a dose de reforço numa parceria anunciada,
(maiores de 65 anos e em comunicado, na
menores com condições semana passada e que
de imunossupressão). está a suscitar dúvidas no
Segundo a Direção-geral meio artístico. A Fundação
da Saúde, está prevista EDP diz que a instituição
a vacinação de 350 mil CINEMA portuense vai passar
para os próximos dias. a assumir a “gestão e
O mundo pelos olhos dela programação” do seu
Coincidindo com o encerramento da COP26, a conferência Campus Cultural, na frente
sobre alterações climáticas, em Glasgow, estreia-se nesta ribeirinha de Belém, em
SAÚDE Lisboa, que abrange uma
semana nos cinemas I Am Greta, de Nathan Grossman. O
área de 38 mil metros
A próxima documentário acompanha o percurso de Greta Thunberg,
desde as primeiras greves escolares, em agosto de 2018, quadrados e engloba a
corrida até setembro de 2019, quando a ativista atravessou o central termoelétrica e o
MAAT. Para a Fundação
Atlântico num veleiro para discursar nas Nações Unidas
A Agência Europeia do e foi eleita “figura do ano” pela revista TIME. O realizador de Serralves, a parceria
Medicamento (EMA, na de I Am Greta, que também explora a questão do representa “um marco no
sigla inglesa) vai acelerar mediatismo, diz que queria pôr as pessoas a ver o mundo seu historial de divulgação
o processo de avaliação da perspetiva da jovem sueca. da cultura contemporânea”.
do antiviral contra a De acordo com uma notícia
Covid-19 proposto pela do jornal Público, João
farmacêutica MSD/ Pinharanda, crítico de arte e
IGREJA
Merck, mas recomenda até há pouco adido cultural
que, mesmo antes da
aprovação final, os Esta-
Apurar a verdade histórica da Embaixada de Portugal
em França, assumirá a
dos-membros disponibi- Um grupo de 241 católicos se nomes como a escritora direção artística do MAAT.
lizem já o molnupiravir fez chegar uma carta à Alice Vieira, o magistrado do
para uso de emergência. Conferência Episcopal Ministério Público Rui Cardoso
Entretanto, o Reino Unido Portuguesa (CEP), e o jornalista Jorge Wemans.
emitiu uma autorização na qual solicita uma D. José Ornelas, presidente
de comercialização do investigação nacional da CEP, na abertura dos
medicamento. Depois do – “rigorosa, abrangente trabalhos da Assembleia
anúncio da EMA, a Pfizer e verdadeiramente Plenária, que também tem
fez saber que o Paxlovid, independente” – sobre os como objetivo a criação de
o seu antiviral contra crimes de abusos sexuais um órgão que recolha as
a Covid-19, também é na Igreja, com o arco denúncias, prometeu que
eficaz na redução das temporal de 50 anos. Entre a Igreja fará de tudo “para
hospitalizações e mortes. os subscritores, encontram- apurar a verdade histórica”.

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 19


HOLOFOTE

Xavi Hernández Bom filho a casa torna


Cérebro Crise
Se o super- PARA ESTANCAR Afastado dos
-Barcelona das
primeiras duas A CRISE, O BARCELONA títulos nacionais há
duas temporadas
décadas do século
XXI não pode
FOI BUSCAR UM e das conquistas
internacionais
ser dissociado TREINADOR QUE desde 2015, o

AJUDOU A FORMAR
da presença do FC Barcelona
Campeão inigualável Lionel mergulhou numa Esperança
É considerado
um dos melhores
Messi, a verdade
é que o sucesso COMO JOGADOR E CUJA crise profunda,
sobretudo a nível
Consumada a
rescisão com
jogadores de também não pode
ser compreendido CARREIRA BRILHANTE financeiro, com
os desmandos
Koeman, a aposta

SE CONFUNDE COM
futebol de todos do presidente,
os tempos, tendo sem se perceber de sucessivas Juan Laporta,
p
a importância de direções a terem
sido eleito, em
m
2020, pelos leitores Xavi, o cérebro de A GLÓRIA RECENTE como epílogo a
para tentar salvar
a época foi a de ir
DO CLUBE
da revista France
ance toda a manobra saída de Lionel buscar a antiga joia
Football, para ao coletiva Messi do clube, no da coroa.
melhor onze da (o famoso tiki taka) início da presente A decisão enche
da máquina de MANUEL BARROS MOURA temporada. Por
história. Comma de esperança
camisola do FC futebol em que não querer gastar os adeptos e de
Barcelona foii oito se transformaram €12 milhões para orgulho o próprio
vezes campeão eão os blaugrana. rescindir contrato Xavi, que, durante
espanhol e quatro
uatro O mesmo com o holandês a apresentação
vezes vencedordor aconteceu na Ronald Koeman, oficial, na segunda-
da Liga dos melhor geração a direção do -feira, 8, perante
Campeões. Ao de sempre clube deixou que milhares de
serviço de Espanha,
spanha, do futebol se arrastasse adeptos, garantiu
foi bicampeão o da espanhol, uma situação que aquele era
Europa e campeão
mpeão entre pantanosa, na “um sonho tornado
do mundo. 2008 e qual era evidente realidade”.
O currículo de e Xavi 2012, a incapacidade E deixou um aviso:
Hernández Creus, anos do treinador para “O Barcelona não
catalão nascidoido em que, fazer a equipa se pode permitir
em Terrassa com Xavi funcionar. empatar ou
há 41 anos, é na batuta, O resultado perder.” Música
impressionantente e Espanha está à vista no para os ouvidos
confunde-se com venceu dois modestíssimo dos seus adeptos,
um dos melhores
hores campeonatos 9º lugar que o mas uma grande
períodos de da Europa e um FC Barcelona ameaça para o
sempre do clube
lube campeonato do ocupa Benfica, cujas
que representou,
ntou, mundo. Só nunca atualmente esperanças de
ininterruptamente,
mente, foi eleito “melhor na Liga continuar na Liga
entre os 11 e os 35 do mundo” porque espanhola. dos Campeões
anos. Agora, depois a sua era foi desta época
de quatro anos os também a passam por ir
a jogar e doiss a de Messi e à Cidade Condal,
treinar o Al Sadd do Ronaldo... no próximo dia 23,
Qatar, o bom filho vencer os agora
regressa a casa,
asa, comandados de
para orientarr a Xavi.
equipa do coração,
ração,
atualmente
mergulhada numa
crise profunda.
da.

20 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


INBOX

M O D É S T I A À PA R T E
Espero
Eu e os meus
jogadores não
um jovem
fomos atrás candidato,
dessa conversa
da treta sem as
JORGE JESUS
A goleada (6-1) ao Braga serviu
para o treinador do Benfica
mostrar que as notícias sobre
heranças
um alegado mau ambiente no
balneário eram “invenções” negativas
que nos
trouxeram
este monstro
FERNANDA MONTENEGRO
A atriz, que, aos 92 anos, foi eleita para
integrar a Academia Brasileira de Letras,
é acérrima defensora de que os Presidentes
da República do seu país passem a cumprir
apenas um mandato: “O grande ganho
É preciso não político que poderíamos ter no Brasil
confundir cultura com seria o fim da reeleição”

entretenimento
DANIEL BLAUFUKS FRASE DA SEMANA
O fotógrafo e realizador
português acaba de lançar o livro
Lisboa Cliché, com imagens da
capital, captadas no final dos Se sabes que
anos 1980
podes morrer
O Chega reequilibra
e não te vacinas,
e obriga os partidos C H O Q U E F R O N TA L és irracional
à direita do PS a ou estúpido
pensar duas vezes ANTÓNIO DAMÁSIO
JAIME NOGUEIRA PINTO O neurocientista português, professor na
O politólogo e historiador Universidade do Sul da Califórnia, dedica-
defende que eleitores de direita -se ao estudo do cérebro, refletindo sobre a
já não têm de se resignar a votar consciência, a racionalidade e a inteligência
na direita tradicional ou a ficar
em casa

Isto foi caótico, Eu não tenho medo Há 30 anos que faz


a pandemia é um de eleições, nunca campanha contra
grande palco para tive. Muito menos a abertura dos
o show off tenho de cadernos cadernos eleitorais.
JOHN IOANNIDIS
eleitorais alargados Agora, por milagre,
O professor na Universidade de RUI RIO defende a abertura
Medicina de Stanford alega que Presidente do PSD a meio do processo
a pandemia foi transformada propôs que todos os
num grande palco para militantes, mesmo PAULO RANGEL
a autopromoção e regista sem as quotas pagas, Candidato à liderança
que a Covid-19 não foi tão pudessem votar nas viu a proposta do
severa como se julgava diretas do partido líder ser derrotada no
conselho nacional

Fontes: Folha de São Paulo, El País, A Bola, Diário de Notícias da Madeira, Público, Expresso
22 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021
ALMANAQUE

NÚMEROS DA SEMANA

€210 421
O vestido usado pela cantora
britânica Amy Winehouse no
último concerto foi vendido
num leilão na Califórnia, nos
Estados Unidos, por 243 200
dólares (mais de 210 mil
euros), 16 vezes mais do
que o valor estimado.

€92,8 milhões
Quem são estas múmias, afinal?
Uma recente análise de ADN aponta uma origem diferente
A Autoridade da Concorrência
(AdC) aplicou uma coima total
superior a 92,8 milhões de
euros à Super Bock, ao Modelo
Continente, ao Pingo Doce,
daquela que se acreditava ser a das bem conservadas ao Auchan, ao Intermarché
e bem vestidas múmias de Tarim, encontradas na China e a duas pessoas singulares
por um esquema de fixação
Durante dezenas de anos, discutiu- que se tratava de agricultores vindos de preços. A AdC considera
se a origem das chamadas múmias das montanhas da Ásia central ou que “as empresas
de Tarim, encontradas no que hoje é dos oásis do atual Afeganistão. participantes asseguravam
o deserto de Taklamakan, no Oeste Agora, uma equipa internacional, o alinhamento do Preço
da China, espantosamente bem após análises ao ADN de 13 múmias, de Venda ao Público nos
conservadas, altas e de aparência pensa que resolveu o enigma. Num seus supermercados, numa
ocidental, com roupas de cores artigo publicado na revista Nature, conspiração equivalente
intensas e sofisticados adornos. Três a um cartel”.
a antropóloga Christina Warinner,
grandes hipóteses eram discutidas. da Universidade Harvard, defende
Uma delas afirma que a sofisticada que as surpreendentes múmias são,
cultura Xiaohe vem de pastores
imigrantes do Sul da Sibéria, por
sua vez ligados aos yamnaya, os
afinal, de uma população autóctone,
sem grandes misturas, que ali
existiram há mais de nove mil anos.
37
O tenista sérvio Novak
nómadas que abandonaram as estepes A bacia do rio Tarim está situada Djokovic, número um mundial,
e cujos descendentes acabaram por num trecho da Rota da Seda, uma tornou-se, no domingo, 7,
substituir quase todos os humanos ancestral encruzilhada de culturas – o recordista de títulos em
da Península Ibérica, há 4 500 anos. e isso ajudaria a explicar o evidente torneios da categoria Masters
As outras duas teorias defendem cosmopolitismo deste povo. 1000, ao vencer em Paris,
depois de derrotar na final
o russo Daniil Medvedev,
segundo do ranking. Com este
SONDA JUNO resultado, Djokovic passou
a somar 37 vitórias neste tipo
Uma só tempestade de Júpiter conseguiria engolir a Terra de torneios.

O maior planeta do Sistema Solar tem uma atmosfera


onde abundam grandes tempestades, incluindo a Grande
Mancha Vermelha (GMV) que, com aproximadamente
16 mil quilómetros de diâmetro e faixas de ventos em
rotação, seria capaz de engolir a Terra. A partir de dados
12
recolhidos pela sonda norte-americana Juno, em órbita O empresário Manuel
de Júpiter desde 2016, cientistas caracterizaram os Godinho apresentou-se
vórtices atmosféricos e concluíram que a GMV e outras voluntariamente, na terça-
duas tempestades se estendem abaixo da altitude em que -feira, 9, na cadeia de Vale
se espera que água e amónio se condensem. Tal sugere a do Sousa para cumprir a
presença de processos dinâmicos de pequena escala, como pena de 12 anos de prisão a
precipitação e correntes descendentes, em níveis muito que foi condenado no âmbito
mais profundos do que o esperado anteriormente. do processo Face Oculta.

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 23


TRANSIÇÕES

MORTES
O pianista brasileiro Nelson
Freire, um dos maiores
nomes da música clássica
mundial, morreu, no
passado dia 1, em sua casa,
no Rio de Janeiro. Tinha
77 anos e as causas da
morte não foram reveladas.
Freire começou a tocar
piano com apenas 3 anos,
iniciando uma carreira que
o levaria a ser considerado
um dos maiores artistas
do mundo. Há já mais de
50 anos, a revista Time
dizia tratar-se de “um dos
maiores pianistas desta ou
de qualquer geração”.

O ator norte-americano
Dean Stockwell morreu
esta segunda-feira, 8,
durante a noite em casa,
de causas naturais. Tinha
85 anos. Numa longa LÚCIA MONIZ
carreira de mais de 70 anos,
Stockwell desempenhou
papéis relevantes, dos quais
se destacam a série de
ficção científica Quantum
O “feito incrível” de Lúcia
A protagonista do filme Listen acaba de ser distinguida
Leap e os filmes Dune
e Blue Velvet de David na 29ª edição do Raindance Film Festival, em Londres,
Lynch. Presenças em Paris, onde foi vencedora na categoria de Melhor Performance
Texas, O Caça-Polícias
II e Battlestar Galactica Na passada sexta-feira, dia 5, o júri do Lúcia” merece respeito por este “feito
marcaram ainda um festival de cinema independente mais incrível”, não apenas por competir ao
percurso que conta com importante do Reino Unido premiou o lado de portentos como o oscarizado
uma nomeação aos Oscars, desempenho da atriz portuguesa pelo Michael Caine, mas sobretudo por
pela comédia Viúva... Mas
“poderoso retrato” de uma mãe que “levar, sempre que pode, Portugal
Não Muito de Jonathan
perde a guarda dos filhos por alegados com ela” e por ser “uma pessoa
Demme, e duas distinções
de melhor ator no Festival
maus-tratos e que luta por provar, junto impressionante a todos os níveis”. E
de Cannes por O Génio do dos serviços sociais e do sistema judicial deixou um recado às televisões: “Uma
Mal, de Richard Fleischer, e britânico, que as suspeitas não têm frase a fechar um jornal em qualquer
Longa Viagem para a Noite, qualquer fundamento. canal que fosse só vos ficava bem! Uma
de Sidney Lumet. Ao saber que tinha conquistado mais frase sobre ela, meus senhores.”
um prémio, Lúcia Moniz expressou A obra já tinha arrebatado quatro
satisfação nas redes sociais por ver prémios no Festival de Veneza no ano
O cantor britânico Terence reconhecido o seu trabalho no Reino passado, seguindo-se, em setembro,
Wilson, mais conhecido pelo Unido e dirigiu uma mensagem de mais cinco, atribuídos pela Academia
seu nome artístico, Astro, gratidão à realizadora Ana Rocha de Portuguesa de Cinema. Com uma longa
e pela longa carreira que Sousa: “Estendeu-me a mão para me e diversificada carreira, em televisão
manteve com os UB40, juntar a esta missão. Agarrei-a e não a e no cinema, mas também no teatro
banda da qual foi um dos largo mais.” e na música, Lúcia Moniz ascendeu a
fundadores, morreu no Inspirada em acontecimentos reais, um novo patamar com a participação
sábado, 6, em Londres, a longa-metragem de ficção é uma em Listen, que lhe valeu, além deste
aos 64 anos, vítima de coprodução luso-britânica. As filmagens prémio no Reino Unido, a distinção
uma “curta doença”, como tiveram lugar nos arredores de de Melhor Atriz no XXVI Caminhos
anunciou a sua atual banda, Londres e o elenco contou com atores do Cinema Português e nos Prémios
os UB40 featuring Ali
portugueses e ingleses. Emocionada, Cinetendinha, em 2020 e, já este ano,
Campbell and Astro.
Ana Rocha de Sousa fez saber, na sua nos Prémios CinEuphoria, Sophia e
página do Instagram, que “a nossa Globo de Ouro. C.S.

24 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


PRÓXIMOS CAPÍTULOS

DIPLOMA PERISCÓPIO

Eutanásia regressa a Belém VACINAÇÃO


Saudades da farda
Não podia ter arrancado
de forma mais desor-
os emails que foram
apagados do correio
eletrónico do município
– esses já eram.
O Parlamento aprovou novo Parlamento ganizada a toma da
decreto sobre a eutanásia, CANDIDATURA
aprovou terceira dose da vacina
colocando a decisão do eutanásia. contra a Covid-19, no Curso para
Belém tem a regime de casa aberta, conduzir o PSD
processo (novamente) nas mãos palavra para pessoas com mais Tal como em 2011, o
de Marcelo Rebelo de Sousa “ilustre” desconhecido
de 80 anos. Idosos, com
falta de mobilidade, à Nuno Miguel Henriques
espera quatro e cinco volta a candidatar-se à
horas, em pé e com liderança do PSD. Na
frio, foram o retrato altura, o especialista
que contrastou com em protocolo e “diseur”
a empreitada levada alegou querer “libertar”
a cabo por Gouveia e Passos da responsabi-
Melo. Foi então ouvir o lidade partidária, para
lamento de octogená- se dedicar à gestão do
rios e familiares, por País. Agora, diz repre-
ser a diretora-geral da sentar a terceira via.
Saúde, Graça Freitas, a Além de um negócio
gerir o processo e não de alojamento local e
o vice-almirante. Mas é do resultado desonroso
melhor tirar daí a ideia: em Alenquer nas autár-
será difícil o Governo, quicas, o militante do
que quer ter as pessoas PSD, cuja notoriedade
com mais de 65 anos se resume pratica-
com a terceira dose até mente à participação
ao Natal, pôr o oficial num anúncio antigo a
general à frente da um sumo de laranja (o
DGS; muito mais do destino já a dar sinais,
O decreto alterado sobre a eutanásia aprovado, na passada que foi pô-lo à frente então), é dono de uma
sexta-feira, 5, pela Assembleia da República – com 138 votos da task force, quando empresa extinta nas
a favor, 84 contra e cinco abstenções –, volta à secretária de o processo começou a Finanças há quase dez
Marcelo Rebelo de Sousa, com o Presidente da República a descambar. anos, mas com a qual
manter em aberto os três cenários possíveis para o desfecho oferece workshops
do processo: o veto presidencial, o envio para o Tribunal MOITA como o “Curso intensivo
Constitucional ou a promulgação do diploma. “Tenho dúvidas Resmas de de mordomo e motoris-
de constitucionalidade, peço ao Tribunal Constitucional. gigabytes ta pessoal” – com
Tenho dúvidas políticas, exerço o direito de veto. Não Na Moita, talvez a módulos como
tenho dúvidas nem jurídicas nem políticas, promulgo”, digerir a perda daquele “condução”
afirmou. Rebelo de Sousa já tinha enviado, em janeiro, bastião na Margem Sul e “viagens,
para o Tribunal Constitucional, um primeiro documento para o PS, o PCP terá alojamen-
aprovado pelos deputados, motivado por dúvidas sobre a sua sofrido horrores para tos, flores e
arquivar as memórias presentes”. Se
constitucionalidade, a que os juízes do Palácio Ratton viriam a
dos 45 anos de gestão. há 30 anos, no
dar razão (por uma maioria de sete votos contra cinco). O decreto
Tais doses de gigabytes programa “de namoro”
voltou agora a ser aprovado – com os votos favoráveis da maioria da SIC Encontros
terão sido a razão para
da bancada do PS, 13 deputados do PSD, Bloco, PAN, Os Verdes, imediatos, Henriques
o ex-presidente da CDU,
Iniciativa Liberal e as duas deputadas não Rui Garcia, e a ex-ve- teve sorte e foi o par
inscritas; contra da maioria da bancada reação levarem para escolhido entre os
do PSD (62 votos), sete deputados do PS casa os computadores três candidatos, desta
(incluindo o secretário-geral adjunto, José
ESPERO PARA Luís Carneiro), PCP, CDS-PP e Chega; e a do executivo e da pre-
sidência. Insensível foi
vez, se não conseguir
recolher as 1 500 assi-
VER ESSES abstenção de dois deputados do PS e três Carlos Albino, o autarca naturas de militantes
do PSD –, depois de o grupo de trabalho para ser candidato nas
DIPLOMAS constituído por parlamentares do PS, BE, socialista que ganhou
as eleições, que pediu diretas, pode sempre
E DEPOIS PAN, PEV e IL ter procurado clarificar a devolução dos equi- dar uma formação a
Rio e a Rangel sobre
conceitos como eutanásia, morte pamentos. Os autarcas
PRONUNCIO-ME medicamente assistida, doença grave ou comunistas só não como conduzir o PSD
SOBRE ELES incurável, lesão definitiva ou de gravidade terão devolvido todos ao poder. N.M.R.
MARCELO REBELO extrema, sofrimento, médico orientador
DE SOUSA ou médico especialista. J.A.S.

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 25


OPINIÃO

Foi você que pediu


um bloco central?
P O R B E R N A R D I N O S O A R E S / Jurista – PCP

B
astou o Governo ter optado por deixar cair mesmo era o resultado de as próximas eleições ser
o Orçamento do Estado (OE) – sabendo uma maioria absoluta que desse rédea solta ao PS,
que com isso o Presidente da República para fazer o que fez quando não teve travão à es-
convocaria eleições –, para que o coro afi- querda: uma política de direita. Como a dita maioria
nado dos que nunca se conformaram com a absoluta não é previsível (e já diz o povo: quem não
solução política dos últimos anos alinhasse tem cão caça com gato), ei-los a lançar em todas as
discurso. Rapidamente surgiram as recau- direções a palavra de ordem do bloco central.
chutadas preocupações com a estabilidade A forma concreta pode variar; pode ser formal
política (como se a atual solução não tivesse ou informal, com ou sem participação no Gover-
durado seis anos!) ou com a governabilida- no, assumida às claras ou combinada em segredo,
de do País (em sentido contrário à governabilidade da ou simplesmente com a aprovação dos Orçamentos
vida dos portugueses, cada vez mais difícil) a exigir e outra legislação estruturante, sempre convenien-
ou maioria absoluta ou um bloco central. temente salpicada com este ou aquele episódio de
Há um certo desespero nos setores que, há várias encarniçada divergência para manter as aparências.
décadas, dominam a vida nacional, Já vimos o filme. Marcelo deu
seja política seja económica. Desde o próprio exemplo, lembrando
2015, foi abalada a paz duradoura Os últimos seis anos como assegurou a viabilização de
desses grandes interesses econó- permitiram acabar dois Orçamentos de governos PS.
micos e iniciada uma nova fase, Obteve, aliás, no mesmo período
em que forças políticas à esquer- com dois embustes da o acordo deste partido para, em
da passaram a condicionar e a política portuguesa: 1997, realizar uma muito negativa
influenciar algumas importantes
decisões. Foi um período em que
o de que as eleições revisão constitucional e aplaudiu
as várias privatizações aprovadas
se conseguiu não só a travagem de legislativas são para pelo governo do Partido Socia-
medidas profundamente nega- escolher um primeiro- lista.
tivas (por exemplo, novas pri- Os últimos seis anos permi-
vatizações) como a reposição de -ministro e o de que há tiram acabar com dois embustes
direitos retirados no período da partidos aos quais é da política portuguesa: o de que
Troika e alguns avanços bastante vedada a possibilidade as eleições legislativas são para
importantes, em particular para escolher um primeiro-ministro,
trabalhadores e pensionistas, tra- de influenciar porque ficou claro que o que
duzindo-se, aliás, num período de a governação conta é a correlação de forças no
crescimento económico. Parlamento (e a possibilidade de
É certo que isso não significou entendimento entre as mesmas),
a mudança efetiva das orientações políticas estrutu- e o de que há partidos com representação parlamen-
rantes, facto que foi estreitando o espaço para avan- tar aos quais é vedada a possibilidade de influenciar a
ços mais significativos, por dependerem de opções governação.
que o Governo de António Costa nunca quis equa- É com esse património democrático reforçado que
cionar. Os parcos avanços admitidos nas negociações vão ocorrer as eleições a 30 de janeiro, cujos resul-
para o Orçamento de 2022, em particular com o PCP, tados vão determinar, em boa parte, as decisões fu-
contrastaram com a inamovibilidade em questões turas, a partir da correlação de forças na Assembleia
mais substanciais para a vida das pessoas, que torna- da República. O resto vai depender em particular do
vam os ganhos pouco significativos. Para o PS, trata- posicionamento do Partido Socialista; se vai voltar
va-se apenas de mudar alguma coisa para que ficasse ao regaço da direita ou se admite rever alguns dos
tudo na mesma (aliás, pior). seus dogmas na política económica, social, laboral e
Convocadas as eleições, os ressabiados com a cha- orçamental.
mada Geringonça desdobram-se agora em esforços Parafraseando uma frase que é já (e justamente)
para tentar garantir que em caso algum se repetirão célebre: o PS só não faz uma política de esquerda se
acordos como os dos últimos seis anos. O melhor não quiser. Até agora não quis! visao@visao.pt

26 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


IMAGENS

A VIDA POR
ÁGUA ABAIXO...
As alterações climáticas e o aquecimento global
transformam fenómenos naturais em catástrofes cada vez
mais frequentes, agudas e devastadoras. A subida do nível
das águas é assustadora e põe em risco a vida de milhões

GETTY IMAGES

JACARTA, INDONÉSIA
A zona do mercado de Pelabuhan Kali Adem, na capital
indonésia, ficou inundada, na terça-feira, 9, apesar de o
pico da estação chuvosa e com potencial de enchentes
estar previsto apenas para janeiro e fevereiro de 2022.

