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DENÚNCIA PERANTE A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS

HUMANOS

As VÍTIMAS DO MASSACRE DE ALTAMIRA vêm perante esta Comissão


apresentar DENÚNCIA contra a REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL,
pelos fatos e fundamentos a seguir articulados

1. DAS QUESTÕES PRELIMINARES – DA ADMISSIBILIDADE

Do esgotamento dos recursos internos

De início, há que se mencionar que o esgotamento dos recursos internos


considera-se como um dos requisitos de admissibilidade de uma petição
perante esta Comissão, conforme mandamenta o artigo 46, 1, a, da Convenção
Americana Sobre Direitos Humanos.

Todavia, embora exista a referida previsão legal, a Jurisprudência


Internacional se consolidou no sentido de que tal requisito não deve levar a
pretensão do ofendido à inutilidade por demora na atuação internacional. Por
esta razão, a Corte Interamericana sustenta que os recursos da jurisdição
interna que são necessários que sejam esgotados são os considerados
adequados e efetivos, isto é, deve-se esgotar os recursos internos que, além
de idôneos para reparar a situação jurídica infringida, sejam capazes de
produzir os resultados para os quais foram concebidos.

Em sendo assim, nos casos em que os recursos jurisdicionais internos


não sejam considerados adequados e efetivos, não se exigirá observância ao
preceito do artigo 46, a, da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos.
Diante disto, se mostra necessário analisar a relação pregressa entre o sistema
o Estado brasileiro e o seu sistema penitenciário.
“abandonai toda a esperança, vós que entrais”. Sem qualquer exagero, e
nos exatos termos da frase transliterada, é este o recado dado a todos que
adentram nos estabelecimentos prisionais do Brasil, tendo em vista que o
sistema carcerário brasileiro é, de maneira indiscutível, bárbaro, desumano,
medieval, e trata como menos do que gente os indivíduos que lá se encontram
encarcerados, uma vez que há um verdadeiro estrangulamento dos seus
direitos fundamentais.

Sobre isto, o relatório da CPI do Sistema Carcerário, publicado em 2008,


atestou que “Apesar da excelente legislação e da monumental estrutura do
Estado Nacional, os presos no Brasil, em sua esmagadora maioria, recebem
tratamento pior do que o concedido aos animais: como lixo humano (...) Ao
invés de recuperar quem se desviou da legalidade, o Estado embrutece, cria e
devolve às ruas verdadeiras feras humanas”.1 O referido relatório ainda
apresenta um rol com mais de 20 direitos dos presos que são violados durante
o período de cárcere, dentre os quais se encontram a higiene, a assistência
material, a alimentação, e a assistência à saúde.

Indo além, o ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello,


ressaltou o “descaso, negligência e total indiferença do Estado” no que diz
respeito à realidade das penitenciárias brasileiras, destacando que “a pessoa
sentenciada acaba por sofrer penas sequer previstas pelo Código Penal, e que
a nossa ordem jurídica repudia”2

Ademais, o também ex-Ministro da Suprema Corte brasileira, Teori


Zavascki, afirmou que “em nossas prisões as condições de vida são
intoleráveis”, e que, na prática, “os presos não têm direitos”3

Acerca disto, é lugar-comum a realidade das prisões brasileiras:


superlotação; insalubridade; falta de produtos de higiene básica; ausência de
água potável e comidas intragáveis; homicídios; espancamentos e torturas.
Outrossim, os presídios brasileiros são, na generalidade, dominados por fações
criminosas, o que torna as penitenciárias um reino de terror. Como consectário

1
Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/2701.
2
Disponível: http://www.conjur.