BANGUECOQUE, TAILÂNDIA
Uma criança aproveita para brincar durante as cheias
que, na segunda-feira, 8, inundaram as zonas baixas
do bairro de Bang Phlat, em Banguecoque, banhadas
pelo rio Chao Phraya, que transbordou.

COLOMBO, SRI LANKA


O bairro pobre de Biyagama, nos arredores
da capital do Sri Lanka, foi uma vez mais
afetado, na terça-feira, 9, por inundações,
típicas da época das monções, mas cada vez
mais frequentes e devastadoras.

28 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


CHENNAI, ÍNDIA
As fortes chuvas, típicas das monções, inundaram,
na segunda-feira, 8, as ruas de Chennai, na baía de Bengala.

BANG PHLAT,
TAILÂNDIA
Sempre que a chuva
é mais intensa, os
habitantes desta
localidade dos arredores
de Banguecoque sabem
que o rio vai galgar as
margens, inundar ruas
e casas, obrigando a
operações desesperadas
para salvar os bens de
quem lá vive. Segunda-
-feira que passou foi
apenas mais um desses
dias, cada vez mais
frequente.

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 29


IMAGENS

…E A BUSCA
DE SOLUÇÕES
Os líderes mundiais, reunidos na COP26, procuram caminhos
para travar o rumo do planeta e evitar catástrofes como as
que vimos na página anterior. A dúvida é se conseguirão
chegar aos consensos necessários

GETTY IMAGES

GLASGOW, ESCÓCIA
Até ao próximo fim de
semana, continuarão a
decorrer os trabalhos da
COP26, Conferência das
Nações Unidas sobre as
Mudanças Climáticas.
É cada vez mais diminuta
a esperança de que,
deste encontro, saiam
compromissos credíveis
e ambiciosos para travar
o aquecimento global, o
que tem levado milhares
de pessoas a protestar em
Glasgow e milhões em todo o
mundo. Até o ex-Presidente
dos EUA, Barack Obama,
que, na segunda-feira, 8,
discursou na cimeira, não
escondeu a frustração.
Mostrou-se desiludido com
“o perigoso sentido de falta
de urgência” das principais
potências mundiais e
falou diretamente para os
mais jovens: “Quero que
continuem zangados!”

30 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 31
O PODER DOS
PRESIDENTES
Como exerceram os cinco Presidentes eleitos os seus poderes: de que
forma geriram os momentos de maior tensão com governos, primeiros-
-ministros e líderes da oposição. Dos gravadores usados por Balsemão
e Eanes, nas audiências, à primeira geringonça, recusada por Soares.
Agora, com a dissolução do Parlamento, calha a vez a Marcelo...
FILIPE LUÍS

António Costa e Marcelo


Rebelo de Sousa O caso
da nomeação de uma
administração da Caixa Geral
de Depósitos e os incêndios
de 2017 foram os momentos
mais tensos de uma pacífica
coabitação
N Nos “idos de março” de 1987, Mário Soares recebe, em
Belém, um homem alto e magro, vagamente sorumbá-
tico, engenheiro-agrónomo e neófito político, líder do
terceiro partido com maior representação parlamentar.
O dirigente do Partido Renovador Democrático (PRD),
Hermínio Martinho, vem confidenciar ao Presidente
da República (PR) que a sua bancada se prepara para
submeter, à votação na Assembleia da República, uma
moção de censura ao governo minoritário do PSD,
liderado, desde 1985, por Aníbal Cavaco Silva. Para
derrubar o governo, o PRD conta com toda a esquerda
coligada. Mário Soares toma boa nota da informação,
por enquanto reservada. Mas, por portas travessas,
avisa o líder do PS, Vítor Constâncio, do que está a ser
preparado e move a sua influência para convencer o
seu sucessor na liderança dos socialistas a não ouvir
“o canto de sereia” do PRD. Afinal, os renovadores
vieram ocupar o espaço do PS, arrebatando-lhe, nas
eleições de 1985, metade do eleitorado. Para que vol-
tem para onde vieram, é essencial que nunca cheguem
ao governo, muito menos pela mão dos socialistas...
Logo a seguir, a 24 de março, o PR parte para o Brasil,
numa visita de Estado.
A 3 de abril, em plenos trópicos, é informado de
que a moção de censura foi aprovada, no Parlamento,
à custa dos votos favoráveis do PS de Constâncio. Ví-
tor Constâncio, o tal líder que Soares compara a uma
espécie de “galinha que não voa”. Furioso, descarrega
a frustração nos assessores: “Porquê? Porque é que o
gajo [Constâncio] fez essa asneira?!”
Intuitivo e perspicaz, Mário Soares tem a consciên-
cia da crescente popularidade do governo de Cavaco,
inundado por consecutivos jorros de dinheiro fresco
da CEE. É verdade que os frutos da adesão europeia,
uma “obra” dos governos liderados por si, ele que a
pedira e a assinara, a 12 de junho de 1985, estão todos
a ser colhidos por Cavaco. O mesmo Cavaco que, ao
romper, em 1985, a coligação de Bloco Central entre
o PS e o PSD, tinha chegado a pôr em causa a data da
assinatura do tratado! Mas agora é tarde para reverter
a História. Soares sabe que os portugueses condenam
a decisão do Parlamento e adivinha que o principal
culpado, o PRD, será punido, nas urnas. Tão depressa
como apareceu, o partido inspirado pelo seu antecessor
em Belém, Ramalho Eanes, pode, agora, desaparecer. A
sua decisão é inabalável: convocar eleições antecipadas.

MARCELO E O MOMENTO PRÉ-1986


Saltemos, no tempo, até novembro de 2021. Com as
eleições marcadas para 30 de janeiro, Marcelo Re-
belo de Sousa confirma a sua decisão de dissolver
a Assembleia da República. Antes dele, e depois da
JOSÉ CARLOS CARVALHO

revisão constitucional de 1982, promulgada a 24 de


setembro desse ano, todos os Presidentes o fizeram:
Ramalho Eanes, em 1983 e em 1985; Mário Soares, em
1987 (como vimos); Jorge Sampaio, em 2004, e Cavaco
Silva, em 2011. Mas só em dois desses cinco momentos

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 33


a convocação de eleições antecipadas
teve, diretamente, o dedo do Presidente:
em 2004, o governo de Pedro Santana
Lopes não tinha caído na Assembleia da
República e, em 1987, embora o execu-
tivo de Cavaco Silva tivesse sido deitado
a baixo por uma moção de censura, foi
oferecida ao Presidente, quase chave
na mão, uma “geringonça” alternativa
que garantiria a maioria parlamentar,
no quadro do mesmo Parlamento – e
Soares recusou-a.
Com efeito, em 1987, também cien-
tes de que teriam muito a perder com
eleições antecipadas, PS e PRD tinham
apresentado a Mário Soares o projeto
de uma coligação que, estribada num
acordo com o PCP, garantiria um go-
verno de esquerda, com maioria par-
lamentar. Numa jogada de alto risco, e
apesar de saber que, no referido plano,
o líder do PS seria o novo primeiro-
-ministro, o Presidente recusou essa
geringonça avant la lettre. Fê-lo por
quatro razões fundamentais. Razão nº
1: aceitá-la seria insuflar o PRD, cau-
cionando essa concorrência ao PS, no
campo do centro-esquerda. Razão nº
2: perante a incompatibilidade do PS
com o PCP, forjada no duro combate
do PREC, era inconcebível pensar na
“queda do muro”, quando o País aca-
RAMALHO EANES
bava de aderir à Comunidade Econó-
mica Europeia. Razão nº 3: o PR julgava
interpretar corretamente o sentimento
nacional, favorável ao governo do PSD,
Os três governos
que lhe daria razão nas urnas. Razão nº
4: last but not least, o Presidente co- de iniciativa presidencial
meçava a trabalhar na reeleição, desta
Antes da revisão constitucional de 1982, o Presidente
vez com o apoio – ou sem a hostilidade
podia demitir o primeiro-ministro sem ter a
– dos sociais-democratas, o que veio
necessidade de dissolver a Assembleia. Foi o que
a acontecer. Eanes fez com Mário Soares, em 1978. E promoveu
A forma como Mário Soares enten- três governos, antes de eleições...
deu, então, os poderes do Presidente
viria a reconfigurar toda a lógica da
política portuguesa, com o País a ansiar
por soluções estáveis, as quais o mé-
todo eleitoral de Hondt nem sempre
facilitaria.
Essa decisão mudou totalmente o
chip da democracia portuguesa que
contava, então, com escassos 13 anos. ALFREDO NOBRE CARLOS MOTA PINTO MARIA DE LOURDES
Há um “antes” das maiorias de Cavaco DA COSTA Professor de Direito PINTASSILGO
Engenheiro mecânico Engenheira química
Silva e um “depois”. Antes, nenhuma À segunda, Eanes viu
legislatura tinha chegado ao fim. De- Apesar de contar com passar um governo de Esta católica progressis-
pois, o País conheceu cinco legislaturas figuras próximas dos sua iniciativa. Desta ta formou um governo
integralmente cumpridas, em maioria dois principais partidos, vez, tinha havido acordo com “contrato a termo
absoluta ou com governos de maioria com um piscar de olhos com os partidos, mas, certo”. Anunciou “cem
relativa: Cavaco Silva (1987-1991 e 1991- também ao PCP, o seu ao contrário do que tem medidas para cem dias”,
1999), António Guterres (1995-1999), governo de tecnocratas sido dito, houve um o prazo de validade do
José Sócrates (2005-2009), Pedro não convenceu os orçamento chumbado, executivo, acordado en-
Passos Coelho (2011-2015) e António parlamentares: o antes de 2021: o de tre Presidente e Assem-
Costa (2015-2019). programa foi chumbado Mota Pinto. E ele só bleia. Missão: preparar o
Talvez pensando no que poderia na Assembleia da resistiu mais três País para as intercalares
acontecer, caso o Orçamento do Estado República. meses... de 1979.

34 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


intercalares, em 1979, que era o modelo mitir o primeiro-ministro, que respon-
da altura, obrigando à repetição do ato, de perante o Parlamento. Para se livrar
no prazo normal, em 1980). Também, de um governo, o Presidente passa a ter
nessa altura, se registou uma mudan- de dissolver a Assembleia da República
ça drástica com a vitória, por maioria e só mediante determinadas condições
absoluta, da AD (coligação PSD-CDS- preestabelecidas pela Lei fundamental.
-PPM). Antes disso, viu-se a braços com A famosa “bomba atómica”. Ora, como
a crise política da queda do governo do é sabido, uma bomba atómica é dissua-
PS, em 1978, e com a saída do CDS do sora – mas não se usa. Por isso é que, a
executivo socialista que este apoiara, partir de agora, o PR não pode demitir
no mesmo ano e sempre no quadro da um primeiro-ministro e arranjar outro,
mesma legislatura. em governos de iniciativa presidencial.
O episódio da demissão de Mário E é por isso que os Presidentes passam
Soares, depois do malogro do governo a ter de ser muito mais parcimoniosos
de acordo com os centristas, marca a no recurso a tal medida.
primeira ferida profunda entre o líder É então que, agastado com a di-
socialista e o general de Belém. E mar- minuição de poderes, Eanes faz de-
ca, também, o primeiro grande gesto les um “uso informal”, começando a
Ramalho Eanes interventivo de Eanes. Recusando a inspirar, a partir de Belém, a criação
e Pinto Balsemão pretensão de Mário Soares de continuar de um partido político, o futuro PRD.
Presidente e a governar sozinho, despediu-o sem Fora o seu porta-voz, Joaquim Letria,
primeiro-ministro apelo nem agravo, após uma audiên- quem dissera, com todas as letras, antes
só falavam um cia em Belém, em que Soares esperava de terminados os trabalhos da revi-
com o outro com ser reconduzido. Com o mesmo falso são constitucional: “O Presidente não
gravadores em cima desprendimento com que a raposa da aceitará a redução dos seus poderes.
da mesa... fábula desdenha uvas inacessíveis, Soa- Caso os poderes fossem reduzidos, de
res, no final da reunião, com um mal maneira a impedi-lo de cumprir o que
LUSA

disfarçado desagrado, declarava que, prometeu na campanha, o Presidente


agora, “se sentia livre como um pássaro renunciaria, formaria um novo partido
(OE) fosse chumbado, o candidato à li- a quem abriram a gaiola”. e candidatar-se-ia ao cargo de primei-
derança do PSD, Paulo Rangel, referiu, Depois, e dado que a Constituição à ro-ministro.”
numa grande entrevista à VISÃO, pouco data o permitia, Eanes teve um enten- A escalada de confrontação entre
antes da votação na Assembleia, que dimento ainda mais alargado dos seus Eanes e os principais partidos, sobre-
Portugal poderia estar a regressar a uma poderes e tentou impor a essa mesma tudo com o PSD, viria a aumentar, com
situação política “do tipo pré-1986”. E Assembleia, sem a dissolver, governos o primeiro-ministro Balsemão já de si
o próprio Marcelo terá falado de uma de iniciativa presidencial (ver caixa). acossado pelos barões do próprio parti-
sucessão de “pequenos ciclos políticos”. Finalmente, em 1979, a Assembleia era do e sob a ameaça da deserção do CDS.
O atual Presidente protagoniza, depois dissolvida e a AD ganharia as eleições. Por essa altura, o vaivém de recados
de 1987 e de 2004, o terceiro momento Com a morte de Sá Carneiro no entre Belém e São Bento era constante,
em que, do ponto de vista formal, não acidente/atentado de Camarate (e de- e as supostas fugas de informação sobre
seria necessária a realização de eleições pois de um permanente conflito ins- as audiências entre o Presidente e o pri-
antecipadas – e, no entanto, ele mar- titucional entre Belém e São Bento), meiro-ministro veiculavam conversas
cou-as. Marcelo talvez não espere que é Francisco Pinto Balsemão que toma que nunca tinham existido. No único
os portugueses tomem uma decisão o leme de um governo cujo estratego acordo “pacífico” entre Presidente e
drástica, como fizeram em 1987 e em tinha desaparecido. Durante esse pe- chefe do governo, ambos passam a levar
2005, ao conferirem, ao PSD, primei- ríodo, os partidos do arco do governo, o seu gravador para a audiência, para
ro, e, depois, ao PS, a maioria absoluta. PSD, PS e CDS, completam a revisão que, caso necessário, não restassem
Desse ponto de vista, o eleitorado pode constitucional, a de 1982, que, além da dúvidas do que fora dito. Finalmente,
não dar “dar razão” a Marcelo. Mas, na extinção do Conselho da Revolução a Balsemão demite-se e Eanes, no qua-
tese de um analista próximo de Belém, que Eanes presidia, traz outra novidade dro das possibilidades conferidas pela
o Presidente, que sempre disse ser esta estruturante: o PR deixa de poder de- nova versão da Constituição, dissolve
crise “injustificável”, marcará o seu a Assembleia e convoca eleições, para
ponto, mesmo que tudo fique mais ou
menos na mesma. Os portugueses terão AO “DESPEDIR”, 25 de abril de 1983. Não havia outra
alternativa. Vinha aí o Bloco Central.
concordado com ele: nada há para mu-
dar. A crise terá sido dispensável. E os EM 1978, O PRIMEIRO- SOARES E “O DIREITO
partidos estarão obrigados a encontrar
soluções de estabilidade – provavel-
-MINISTRO MÁRIO À INDIGNAÇÃO”
A presidência de Mário Soares começa
mente, ao centro. SOARES, EANES de maneira muito mais distendida. Ca-
vaco Silva era já o líder de um governo
EANES, BALSEMÃO
E OS GRAVADORES
TOMAVA A PRIMEIRA de maioria relativa, depois de ter rom-

GRANDE DECISÃO
pido com a coligação do PS de Soares.
Antes da revisão constitucional de 1982, Cavaco fora eleito no congresso da Fi-

INTERVENTIVA
o Presidente Ramalho Eanes convocou, gueira da Foz, na primavera de 1985, e,
por uma vez, eleições antecipadas (ou a seguir, provocara a rutura com o PS,

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 35


na “cimeira das flores”. O novo líder do
PSD dissera, antes de deslocar-se à sede
nacional dos socialistas, que “não iria
ser uma conversa de rosas”, e Soares,
provocatoriamente, mandou decorar a
sede com dezenas de bouquets de rosas
para receber “o gajo”. Em resumo: Ca-
vaco derrubara o governo e abarbatara
o cargo de primeiro-ministro. Depois,
apoiara Freitas do Amaral, numa cam-
panha presidencial (1986) decidida no
photo finish: Soares ganhou, à segun-
da volta, por “um Estádio da Luz” – o
recinto do Benfica tinha uma lotação
de pouco mais de 100 mil pessoas.
Esperava-se, agora, a desforra do novo
Presidente. Ele poderia sempre inspirar
uma crise política, com epicentro na
Assembleia, bastando, para isso, que
o PS avançasse com uma moção de
censura para derrubar o minoritário
IX Governo Constitucional.
Mas não foi nada disso que acon- Almoço privado Uma vez
teceu. Uma vez eleito, Soares convida eleito, Soares convida o
Cavaco para um almoço, a dois, no Res- primeiro-ministro Cavaco
taurante Mónaco, na linha do Estoril, para almoçar. Era o degelo
junto à Marginal. Nas suas memórias,
Cavaco reconhece: “O almoço correu
tão bem que vi nele o início de uma
nova fase do nosso relacionamento
pessoal.” A proposta é a de uma coa- MÁRIO SOARES
bitação pacífica, à imagem da que son
ami [François] Mitterrand ensaiaria,
em França, pela mesma altura, com o
primeiro-ministro Jacques Chirac. E
Da recusa de uma solução à esquerda
nem o caso da “guerra das bandeiras”
– quando Soares vetou, para desgosto
do PSD/Açores de Mota Amaral (en-
ao tirocínio de Guterres
tão no poder regional), o estatuto que Em 1987, teve a possibilidade de nomear um
conferia equivalência protocolar entre a primeiro-ministro do PS, à frente de uma
bandeira açoriana e a bandeira nacional “geringonça, com PRD e PCP. Recusou-se,
– afetou o relacionamento institucional. abriu caminho às maiorias cavaquistas e
mudou o “chip” da política portuguesa.
No segundo mandato, uma vez eleito
com o apoio tácito do PSD e estriba-
do em mais de 70% dos votos, Soares
faz uma inflexão completa. Depois de
vários desencontros, em abril de 1994,
a Presidência Aberta muda-se do País
profundo para a Área Metropolitana de
Lisboa, expondo a miséria dos bairros
sociais e as desigualdades que o cava-
quismo teria acentuado. Quando bate- HERMÍNIO MARTINHO GOMES MOTA ANTÓNIO GUTERRES
dores da GNR impedem a passagem do Engenheiro-agrónomo Oficial da Armada Engenheiro eletrotécnico
minibus presidencial, que visitava uma Dirigente do PRD, O comandante Secretário-geral
partido inspirado por Gomes Mota, também do PS, desde 1992,
Eanes e concorrente do economista, dirigiu teve problemas de
A PRESIDÊNCIA PS na área do centro-
esquerda, foi a Belém
as campanhas de
Soares em 1986 e
afirmação, a partir do
momento em que o
ABERTA DE SOARES informar Soares sobre
a moção de censura ao
em 1991. Em 1994,
organizou o congresso
Presidente, a partir de
Belém, parecia deter
EM LISBOA É UM governo de Cavaco. Com
esta estratégia, cavou
Portugal, Que Futuro?
e foi sempre uma voz
os cordelinhos da
oposição a Cavaco. Com
LIBELO ACUSATÓRIO a própria “sepultura
política”.
a falar por Belém, na
fase de combate ao
paciência, sem se deixar
perturbar, ganharia as
DO CAVAQUISMO cavaquismo. eleições em 1995.

36 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


T R ÊS P E R G U N TA S A . . .
JOSÉ FONTES / Constitucionalista

“Não restava a Belém outra alternativa”


Marcelo esteve bem ao anunciar a dissolução do Parlamento, tendo
em conta que um chumbo da proposta orçamental é uma “espécie
de censura ao Governo”, defende o especialista em Ciências Políticas

O Presidente da República pode disciplina de voto aos seus deputados,


dissolver o Parlamento nos moldes não só no que diz respeito a programas
anunciados, mesmo sem o Governo de governo, moções de censura ou
se ter demitido? moções de confiança, mas igualmente
Pode. A Constituição atribui ao nas votações das propostas de
Presidente da República o poder Orçamento. Não parece, por isso,
autónomo de dissolução do que tenham sido postas em causa
Parlamento, independentemente a separação ou a independência do
LUSA

da demissão do Governo, e apenas poder legislativo; e tal é atestado pelo


obriga a respeitar um conjunto de facto de a Assembleia da República
área mais degradada, Soares assoma limites de natureza temporal – dado ter – com total liberdade – rejeitado
à janela do motorista e grita, numa que inibe o Presidente da República o Orçamento e não ter acolhido os
identificação imediata com o homem de “detonar a bomba atómica”, no apelos de Belém.
da rua: “Senhor guarda, desapareça! último semestre do seu mandato Haveria outra solução que não
ou nos seis meses posteriores às passasse pela dissolução?
Não queremos polícias!”
legislativas. Acrescem ainda limites As outras soluções
Falando de “direito à indignação” e
formais, como a exigência de audição constitucionalmente admissíveis
de “ditadura da maioria”, Soares está dos partidos com representação não teriam grande viabilidade
por detrás da organização do con- parlamentar e do Conselho de Estado, e eficácia. O Governo havia
gresso Portugal, Que Futuro? (maio e limites circunstanciais que impedem apresentado formalmente a
de 1994), um encontro das oposições Belém de dissolver a Assembleia proposta de lei do Orçamento do
para a catarse de maldizer do gover- da República na vigência do estado Estado e, informalmente, já a tinha
no. Cavaco finge ignorar o encontro: de sítio ou do estado de emergência alterado em função de alguns
“Não vi nada. Estive no Pulo do Lobo [devido à pandemia, o País está em compromissos anunciados e que
[um ermo nas margens do Guadiana] situação de alerta, mas esse é um grau resultaram das negociações com os
a comer caracóis”. Tal qual, também, o da escala de prontidão da Proteção partidos de esquerda parlamentar. E,
homem da rua... Civil]. reconheçamos: o debate orçamental
Soares veta diplomas, recebe ma- Ao anunciar, quando decorriam foi contaminado por outras questões
nifestantes e sindicalistas, torna-se negociações entre o Governo políticas, como as de legislação
porta-voz de todos os descontenta- e a esquerda, a dissolução da laboral, o que tornou evidente
mentos e envia demolidoras mensagens Assembleia da República em que havia uma forte resistência à
à Assembleia. É a guerrilha institucional caso de chumbo do Orçamento, manutenção da atual solução política
e o desgaste constante do primeiro- Marcelo Rebelo de Sousa de suporte ao Governo. Parece, por
-ministro – para Soares, “um tipo sem violou a Constituição? Houve, isso, e bem, que o Presidente olhou
mundo e sem conversa” – que pede que de alguma forma, uma ameaça para este chumbo, em sede de votação
à independência do poder na generalidade do Orçamento – um
o “deixem trabalhar”. Numa declaração
legislativo? Se agora foi o dos mais importantes instrumentos
impertinente, que não consegue conter,
Orçamento, quem pode assegurar jurídico-políticos de suporte à
Cavaco atira: “Temos de ajudar o se- que noutro episódio semelhante governação –, como uma espécie de
nhor Presidente da República a acabar o Presidente da República não aprovação de uma censura ao Governo.
o mandato com dignidade.” Malgré ameaça de novo com a dissolução? Gerir um País por duodécimos deve ser
tout, Soares não voltará a dissolver a Não creio que tenha ocorrido qualquer uma solução transitória e excecional,
Assembleia. O PS pode esperar. violação da Constituição. O Presidente e não deve prolongar-se por muito
foi claro e transparente. Atendamos ao tempo. Por outro lado, os governos
SAMPAIO: DAS LAJES A SANTANA facto de a Lei do Orçamento do Estado de iniciativa presidencial não têm
Na dissolução de 2004, em que Jorge não ser uma qualquer lei, mas uma suporte constitucional. Não restava a
Sampaio se desfaz de Santana Lopes, das mais importantes. É também por Belém outra alternativa que não a de
o Presidente alega estar em causa o re- esta razão que muitos partidos com dissolver o Parlamento, como havia
gular funcionamento das instituições, representação parlamentar exigem previamente anunciado. N.M.R.

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 37


o motivo mais subjetivo – em larga
medida dependente da leitura pessoal
do Presidente – para se dissolver um
Parlamento. É o único caso em que um
Presidente atua à margem de qualquer
crise política, fazendo a avaliação sobre
o bloqueio do governo à base de um
conjunto de casos de “desgoverno”. Os
próprios “barões” do PSD contestam
o líder, e Cavaco, no célebre artigo da
“boa e má moeda”, cilindra Santana. No
outono de 2004, um dos mais fiéis do
primeiro-ministro, Henrique Chaves,
bate com a porta, alegando quebra de
confiança e de lealdade do primeiro-
-ministro. Chaves era um ministro
“político”, do núcleo duro do executivo.
O governo está em roda livre. Sampaio,
interpretando o sentimento nacional,
não espera mais. Nas eleições de 2005,
o povo dar-lhe-á, a ele, razão – e a José
Sócrates uma maioria absoluta. Caldo entornado Sucessão
Os dois mandatos já haviam sido de casos levou Sampaio a
abalados por outras tensões, que co- “dissolver” Santana Lopes.
meçaram logo no governo de Guterres Uma decisão “nos limites” da
(ver caixa). Mas o momento mais tenso
LUÍS BARRA

revisão constitucional de 1982...


gera-se com Durão Barroso. A 16 de
março de 2003, Jorge Sampaio tivera,
aí, sim, verdadeiras razões objetivas
para dissolver a Assembleia. Ao ser-
vir de anfitrião da Cimeira das Lajes,
o primeiro-ministro desautorizara o
J O R G E S A M PA I O
Presidente, depois de o ter enganado,
o que, só por si, punha em causa o tal
“regular funcionamento das institui-
ções”. O encontro em que o Presidente
Momentos de tensão com António Guterres
dos EUA, George W. Bush, o primeiro-
-ministro do Reino Unido, Tony Blair, e e com Durão Barroso
o presidente do governo espanhol, José
Exigiu a Guterres a cabeça de Armando Vara, fez,
María Aznar, combinaram os termos da
com Jaime Gama, uma boa dupla no dossier de
2ª Guerra do Golfo tinha sido agendado
Timor-Leste e queixou-se de ter sido enganado por
à revelia do Presidente – que era con- Durão na “Cimeira da Guerra”.
tra a intervenção – e, depois, à última
hora, tinha-lhe sido vendido, por Du-
rão, como a última oportunidade para
procurar a paz. Sampaio, que, como
PR, tinha competências no domínio
da Defesa e das Relações Externas e a
quem competia, como chefe supremo
das Forças Armadas e 1º magistrado da
Nação, declarar a guerra e fazer a paz,
foi completamente ultrapassado, o que ARMANDO VARA JAIME GAMA DURÃO BARROSO
provocou um terramoto no relaciona- Gestor Professor Jurista
mento institucional. O caso da Fundação Manteve com Sampaio O momento mais
para a Prevenção Rodo- uma longa rivalidade, tenso sobreveio com
CAVACO: O STRESSE viária foi um processo no PS, mas, como a Cimeira das Lajes,
DA QUINTA-FEIRA mal explicado que afe- ministro dos Negócios preparatória da
A história das tensões dos dois manda- tou a transparência do Estrangeiros, articulou invasão do Iraque, onde
tos de Cavaco Silva pode ser resumida 2º governo de Guterres. com o Presidente o Durão fez de anfitrião.
ao “antes” e “depois” da aprovação, no Numa audiência, em dossier de Timor-Leste, O Presidente terá
Parlamento, do Estatuto dos Açores. Belém, Sampaio exige a constituindo uma equipa- sido enganado pelo
Nos termos dessa reforma, o PR, que cabeça do ministro res- maravilha nos areópagos primeiro-ministro, que
pode dissolver o Parlamento nacional, ponsável ou faria uma internacionais. Timor foi lhe assegurou ser este
ficava impedido de fazer o mesmo com dura declaração pública. um dos grandes sucessos o encontro da última
a Assembleia Regional “sem o acordo Armando Vara cai. da Presidência. tentativa para a paz...

38 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


“HÁ LIMITES PARA
OS SACRIFÍCIOS”,
PROCLAMAVA
CAVACO, OPONDO-
-SE ÀS RECEITAS
DE AUSTERIDADE DO
GOVERNO SÓCRATES
desta”, ou seja dos próprios interessa-
dos. Em julho de 2008, Cavaco para
o País para uma comunicação, cujo
tema não fora revelado. Afinal, era
para esclarecer a sua posição sobre o
Cavaco Silva e José Estatuto Político-Administrativo da
Sócrates O Presidente Região Autónoma, que devolve à As-
chegou a falar sembleia. Apesar da aridez do assunto,
de “deslealdade”, os portugueses perceberam a intenção
no prefácio de um da reprimenda a todos os partidos, mas,
dos seus Roteiros em especial, ao partido do governo que

LUÍS BARRA
(coletâneas de discursos) o teria ultrapassado em matéria em que
era diretamente interessado. A lua de
mel que mantinha com José Sócrates
desfez-se rapidamente. O episódio das
escutas – em que um importante asses-
C AVA C O S I LVA sor do PR passa para a Imprensa a tese
de que Cavaco pode estar a ser escu-

Caso do “Irrevogável” tado, em Belém, a mando do governo,


presume-se – é a machada final na
relação institucional. Cristalinamente,

marcou o segundo mandato Cavaco há de revelar, nos livros da saga


Quinta-feira e Outros Dias..., o cons-
tante bullying mútuo e a guerra surda
Passos Coelho, António José Seguro e Paulo Portas entre Presidente e primeiro-ministro.
são os três vértices do triângulo da crise política de “Há limites para os sacrifícios!”, pro-
julho de 2013. O Presidente tenta forçar um Bloco clama o Presidente, quando Sócrates
Central, extensível ao CDS, mas falha. acentua as políticas de austeridade. E é
um aliviado Cavaco que aceita a demis-
são do primeiro-ministro, em março de
2011, após o chumbo do PEC IV. Apesar
de tantos atritos – que tiveram algumas
réplicas no tempo de Passos Coelho –,
foi a única vez em que este Presidente
dissolveu a Assembleia – por não lhe
restar outra alternativa. Mais tarde,
PEDRO PASSOS COELHO ANTÓNIO JOSÉ SEGURO PAULO PORTAS antes de trabalhar com o 3º primei-
Gestor Professor e gestor Jurista ro-ministro que lhe calhou em sorte,
Ultrapassado o Durante a crise do Como jornalista, tinha protelou o quanto pôde a indigitação
consulado de Sócrates, “Irrevogável” e perante sido implacável com o de António Costa, exigindo acordos
Passos Coelho aplica a demissão de Paulo cavaquismo. Em julho escritos à Geringonça. E só talvez por
o memorando da Portas do governo, de 2013, descontente estar constitucionalmente tolhido – a
Troika e a relação o Presidente tenta com uma remodelação, menos de seis meses das presidenciais
institucional passa por convencer o líder da demite-se, dizendo já não podia, de novo, dissolver o Parla-
alguns momentos de oposição a entender-se que a sua decisão é mento – terá aceitado a solução.
tensão. Após o episódio com o PSD e o CDS “irrevogável”. Depois No fundo, a geringonça, que em 1987
do “Irrevogável”, o para um governo de volta atrás, mas não um Presidente socialista recusara, seria
primeiro-ministro salvação nacional, com convence Cavaco imposta a um sucessor social-demo-
reforça a sua posição a promessa de futuras que procura outras crata, quase 30 anos depois – a um ho-
perante o Presidente. eleições antecipadas. soluções... sem sucesso. mem alto e magro, e mais sorumbático
A diligência falha do que nunca. fluis@visao.pt

40 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


DIREITO tenha sido assessorada por algumas das
D E R E S P O S TA pessoas citados no texto, cujos nomes,
percursos pessoais/profissionais, e re-

“Marco Galinha: levância que Ihes é dada são escritos na


Iógica da estratégia de se procurar esta-
belecer ligações onde estas não existem.

uma vida As pessoas que me acompanham e


que chamo para comigo trabalharem são
apenas aquelas a quem reconheço méri-

de trabalho to. E nada mais. Tudo o resto relativo a


ligações é fantasioso e não existente.
3. Contesto igual e veementemente to-

e de ligações dos excertos da “reportagem” (e são vários)


que insinuam, directa ou indirectamente,
uma suposta ligação de mim próprio a

transparentes” alguns partidos políticos, à direita ou à


esquerda, aos seus interesses e agendas
políticas. Se existissem – como todos os
A publicação deste Direito que me conhecem saberão – não teria o
de Resposta de Marco Galinha, menor pudor em desassombradamente
com título e foto enviados pelo as revelar. Não tenho, nem nunca tive
queixoso, é referente ao artigo quaisquer ligações partidárias. E não me
“A Outra Face do Tubarão movo na política, o que faço por opção
Galinha”, de julho de 2021, própria. A minha política é o esforço pes-
soal, a dedicação e o trabalho. São estes os
e decorre de deliberação da ERC
princípios e valores que diviso.
4. Também ao contrário do que é noti-
“1. A Revista VISÃO publicou no passa- veis, como é dito. Nada disso existe. ciado, não é verdade que eu tenha tido, ou
do dia 15 de Julho uma extensa reportagem É, por exemplo, o que acontece quan- tenha querido ter, qualquer ingerência na
de nove páginas com o título de primeira do no texto é feita uma descrição a des- área editorial da Global Media Group, SA
página “Marco Galinha: As Ligações e as propósito de situações que alegadamente (GMG). O acesso solicitado para as páginas
Polémicas do Novo Patrão dos Média” e envolvem uma empresa e um advogado do ‘Facebook’ das publicações GMG teve
com o título interior “A Outra Face do norte americano – a “Corporate Main- apenas como objectivo a recolha de dados
Tubarão Galinha”. tenance Services” e o advogado Nicholas para análise financeira. Nunca pretendi
Tal “reportagem” contém vários factos Stanham – e que em absolutamente nada com tal acesso elaborar, alterar, analisar ou
deturpados e diversas imprecisões que se relacionam comigo, com qualquer das sugerir conteúdos jornalísticos (ou outros).
atingem a minha honra e imagem, bom minhas actividades ou das minhas em- Que isto fique bem claro.
nome e reputação, e que foram publica- presas, nacionais ou internacionais, e que Também não é verdade que eu tenha
dos de acordo com o conhecido método desconheço. Este advogado, que não co- imposto, sugerido nomes e/ou afasta-
de pegar em histórias, muitas das quais nhecia, foi-me recomendado por ser es- do colunistas da GMG. A este propósito,
que me são completamente alheias, e, pecialista na área do Direito em causa, e devo dizer que a única prática que pre-
com recurso à insinuação, levantar sus- Iimitou-se a tratar de um assunto jurídico tendi instituir foi a definição de novas
peições e conduzir o leitor a realizar uma pontual que nada tem a ver com as alegas regras de compliance que determinam a
imagem negativa, errada e deturpada so- atividades que a Visão lhe associa. Falei gratuitidade das colaborações prestadas à
bre mim, sobre a forma como conduzo com ele 30 minutos, se tanto, e nada mais. GMG por Pessoas Politicamente Expos-
os meus negócios e sob a forma como É também exemplo a transformação tas (PEP). O que resultou, aliás, do quadro
dirijo a minha vida empresarial. que a Visão faz do que é uma próxima e interpretações jurídicas que me foram
Como tal entendi exercer o compe- relação familiar e de alguns negócios fornecidos, e que acolhi e defendo. Prá-
tente Direito de Resposta. que tenho com o Senhor meu sogro, que tica que, aliás, foi avalizada por Susana
2. Refuto totalmente, por não ser verda- é um muito capaz empresário, um de- Coroado, da Associação Transparência
de, a imagem falsa que a VISÃO pretende dicado Pai e um extremoso avô, e que a e lntegridade, a que a VISÃO contrapôs
passar de que me rodeio de pessoas pelas Visão apelida de “oligarca” Russo, apenas um especialista anónimo e, por definição,
vantagens que me possam trazer. por ser bem sucedido e de nacionalidade não transparente...
Não correspondem à realidade a di- russa, pretendendo dar a ideia de mim, É igualmente falso que tenha queri-
mensão, o ênfase e destaque que são das minhas empresas (e do meu Sogro) do “promover internamente o youtuber
dados ao percurso profissional e passa- como pessoas ligadas às nublosas fortu- Windoh”, ou qualquer outra pessoa, não
do de algumas pessoas referidas com as nas e teias de ligações que historicamente deixando de me parecer, no mínimo,
quais tenho ligações pessoais e/ou pro- são associadas àquele pais. Atingem-me curiosa a relevância que a “reportagem”
fissionais, ou pessoas que até desconheço pessoalmente e atingem a minha família, atribui ao alegado valor e cor da viatura
pessoalmente, numa ideia que foi publi- com este tipo de falsidades, e isso é ina- automóvel do mesmo ou aos seus hábitos
citada de que me movo num jogo e teia ceitável. E falso. alimentares e gastos com os mesmos.
de influências pouco claras e transparen- Também não corresponde à verdade O que pretendo, e que me preocupa
tes, e até com pessoas pouco recomendá- que a minha entrada no capital da GMG (todos os dias), é criar condições para que

42 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


os órgãos de informação do grupo pos- da palavra “camarada” usada no seio de sas, cria dúvidas injustas e injustificadas
sam desenvolver um jornalismo de quali- uma redacção. sobre a minha pessoa e percurso, e famí-
dade, sério, rigoroso e independente. E é Sou um homem pluralista, defensor lia, divulga ideias fantasiosas e sem fun-
isso que quero e que vim promover, de- da liberdade de imprensa e do Estado de damento a meu respeito, e que não escla-
volvendo ao Grupo Global Media o lugar Direito Democrático, e o meu lema e cri- recem nem informam o público, e põem
que lhe pertence e de que todos precisa- tério é o mérito. em causa o meu bom nome. A seleção de
mos. Como aconteceu com o “Diário de Em 2014 e 2016 fui nomeado “Portu- títulos como “Era uma vez na América” e
Notícias”, já com 150 anos de história, e guês de Valor” pela Lusopress, e em 2015 a “Casa da Rússia” são bem ilustradores
que de semanário regressou já ao seu for- recebi a AFCEA (Associação para as Co- da motivação insidiosa que o artigo pre-
mato original, que é o de um jornal diário municações, Electrónica, Informações e tende projectar, mas que nada têm a ver
de grande rigor informativo. Sistemas de Informação para Profissio- comigo, com a minha família ou com as
Julgo que os resultados positivos que nais) Medal for Outstanding Services. minhas empresas.
o Grupo Global Media já começou a al- Entre 2016 e 2019, exerci o cargo de Num momento de dificuldade do sec-
cançar dão também causa a este tipo de Conselheiro no Conselho Económico tor, esperava-se mais do jornalismo da
ataque soez. Social, e, desde 2016, integro a CIP – VISÃO, razão porque se impõe que tal
5. Na mesma lógica da insinuação tor- Confederação Empresarial de Portugal, texto seja rectificado em conformidade,
pe, publicitam na “caixa” com o subtítulo onde ocupo o cargo de Vice-Presidente com vista a uma adequada informação
“Mais de três Milhões Sem Rasto” o que do Conselho Geral. dos seus leitores, pelo que deverá dar-se
é, além do mais, falso e injurioso. Represento um grupo empresarial – publicidade à presente resposta.”
Quero salientar que existiu um pro- o Grupo BEL – de que muito me orgu-
cesso judicial relativo a uma impugnação lho, que agrega um conjunto de mais de NOTA DA DIREÇÃO
tributária que a empresa referida intentou 40 empresas e labora há quase 20 anos, O texto de resposta ora publicado contém
nos tribunais contra a Autoridade Tribu- estando presente em várias associações inexatidões e erros de facto. Desde logo,
tária em virtude de liquidações adicionais empresariais nacionais e internacionais, a empresa “Corporate Mantainence Ser-
indevidas de IRC nos exercícios de 2012 e e que conta com a colaboração de cerca vices”, ao contrário do que vem referido,
2013, e na qual foi pedida a anulação das de 2.000 trabalhadores, gerando vendas está efetivamente ligada aos registos
tributações autónomas efectuadas à mes- anuais na ordem dos €550.000.000,00. da Miami Shark Corporation, sociedade
ma, porquanto, tal como entendeu um dos Construí a minha reputação ao longo sedeada nos EUA em nome de Marco
Mmos. Juízes que, aliás, votou vencido, dos anos com base na qualidade dos ser- Galinha, conforme atestam documentos
não existiu evidência de ter ocorrido qual- viços prestados, na dedicação de todos os oficiais.
quer efectiva saída de valores da esfera da colaboradores e motivado pela vontade O artigo da VISÃO não faz referência, em
referida empresa, nem aquela ocorreu. O de fazer melhor. As minhas empresas parte alguma, a “nebulosas fortunas”,
que, aliás, demonstra a motivação da não- pautam-se pelo rigor, ética e responsabi- nem tão-pouco apelida o empresário e
-informação produzida pela VISÃO. lidade nas suas actividades. sogro do Respondente como “oligarca”,
Daí que reafirme aquilo que já disse Tornei-me Presidente do Conselho de sendo a imprensa russa, a que a VISÃO
e que é relevante: as minhas empresas Administração de um grupo de comu- recorreu, que a ele se refere nesses
não têm dívidas ao fisco e, muito menos, nicação social – Global Notícias Media termos.
existe dinheiro a sair delas nos termos Group, SA – que tem cerca de 500 tra- Por fim, no artigo da VISÃO não se acusa
por vós publicitados. Os nossos impostos balhadores, e fi-lo com o intuito e missão Marco Galinha de ingerência nos con-
são pagos em Portugal sem esquemas ou de recuperar o bom jornalismo e contri- teúdos editorais da Global Media. Foram
artifícios. buir, na sua quota-parte, para a evolução quatro conselhos de redação do seu gru-
6. Finalmente, gostava de esclarecer do Estado de Direito Democrático. po empresarial que o disseram, posição
ser completamente falso que, como afir- Tudo isto é aquilo que a Visão não quis pública que levou, de resto, às demissões
mam na vossa peça jornalística, que me publicar, e que assim deve ser rectificado. das diretoras do JN e do DN da adminis-
tenham esclarecido sobre a conotação O texto publicado faz afirmações fal- tração a que Marco Galinha preside.

NINGUÉM ESTAVA
À ESPERA, E AGORA?
Agora, muitas dúvidas se levantam mas estaremos
à sua disposição, 24h por dia, para o apoiar.

Sempre do seu lado


800 204 222 www.servilusa.pt
A ARTE DE
CAMINHAR
Andar a pé é bom para tudo, até para ter ideias novas
e únicas. É uma daquelas coisas que sentimos na pele,
mas que sabe bem confirmar com a ajuda da Ciência.
De que estamos à espera para calçar uns sapatos
confortáveis e sair por aí?
ROSA RUELA
Q
JOÃO PEDRO FÉLIX
Quando foi entrevistado para este ar- AFONSO REIS CABRAL
tigo, Afonso Cruz estava no aeroporto
de Zagreb, a regressar do lançamento Escritor
da edição em croata do seu roman-
ce Nem Todas as Baleias Voam. Na “Quando acabo uma caminhada,
véspera à noite, na Biblioteca Bogdan
Ogrizović, começara a falar sobre a é como se a crónica estivesse escrita”
história de amor de Erik e Natasha, Ando muitas vezes uns bons quilómetros, à noite. É uma forma de estar sozinho
passada em Paris, em plena Guerra acompanhado, porque vejo as vidas das pessoas nem que seja por uns segundos,
Fria, e acabara a confessar a impor- de uma forma descomprometida. Caminhar desbloqueia e desanuvia. Dá para fugir
tância da leitura na sua escrita. Para o um bocadinho de mim; posso estar numa certa introspeção, mas não me apercebo
escritor, ler é coisa de todos os dias. disso. E ajuda se tenho um capítulo ou uma crónica para escrever, embora não esteja
Só depois vem escrever, quando vem, a pensar nisso enquanto caminho. Estou a respirar melhor, a viver um bocadinho
porque também pode vir música, ilus- da noite... Mas, quando acabo de andar, é como se a crónica estivesse escrita, como
tração ou cinema de animação. Seja se a caminhada me tivesse dado respostas sem eu ter feito perguntas. É muito
como for, uma coisa é certa: antes de produtivo para a escrita e também para a vida – se tenho um problema, ele resolve-
mais nada, precisa de caminhar. se andando. Gostar de caminhar também é um vício. Muitas vezes, sinto-me mal se
É mesmo uma necessidade, sente o não fiz uma caminhada nesse dia. A minha avó materna até aos 99 anos andava a
autor de Jalan, Jalan – Uma Leitura pé todos os dias, e com 95 ainda ia das Amoreiras até ao Terreiro do Paço. Acho que
do Mundo, um livro que tem tudo a ver herdei isso dela, sem me aperceber.
com o tema destas páginas. Jalan sig-
nifica rua em indonésio, aprendeu ele
numa das suas muitas viagens. Além ciou-o na sua maneira de viajar, le- tiplicar-se e a espantar-nos. Sabemos
disso, Jalan também quer dizer andar, vando-o a andar a pé como nunca. na pele que o exercício físico tem, por
e a repetição, que naquela língua quase Foi Anatomia da Errância, que reúne exemplo, influência na manutenção do
sempre se usa para formar o plural, textos e reportagens de Bruce Cha- peso ideal (ver Benefícios de andar a
neste caso resulta no verbo passear. twin, todos à volta do ato de caminhar, pé), mas quem esperava que caminhar
Passear é ainda mais bonito por se a começar pela morfologia (temos a numa passadeira rolante em frente a
fazer por prazer, haveria de lembrar passada mais larga dos primatas) e a uma parede branca pudesse aumentar
Afonso Cruz ao telefone, deserto por entrar pela sociologia (um dia, tor- a criatividade? (Está provado que sim;
chegar ao Alentejo que adotou há uma námo-nos sedentários). Afonso Cruz já lá iremos.)
dúzia de anos. Mas, mesmo implican- confirmava, então, que tinha encon- Há muito tempo que o tema é ob-
do um destino, basta-lhe andar a pé trado uma alma gémea no inglês que jeto de reflexão. No final do século
um bom bocado, acrescentaria, para no clássico Na Patagónia confessa: XVIII, Jean-Jacques Rousseau escrevia
os seus dias ganharem mais sentido. “O meu deus é o deus dos andarilhos. no seu livro autobiográfico Confes-
Em Portugal, o escritor caminha Quando se anda muito, provavelmente sions: “Só posso meditar quando estou
sobretudo no seu terreno e muitas não se precisa de outro deus.” a caminhar. Quando paro, deixo de
vezes só em redor da casa porque pensar; a minha mente só funciona
metade do ano ele está semeado com DEAMBULAR CONTRA A URGÊNCIA com as minhas pernas.”
aveia. Ali à volta quase não há bermas A verdade é que não precisamos de O aparente exagero do filósofo
seguras, abundando o arame farpado a ser escritores para darmos pela im- suíço faz as vezes de sublinhado de
vedar as propriedades. E o campo, belo portância que andar a pé tem na nossa algo que tantos outros autores tam-
em abstrato, traz carraças no verão e vida. São tantos os benefícios para o bém defenderam. Do poeta francês
barro e lama no inverno. Nada disso, corpo e para a mente que nem sequer Charles Baudelaire ao filósofo alemão
porém, o demove de ser um andarilho, temos necessidade de confirmar aqui- Walter Benjamin, passando pelo es-
nem que seja dentro de casa. lo que sentimos com estudos científi- critor e naturalista americano Henry
Um livro lido em tempos influen- cos – embora eles continuem a mul- David Thoreau, foram muitos a intuir

46 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


BENEFÍCIOS DE ANDAR A PÉ
FAZER CAMINHADAS REGULAMENTE É BOM PARA O CORPO E PARA O ESPÍRITO

CÉREBRO
Aumenta o volume do hipocampo, uma
EMOÇÕES zona que é crucial para a memória,
O movimento bilateral faz com assim como os níveis de moléculas IDEIAS
que os impulsos nervosos que estimulam o crescimento de novos Os pensamentos
cruzem o cérebro do hemisfério neurónios e as sinapses entre eles. libertam-se. A criatividade
esquerdo para o hemisfério é estimulada durante
direito e vice-versa, ajudando o passeio e logo a seguir.
a curar traumas e a combater
a depressão. MÚSCULOS
Além das pernas
CORAÇÃO e dos pés, reforça
Como bombeia mais também toda a
depressa, faz com parte superior do
que chegue uma corpo, sobretudo
maior quantidade de os braços e os
sangue e de oxigénio abdominais.
a todos os órgãos,
cérebro incluído. APARELHO
DIGESTIVO
Ajuda na passagem
TENSÃO dos alimentos
ARTERIAL pelos intestinos.
Diminui o risco
de hipertensão, PESO
que é um fator Fomenta a
importante para eliminação de
as doenças gorduras, evita
cardiovasculares. a obesidade e
previne a diabetes.

aquilo que os estudos acabariam por Shane O’Mara, que no livro In Praise
comprovar. of Walking – The new science of how
Décadas antes de o errante cami- maneira como hoje ainda se deitam we walk and why it's good for us re-
nhante flâneur de Baudelaire se tornar abaixo as caminhadas no seu uso diá- corre à ciência para fazer o louvor da
um objeto de interesse académico pela rio. “A deambulação, que tal como o caminhada, chama-lhe mesmo um
mão de Benjamin, Thoreau escrevia o silêncio é pouco tolerada nas nossas “superpoder”.
primeiro grande ensaio sobre a im- sociedades, opõe-se às poderosas exi- “A lição essencial deste livro”, es-
portância de caminhar. Parte do seu gências do rendimento, da urgência e creve, “é esta: andar a pé melhora
Walking, por vezes referido como The da disponibilidade absoluta no traba- todos os aspetos do nosso funciona-
Wild, foi retirado dos diários em que lho ou para os outros”, nota. mento social, psicológico e neuronal.
analisava a relação entre o Homem e É a receita simples, que melhora a
a Natureza, exaltando as virtudes de MANTER UM CÉREBRO SAUDÁVEL vida e melhora a saúde, de que todos
“mergulhar” nela. Era algo de natural Costuma ser, aliás, pela saúde que precisamos, que devemos tomar em
no Homem, concluía. quem gosta de caminhadas começa doses regulares, grandes e pequenas,
Tinha razão. Afinal, pusemo-nos de a sua defesa, e sem temer cair no em bom ritmo, dia após dia, na Natu-
pé há milhões de anos, com o andar exagero. O neurocientista irlandês reza e nas nossas cidades. Precisamos
bípede a favorecer a libertação das fazer do caminhar uma parte natural
mãos, lembra o sociólogo e antropó- e habitual da nossa vida diária.”
logo francês David Le Breton, nosso
contemporâneo. “A disponibilidade de UM ESTUDO No verão de 2019, pouco depois de
esse seu livro ser lançado e se tornar
milhares de movimentos novos am-
pliou até ao infinito a capacidade de
PUBLICADO ESTE imediatamente um best-seller, O’Mara
resumia à jornalista do The Guar-
comunicação e a margem de manobra
do Homem com o seu ambiente/a
ANO CONCLUIU QUE dian: “Os nossos sistemas sensoriais
funcionam melhor quando estão a
sua envolvente, e contribuiu para o
desenvolvimento do seu cérebro”,
AS CAMINHADAS mover-se pelo mundo.”

AJUDAM A COMBATER
Logo a seguir, o neurocientista
escreve no livro Eloge de la Marche, falava-lhe de um estudo, apresentado

A PERDA DE MEMÓRIA
publicado em 2000. Andar a pé é tão em 2018, que monitorizou, ao longo
importante que Le Breton lamenta a de 20 anos, os níveis de atividade

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 47


JOÃO LIMA
“Há algo AFONSO CRUZ
no ato de caminhar Escritor
que anima e aviva “Caminho muitas vezes para desatar
as minhas ideias;
quase não consigo os nós de um enredo ou da vida”
Muitas vezes, caminhamos para chegar a um sítio, é uma ferramenta. Mas
pensar quando passear não implica um destino, é mais bonito, simplesmente porque o
fico parado” ato de caminhar é prazeroso, um pouco como a arte ou o amor. Faz-se
porque se gosta, por prazer. Tem valor em si mesmo. Em Lisboa, quando
JEAN-JACQUES ROUSSEAU trabalhava em cinema de animação, a produtora era no Saldanha e eu
(1712-1778), morava no Restelo. Eram cerca de 12 quilómetros, duas horas, duas horas e
filósofo e escritor meia a pé que eu fazia ao final do dia. Depois, quando comecei a viajar, esse
comportamento tornou-se um hábito. Prefiro atravessar uma cidade a pé
porque fico a conhecê-la de uma forma diferente. Os metros são um pouco
um buraco espacial. Caminhar sempre foi importante para mim. Caminho
por prazer ou porque quero reorganizar a minha vida. Pensa-se de maneira
diferente a andar; há estudos que provam que a criatividade melhora.
Muitas vezes, caminho para desatar os nós de um enredo ou da vida (não
é muito diferente) e nem é necessário ser na Natureza. Se não tiver outra
hipótese, é mesmo em casa, à volta de uma mesa.

dos participantes e os seus traços de cérebro revelaram que o grupo que se


personalidade. A conclusão principal a encontrara três vezes por semana para
que os investigadores tinham chegado caminhar durante 40 minutos tinha
era de que “aqueles que se mexiam a matéria branca tão renovada como
menos apresentavam mudanças ne- o da dança (o da flexibilidade não).
gativas, classificando-se pior na aber-
“Todos os tura, na extroversão e na afabilidade”. COMBATER A DEPRESSÃO
Já não será novidade para ninguém Existem igualmente dados que mos-
pensamentos que a atividade física ajuda a manter tram que os caminhantes também
verdadeiramente um cérebro saudável. A boa notícia é apresentam taxas mais baixas de
que basta caminhar para reduzir o de- depressão. Foi, aliás, essa a conclu-
grandes são clínio cognitivo. Um estudo publicado são a que chegou o psiquiatra Jorge
concebidos este ano na revista NeuroImage, que Mota Pereira, quando, há dez anos,
envolveu quase 250 homens e mulhe- coordenou uma investigação para
a caminhar” res saudáveis, entre os 60 e os 79 anos, avaliar a eficácia do exercício físico
FRIEDRICH NIETZSCHE concluiu que algumas caminhadas por no tratamento de depressões graves,
semana podem ajudar a combater a resistentes aos fármacos.
(1844-1900), perda de memória. Ao fim de três meses, 30 a 40 mi-
filósofo e filólogo Os participantes foram divididos nutos de caminhada por dia, cinco
em três grupos que praticaram ativi- vezes por semana, levaram à remissão
dades diferentes: caminhada, dança e total em 26% dos casos, sendo que
flexibilidade. Ao fim de seis meses, os também houve 21% dos doentes a fi-
exames de ressonância magnética ao carem bastante melhor. “A caminhada

48 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


MARIA GIL
Artista

“Caminhar para unir territórios


é uma imagem poética, mas é mesmo
isso. O corpo liga-os”
Sinto uma grande sintonia comigo própria quando caminho. Caminhar também
é simplicidade e liberdade. Sou alfacinha, mas escolhi morar em Sintra, na
vila, onde tenho a vantagem de poder sair de casa a pé e ir até à serra. E vou.
Vivi mais ou menos um ano nos Himalaias, entre 1999 e 2001, e fazia muito os
trekkings até às bases do glaciar. Eram caminhos que demoravam dois dias,
tínhamos o céu mesmo em cima da cabeça... Pode parecer piroso, mas caminhar
é muito essa relação com a Natureza e a sintonização com os elementos. Mas
não é preciso ser nos Himalaias, um sítio tão extremo. Caminhar é fantástico
porque vê-se tudo. E ver muda a perceção que temos das coisas, dos lugares,
das pessoas. Nas caminhadas pela fronteira de Lisboa com o Teatro do Silêncio,
já passámos a pé pelo Lux e lá estavam os sem-abrigos e o sítio onde a senhora
deixou o bebé. Quando andamos a pé, a cidade está in your face (“na tua cara”).
E caminhar para unir territórios... é uma imagem poética, mas é mesmo isso. O
corpo liga-os. Damos um salto para o metafísico muito rápido.
“Um passeio a pé
deve ser feito sozinho,
porque a liberdade
é essencial; porque
temos de ser capazes
de parar e continuar
em frente, e seguir
este caminho ou
aquele conforme nos
leva o capricho”
ROBERT LOUIS STEVENSON
(1850-1894), escritor
D.R.

é das coisas que dão mais sensação contraponto, os ambientes urbanos


de prazer imediato, pela libertação serão menos restaurativos por esta-
instantânea de endorfinas”, explicaria rem cheios de estímulos que captam
Jorge Mota Pereira a essa revista. O a nossa atenção, sugere uma investi-
médico acredita que a Natureza faz gação realizada na Universidade do
a diferença. Michigan, nos EUA.
Existem, aliás, vários estudos nesse Dependerá daquilo que esperamos
sentido. Segundo uma investigação obter da caminhada, sublinhe-se. Se o
recente da Universidade de Exeter, objetivo for a criatividade, o “pensar
no Reino Unido, que teve como base livre”, Rousseau e os seus pares ti-
inquéritos feitos a 20 mil pessoas, nham razão. “Pela literatura científica, “A caminhada de que
bastam duas horas por semana em
contacto com a Natureza para reduzir
sabemos que as pessoas envolverem-
-se numa atividade física antes de um
falo nada tem a ver
os níveis de stresse e a tensão arterial, ato criativo é muito poderoso, e que com fazer exercício,
bem como o risco de doenças cardio-
vasculares.
caminhar a uma velocidade que não
requer uma monitorização contínua
mas é ela mesma
Um outro estudo, realizado por tem o melhor efeito possível na cria- a aventura do dia”
uma equipa do departamento de tividade”, sublinha Shane O’Mara, no HENRY DAVID THOREAU
Psicologia da Universidade Carleton, seu elogio da caminhada.
no Canadá, concluiu que a comunhão (1817-1862), filósofo,
com a Natureza “promove melhorias CRIATIVIDADE A CRESCER poeta e naturalista
na disposição, no raciocínio e na saú- É em Lisboa, onde mora, que Afonso
de”, tornando-nos mais felizes. Em Reis Cabral faz caminhadas à noite.

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 49


Enquanto o seu trisavô Eça de Quei-
roz gostava de andar a pé à conversa
com amigos, e era capaz de ir até à
Amadora, almoçar e voltar, o jovem
escritor prefere deambular sozinho
nas imediações da sua casa.
Até hoje, só fez uma grande cami-
nhada, aquela que o levou pela EN2,
ao longo de quase um mês, e deu ori-
gem ao livro Leva-me Contigo. “Ando
na cidade, sou um flâneur”, diz, e nós
imaginamo-lo como O Homem que
Caminha, do autor de manga Jiro
Taniguchi. Um homem que passeia

LUÍS BARRA
por Tóquio, observando as pequenas
coisas em que raramente se repara.
Enquanto caminha, o escritor não
pensa nos benefícios para a saúde. Faz DUARTE BELO
boxe para manter uma boa condição Fotógrafo
física e vê as caminhadas como um
complemento. “No final do treino,
sinto que puxei pelo corpo. A cami-
“Resolvo coisas com uma boa
nhada faz-me bem ao espírito.”
Uma equipa de investigadores lide-
caminhada. Às vezes, já parto
rada por Marily Oppezzo, especialista com essa determinação”
em comportamento e aprendizagem
na Universidade de Stanford, nos Caminhar liberta o pensamento, por isso procuro fazê-lo instintivamente.
EUA, concluiu, em 2014, que o ato É diferente de quando corro – aí, já estou a lutar contra a vontade de parar, e
isso já ocupa muito a cabeça. Caminhar é sem esforço, faz-se bem sem darmos
de caminhar estimula a criatividade
demasiado por isso. Para mim, é omnipresente e é, também, um prazer em si.
independentemente do ambiente em
Em termos de trabalho, caminhar é uma forma de chegar aos sítios onde quero ir.
redor. A produção criativa de uma É muito mais um meio, porque de outra forma seria quase impossível. Esta minha
pessoa aumentou em média 60% ao ideia de mapear fotograficamente o território português (tenho feito uma grande
andar a pé. E, estivesse ela ao ar livre volta a Portugal por década) só podia ser concretizada a pé. Também gosto muito
ou numa passadeira rolante, caminhar de caminhar para resolver “problemas” de trabalho, para ter uma ideia. Resolvo
melhorou a geração de ideias novas, coisas com uma boa caminhada. Às vezes, já parto com essa determinação de
sendo que o efeito se manteve quando andar para pensar, mas, na maior parte das vezes, estou na descontração e, de
se sentou e, logo a seguir, embarcou repente, as coisas acontecem. Acho que tem que ver com a ativação de sinapses,
num trabalho criativo. Mais: o aumen- por aumentar a circulação sanguínea.
to aconteceu mesmo no caso em que
a passadeira se encontrava à frente
de uma sensaborona parede branca. TED Talk. “Parece que funciona com acontece-lhe divagar q.b., enquanto
A explicação pode residir no estado qualquer atividade física que não exija a correr confessa que luta sobretudo
de espírito, sugere Marily Oppezzo. O muita atenção. Então, andar a um rit- contra a vontade de parar.
exercício físico está ligado à melhoria mo confortável será uma boa escolha. Convidado para dar uma conferên-
da disposição e essa melhoria pode, Se funciona a correr? Se para vocês cia na Faculdade de Arquitetura do
por sua vez, incrementar o pensa- correr é um ritmo confortável, ótimo.” Porto, onde se licenciou, Duarte Belo
mento divergente, ou seja levar a mais Duarte Belo corre no dia a dia, mas escolheu falar sobre a importância que
ideias diferentes e únicas. “A conclu- é a caminhar que resolve “problemas” caminhar tem para o entendimento
são a que chegámos é de que devemos de trabalho. E anda sobretudo na do espaço. Dias antes, a artista Maria
dar um passeio antes de começarmos Natureza, porque se tem dedicado a Gil levou um grupo do Terreiro do
um brainstorming”, diz ela, numa mapear fotograficamente o território Paço à praia de Algés, último troço
português. das “caminhadas pela fronteira” que
A última grande “e boa” caminhada organizou com o Teatro do Silêncio,
que fez foi já há uns meses, no final e lembrou-se de um outro tipo de
A PRODUÇÃO CRIATIVA de julho, numa zona lindíssima, qua-
se intocada pela mão humana. “Subi
espaço.
“Quando vamos de carro, às vezes
DE UMA PESSOA o vale do Côa e depois a ribeira de
Massueme, foram três quilómetros
não há uma transição entre as coisas.
Caminhar permite espaço para esse
AUMENTA EM MÉDIA por margens muito inclinadas, vi-me processar. Se calhar, é por isso que

60% AO ANDAR A PÉ,


grego para sair de lá”, ri-se o fotógrafo. surgem as ideias”, diz a atriz e dra-
Nesses momentos, pensa sobretudo maturga. E nós ficamos com vontade

MOSTRA UM ESTUDO
no passo seguinte, onde vai colocar de calçar uns sapatos e sair por aí.
o pé com segurança. Ainda assim, rruela@visao.pt

50
PUB

MÉRTOLA
Grande rota do Guadiana - GR 15
KƌŝŽ'ƵĂĚŝĂŶĂĠŽĮŽĐŽŶĚƵƚŽƌĚĞƐĚĞsŝůĂZĞĂůĚĞ^ĂŶƚŽŶƚſŶŝŽĂDĠƌƚŽůĂ͕
ƉĂƐƐĂŶĚŽƉŽƌůĐŽƵƟŵŽĨĞƌĞĐĞŶĚŽŝƟŶĞƌĄƌŝŽƐĂĚĂƉƚĂĚŽƐĂƋƵĞŵŐŽƐƚĂĚĞƉĞƌĐŽƌƌĞƌŐƌĂŶĚĞƐĚŝƐƚąŶĐŝĂƐ

A Grande Rota do Guadiana (GR15), com uma extensão de ŶŚĂƵŵƉĂƉĞůĨƵŶĚĂŵĞŶƚĂůŶĂůŝŐĂĕĆŽĐƵůƚƵƌĂůĞĐŽŵĞƌĐŝĂůĚŽ


165km, é uma via pedestre que se encontra devidamente assi- ƚĞƌƌŝƚſƌŝŽĂŽƐƉŽǀŽƐĚŽDĞĚŝƚĞƌƌąŶĞŽ͘DĂŝƐƚĂƌĚĞ͕ŶŽƐĠĐ͘y/y͕
ŶĂůĂĚĂĞŵĂŵďŽƐŽƐƐĞŶƟĚŽƐ͘dĞŵŝŶşĐŝŽͬĮŵŶĂĐŝĚĂĚĞŝůƵŵŝ- ĐŽŵŽĚĞƐĞŶǀŽůǀŝŵĞŶƚŽĚĂĂŐƌŝĐƵůƚƵƌĂĞdžƚĞŶƐŝǀĂ͕ĚĂĂƟǀŝĚĂĚĞ
ŶŝƐƚĂĚĞsŝůĂZĞĂůĚĞ^ƚŽ͘ŶƚſŶŝŽ͕ĞŵƉůĞŶŽƐŽƚĂǀĞŶƚŽĂůŐĂƌǀŝŽ͕ ŵŝŶĞŝƌĂŽƌŝŽŐĂŶŚĂůŝŐĂĕĆŽĂŶŽǀĂƐŐĞŽŐƌĂĮĂƐĞŝŶƚĞŶƐŝĮĐĂĂ
ĞƐĞŐƵĞĂŽůŽŶŐŽĚŽƚƌŽĕŽĞĚŽƐƚĞƌƌŝƚſƌŝŽƐĚŽĂŝdžŽ'ƵĂĚŝĂŶĂ͕ ƌĞůĂĕĆŽĐŽŵŽŶŽƌƚĞĂƚůąŶƟĐŽĞĂƐŶŽǀĂƐĞĐŽŶŽŵŝĂƐĚĂZĞǀŽ-
ĂƚƌĂǀĞƐƐĂŶĚŽ ĚƵĂƐ ŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞƐ ĄƌĞĂƐ ƉƌŽƚĞŐŝĚĂƐ͗ Ă ZĞƐĞƌǀĂ ůƵĕĆŽ /ŶĚƵƐƚƌŝĂů͘ K ƚĞŵƉŽ ŵŽůĚĂ Ž ƌŝŽ͕ Ă ƐƵĂ ƉĂŝƐĂŐĞŵ Ğ ĂƐ
EĂƚƵƌĂůĚŽ^ĂƉĂůĚĞĂƐƚƌŽDĂƌŝŵĞsŝůĂZĞĂůĚĞ^ƚŽ͘ŶƚſŶŝŽ ƐƵĂƐĚŝŶąŵŝĐĂƐ͘,ŽũĞŽƌŝŽĠƉĂƚƌŝŵſŶŝŽ͕ĠŶĂƚƵƌĞnjĂ͕ĠŚŝƐƚſƌŝĂ͕
ĞŽWĂƌƋƵĞEĂƚƵƌĂůĚŽsĂůĞĚŽ'ƵĂĚŝĂŶĂ͘ĐĂĚĂůƵŐĂƌ͕ĂĐĂĚĂ ĠĐƵůƚƵƌĂĞŝĚĞŶƟĚĂĚĞ͘ƐƚĞƉĞƌĐƵƌƐŽĠƵŵĐŽŶǀŝƚĞăĐŽŶƚĞŵ-
ĂůĚĞŝĂ͕ĂĐĂĚĂǀŝůĂĞĂĐĂĚĂƉĂŝƐĂŐĞŵŽƚĞƌƌŝƚſƌŝŽƉĞƌĐŽƌƌĞƵŵ ƉůĂĕĆŽĚĂƐƉĂŝƐĂŐĞŶƐĞăƉĂƌƟůŚĂĚĂƐŚŝƐƚſƌŝĂƐĞǀŝǀġŶĐŝĂƐƋƵĞ
ǀĂƐơƐƐŝŵŽůĞŐĂĚŽĐƵůƚƵƌĂůĞŶĂƚƵƌĂůƋƵĞƌĞŇĞƚĞĂŚŝƐƚſƌŝĂŵŝ- ĨĂnjĞŵĚŽ'ƵĂĚŝĂŶĂ͕ŽŐƌĂŶĚĞƌŝŽĚŽƐƵů͊KƌŝŽ'ƵĂĚŝĂŶĂĠŽĮŽ
ůĞŶĂƌ ĚĞƐƚĞ ƌŝŽ͕ ĚĂƐ ƚĞƌƌĂƐ Ğ ŐĞŶƚĞƐ ƋƵĞ Ž ĞŶǀŽůǀĞŵ͘ K ƌŝŽ Ġ ĐŽŶĚƵƚŽƌĚĞƐƚĞĐĂŵŝŶŚŽĐŝƌĐƵůĂƌƋƵĞ͕ĞŶƚƌĞůĐŽƵƟŵĞDĠƌƚŽ-
ŶĂǀĞŐĄǀĞů ĂƚĠ DĠƌƚŽůĂ͕ ŽƵƚƌŽƌĂ ĚĞƐŝŐŶĂĚĂ Ž ƷůƟŵŽ ƉŽƌƚŽ ĚŽ ůĂ͕ ŽĨĞƌĞĐĞ ĚŽŝƐ ŝƟŶĞƌĄƌŝŽƐ ĚŝƐƟŶƚŽƐ͕ ƉĂƌƟĐƵůĂƌŵĞŶƚĞ ĂĚĂƉƚĂ-
DĞĚŝƚĞƌƌąŶĞŽ͘EŽƐƉĞƌşŽĚŽƐƌŽŵĂŶŽĞŝƐůąŵŝĐŽŽ'ƵĂĚŝĂŶĂƟ- ĚŽƐĂƋƵĞŵŐŽƐƚĂĚĞƉĞƌĐŽƌƌĞƌŐƌĂŶĚĞƐĚŝƐƚąŶĐŝĂƐ͘

ǁǁǁ͘ŐƵĂĚŝĂŶĂƚƌĂŝůƐ͘ĐŽŵͮ ǁǁǁ͘ǀŝƐŝƚŵĞƌƚŽůĂ͘Ɖƚ
TRILHOS PARA ABRIR HORIZONTES
Natureza e História. Sim, somos um país rico e, por todo o lado, as autarquias
apostam na criação de percursos, mergulhando no Interior ou calcorreando
a orla costeira. A seleção de uma dezena de trilhos por onde deambular
MIGUEL JUDAS

A cascata das Fisgas do Ermelo é o principal cartão


Trilho de visita do Parque Natural da Serra do Alvão,
das Fisgas situado entre os concelhos de Mondim de Basto e
Vila Real. Trata-se de um cenário natural único, que
do Ermelo reúne, numa área com pouco mais de sete mil hec-
MONDIM DE BASTO tares, a alta montanha transmontana, o exuberante
verde minhoto e abruptas gargantas a fazer lembrar
as margens do Douro. E tudo isto pode ser explorado
e apreciado a pé, no percurso circular com cerca de
12 quilómetros e início e fim na antiga vila de Ermelo
– uma das mais antigas de Portugal, com foral
ga
âme

concedido no século XII pelo rei D. Sancho I. Um dos


troços mais bonitos é o que percorre as selvagens
Rio T

MONDIM
DE BASTO margens do rio Olo, com a água a prosseguir o seu
caminho através de apertadas gargantas, escava-
das numa barreira de resistentes quartzitos, até se
ERMELO precipitar montanha abaixo, de uma altura de cerca
de 200 metros, nas impressionantes quedas de água
das Fisgas do Ermelo, cujo miradouro é desaconse-
5 km lhável a quem sofra de vertigens.

52
Trilho
da Cidade
de Calcedónia
TERRAS DE BOURO

TERRAS
DE BOURO
Rio
Ho

COVIDE
mem

GERÊS
3
vado
5 km Rio Cá

Este percurso circular


desenvolve-se ao
longo de nove quiló-
metros entre as
freguesias de Covide
e Campo do Gerês, por
um território de elevado
interesse histórico, devido
às tradições comunitárias
e a sítios arqueológicos
como aquele que lhe dá o
nome. A Fraga da Cidade,
imortalizada pelos eruditos
do século XVII com o nome
de Calcedónia, é o ponto
central do percurso, que
cruza uma das mais belas
paisagens da serra do Ge-
rês e do Parque Nacional
Em apenas 18 quilómetros, este trilho percorre as margens do rio da Peneda-Gerês, marcada
Rota dos Águeda, ao longo de aprazíveis açudes e imponentes cascatas. pela singular grandiosi-
Cabeços Com início e fim na aldeia de Varzielas, junto à Igreja de São Pedro, dade dos enormes blocos
OLIVEIRA DE FRADES começa-se por subir a serra até ao Alto das Pinoucas, de onde, nos graníticos, batizados, de
dias limpos e a mais de mil metros de altitude, se consegue apreciar acordo com a imaginação
Rio Vo
uga uma vista panorâmica sobre a aldeia do Caramulo e mais além até popular, com nomes de
às serras da Estrela e do Açor; ou, no sentido oposto, até Aveiro e ao animais e de objetos do
oceano Atlântico. Na subida para a aldeia da Bezerreira, predomina a dia a dia. Tem início junto
OLIVEIRA típica paisagem de montanha, dominada pelos imponentes cabeços à capela do Lugar do Calvá-
DE FRADES
de granito que dão nome a esta rota, como é o caso do Cabeço que rio e conduz até ao topo do

2
Abana. Na aldeia, o cenário remete para outros tempos, com o casa- penedo da Calcedónia, ao
rio de granito, o gado a deambular livremente pelas ruas ou o uso da qual se acede através de
5 km
capucha pelos poucos habitantes da aldeia, que não dispensam esta uma fenda, próxima de um
capa de burel. Prosseguimos depois através de antigas levadas, por castro romanizado, hoje so-
entre estreitas passagens nos rochedos, como acontece no Cabeço terrado e de cuja muralha
Rio Águeda
da Solheira, onde o rio assume finalmente a sua forma mais selva- subsistem ainda alguns
VARZIELAS gem, numa sucessão de quedas de água. vestígios.

Rotas das O Castelo de Arouce é o ponto de partida para um dos


percursos pedestres mais bonitos da serra da Lousã,
Aldeias numa jornada de sete quilómetros pelos antigos
do Xisto caminhos serranos que ligavam as aldeias de xisto do
Talasnal e do Casal Novo à sede do concelho. Começa
LOUSÃ
por se descer à praia fluvial da Senhora da Piedade,
agora acessível por uns novos passadiços. À chegada
Rio Ceira ao Casal Novo, onde o caminho de terra batida dá
lugar a um pequeno trilho, avista-se do alto o Talasnal.
Desde aí, desce-se até à antiga Central Hidroelétrica
da Ermida, uma peça de arqueologia industrial que em
LOUSÃ

4
tempos serviu para iluminar a vila da Lousã. Passadas
Castelo as águas da ribeira de São João, que aqui corre em
de Arouce cascata, a estrada volta a alargar-se e, ao longe, já
se vê novamente o castelo. Desde o ponto de partida,
pode continuar-se até ao centro da vila pela Rota dos
Moinhos, que acompanha, ao longo de seis quilómetros,
as bonitas margens da ribeira; ou, em contrapartida,
regressar pelo novo passadiço panorâmico, que faz
ligação entre a Lousã e a praia fluvial.

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 53


5 Azinhal
dos Mouros
LOULÉ

LOULÉ
AMEIXIAL

10 km
Oceano
Atlântico

Em tempos uma das mais


populosas freguesias da
serra do Caldeirão, a aldeia
do Ameixial, a cerca de 40
quilómetros de Loulé, é o
exemplo perfeito de como
o turismo de natureza
pode ser uma solução
para contrariar o isola-
mento. À sua volta foram
criados vários percursos
pedestres, com diferentes
distâncias e níveis de difi-
culdade, que têm atraído
cada vez mais visitantes,
em especial durante o
festival de caminhadas que
anualmente aqui se realiza.
Um dos mais bonitos é o
do Azinhal dos Mouros.
Com 15 quilómetros de
Caminhos do Primeiro enquanto militar e depois como salteador, Zé do Telhado foi
uma figura marcante no imaginário popular da zona norte do País.
extensão, tem início na Zé do Telhado O “Robin dos Bosques português”, como também ficou conhecido
aldeia com o mesmo nome. por, segundo a lenda, “roubar aos ricos para dar aos pobres”, é o
MARCO DE CANAVESES
As pequenas casas, de tema deste percurso pedestre, inaugurado este ano pela câmara de
arquitetura medieval árabe, Marco de Canaveses. Nele é recordado o famoso assalto à Casa do
encavalitam-se na encosta Carrapatelo, ocorrido em janeiro de 1852, poucos dias depois da morte
com vista para o rio Vascão, do proprietário da casa, onde seria assassinado um dos caseiros, o
que um pouco mais abaixo MARCO DE que obrigou as autoridades a tomarem medidas mais musculadas,
CANAVEZES das quais resultaram a captura do ainda hoje celebrado foragido. Uma
marca a fronteira com o

6
a

Alentejo. Trata-se do último FREIXO história recordada neste percurso de 12 quilómetros, que inclui um
eg
âm

rio selvagem do Algarve, conjunto de caminhos rurais na freguesia de Penha Longa, onde a
oT

ou seja, o único que ainda PENHA LONGA proximidade do rio Douro é constante e com passagem junto da Casa
Ri

corre livre, sem barragens de Carrapatelo e da barragem com o mesmo nome. Perto do lugar das
no seu curso, até desaguar Rio Dajas, pode continuar-se a jornada através dos Caminhos do Rio, um
Douro
no Guadiana, já perto de percurso com cerca de dez quilómetros pela freguesia de Sande e São
5 km
Alcoutim. Lourenço, com ligação ao Parque de Merendas de Montedeiras.

É um dos maiores pulmões verdes da Grande


Caminhos Lisboa, mas, ao contrário da vizinha serra de
da serra de Sintra ou do ainda mais próximo Parque Florestal
de Monsanto, a serra de Carnaxide mantém-
Carnaxide se território desconhecido para a maioria dos
OEIRAS moradores desta região. Mas isso tem tudo para
mudar, com a criação, já este ano, de três novos
pórticos de entrada para o Parque Urbano Municipal

7
Serra de Carnaxide, com o objetivo de funcionarem
como ponto de partida para outros tantos percursos
pedestres. São eles o Trilho do Bosque, o Trilho do
Prado e o Trilho da Biodiversidade, que totalizam
CARNAXIDE
cerca de 3,5 quilómetros. Situada no denominado
Complexo Vulcânico de Lisboa, a serra de Carnaxide
OEIRAS tem 211 metros de altitude e serve de fronteira
Rio Tejo natural entre os concelhos de Oeiras e da Amadora.
3 km Mas mais importante do que isso é ser considerada
uma relevante área de conservação da Natureza
a nível regional, que agora pode ser apreciada de
forma segura e confortável.

54 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


9
Levada
dos Cedros
PORTO MONIZ
Ilha da
Oceano Madeira
Atlântico

RIBEIRA
PORTO DA JANELA
MONIZ

RibJane
da
eir la
a
5 km

Construída no século XVII, na


encosta da margem direita
da Ribeira da Janela, é uma
das levadas mais antigas da
Madeira, sendo escavada no
solo da encosta e apenas
calcetada em zonas onde o
solo é mais friável. Com pouco
mais de sete quilómetros, tem
início no Fanal, na Estrada
Regional 209, em pleno
planalto do Paul da Serra,
e atravessa uma das mais
bem preservadas manchas
de floresta Laurissilva, a

8
floresta indígena da ilha, hoje
considerada uma verdadeira
Percurso Num dos troços costeiros mais bonitos do Algarve, este
percurso linear de 5,5 quilómetros evolui ao longo de
relíquia viva. A zona do
Fanal está ainda classificada
dos Sete uma linha quase contínua de arribas, ligando a praia de como Reserva de Repouso e
Vales Vale de Centianes à praia da Marinha, há alguns anos
eleita uma das mais belas do mundo. Esculpidas ao
Silêncio, integrando a área de
Parque Natural da Madeira.
Suspensos longo de milhares de anos, as arribas são o elemento Aqui pode ser apreciado um
LAGOA dominante desta paisagem, que num passado distante centenário bosque de tis, no
Rio e
era marcada por imensos vales, associados à foz de qual se destacam “alguns
Arad linhas de água entretanto já desaparecidas, mas que exemplares anteriores ao
deram origem aos denominados “vales suspensos”. próprio descobrimento
Aqui e ali, num testemunho desse passado remoto, da ilha”. Grande parte do
LAGOA mas também da intensa erosão costeira que por aqui se caminho é percorrida à beira
faz sentir, algumas das arribas ainda são cortadas por de um estreito desfiladeiro
pequenas cascatas. O caminho faz-se através de trilhos (devidamente protegido),
CARVOEIRO previamente existentes, onde foram instaladas barreiras rodeado de altas e frondosas
BENAGIL
Oceano de proteção nas zonas de maior risco e introduzidos árvores e pequenas quedas
Atlântico 5 km miradouros de vistas largas sobre o oceano. de água.

Algar Com pouco mais de seis quilómetros de extensão,


este recém-inaugurado percurso circular liga dois dos
do Carvão monumentos naturais mais famosos da ilha Terceira, nos
– Furnas Açores: o Algar do Carvão e as Furnas do Enxofre. O primeiro
é uma cavidade vulcânica com 90 metros de profundidade,
do Enxofre criada há cerca de três mil anos sob a forma de chaminé
ANGRA DO HEROÍSMO perfeita. Acede-se através de um túnel, que termina numa
espécie de varanda, da qual sai uma escadaria em direção
Ilha ao interior da Terra. Olhando para cima, uma nesga de céu
Terceira espreita através de um círculo quase perfeito, no topo de
um cone coberto da mais luxuriante vegetação. Lá bem no
fundo, fica uma lagoa interior de águas límpidas, alimentada
Furnas Algar
do Enxofre do Carvão
pela chuva e por pequenas nascentes submersas. Já as
Furnas do Enxofre englobam um conjunto de fumarolas
ANGRA ainda ativas, que tingem de cor avermelhada o solo à sua
DO HEROÍSMO volta, exalando para a atmosfera um forte cheiro a enxofre,
que recorda aos visitantes as poderosas forças criadoras
Oceano destas ilhas. Ambos os locais estão inseridos no Parque
Atlântico 10 km
Natural da Ilha Terceira e integrados na Área do Planalto
Central e Costa Noroeste.

56 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


N
COM O APOIO

Na miríade monótona de fatos escuros


e gravatas que povoa a COP26, três

À entrada da última volta de negociações, ou quatro pessoas destacam-se pelos


seus diademas de plumas na cabeça.
Uma delas é Alberto Terena, que veio
a cimeira do clima ainda pode trazer algumas a Glasgow, na Escócia, pedir ao resto
do mundo que proteja os 370 povos
surpresas. Mas o que já foi conseguido até indígenas do Brasil das alterações cli-
máticas – e das políticas destrutivas de
agora superou as expectativas, apesar de Bolsonaro. “Estamos sendo afetados
diretamente pela mudança climática

alguns soluços pelo meio – expectativas no nosso território e pelas políticas


deste governo, que incentivam o des-
matamento, as queimadas...”, acusa
essas que, na verdade, eram muito baixas o representante do Conselho Terena
(povo do Mato Grosso do Sul). “Viemos
LUÍS RIBEIRO, EM GLASGOW pedir apoio para que o mundo socorra
o povo indígena. Há vidas que estão
sendo ameaçadas e mortas.” Alber-
to não perdeu a esperança. Se assim
fosse, não estava hoje na Escócia, a
chamar a atenção para o problema do
seu povo. Mas também não tem visto
sinais sérios de uma ação efetiva con-
tra os problemas ambientais durante
a cimeira do clima.
A chuvosa e cinzenta Glasgow está
a deixar um sabor agridoce na boca de
ativistas e delegados dos quatro can-
tos do mundo que todas as manhãs se
encaminham para o SEC Centre, onde
decorrem as negociações de mitigação
e adaptação às alterações climáticas.
Por um lado, confirma-se que só por
milagre a meta mais ambiciosa do
Acordo de Paris será atingida. Por ou-
tro, tudo se encaminha para que o au-
mento de temperatura não atinja níveis
insustentáveis. De acordo com duas
análises, os compromissos assumidos
até agora asseguram que o aumento da
temperatura média global fica abaixo
dos 2º C até ao final do século. Uma
projeção do Climate Resource, calcula
um aumento de 1,9º C. Outra estima-
tiva, da Agência Internacional para a
Energia, aponta para 1,8º C.
Um pessimista vê aqui um copo
meio vazio: a 26ª Conferência das Par-
tes da Convenção-Quadro das Nações
Unidas para as Alterações Climáticas
(COP26) destrói de vez a possibilida-
de de não ultrapassarmos o aumento
de temperatura de 1,5º C, o objetivo
ideal de Paris. Um otimista vê o copo
meio cheio: à partida para a Cimeira
do Clima, somadas todas as medidas
propostas pelos países, o mundo enca-
minhava-se para um aumento de 2,7º
C. Um realista lembra que o copo está
cheio de promessas, não de garantias, e
que a política é volátil – os EUA, sob o
GETTY

Presidente Obama, também assinaram

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 59


COM O APOIO

GETTY
de que era um acordo “injusto” e que O fim do desastre? Países que, Aquele fundo devia estar acessível
o país tinha o direito de se desenvolver juntos, têm 85% das florestas desde 2020, mas ficou 20% abaixo
economicamente. mundiais prometeram acabar do estipulado. Na primeira semana da
A Union of Concerned Scientists com a desflorestação até 2030 COP26, os líderes disseram que, em
(UCS, União dos Cientistas Preocu- 2022, o objetivo será atingido.
pados, uma das organizações não Está longe, porém, de ser suficien-
governamentais mais respeitadas no do Acordo de Paris, por exemplo, te. Um relatório da ONU estima que
tema das alterações climáticas) conti- serão as mais complexas e técnicas só a adaptação custará, em 2030, en-
nua cética sobre os avanços da COP26. da cimeira. O documento funcionará tre 140 e 300 milhões de dólares por
“Apesar do anúncio de iniciativas glo- como um guia para as NDC (contri- ano. E ainda há que estabelecer todos
bais importantes, na primeira semana buições determinadas nacionalmente), os pormenores relacionados com o
das discussões climáticas de Glasgow delineando uma série de parâmetros acesso ao crédito e o tipo de medidas
não tem havido progresso suficiente iguais para todos a que os planos de que têm direito a estes apoios.
em temas centrais, como aumentar descarbonização – que cada país tem O indígena brasileiro Alberto Te-
a ambição na redução de emissões, de entregar a cada cinco anos – terão rene só pede para que os países mais
melhorar os compromissos financei- de obedecer para garantir a eficácia ricos não entreguem o dinheiro de
ros e lidar com as perdas e os danos de e a transparência das medidas. Não bandeja a Bolsonaro. “O financia-
uma forma consistente”, critica Rachel é uma negociação fácil. A China, por mento vai para os governos que es-
Cleetus, diretora de políticas e econo- exemplo, tem-se mostrado reticente tão destruindo o meio ambiente e os
mista-chefe do Programa de Clima e a aceitar certas regras para tornar o povos. A nossa preocupação é essa.
Energia da UCS. “A verdade é que os processo mais transparente. Os governantes desses países têm de
compromissos das nações para redu- Nestes últimos dias serão também tratar com as lideranças indígenas,
zirem as emissões de gases com efeito definidos os sistemas de compra e trabalhar com elas para atuarmos
de estufa continuam abaixo daquilo venda de emissões de carbono, outro juntos na preservação do ambiente e
que a Ciência mostra ser necessário, tema espinhoso. Mas as discussões dos povos.”
mesmo enquanto impactos climáticos relacionadas com o financiamento Na reta final da COP26, Alberto
devastadores se têm feito sentir por serão mais duras. Os países mais ricos encara o que falta da cimeira com
todo o mundo.” haviam prometido 100 mil milhões de realismo: uma coisa é o que os líde-
dólares por ano em crédito para os res dizem, outra o que fazem. “Não
O QUE ESTÁ POR VIR países mais pobres fazerem a tran- acreditamos nas promessas”, resume.
O mais difícil ficou para o fim. As sição energética e para se adaptarem “A fala é uma e as ações são outras.”
discussões sobre o Livro de Regras aos impactos das alterações climáticas. lribeiro@visao.pt

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 61


OS TENTÁCULOS
DA LULA
NETFLIX

62 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


Os recordes de audiência de Squid Game provam
que os originais internacionais da Netflix
se tornaram centrais para o modelo de negócio
da empresa e podem ajudar a salvá-la
de uma concorrência cada vez mais feroz
NUNO AGUIAR

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 63


Squid Game O guarda-roupa
da série foi a escolha de
muitos norte-americanos para
o Halloween (e proibido em
algumas escolas)

P
Pânico
e fraude
A popularidade da
série Squid Game
representou uma
mina de dinheiro
para a Netflix,
mas também
uma oportunidade
para enganar
investidores
ingénuos. No
final de outubro
foi criada uma
criptomoeda
chamada SQUID,
“Para mim, o mais excitante seria que o próxi- cujo valor
mo Stranger Things viesse de fora da América. ultrapassou, em
Até agora, historicamente, nada dessa escala poucos dias, os
veio de outro local que não seja Hollywood.” A $2 800. A ideia
afirmação foi feita em 2018 por Ted Sarandos. era que cada
Três anos depois, o desejo do co-CEO (cargo token comprado
que partilha com Reed Hastings) da Netflix servisse, mais tarde,
tornou-se realidade graças ao êxito monumen- para jogos online
tal de Squid Game, a última prova de que as inspirados na série.
Alguns órgãos
apostas internacionais da empresa têm dado
de comunicação
frutos e podem garantir-lhe o futuro. ria, responsável pela programação original da
social alertaram
É uma série de televisão sul-coreana sobre para o facto de
empresa com um olho na oferta internacional.
um grupo de adultos com vidas problemáticas os investidores No entanto, o sucesso destas séries produ-
que arriscam a vida numa sequência de jogos não estarem a zidas fora dos EUA não é propriamente uma
infantis pela hipótese de ganharem 33 milhões conseguir vender novidade. Parece, aliás, ter-se tornado um pi-
de euros. Uma mistura de Battle Royale com os tokens que lar estrutural na estratégia de crescimento da
Hunger Games, que explora as desigualdades tinham comprado, Netflix. Casa de Papel, Lupin, Dark, Narcos
da sociedade sul-coreana, mas cuja estética po- seguindo-se um transformaram-se em êxitos na plataforma,
dia ter saído de um anúncio à nova PlayStation. colapso total do com o mercado asiático a tornar-se cada vez
A descrição talvez não grite “êxito mundial”, valor da moeda mais apetecível. “A Netflix está superfocada
mas Squid Game (jogo da lula, em português) para os $0. nos mercados internacionais para crescer”,
acabou por se tornar a série mais vista de Estima-se que os explica à VISÃO Ajay Mago, advogado e sócio
sempre da Netflix. Segundo dados da empre- utilizadores tenham da EM3, especializado nesta área. “Muito do
sa – cuja veracidade não é possível compro- perdido quase três seu orçamento está alocado a séries na Índia,
var –, em menos de um mês, 142 milhões de milhões de dólares. na Coreia do Sul, no Japão e na Nigéria.”
utilizadores viram pelo menos dois minutos Ao mesmo tempo, A lógica é fácil de perceber: produções locais
da série. Quase o dobro do anterior recorde a popularidade da funcionam como mega-ações de marketing
detido por Bridgerton (82 milhões). Ela chegou série reacendeu os para a plataforma de streaming. Oportunidades
a nº 1 em 94 países. habituais receios para angariar novos utilizadores em mercados
de imitação por
Além dos méritos da série, que cruza ingre- normalmente menos saturados do que o nor-
parte de crianças
dientes que costumam resultar em audiências te-americano. Veja-se a atenção mediática que
de alguns dos
(violência, mistério, nostalgia... ), por detrás jogos fatais da
está a receber Glória, a primeira série portu-
deste sucesso está uma popularidade crescente série. Apesar guesa produzida pela Netflix (a VISÃO escreveu
da cultura pop sul-coreana, uma explosão de de ter suscitado sobre ela na edição da semana passada). “Vemos
reações nas redes sociais mal ela se estreou – vários artigos e o conteúdo original e de produção local da
com memes no Twitter e vídeos no TikTok com de as autoridades Netflix como um dos diferenciadores-chave e
42 mil milhões de visualizações –, a capacidade garantirem estar uma das vantagens competitivas [da empresa]”,
única da Netflix para apresentar versões do- atentas, não notava o analista da UBS, Eric Sheridan, no
bradas da série em 34 línguas e uma máquina houve relatos arranque deste ano. A estratégia parece estar
de marketing bem oleada. de violência em a dar frutos. Até nos EUA, onde a procura por
A plataforma de streaming achava que Portugal. séries de língua não inglesa aumentou 71% nos
tinha um êxito regional nas mãos, mas qua- últimos dois anos.
se não promoveu a série fora da Ásia. “Não
poderíamos imaginar que seria tão grande DE HOLLYWOOD A MONSANTO
mundialmente”, admitiu à Vulture Bela Baja- Os motivos também são financeiros. Os es-

64 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


Glória A primeira série
portuguesa da Netflix estreou-se
a 5 de novembro

esgotam o interesse da Netflix num conteúdo.


The Crown é uma série muito cara, mas lim-
pa todos os anos os Emmy. Roma, o filme de
Alfonso Cuarón, pode não ter sido visto por
muita gente, mas ganhou três Oscars.
Os especiais de Chappelle são capazes de do-
minar as conversas e marcar a atualidade. Neste
último caso, talvez não pelos melhores motivos.
Os seus comentários sobre a comunidade tran-
sexual provocaram um dos raros momentos de
publicidade negativa para a Netflix, com protes-
tos de trabalhadores da empresa e profissionais
a ameaçarem não voltar a trabalhar para ela.

FATIA MAIS PEQUENA


Embora a Netflix domine o mercado e tenha
conseguido tornar-se quase um sinónimo de
streaming, alguns analistas argumentam que
a sua posição é mais precária do que aparenta.
Após ter sido pioneira neste espaço, tem visto

‘Glória’
nascer à sua volta novas plataformas e um re-
forço das já existentes. Algumas com bibliotecas da Amazon para se afirmar no espaço do strea-
invejáveis (Disney, HBO/Warner), outras com ming é uma série inspirada em O Senhor dos
rios de dinheiro para gastar (Apple, Amazon). A primeira série Anéis que custou 465 milhões a produzir, a que
A Netflix continua a crescer, mas a sua fatia da portuguesa se somam 250 milhões pelos direitos do livro
tarte tem ficado mais pequena. produzida pela de J.R.R. Tolkien. A Disney pagou quatro mil
No segundo trimestre deste ano, pela primei- Netflix estreou- milhões de dólares pela Marvel (e cada episódio
ra vez, a Netflix ficou abaixo de 50% na procura se no dia 5 de das suas novas séries custa mais do que toda a
por originais de plataformas de streaming, mos- novembro e, no temporada de Squid Game).
tram os dados da Parrot Analytics. A procura arranque desta O mundo do streaming vive uma corrida ao
por conteúdos originais noutras plataformas semana, já tinha armamento, em que as diferentes plataformas
disparou 196%, desde meados de 2019. chegado a número procuram chegar o mais rápido possível a novos
Longe vão os tempos em que os canais e es- 1 no top nacional países, novos utilizadores e a novos conteúdos
túdios achavam que ter as suas séries na Netflix da plataforma para alimentar as suas bibliotecas. A indústria
era apenas um bónus de notoriedade. “A Netflix de streaming. vive em grande rotação, com uma sequência de
foi-se tornando um monstro. A dada altura, Glória, realizada aquisições (Amazon compra a MGM) e fusões
os concorrentes começaram a fundar as suas por Tiago Guedes, (WarnerMedia com a Discovery) envolvendo
próprias plataformas de streaming e a Netflix ultrapassou Squid valores cada vez mais altos.
percebeu que tinha de construir catálogo”, re- Game e Criada no Boucherie Mendes nota que “o grande ponto
ranking das séries.
corda Boucherie Mendes. “Quando decidiram das plataformas não é que as pessoas vejam,
É um thriller de
que a sua pegada deveria ser global, começaram mas que continuem a assinar o serviço”. Em
espionagem, que
a comprar por todo o mundo. Em Portugal, conta a história
princípio, uma coisa está ligada à outra. Mas
quando chegaram, compraram à SIC uma de um centro não necessariamente. “É importante criar a
telenovela e os especiais do Sinel de Cordes.” norte-americano ideia de que há sempre coisas novas para ver.”
A Netflix entrou numa corrida contra o tem- de transmissões Séries como Squid Game ajudam a criar
po, à medida que foi sendo privada de séries e situado na aldeia de esse FOMO (fear of missing out). O seu sucesso
filmes que compunham a sua biblioteca – e que Glória do Ribatejo ainda não está refletido nos resultados da em-
regressaram aos seus produtores originais ou que, durante a presa no terceiro trimestre, mas existe bastante
ficaram mais caros. Porque há de a Disney au- ditadura, transmitia expectativa para os três últimos meses do ano,
torizar que filmes da Marvel estejam na Netflix, propaganda com a empresa a estimar um crescimento de
agora que tem o seu próprio canal de streaming? ocidental ao Leste 8,5 milhões, empurrada pela série sul-coreana
A fúria de produção da Netflix transformou- europeu. “Uma e pela entrada de Seinfeld na plataforma.
-a no maior estúdio norte-americano. Só este guerra de ondas Há quem tema que o domínio da Netflix, que
ano, estima gastar quase 15 mil milhões de euros hertzianas com tem uma fórmula relativamente uniformizada,
em conteúdo original. E rapidamente concluí- mensagem que reduza a diversidade do entretenimento. Há
ram que ele não tinha de ser falado em inglês. vinha do Bloco de também riscos para as indústrias nacionais?
Uma das vantagens de Casa de Papel ou Leste para a Europa Boucherie Mendes reconhece que o sucesso
Squid Game é serem nova propriedade inte- e dos EUA para o da Netflix pode ter consequências – “o públi-
lectual que a Netflix pode explorar, seja com Bloco de Leste”, co pode achar que só a Netflix é que sabe fazer
resumia à VISÃO o
sequelas, filmes ou merchandise. Um pouco séries” –, mas não está pessimista. “Em qual-
argumentista Pedro
como a Disney faz com Star Wars ou os filmes quer mercado, o sucesso é bom para o resto da
Lopes.
de super-heróis. A diferença é que foi muito concorrência e será ótimo para a indústria.” Os
mais barato. Por comparação, a grande aposta próximos anos darão a resposta. visao@visao.pt

66 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


OS TERRÍVEIS PR
O desporto, em geral, e o futebol, em particular, tornaram-
-se armas de sedução em massa que as petromonarquias
do Golfo Pérsico tentam usar a seu favor. A aquisição do
Newcastle pela Arábia Saudita é apenas o último exemplo
FILIPE FIALHO

68 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


ÍNCIPES DA BOLA

Al Thumama Inaugurado há três


semanas, este é um dos oito estádios
do Qatar onde se vai disputar
o polémico Mundial de 2022

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 69


O
O que podem ter em comum cinco
craques da Seleção Portuguesa de
Futebol (João Cancelo, Danilo Pereira,
Rúben Dias, Nuno Mendes e Bernar-
do Silva) com um antigo e corrupto
ditador paquistanês (Pervez Mushar-
raf), um ilustre prisioneiro político
do Médio Oriente (Ahmed Mansoor),
o atual ministro da Informação do
Líbano (George Kordahi), o general
Abdel Fattah al-Burhan (responsável
pelo golpe de Estado no Sudão, a 25 de
outubro) e os mais de 20 milhões de
iemenitas que passam fome e contri-
os famosos fundos soberanos destes
três Estados da Península Arábica –
instrumentos financeiros controlados
pelos clãs dirigentes e destinados a
multiplicar os capitais acumulados com
o ouro negro – estão a colonizar os se-
tores estratégicos do Ocidente, como
tem documentado o Instituto Peterson
(PIIE, sigla em inglês).
Apresentemos um exemplo qua-
se anedótico. Nesta quinta-feira, 11
de novembro, deveria estrear-se nas
principais salas de cinema árabes o
filme Eternals, o mais recente êxito da
Marvel, com realização da oscarizada
Chloé Zhao. No entanto, o público
não terá oportunidade de assistir à
mesma versão que está a ser exibida
em Portugal e no resto do mundo.
Motivo: os censores sauditas, cataris e
afins não admitem que a película inclua
uma personagem heroica e homosse-
xual (Phastos, interpretado por Brian
Tyree Henry), que se dá ao desplante
de trocar beijos e de praticar outras
blasfémias com o parceiro. E a em-
presa responsável pela obra, a Disney,
pouco ou nada vai fazer para impedir
que as autoridades locais extirpem as
cenas que consideram incompatíveis
com a sharia, a lei islâmica. A justifi-
cação é fácil de dar. A firma que ainda
buem, de forma trágica e involuntária, tem o apelido do homem que mais
para aquilo que a ONU define como o Oscars de Hollywood arrebatou, um
“maior desastre humanitário da atuali- império mundial do entretenimento,
dade”? A resposta é simples. Direta ou não quer chatices com um dos prin-
indiretamente, todos dependem do di- cipais acionistas, a Public Investment TAMIM BIN HAMAD AL THANI
nheiro e dos caprichos de três famílias Authority (PIF). Tradução: a Disney
reais que controlam os destinos de três não quer chatices com o indivíduo 41 anos
influentes países do Golfo Pérsico: os que, de facto, manda na PIF e na Ará-
Família Thani (dinastia real
Saud (Arábia Saudita) os Thani (Qatar) bia Saudita, Mohammed bin Salman,
desde 1847)
e os Nahyan (Emirados Árabes Unidos). vulgo MBS. O príncipe herdeiro, de 36
Petromonarquias absolutas têm anos, gosta de se apresentar como um Emir do Qatar (desde 2013)
líderes com uma ambição desmedida reformista que pretende desenvolver Dono do Paris Saint-Germain
e agendas políticas que influenciam o reino a ritmo acelerado e com um F.C. (desde 2011)
cada vez mais os destinos globais. Ao
Qatar Investment Authority – fundo
contrário dos tumultos e das mudanças soberano do emirado (€325 mil
violentas que, desde 2011, ocorreram milhões em ativos que vão do Barclays
em várias Repúblicas da região – ca- à Volskwagen)
sos da Líbia, Iémen, Síria e Egito –,
estas dinastias têm demonstrado uma O SPORTSWASHING (A Nasser al-Khelaifi – presidente
enorme capacidade de sobrevivência e
adaptação, graças às milionárias receitas
INSTRUMENTALIZAÇÃO do PSG (ex-tenista profissional e
professor de ténis do emir, presidente
do gás e do petróleo. Os reequilíbrios DO DESPORTO PARA do grupo de media beIN e gestor dos
investimentos desportivos do emirado)
BRANQUEAR A IMAGEM
geopolíticos dos últimos anos, na se-
quência da chamada Primavera Árabe,
e a necessidade de diversificar investi-
mentos e de diminuir a dependência DE FIGURAS OU
dos combustíveis fósseis lançaram os
governos de Riade, Doha e Abu Dhabi
REGIMES POLÉMICOS)
(o mais rico dos emirados) numa corrida É ALGO CADA VEZ
MAIS ÓBVIO
desenfreada pelo poder e reconheci-
mento duradouros. Com esse propósito,

70 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


pro
programa concreto, conhecido por
Visã
Visão2030. Exatamente por esse mo-
tivo, há meros quatro anos, os seus
tivo
súbditos passaram a ter o direito de
súb
ir ao cinema (uma modernice até en-
tão interditada), enquanto as sauditas
conquistaram igualmente a possibi-
con
lidade de conduzir e de viajar sem o
lida
obrigatório acompanhamento de um
obri
tutor masculino. Em simultâneo, o
tuto
país assistiu ao lançamento de mega-
projetos de desenvolvimento turístico
proj
e tec
tecnológico, como a futurista cidade
de Neom,
N junto ao mar Vermelho, ou
a Qiddiya,
Qi a 40 quilómetros da capi-
tal, onde deverá erguer-se uma nova
Disneylândia, capaz de acolher todo o
Disn
tipo de iniciativas culturais e despor-
tivas. É com esse espírito de abertura
tivas
que MBS permitiu que uma megapro-
dução hollywoodesca decorresse no
duç
país – Desert Warrior, com Anthony
Mackie, o novo Capitão América – e
Mac
que ainda a tenha financiado com €55
milhões. Tendo em conta as peripécias
milh
com Eternels, não será de estranhar
que o argumento deste novo filme da
Marvel agrade aos censores de Riade e,
Mar
sobretudo, ao governante que ordenou
sobr
o assassínio
as de Jamal Khashoggi – o
colunista do Washington Post e um dos
colu
principais críticos de MBS, executado
prin
e de
desmembrado no consulado saudita
de IIstambul, em outubro de 2018, se-
gundo os serviços secretos dos EUA.
gun
A lógica da realpolitik pode ser
MOHAMMED
O BIN S
SALMAN
N MANSOUR
MA
ANS
NSOU
SOU
OUR BI
OUR BIN ZA
BIN ZAY
ZAYED
YED AL
YED
YE implacável, e a aquisição pela PIF, no
imp
NAHYAN passado mês, do Newscastle, um dos
pass
clubes históricos do futebol inglês
36 anos – fundado em 1892, quatro décadas
Família Saud (dinastia real desde 50 anos antes do Estado saudita –, agravou
1720) Família Nahyan (dinastia real a polémica em torno do soft power
Príncipe herdeiro e regente do Abu Dhabi desde 1793) dos regimes autocráticos e, claro, das
da Arábia Saudita (desde 2017) Vice-primeiro-ministro dos Emirados reais intenções com que estes des-
Árabes Unidos (desde 2009) pejam milhões nas economias e nas
Dono do Newcastle metrópoles mais desenvolvidas. Os
(desde outubro 2021) Dono do Manchester City
magpies, os adeptos do clube que não
(desde 2008)
Public Investment Fund (PIF) – vence qualquer competição desde 1955
principal fundo soberano saudita ADUG, ADIA, Mubadala – principais e que segue na penúltima posição da
(ativos superiores a €500 mil milhões, fundos soberanos do Abu Dhabi Premier League sem qualquer vitória,
da Uber à Disney) (ativos superiores a um bilião de euros, aplaudem o negócio, disfarçam-se de
Yasir al-Rumayyan – presidente da Boeing à Ferrari) xeques árabes, fazem apostas sobre os
do Newcastle, da Saudi Aramco Khaldoon al Mubarak – presidente do craques a contratar e já celebram os
(maior petrolífera do mundo) e do PIF Manchester City e gestor dos principais títulos que poderão conquistar. Oliver
fundos soberanos do Abu Dhabi Brown, editor do Telegraph, prefe-
re descrever a compra do Newcastle
como um “momento grotesco para
o futebol”, da mesma maneira que a
maioria dos comentadores na pátria
do desporto-rei fala em “infâmia” e
“sportswashing” (a instrumentalização
do desporto para branquear a imagem
e a reputação de algo ou alguém).

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 71


Promiscuidades Os adeptos de
clubes adversários do Newcastle
protestam, mas o novo diretor
do histórico clube inglês, o
multimilionário saudita Yasir
al-Rumayyan, foi no mês passado
recebido por Isabel II

Este fenómeno não é novo, e con- med al Maktoum, primeiro-ministro aéreas do Dubai e do outro emirado
vém sublinhar que apenas quatro dos dos Emirados) comprasse o Liverpool. onde, em 2022, se realizará o próximo
20 clubes que disputam a mediática Agora, após 18 meses de negociações, campeonato do mundo de futebol.
primeira liga têm proprietários britâ- a par de muito lobbying junto do exe- Este insólito torneio, a disputar
nicos (Tottenham, Norwich, Brighton cutivo de Boris Johnson e dos diretores em novembro e dezembro devido aos
e Brentford). Desde o início do século da Premier League, o resultado está rigores do deserto e clima arábicos,
que as equipas e os estádios da Velha feito: o Newscastle, para todos os efei- será o primeiro a realizar-se no Médio
Albion se tornaram um mostruário de tos e com Staveley sentada no conselho Oriente e continua envolto em contro-
símbolos controlados por personalida- de administração, converteu-se num vérsias e guerras judiciais. Pelo menos
des e instituições, cujas credenciais de- dos emblemas mais ricos do mundo, 16 dos 22 dirigentes desportivos que
mocráticas deixam muito a desejar, de pronto a disputar os principais títulos decidiram atribuir a organização do
Roman Abramovich (o oligarca russo da modalidade aos dois outros “clu- Mundial ao Qatar – incluindo o suíço
dono do Chelsea) a Mansour bin Zayed bes-Estado” que não têm limites para Sepp Blatter (ex-presidente da FIFA)
al Nahyan, o vice-primeiro-ministro conquistar craques e adeptos, fintando e o francês Michel Platini (ex-pre-
dos Emirados Árabes Unidos e todo- q.b. as regras do fairplay financeiro im- sidente da UEFA) – estão presos ou
-poderoso patrão do Manchester City. postas pela UEFA, entidade que regula processados por diferentes esquemas
A mais recente jogada de MBS e o futebol no Velho Continente. de corrupção. Mas nada disso com-
do seu PIF, afastando Mike Ashley do Na última década, o City e o PSG – prometeu os planos do executivo de
controlo do Newcastle, deveu-se aos formação francesa detida pela família Doha, a capital onde os talibãs afegãos
bons ofícios de uma mulher experiente Thani e descrita pelo antigo internacio- têm há anos uma delegação oficial em
nestas transações, Amanda Staveley. nal argentino Jorge Valdano como “Paris que americanos e europeus negoceiam
Esta investidora de 48 anos, ex-modelo Saint-Qatar” – gastaram, em conjunto, o eventual reconhecimento do regime
e antiga namorada do príncipe André, mais de €3 mil milhões em contra- fundamentalista de Cabul.
tem sido uma interlocutora especial tações, algo que nem velhos colossos O Qatar é talvez o melhor modelo
para várias dinastias árabes, quando como o Real Madrid e o Barcelona se de que o crime de sportswashing com-
se trata de investir em Londres. Em podem permitir, como se percebeu pensa, uma vez que não para de alargar
2008, aos primeiros sinais da Grande neste verão com a ida de Lionel Messi o seu portefólio de interesses – do
Recessão, ela ajudou as famílias reais para a Cidade-Luz. Quanto a outros Credit Suisse à Volkswagen, passando
do Abu Dhabi e do Qatar a entrar na históricos, como o Benfica ou o Bayern pela Vinci e a Iberdrola. Todavia, com
estrutura acionista do banco Barclays, de Munique, têm de lidar com as exi- a forte concorrência dos Emirados e o
tornou possível a aquisição do ManCity gências dos sócios e dos patrocinado- mau perder de MBS, vamos entrar num
pelos Nahyan e ainda tentou (em vão) res – em que se incluem a Emirates e a novo campeonato, por mais que orga-
que o emir do Dubai (o xeque Moham- Qatar Airways, respetivamente, as linhas nizações de direitos humanos – como
a Amnistia Internacional – protestem e
exijam novas regras para a entrada de
capitais estrangeiros nas competições
e federações desportivas. A Supertaça
de Espanha acaba de ser monopoliza-
EM 2008, AMANDA STAVELEY, da pelos sauditas até 2029, a troco de

EX-NAMORADA DO PRÍNCIPE ANDRÉ,


€30 milhões anuais, e várias provas de
ciclismo, golfe, hipismo, boxe e des-
FACILITOU A COMPRA DO MANCHESTER portos motorizados vão pelo mesmo
caminho. Quem duvidar do que está
CITY PELA FAMÍLIA REAL DO ABU DHABI. em causa que veja as datas das der-
radeiras corridas da atual temporada
AGORA, AJUDOU OS SAUDITAS A ADQUIRIR Fórmula 1: 21 de novembro, Qatar; 5

O NEWCASTLE
dezembro, Arábia Saudita; 12 dezem-
bro, Abu Dhabi. ffialho@visao.pt

72 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


FOCAR
E N T R E V I S TA

JOSÉ PEDRO AGUIAR-BRANCO

“Rangel é a alternativa
“Somos
socialistas
porque somos
sociais-

clara e inequívoca ao PS”


-democratas,
mas somos
socialistas sem
subordinação
a dogmas Em entrevista à VISÃO, o ex-ministro
responsabiliza Rui Rio pela ascensão do Chega,
marxistas, vê nas legislativas a oportunidade de ouro
muito menos para o PSD federar a direita e critica Marcelo pela
“dramatização” e pelo “bullying” à democracia
leninistas, sem a propósito da crise política
subordinação M I G U E L C A R VA L H O LUCÍLIA MONTEIRO
a dogmas de
apropriação
coletiva dos
meios de
produção”
Francisco de Sá Carneiro
Político, fundador
do PPD/PSD
(1934-1980)

74 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


Apoio Rangel é o preferido
do ex-ministro que alimenta a
esperança de ver o PSD federar

C
a direita, excluindo o Chega

om um quadro do pintor
angolano Ricardo Angélico
em fundo e a câmara do
Porto a ver-se da janela do
seu escritório, José Pedro
Aguiar-Branco, 64 anos, ad-
vogado, recebeu a VISÃO e
assim quebrou cerca de dois
anos de silêncio. Gaba-se
de, entretanto, ninguém o
ter ouvido criar ruído no
interior do PSD, mesmo
quando já divergia da estratégia da atual
liderança. Agora, com eleições internas a
borbulhar e legislativas à porta, o antigo
ministro da Justiça e da Defesa explica as
razões do apoio a Paulo Rangel, identi-
fica as fragilidades de Rui Rio e critica o
Presidente da República por ter sido mais
Marcelo…e menos Presidente.
Conhece muito bem os dois
candidatos à liderança do PSD.
Foi amigo pessoal de Rio durante
décadas e Rangel foi “seu” secretário
de Estado da Justiça. Com o
primeiro, ao que sei, não fala. Com
o segundo desentendeu-se em 2010
nas eleições internas, com algumas
tensões pelo meio. Vai apoiar algum
deles convictamente ou escolher o
mal menor?
Não tenho falado com o Rui e também
não falo muito com o Paulo, mas
não por questões pessoais. Converso
com ambos quando quiserem. Em
relação às divergências com o Paulo,
tudo se esclareceu e se arrumou em
devido tempo. Posto isto, vou apoiar
convictamente Paulo Rangel, que é
quem protagoniza a alternativa clara e
inequívoca à governação socialista. Pelo
menos, é melhor do que a confusão que
existe na liderança de Rio… O interesse
nacional reclama que, nas eleições,
haja clarificação das diferenças e dos
projetos que os socialistas e o PSD têm
para o País. E Paulo Rangel garante isso.
Se faz esse retrato do PS, presumo
que rejeite um Bloco Central…
O PS tem propensão para tornar
o Estado totalitário através do
assistencialismo. Quando está no
poder, a economia é menos livre, a
sociedade mais dependente e há menos
liberdade de escolha. O PS não acredita
nos portugueses ao ponto de confiar-
lhes as dinâmicas do desenvolvimento,
do emprego e do que é estratégico.
O facto de PS e PSD se candidatarem
com projetos alternativos claros
é saudável e não impede que, nas

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 75


XXX

questões estruturantes, se façam essas forças políticas integrarem um do PS, diria o mesmo em relação ao
acordos. No governo Passos Coelho executivo estável e coerente com o Bloco de Esquerda, cujo radicalismo se
acordou-se com o PS a revisão do IRC… PSD. Só excluo o Chega de todos os foi camuflando ao longo do tempo por
O PS de António José Seguro não é o cenários. O seu radicalismo, a sua razões estéticas. Quem viveu o 25 de
de António Costa. ideologia, a sua ação política, cívica Abril de 1974 sabe quais são as forças
Os protagonistas podem ser um e comportamental não são saudáveis políticas que estão na origem do BE e o
obstáculo, mas não vejo que, do lado do para o País nem uma governação à quanto, à época, foram desrespeitadoras
PSD, o Rui e o Paulo sejam radicais ao direita pode estar dependente desse das regras democráticas. Se um dia
ponto de quebrar eventuais pontes com partido. O facto de o PSD ter feito chegassem ao poder, a sua natureza
o PS. O Rui até é acusado de ser menos oposição com menor clareza, sem originária emergiria.
claro e assertivo na demonstração das assertividade, com fraca visibilidade Dois dos maiores “pecados” de Rui
diferenças. Quanto ao Paulo, recordo e pouca denúncia dos casos graves da Rio foram o “namoro” excessivo
que foi no Ministério da Justiça do qual governação não foi indiferente para com o PS e acordo com o Chega nos
fizemos parte que propusemos um o crescimento do Chega que, assim, Açores?
pacto para a Justiça que tinha Miguel encontrou o seu espaço de afirmação. Não foram bons momentos. Estive
Galvão Teles, figura proeminente da E se a viabilização de um governo calado dois anos para não criar
área socialista, como presidente da PSD depender de deputados do perturbação e ruído, mas esta direção,
comissão que iria executá-lo. Chega? além da falta de clareza, confundiu
PS e PSD devem ser absolutamente Cada um vota e apoia quem quer. Mas os eleitores. Além disso, António
claros em relação à política de o PSD nunca pode estar dependente de Costa desrespeitou várias vezes o
acordos ou alianças que farão antes uma negociação ou de um acordo que presidente do PSD. Houve enxovalhos
ou depois das eleições? o torne refém do Chega. Se eu fosse que mereciam uma maior defesa da
Sim. O povo já foi enganado em 2015 dignidade institucional do cargo.
pelo PS. Se António Costa tivesse Sá Carneiro dizia: primeiro o
dito que faria uma Geringonça País, depois o partido e, por fim,

“QUANDO RUI RIO FIZER


para governar, Passos Coelho o interesse individual. Olhando
teria beneficiado do voto útil e, o clima no PSD, parece tudo ao
provavelmente, alcançado a maioria
absoluta. E hoje nem havia Chega… O BALANÇO DESTES contrário…
Dizer, como Rui Rio fez, que as
O CDS e a IL são os parceiros
preferenciais para uma solução de
TEMPOS, NÃO VAI GOSTAR eleições internas são péssimas para
o País e prejudiciais para o PSD
governo?
Para garantir governabilidade, não
DOS MOMENTOS QUE é que me parece excessivo. Estes
momentos podem afirmar o partido,
podemos excluir a possibilidade de PROTAGONIZOU” está comprovado historicamente. E se

76 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


Crítico Para Aguiar-Branco,
Marcelo excedeu-se na
dramatização e na criação de um
clima de medo nos eleitores

o Rui for reconduzido na liderança, Outra é unir formas diferentes de ver o da função. Em relação a momentos
também beneficiará disso, sai mais partido, dando-lhes um denominador difíceis do Governo, Marcelo soube
reforçado. As tensões internas têm comum. desdramatizar, retirando o foco de
sido bom investimento eleitoral. Se Como viu o papel do Presidente tensão sobre os portugueses. Neste
os protagonistas elevarem o nível do da República nesta crise política? caso, houve excesso de dramatismo.
debate e falarem para o País, até é A dramatização que o Presidente criou Marcelo fez bem em receber Paulo
tempo de antena reforçado… Mas é no País, contagiando até o líder e a vida Rangel em audiência num contexto
preciso lembrar que, em 2013, quando interna do PSD, é pouco saudável para de disputa interna do PSD e com
Filipe Menezes se candidatou à câmara a democracia. Até parecia bullying! eleições legislativas em fundo?
do Porto em circunstâncias muito Agora já se “descobriu” o óbvio: afinal, Não vejo o gesto como interferência
difíceis para o País, Rui Rio esteve em democracia há sempre soluções e direta no PSD, mas era escusado. Eu
contra o PSD e contribuiu para que 15 dias para a frente já não é problema… não receberia de forma institucional
Rui Moreira fosse candidato. Não me Convenhamos: só este Governo é que algumas pessoas que o Presidente
parece que, nessa altura, tenha dado pode aplicar o PPR?! É mau que os recebe. É o estilo e o perfil dele, mas,
prioridade aos interesses do partido… eleitores façam escolhas condicionadas nestas situações, nota-se mais a pessoa
Em 2019, num conselho nacional, já por este dramatismo e pelo cutelo do do Presidente e menos o Presidente.
aceitou o apoio e o abraço de Menezes medo. O PSD muda à direita com Paulo
em nome da sobrevivência política e Marcelo já nos habituou ao seu Rangel?
do seu interesse pessoal. Embora seja estilo: de uma forma ou de outra, Tenho muita dificuldade em
saudável que aconteça, nem sempre a contagia sempre o quotidiano catalogar dessa forma, até porque
máxima de Sá Carneiro se aplica… político, não é assim? houve decisões e atitudes de Rui Rio
Rio prometeu um banho de ética. Há momentos em que essa forma de que estão muito à direita do PSD,
Vê-o agora mais próximo do estar é saudável. No início, o afeto nomeadamente o acordo com o Chega
pântano? presidencial foi bom, havia necessidade nos Açores e a falta de clareza na
Conheço-o há muitos anos para dizer de distender a relação com a sociedade, delimitação de um eventual acordo
que, quando Rui Rio fizer o balanço até porque o professor Cavaco não de viabilização de um governo com
destes tempos, não vai gostar dos era propriamente o Prémio Nobel do esse partido. Comparando, se calhar
momentos que protagonizou. Afeto. Mas, a dada altura, também já encontramos em Rio um estilo mais
António Costa é o favorito destas havia excesso de afetos para aquilo autoritário no exercício da liderança,
eleições? que deve ser a gestão institucional historicamente mais catalogado com a
Uma disputa interna feita com
elevação pode dar um valor eleitoral
acrescentado ao PSD, reforçando
o seu papel agregador e federador,

XV BIENAL
esvaziando o radicalismo de direita.
É uma oportunidade de ouro para
disputar as eleições em igualdade
de circunstâncias. De resto, o País
precisa de um PS mais moderado,
mais humilde e menos arrogante. Se INTERNACIONAL
os portugueses escolherem os mesmos
protagonistas, será mais difícil que isso CERÂMICA ARTÍSTICA
aconteça. AVEIRO
Na entrevista à VISÃO, Paulo Rangel
criticou o líder do partido por não
ter feito um esforço de congregação
no PSD. É esse o ADN de Rui Rio?
O Rui foi igual a ele próprio: nunca
teve dimensão agregadora nem perfil
para unir as partes num todo à volta
de uma liderança e de um projeto de
governo. Mas custou-me mais vê-lo
mandar às urtigas a obrigatoriedade
de os militantes só poderem votar
com as quotas em dia quando sempre AVEIRO MUSEUMS
defendeu o contrário.
Congregar também dá para meter
tudo e o seu contrário no mesmo
saco…
Uma coisa é uma liderança bacoca que
cola cacos sem um sentido coletivo.
30.10.2021 > 30.01.2022
OPINIÃO
E N T R E V I S TA

Olhar e andar
direita. Tal como as suas ideias para a
Comunicação Social ou a Justiça, por
para a frente
exemplo. Tenho-o como democrata
P O R J O S É C A R L O S D E VA S C O N C E L O S
genuíno, mas vê-lo defender situações
excecionais para não cumprir os

1.
estatutos ou a lei encerra uma forma Sobre o chumbo do Orçamento do que dependesse do PSD, matando
de pensar que não é agradável… E Estado (OE) e suas muito negativas a hipótese de dialogar com ele para,
agora pergunto: é mais à direita consequências, indiscutíveis para por exemplo, viabilizar o OE. Sobre
afirmar claramente que se pretende o País e previsíveis para BE e PCP, tal erro, e o do PS fazer agora em re-
um Estado menos totalitário? Não escrevi no último comentário. Depois, lação ao PSD o que durante décadas
é de esquerda acreditar na genuína tendo Marcelo dissolvido o Parlamen- fez em relação ao PCP (o que sempre
matriz da ascensão e mobilidade social, to, como anunciara, é surpreendente critiquei...), escrevi nesta coluna, em
como Rangel? Mesmo na dimensão BE e PCP contestarem a sua decisão, 6/8 e 6/10 de 2020. Tem atualidade e
confessional, ele foge à catalogação porque deveria ter promovido a apre- o tempo deu-lhe inteira razão...
habitual. Nem sequer nos costumes é sentação de um novo OE. Nas próximas eleições o PS deve
de direita, pelo menos a julgar pelo que Como, depois do que, bem ou ter, penso, uma posição de abertura à
tem sido a postura histórica das direitas mal, já tinha anunciado? E para quê? esquerda e à direita. E, sem prejuízo
em relação a essas questões… Estariam BE e PCP na disposição de de manifestar preferência por uma
As reações à revelação pública viabilizar o que antes inviabilizaram? solução (com garantias de coerência
da homossexualidade de Rangel Se o Governo não cedeu em tudo e consistência) à esquerda, tem de a
revelaram um País mais maduro para o que queriam neste OE, iria ceder admitir por igual à direita. De resto,
temas que já nem deviam ser notícia? no novo? E se a vantagem era haver só após os resultados eleitorais, ex-
Maduro e equilibrado, sim. As coisas mais tempo para tentar um acordo, pressão da vontade dos cidadãos, se
demoram o seu tempo, uma sociedade porque é que BE e PCP não permiti- pode concluir qual a melhor fórmula
não muda com um estalar de dedos. ram sequer a apreciação de governo para o País,
Talvez por isso, conversámos sobre na especialidade, que que corresponda a essa
o tema no passado, no Ministério da não impedia o chumbo Só após os vontade e seja possível.
Justiça. Ainda não se vislumbrava a na votação final global? resultados

4.
legalização do casamento homossexual Nesta ótica não

2.
e falámos da possibilidade de criar Assim, na situação
eleitorais, compreendo – a
um estatuto em tudo semelhante, mas concreta, a deci- expressão da não ser por isso lhe
que não se chamasse casamento. Sou são do Presidente vontade dos ser vantajoso nas elei-
reformista, não sou revolucionário, foi lógica e adequada. ções internas do PSD –,
embora reconheça que, às vezes, é Como o foi a relativa à
cidadãos, se que Paulo Rangel recu-
preciso ser mais radical. data das eleições. Aqui pode concluir se à partida quaisquer
O seu apoio a Rangel fica por aqui? chegados, há que olhar qual a melhor entendimentos com PS.
Quando abandonei o Parlamento e andar para a frente: o fórmula de Não é o que a maioria
em 2019, fi-lo também para que País não pode parar, o dos portugueses quer.
não ficassem dúvidas sobre a minha Governo e o Parlamen- governo para E, de par com o ser ou
postura em relação a lugares ou to continuam em efe- o País, que parecer mais “político”
arranjinhos. Desta vez, nem Rui Rio tividade de funções – e corresponda a e de direita, e menos
nem Paulo Rangel vieram pedir-me este tem sobretudo de “centrista”, do que Rui
apoio. A minha opção por Rangel é concluir o que tem em tal vontade e Rio, pode ser uma das
pura convicção: é o que considero mãos. Porque com o seja possível explicações para o facto
melhor para o futuro do partido e do fim da legislatura, tudo de uma recente son-
País. Sou completamente livre nas o que nela se produziu dagem da Un. Católi-
minhas escolhas. e ainda não foi aprovado perde-se, ca, para RTP/Público, mostrar que
Não está disponível para regressando o processo legislativo à Rio é considerado melhor do que
algo mais? estaca zero. Rangel para líder do partido e para
É uma pergunta tradicional, legítima, No caso da eutanásia, a lei até já primeiro-ministro. E por números
tendo em conta o meu percurso estava aprovada, tratando-se só de bem expressivos: por exemplo, para
no PSD. Respondo também de forma densificar certos conceitos, considera- primeiro-ministro (o que é muito
tradicional, mas de modo a evitar dos imprecisos pelo T. Constitucional. importante numas legislativas), 53%
leituras perversas: neste momento, Defender, pois, que tal devia ficar para dos votantes do PSD preferem Rio
nada mais me motiva. Não está no meu a próxima legislatura, ou seja, voltar e só 37% Rangel (47%/29% no total
quadro mental e não preciso tudo ao princípio, raia o absurdo. dos inquiridos). Mas julgo que isso,
de ocupar qualquer função para ao contrário do que seria natural,

3.
cumprir o meu dever que é tomar O maior erro político de An- terá muito pouca influência nas
partido nestas importantes eleições tónio Costa foi dizer que o eleições internas, em que Rangel se
internas. De resto, tenho muito Governo acabaria no dia em afigura favorito. visao@visao.pt
que fazer no meu escritório
e também já tenho alguma idade…
[Risos]. mbcarvalho@visao.pt

78 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


À distância Usado como
LEGISLAÇÃO medida preventiva em tempo
de pandemia, o teletrabalho
tem agora novas regras

EVA-KATALIN/GETTY IMAGES
Uma carga de teletrabalhos
Perante os “perigos” denunciados pelos sindicatos, os patrões
desconfiam da “pressa” em legislar sobre o trabalho remoto. Mas as
alterações ao regime podem não ser claras nem suficientes

N
CLARA TEIXEIRA

uma corrida para evitar que significar para o próprio trabalhador, esse direito estava limitado aos pais de
o diploma caísse com a dis- isolando-o e limitando a sua capacidade crianças menores de 3 anos e às vítimas
solução do Parlamento, os reivindicativa. Já os especialistas lamen- de violência doméstica. Só as microem-
deputados aprovaram na tam o facto de as medidas não terem ido presas (com até nove trabalhadores)
sexta-feira, 5, o novo re- além do que já era esperado. estão excluídas desta obrigatoriedade,
gime legal do teletrabalho. Quais são, afinal, as principais altera- podendo recusar as pretensões dos tra-
As alterações ao Código do ções ao regime do teletrabalho, ao qual balhadores nestas circunstâncias.
Trabalho, que também se uma parte relevante dos trabalhadores O pagamento das despesas do tele-
aplicam aos funcionários do portugueses aderiu por força da pan- trabalho é outros dos pontos cruciais.
Estado, foram votadas favo- demia logo em março de 2020? Sofia No regime ainda em vigor, os custos
ravelmente apenas pelo PS e pelo Bloco Silva e Sousa, especialista em Direito do com equipamentos e sistemas são um
de Esquerda, e não agradam plenamente Trabalho na Abreu Advogados, destaca, aspeto a acordar (ou não) pelas partes
nem a patrões nem a sindicatos. As crí- como maior novidade, a obrigatoriedade envolvidas, mas a nova redação da lei
ticas começam na falta de iniciativa do de o empregador aceitar o teletrabalho responsabiliza o empregador pelo pa-
Governo em promover um debate pré- por parte dos pais com filhos até aos 8 gamento de “despesas adicionais” como
vio na Concertação Social e terminam anos de idade, e também por parte dos “acréscimos de custos de energia” e
nos “perigos” que o teletrabalho pode cuidadores informais, quando até agora “de rede” de internet (ver caixa). Sofia

80 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


Sousa admite que “nem sempre é fácil
comprovar o aumento de despesas por PRINCIPAIS ALTERAÇÕES NO TELETRABALHO
parte do trabalhador, mas ao menos o
diploma vem explicitar a tipologia dos O diploma, que segue para promulgação presidencial, deverá entrar
custos que devem ser suportados pelo em vigor no primeiro dia do mês seguinte à sua publicação. Eis o que muda
em relação ao regime atual
empregador”. Já os equipamentos (como
computadores) devem ser disponibili-
zados pelo empregador, mas no acordo O acordo de teletrabalho, a efetuar por escrito, pode ter duração
a celebrar poderá ficar explicitado que determinada (por períodos máximos de seis meses, renováveis),
poderá ser o trabalhador a adquiri-los. ou indeterminada. Neste último caso, qualquer uma das partes
Recordando que a lei atual já pre- pode fazê-lo cessar mediante um pré-aviso de 60 dias.
vê que o empregador deve abster-se
de contactar o trabalhador durante o O direito ao teletrabalho, sem necessidade de acordo com o empregador,
período de descanso, Sofia Sousa frisa é alargado a pais com filhos até aos 8 anos (até agora, só se aplicava a
que, na nova redação, “esse direito surge pais com filhos até aos 3 anos), desde que seja exercido de forma rotativa,
muito fortalecido”, ao implicar uma con- por períodos máximos de 12 meses, entre os progenitores – ou seja, períodos
traordenação que pode ir até aos 9 690 máximos de seis meses para cada um –, exceto nos casos em que as funções de um
euros. Ficam também salvaguardados deles não sejam compatíveis com teletrabalho e nas famílias monoparentais.
os trabalhadores (em teletrabalho ou em O direito é também alargado aos cuidadores informais. Contudo, não se aplica
trabalho presencial) que não cumpram nas microempresas (com até nove trabalhadores).
uma ordem recebida durante o seu
período de descanso – algo que, para Se a proposta de teletrabalho partir do empregador, a recusa do
a advogada da Abreu, pode aumentar trabalhador não tem de ser fundamentada. Se partir do teletrabalhador,
a conflitualidade entre trabalhadores e a recusa do empregador terá de ser fundamentada por escrito.
empregadores, com um aumento pre- Mas, ao aceitar a proposta, o empregador pode definir as “atividades” e “condições”
visível de queixas junto da Autoridade em que aceita o acordo.
para as Condições do Trabalho (ACT).
Para Sofia Sousa, esta nova redação do O empregador terá de compensar “despesas adicionais” como “acréscimos
regime do teletrabalho fica, no entanto, de custos de energia” e “de rede” de internet, determinadas “por
“aquém do necessário”. As alterações comparação com as despesas homólogas do trabalhador no mesmo mês
efetuadas “são fruto de um contexto do último ano anterior à aplicação desse acordo”. Os equipamentos devem ser
muito específico como foi o da pan- garantidos pela empresa, ficando explicitado no acordo se serão fornecidos ou se
demia. Podem não ser suficientes para será o trabalhador a adquiri-los.
tornar o regime mais completo e ape-
lativo para ambas as partes. Os regimes O empregador pode chamar o trabalhador com 24 horas de antecedência
híbridos, por exemplo, poderiam ter para reuniões ou ações de formação. É também obrigado a promover
sido aprofundados, mas não o foram”. contactos presenciais entre os trabalhadores e as chefias “com intervalos
não superiores a dois meses”.
“PRESSA” LEGISLATIVA
Para António Saraiva, representante dos O empregador deve abster-se de contactar o trabalhador (em teletrabalho
patrões reunidos na CIP, os partidos de ou trabalho presencial) no período de descanso, exceto em situações de
esquerda que apresentaram as alterações força maior. A violação pode ser punível com coimas de até 9 690 euros.
ao Código do Trabalho “só se preocu-
param com os trabalhadores, não com
os empregadores”. é que sabemos qual é o custo acrescido? sindical para quem, a partir de agora, “o
Defendendo que “a pressa em legislar E se, numa família, ambos os membros teletrabalho pode eternizar-se, quando
foi má conselheira”, o presidente da CIP do casal estão em teletrabalho, qual a deveria ser um recurso para responder
considerou que “os partidos de esquer- entidade patronal que vai pagar o quê?” a uma determinada necessidade e, por
da, nomeadamente o PCP [que acabou Para a sindicalista Andreia Araújo, isso, ser limitado no tempo”.
por votar contra] e o Bloco de Esquerda, membro da comissão executiva da CG- Partindo do pressuposto de que “o
quiseram aprovar no tempo que resta TP-In, o teletrabalho comporta “perigos trabalhador não tem a mesma capaci-
[antes da dissolução do Parlamento] que preocupam bastante”. O isolamento, dade negocial que a entidade patronal”,
uma nova lei que deveria ter sido pri- a exposição da família ao stresse do tra- a dirigente da CGTP alerta para o facto
meiro debatida na Concertação Social”. balho e à desregulação de horários, as- de a nova lei não clarificar, sequer, que a
Em sua opinião, as alterações “têm um sim como a falta de mobilização sindical, entidade patronal é obrigada a continuar
conteúdo ideológico” e deveriam ter deixando o trabalhador mais solitário a pagar o subsídio de alimentação, e de
sido mais equilibradas. E aponta como nas suas reivindicações, são os proble- ser dúbia em relação ao valor a pagar
exemplo o aumento das despesas em mas apontados. “O aspeto mais negativo relativo às despesas com energia e inter-
teletrabalho: “Hoje todos têm um pacote deste diploma é que o teletrabalho não net. “Preocupa-nos esta plataformização
de internet. A não ser que seja necessário é tratado como deveria ser, isto é, como do teletrabalho. É um perigo para os
aumentar a velocidade do acesso, como sendo uma exceção”, sublinha a dirigente trabalhadores”, conclui. csteixeira@visao.pt

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 81


E N T R E V I S TA

VAGA R

Paulina
“Mudam-se os
tempos, mudam-
-se as vontades,/
Muda-se o ser,
muda-se a
confiança;/
Todo o mundo
é composto
de mudança,/
Chiziane
“O meu mundo, a minha raça
Tomando
sempre novas
qualidades”
Luís Vaz de Camões
são finalmente reconhecidos”
Poeta PRÉMIO CAMÕES 2021, A MOÇAMBICANA É DAS
(1524-1580)
VOZES QUE MAIS ESCREVEM, EM PORTUGUÊS,
SOBRE O PAPEL DA MULHER EM ÁFRICA.
“SOU A PRIMEIRA PESSOA PRETA A RECEBER
ESTE PRÉMIO. PORQUÊ AGORA?”,
PERGUNTA A ESCRITORA
QUE RECUSA ETIQUETAS
M A R G A R I D A VA Q U E I R O L O P E S
J O S É C A R L O S C A R VA L H O
em Maputo

82 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


F
E N T R E V I S TA

Foi com exclamações de alegria e muitos ao deus da chuva. Ora, um indivíduo


abraços que a Associação dos Escritores que cresceu num mundo dominado
Moçambicanos (AEMO) recebeu a galar- pelo pensamento ocidental o que vai
doada com o Prémio Camões 2021, mem- dizer primeiro? “Ai, que imoral, deve ser
bro daquela instituição há décadas. Ao feitiçaria, deve ser isto e mais aquilo...”
evento de homenagem a Paulina Chiziane, Ele olha à distância e classifica, mas
no passado dia 4 de novembro, acorreram um nativo já não diz a mesma coisa. As
amigos, admiradores e colegas, numa mulheres despem-se de tudo, fazem
sala que se encheu de alegria e aplausos uma oração linda e dizem: “Deus, olha
durante toda a tarde. “Nós, as mulheres, só como eu estou, nada tenho para além
estamos a dançar desde que soubemos daquilo que me deste quando nasci.
deste prémio”, diz-lhe uma admiradora. Não tenho pão, não tenho água. Por
É com voz firme e indisfarçável or- favor, escuta a minha dor e manda-me
gulho que a escritora inicia a sua breve chuva.” Não sei se estou a fazer perceber
intervenção: “Sou a primeira pessoa preta
a receber este prémio. Isto desperta-nos
“A Voz do Cárcere” a diferença em relação ao indivíduo que
pensa como um ocidental ou como um
para outras reflexões: quem somos nós? A mais recente obra cristão, para logo classificar aquilo como
Porquê agora? O meu mundo, a minha da escritora foi editada um ato diabólico, um ato negativo – vai
raça são finalmente reconhecidos.” Pau- em Moçambique colocar um preconceito sobre o seu
lina é a voz do povo, a escritora que não Uma coletânea de conversas próprio povo.
pretende ser intelectual e que tem feito que Paulina Chiziane e Dionísio Sente que o moçambicano tem
com que a história e a cultura da oralidade Bahule tiveram com reclusos em um “autopreconceito”? Aquilo que
marquem o caminho de Moçambique. várias prisões moçambicanas deu apelida de “autonegação”?
Rejeita a existência de uma única forma corpo a este livro, que, segundo É muito sério. Também ainda não houve
correta de falar português e pede a todos a escritora, já está a ter impacto tempo suficiente para conversarmos
que não calem a sua. “O nosso país tem na sociedade civil e a motivar muito sobre o que nós somos. Vou dar-
muitos ‘português’, porque cada um co- respostas a problemas que o lhe outro exemplo, muito interessante:
loca uma marca sua na língua portuguesa. governo não tem conseguido o mundo ocidental e as suas religiões
Mas porque é que a maior parte das coi- resolver sozinho. olham para o corpo da mulher como
sas que se escrevem sobre africanos são um lugar de pecado. Daí que, quando
escritas com o olho do outro e não com se vai batizar o menino, dizem “Em
o nosso? Mesmo nós, escritores, muitas continuamos colonizando-nos a nós nome do pai dele, do filho, que é ele,
vezes escrevemos com preconceito dos mesmos, por querermos seguir o rigor do espírito santo”, menos da mãe que
nossos. Há muita autocolonização, au- do outro e não olharmos para dentro o pariu, enfim... É uma filosofia de
tonegação...”, lamenta. “Os portugueses de nós próprios. Este é um problema exclusão, uma visão do mundo típica
trouxeram a língua portuguesa, que eu muito sério em todas as esferas, e tem do Ocidente. Caminhei muito por este
aprendi e uso como quero; não podia de haver este trabalho da parte das país, e as mulheres do Norte são todas
deixar de trabalhar, porque o meu por- pessoas, de sentirem que devem ser enfeitadas, usam maquilhagem, são
tuguês não era o melhor”, sublinha, antes livres. Sentir a liberdade da sua própria lindas, todas coloridas. Não percebia
de terminar com um apelo, em jeito de raça, da sua própria língua, da sua porquê, mas um dia, numa conversa já
desafio: “África, liberta-te!” própria terra e na sua relação com o mais profunda, elas diziam-me que o
A VISÃO aproveitou a deixa, e foi pre- mundo. É difícil explicar isso em poucas corpo da mulher é o lugar do sagrado.
cisamente por esse apelo que começou a palavras, mas creio que percebe o que Mas como? E perguntaram-me: “De
conversa com a escritora, num final de estou a dizer. onde é que tu vens?” Nasci do ventre
tarde quente de Maputo, no conforto e Defende que há várias línguas da minha mãe, a minha mãe, do ventre
descontração de um banco de jardim. portuguesas, que tem o seu da mãe dela, e assim sucessivamente
No final da sua intervenção, pedia: português e destaca-se precisamente até ao princípio do mundo. Então,
“África, liberta-te!” Paulina diz por isso, por usar muito a oralidade, disseram-me: “Nós, na nossa cultura
que não é uma romancista, que parte da cultura de um povo. Como é macua, celebramos o corpo da mulher,
conta histórias. Que histórias tem que ela contribui para a construção porque é dentro do seu ventre que Deus
África para contar? Que pedido de da identidade? É isso que falta? depositou as sementes da eternidade.”
liberdade é esse? Não só. Nós temos preconceitos Ai, que romântico, que poético, que
Foram muitos anos de colonização, em relação às nossas crenças e aos lindo! Então, o indivíduo, o negro
muitos anos de alienação de Portugal, e nossos hábitos. Às vezes, fazemos a africano moçambicano, que cresce
então nós tivemos a independência da interpretação da nossa realidade cultural no mundo ocidental, vai dar uma
terra. Mas a independência das nossas com os olhos de um europeu. Vou dar interpretação completamente diferente
mentes, para nos assumirmos como um exemplo: um antropólogo ou um ao corpo. E eu estou cansada de ver
africanos e como moçambicanos... escritor vem falar da cerimónia de pedir artigos que só falam da beleza ou do
isso ainda é um processo. O que eu chuva aos deuses, que é uma dança nua, cuidado da mulher macua e condenam
digo muitas vezes é que o colonialismo em que as mulheres vão para o meio da isto e mais aquilo, classificam isto e
português já se foi e, agora, nós floresta e dançam nuas para pedirem mais aquilo. Não há este hábito de

84 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


dialogar com a própria cultura. Nós A voz do povo Paulina Chiziane a medida, a dimensão que tem... fiquei
ainda não atingimos esse nível, querida. diz que continuará a caminhar para surpresa. Por exemplo, vou para o
Ouvi uma entrevista sua, de há levar a cultura e as tradições de Brasil, vou para Portugal e digo: “Meu
cerca de 20 anos, em que falava Moçambique mais longe Deus! Essas histórias que, no princípio,
precisamente das mulheres eram vistas como histórias menores,
do Norte, da cultura macua, e séculos de repressão, de tal forma que, afinal, conseguem ter este alcance.”
identificava alguns problemas quando eu falo da libertação africana, Eu sabia que, dentro de casa – neste
que parecem ser exatamente os de esse “África, liberta-te!” é nesse sentido. caso, dentro do meu país –, nem todo
hoje. Não avançámos nada em duas Temos de olhar para aquilo que é nosso. o mundo me olhava com bons olhos.
décadas? Há coisas más, claro. Mas também Eu não fazia comentários, preferia
Estamos a caminhar... Olha, vou ser há coisas boas. Uma das coisas boas trabalhar, publicar dentro e fora de
sincera: eu, porque ando muito – ou é essa: eu fiquei muito orgulhosa Moçambique. Não tinha a real noção
andava, agora nem tanto [risos] –, quando me disseram que, no ventre da do que estava a fazer, caminhei mesmo
sempre fui vendo outras culturas, fui mulher, estão colocadas as sementes da por gosto.
dialogando com outras culturas e trazia eternidade (que lindo e que verdade!). Continua a aprender com as viagens,
isso para os meus livros. Recebi muita Então, há um trabalho a ser feito, que com as pessoas que se cruzam
crítica de moçambicanos que diziam: temos de fazer; leva o seu tempo, consigo, com essas histórias que
“Não, Paulina, isso é superstição, isso sem dúvida. ouve em redor da fogueira? Mas
não merece ser colocado num livro.” Há muito tempo, dizia que, em agora é outra fogueira, não é?
É vergonha, de alguma forma, da Moçambique, a sua obra tinha Sim, outras fogueiras. Muito
cultura? três públicos: um que aceitava e recentemente, trabalhei na produção
Autonegação! Foram quase cinco lia os seus livros, outro que não a do livro A Voz do Cárcere, com o jovem
lia porque não consegue ler, e um Dionísio Bahule (ver caixa). Nas prisões,
público mais intelectual, que não a eu chorava todos os dias. Foi o trabalho
aceitava. Agora, já aceita? mais duro que fiz na vida.

“ÀS VEZES, FAZEMOS


Que remédio [risos], são obrigados Como era entrevistar as reclusas?
a aceitar. Fazíamos uma roda de conversa. Nem
A INTERPRETAÇÃO DA Tem noção de que está a fazer esse
caminho de libertação quando
chegava a ser entrevista, era uma
conversa, do género: “O que significa ser
NOSSA REALIDADE conta uma história, dessas que são
contadas à volta da fogueira, que
mãe na situação de reclusa?” Essa sessão
foi a mais dolorosa, todos chorámos.
CULTURAL COM OS fazem parte da sua construção
enquanto pessoa?
Foi uma coisa muito forte, porque há
mães com nove filhos, condenadas sei
OLHOS DE UM EUROPEU” Eu gosto de fazer o caminho. Agora, lá a quantos anos. Foi muito bonito

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 85


E N T R E V I S TA

Exemplo A caminho da Associação


dos Escritores Moçambicanos,
Paulina foi abraçada por várias
admiradoras que pediram fotografias,
desdobraram-se em elogios e
agradeceram-lhe a voz ativa

coisa que me apetece, que me dá


na cabeça. Já escrevi poesia, contos,
ensaios, já fiz um pouco de tudo; então,
se eu aceitasse ser isto ou aquilo, acho
que isso ia limitar a minha liberdade, é
só isso. Eu gosto de vadiar [risos].
Em Moçambique, há ainda muitas
pessoas que não sabem ler. Gostava
que a sua escrita voltasse à oralidade,
na forma como olhou para ela? Que
as suas histórias ganhassem essa
perceber que uma mulher, quando é Foi uma oportunidade sublime que oralidade?
presa, significa a destruição total da eu tive: fazer com que a voz delas seja Eu gostaria de tudo, que o nosso povo
família, porque o homem arranja outra ouvida, que os anseios delas sejam precisa de tudo. O lugar da oralidade é
e os meninos ficam ao deus-dará. Mas ouvidos e, acima de tudo, tornar a muito importante, mesmo no mundo
quando é o homem que vai preso, às sociedade um pouco mais consciente onde a escrita existe. Por exemplo, uma
vezes por crimes maiores, a família em relação às pessoas que estão dentro bela história do coelho e do elefante:
mantém-se cada vez mais unida, porque da prisão. A responsabilidade que a uma coisa é ser contada através da
é a mãe que puxa por essas crianças sociedade tem para com esse mundo, televisão, outra coisa é ler, mas outra
e une – passa dificuldades, muito que é um mundo dentro do mundo – a coisa é ser contada pela avó. Qual é o
sofrimento, mas a família mantém- prisão é um mundo dentro do mundo... lugar do conforto, qual é o lugar do
se. Foi quando aprendi, na verdade, o É impressionante que, a partir daquelas carinho, qual é o lugar da família? É a
que significa o lugar de uma mulher histórias, já começam a surgir respostas. oralidade. Para mim, é uma tradição
na construção de uma sociedade. Já começa a haver uma espécie de que não devia morrer. Eu gosto sempre
Cada encontro que eu tenho, seja no movimento de solidariedade social para de estar ao lado de uma fogueira,
campo, seja na cidade, onde quer que fazer alguma coisa nesses espaços. Eu porque foi sempre assim desde a minha
seja, é sempre uma oportunidade estou grata por ter feito esse trabalho. infância – a fogueira faz parte de mim.
para aprender uma realidade nova. Temos um problema consigo, porque É o seu lugar de conforto?
E não apenas em Moçambique. não é feminista, não é romancista... Sim, exato. Eu gosto de sentar-me com
Tive o privilégio de caminhar em Agora, com este novo livro, chamar- os meus amigos à volta da fogueira, é
diferentes quadrantes do mundo – e lhe-ão ativista. Mas porque recusa uma coisa boa – a oralidade faz falta.
é muito interessante descobrir que a etiquetas? Se tivesse de escolher Se houvesse meios, podia-se também
Humanidade é toda igual. uma, conseguiria escolher? investir alguma coisa nesse sentido. A
Essa é a grande mensagem, que Não, para mim, não faz sentido, porque escola é importante, sem dúvida, mas
somos todos iguais? o meu trabalho é um trabalho livre. Se com escolas destruídas, guerra disso
Todos! Estive com chineses e, numa eu aceito uma determinada etiqueta, e guerra daquilo, deslocações, o nosso
conversa, falávamos de poligamia e de tenho de ser fiel a essa marca que criei sofrimento é muito grande.
traição. Eles diziam que os homens para mim. Eu gosto de fazer qualquer Que história gostava de contar sobre
chineses não traem as mulheres. Eu Moçambique?
fiquei encantada. Não há traição? Não sei... Moçambique é um país
Como? Eles disseram: “É muito simples. enorme, com várias histórias. Mas o
Quando eu arranjo outra, trato de dizer que eu gostaria mesmo era de falar um
à minha mulher que já tenho outra;
então, eu não estou a trair, porque ela
“JÁ ESCREVI POESIA, CONTOS, pouco dos nossos mitos, tem mitos tão
bonitos. A minha gente, o meu povo,
sabe, porque a informei.” [Risos] No ENSAIOS, JÁ FIZ UM POUCO alguns dos nossos leitores ainda não

DE TUDO; ENTÃO, SE EU
fundo, as linguagens e as interpretações tinham o real alcance do que é um mito
são diferentes, mas todos fazemos as na vida de um povo. Foi preciso muito
mesmas coisas.
Falava do último livro que escreveu. ACEITASSE SER ISTO OU trabalho, trabalho duro, sobretudo da
minha parte; defender-me e, por vezes,
Entende o impacto que é dar voz a
essas mulheres? No fundo, o que
AQUILO, ACHO QUE ISSO IA zangar-me, para as pessoas começarem
a perceber a beleza do mito. O mito
a Paulina faz é isso: dá voz a essas
pessoas, a essas mulheres, a essas
LIMITAR A MINHA LIBERDADE. não tem de ser coisa nenhuma – mito
é mito, e pronto. Eu gosto dos mitos.
histórias? EU GOSTO DE VADIAR” mvlopes@visao.pt

86 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


CONFERÊNCIA

PORTUGAL
EM EXAME

DATA
18 DE NOVEMBRO
PROGRAMA 9H00
09h00 Check-in 11h20 Girl Talk especial LOCAL
Maria da Conceição Zagalo CENTRO DE CONGRESSOS
– Empreendedora social
09h30 Abertura DO TAGUSPARK
Inês Santos Costa – Secretária de Estado Susana Peralta – Economista
Grande Auditório
do Ambiente na Nova SBE
+ STREAMING
09h45 Gerir em Português 11h45 Clube dos moderados
Markus Kemper – Presidente da Câmara Bagão Félix – Economista
de Comércio e Indústria Luso-Alemã (CCILA) Francisco Assis – Presidente
Roberta Medina – Vice-presidente do Conselho Económico e Social
do Rock in Rio
Steven Braekeveldt – CEO do Grupo
12h15 O que é isso de Sustentabilidade?
Ageas Portugal
João Lé – Administrador-executivo
do The Navigator Company
10h20 A recuperação da nossa economia João Meneses – Secretário-geral
do Business Council for Sustainable
Clara Raposo – Presidente do ISEG
Development (BSCD) Portugal
José Theotónio – CEO do Grupo Pestana
Pedro Afonso – CEO da Vinci Energies
Luís Castro e Almeida – CEO Portugal
do BBVA Portugal

13h00 Fim
11h05 Coffee Break

INSCREVA-SE ATRAVÉS DO EMAIL: EVENTOS@TRUSTINNEWS.PT

Organização Patrocinadores
TELEVISÃO

LUCÍLIA MONTEIRO
Nos trilhos de Saramago
Conduzido pelas palavras de José Saramago no livro Viagem a Portugal,
o humorista brasileiro Fábio Porchat faz de cicerone numa equipa que
percorre o País para filmar uma série documental
JOANA LOUREIRO LUCÍLIA MONTEIRO

E
m todas as filmagens dades, que tornam tudo muito vivo”, con- espanhol Carlos Saura para o realizar). A
há contratempos. A in- ta Fábio Porchat. O humorista brasileiro, presidente da Fundação Saramago, Pilar
tervenção na igreja de conhecido pela participação na Porta dos del Río, aplaude a decisão: “Penso que
São Gonçalo, coberta Fundos, tem percorrido Portugal repro- nem o escritor, nem o humorista teriam
de andaimes, impede a duzindo os passos de José Saramago. A imaginado tal coisa, mas estou à espera
visita ao principal mo- antecipar o centenário do nascimento de que seja uma boa surpresa.”
numento de Amarante. do escritor – que se celebra a 16 de no-
Gorados os planos de vembro de 2022 –, está a ser produzida REENCONTROS
rodar junto à estátua do beato com fama pela RTP uma série inspirada no livro O ponto de partida das filmagens foi em
de casamenteiro, não tardou a inesperada Viagem a Portugal. “Haverá olhar mais Trás-os-Montes, na linha de fronteira
reviravolta. “De repente, apareceu um curioso, fraterno, terno, entusiasmado e com Espanha formada pelo rio Douro, a
rapaz numa barbearia que nos contou a apaixonado do que o de alguém que vem pregar aos peixes, tal como fez Sarama-
lenda de São Gonçalo, e isso foi mágico… de fora e nos adora?”, aponta Ivan Dias, go, que viajou demoradamente pelo País,
No fim de contas, isto é um documentá- o realizador, justificando a escolha de entre outubro de 1979 e julho de 1980.
rio, as coisas acontecem meio sem querer, Porchat como protagonista (quando pro- “Quisemos começar no outono e sentir
e temos de estar abertos a estas possibili- duziu o filme Fado, escolheu o cineasta a mesma meteorologia… Só que tivemos

88 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021


O escritor e o humorista Nas
margens do Tâmega, em Amarante,
Porchat questiona os milagres de
São Gonçalo. Em baixo, à mesa com
Valter Hugo Mãe

um sol magnífico o tempo todo, enquan- tinham ficado irremediavelmente para


to o Saramago levou com carradas de trás e não tinham acesso a bens básicos,
chuva”, conta Ivan Dias. O guião cruzará como luz elétrica”. Nos últimos anos da
as palavras do livro com as tiradas do sua vida, reproduziram fragmentos desse
humorista, e estará aberto ao improviso. caminho. “Descobriu que muitas coisas já
Condensar o percurso exaustivo feito há não eram iguais e outras, afortunadamen-
mais de 40 anos foi a grande dificuldade. te, mudaram para melhor. Foi um pouco
“Fomos à procura das situações em que como uma viagem de despedida”, conta.
o Saramago se entusiasmou e comoveu Chegarem a um acordo quanto ao roteiro
mais. Por exemplo, foi a Romeu [aldeia no não era fácil. “A primeira coisa que que-
concelho de Mirandela], porque gostou ria ver quando chegava a um sítio eram
do nome da terra, e isso é relevante para NOVA “VIAGEM A PORTUGAL” museus. Eu preferia ir aos mercados, ver
esta interpretação artística do escritor- Chegou este mês às livrarias uma como viviam as pessoas de hoje… Ele di-
-viajante. Não tinha amarras nenhumas edição comemorativa de Viagem a zia que tínhamos de conhecer o passado
relativamente a um roteiro turístico, de Portugal, resultante da colaboração para conhecer o presente. E entrava em
beleza predefinida ou de interesses prees- entre a Porto Editora, o Círculo todas as igrejas! Uma indigestão!”, brinca
tabelecidos, havia uma liberdade total.” de Leitores e a Fundação José Pilar. Não tinha, como se sabe, um apelo
Um caminho feito sem pressas, para obter Saramago, com imagens originais pelo divino, mas “um fascínio pelo que
um olhar que permitisse “descer ao fundo do autor e outras de Duarte Belo. havia sido construído por outros seres
das coisas vistas e das pessoas encontra- Publicado pela primeira vez em humanos”.
das”, escreveu. Reproduzir esse ritmo nas 1981, o livro assinalava o 10º As filmagens em Amarante termina-
gravações tem sido um desafio. “As fil- aniversário da chegada a Portugal ram na varanda debruçada sobre o rio
magens têm outra velocidade, mas temos do Círculo de Leitores Tâmega do restaurante Zé da Calçada,
conseguido deixar-nos ficar nos lugares”, para mal dos pecados de Fábio Porchat:
diz Fábio. O humor surge naturalmente, “Socorro, me tirem daqui! Come-se bem
mesmo que negro, como naquela situação São Romão, morreu há poucos meses), em todos os lugares!” À mesa, teve por
em que foram ao cemitério de Bragança com quem Saramago conversou demo- companhia Valter Hugo Mãe, vencedor
(Saramago tinha um gosto mórbido por radamente. “Ainda tinha uma fotografia do Prémio José Saramago em 2007 com
“encenações mortuárias”) para conhecer a que ele lhes tirou guardada num álbum o remorso de baltazar serapião, tendo
campa do soldado José Jorge. “O coveiro especial. Contou-nos o quanto as pes- o patrono descrito o livro como “um
que nos ia contar a história tinha morri- soas o adoraram e o quanto ele fez pela tsunâmi”. “Saramago teve um gesto de
do e quem o substituiu não a conhecia… aldeia… Este é um exemplo de como o profunda generosidade, improvisou um
Como já a tinha lido no livro, invertemos escritor amava o seu país e, sobretudo, discurso que é uma fortuna para a minha
os papéis”, conta o humorista. o seu povo”, sublinha Ivan Dias. vida toda”, contou o escritor, na longa
Durante as rodagens, não faltaram “Vive-se muito mal em Rio de Onor”, conversa gravada pelas câmaras. Falou-
encontros imprevistos. Em Rio de Onor, escreveu Saramago em Viagem a Portu- -se, inevitavelmente, dos contrastes entre
aldeia do concelho de Bragança conhecida gal, ciente de estar a testemunhar um País Portugal e Brasil e também da atualidade
pelas tradições comunitárias, na fronteira “antigo” que principiava, finalmente, “a política, com muitos palavrões à mistu-
com Espanha, deram de caras com Maria mover-se em direção ao século XX”. Para ra, como Valter acredita que Saramago
dos Anjos, hoje com 85 anos, a mulher do Pilar del Río, “o que mais o incomodava diria, se tivesse assistido à “indigência
casal descrito no livro (o marido, Daniel era a falta de perspetiva, havia lugares que profunda” do Presidente brasileiro. “Não
é lástima: é foda mesmo!”
O humorista já tinha confessado à
VISÃO a admiração pela obra de José
Saramago. “É o meu escritor preferido.
Deixa-me sair do lugar onde estou lendo
e parece que estou a ver um filme; dou a
mão para a primeira palavra da frase e ele
te leva como um trem, te carrega por todo
o livro.” Em Portugal, não encontrou esse
entusiasmo. “Fiquei impressionado por
terem lido na escola, mas terem deixado
de ler no resto da vida”, partilhou, no
diálogo com Valter. “O livro exige demora
e meditação, não está à altura da pressa
com que estamos a viver. E os adultos vi-
raram crianças, é tudo muito lúdico, pais
e filhos partilham os mesmos gadgets”,
justificou o escritor. Porchat sucumbe:
“Já estou deprimido. Vou-me afundar no
bacalhau...” visao@visao.pt

11 NOVEMBRO 2021 VISÃO 89


CRÓNICA

A
Lua hoje está minguante. Fina como uma unha. Com o
horário de inverno temos mais tempo para ela. Não há
fuga. Ela chega para roubar o final da tarde e estender
a toalha à melancolia. Tudo parece ficar mais curto
com os dias. E até a pele parece ficar mais fina, mais
transparente. Como se tudo ficasse mais exposto, mais
sensível, e qualquer toque (emocional) fosse capaz de
P O R C A P I C U A / Rapper criar uma pisadura.
Enquanto alimento a procrastinação, bocejando, sinto que envelheci muito
nos últimos meses. Estes quase dois anos de pandemia parecem dez. Devíamos

Minguante
contá-los noutra escala de quantidade, como os anos de cão. Um ano de
humano são sete anos de cão. Dois anos de pandemia são dez anos de cepa
torta. A sensação térmica é de eternidade. O cansaço entorta-nos a espinha.
As últimas semanas têm sido vividas entre a angústia do pranto à porta da
creche e a exasperação das viroses sucessivas. Estamos em plena adaptação
escolar, que é como quem diz, em ampla expansão do espólio de anticorpos
da criança. Sobretudo de uma que viveu quase sempre em pandemia, isolada
dos contactos sociais durante meses, e que convive, pela primeira vez, com o
mundo.
A primeira manhã de creche deu direito a semana e meia de ranho, tosse,
falta de apetite e febres ocasionais, sempre em casa. A segunda, mais uma
semana de molho. E quando, finalmente, cumprimos o feito de cinco manhãs
seguidas de assiduidade, mais febre, mais ranho e mais tosse.
Na verdade, o ranho nunca chegou a ir embora totalmente. O pingo do
nariz permanente parece ter vindo para materializar o clichê da criança
ranhosa e perpetuar o desconforto. As mangas dos casacos estão sempre
meladas, porque nem sempre o lenço consegue antecipar o braço esfregado
no nariz. A minha mesinha de cabeceira parece a montra da farmácia. E
nem os sumos de laranja, o própolis, as infusões e a limpeza do nariz com
água do mar parecem servir de reforço, no inevitável choque de um sistema
imunitário virgem com a orgia de vírus que corre solta na creche.
Claro que esta intermitência de uma ou duas manhãs de escola com
uma semana de molho em casa não facilita a adaptação. A cada regresso
recomeçamos. Acrescentando-se ao choque imunitário o choque de hábitos
e formas de estar. Ora para um filho único, neto único, criado em pandemia,
numa casa com horários flexíveis em que vai fazendo valer a sua vontade, com
alguma negociação, mas sem grandes bloqueios, mergulhar num coletivo de
crianças, perder o protagonismo, respeitar regras e rotinas estabelecidas e
adaptar-se à novidade absoluta é um grande desafio.
Tenho pensado muitas vezes que a fragilidade imunitária também se
agrava com toda esta emoção. Mas, apesar de ser duro para ele e para mim,
que tenho de gerir o pranto, num equilíbrio delicado entre a firmeza gentil e
a motivação (dilacerada por dentro, enquanto ele se agarra a mim como um
náufrago a uma tábua), tenho a certeza de que ambos precisamos de entrar
nesta nova fase.
A primeira manhã Ele tem quase 3 anos, começa a precisar de interação com outras crianças.
de creche deu Precisa de outro tipo de estímulos que só o convívio com os pares garante.
Precisa de criar autonomia, precisa de mundo. E eu preciso de tempo para
direito a semana mim. Tempo para MIM. Tempo para existir para além dele ou do meu
e meia de ranho, trabalho. Tempo suficiente para poder decidir o que fazer com o tempo
que tenho. Para fazer desporto. Para ler. Para tomar banho sozinha sem
tosse, falta interrupções. Tempo para namorar. Tempo para cultivar a saúde mental.
de apetite Tempo para voltar ao mundo.
e febres ocasionais, Tenho tentado que esta adaptação seja suave. Tenho tentado reforçar a
brincadeira e a atenção. Tenho dado todo o colo e todo o mimo. E até comprei
sempre em casa. vários livros infantis sobre o tema. Tento manter a esperança de que esta
A segunda, mais fase de choro e viroses passará rapidamente e de que ambos sairemos com o
sistema imunitário e a autonomia reforçados. Mas confesso que neste fim de
uma semana tarde noturno, com o termómetro a passar novamente dos 38, sou quem está
de molho minguante. (As mães precisam muito de colo). visao@visao.pt

90 VISÃO 11 NOVEMBRO 2021

Você também pode gostar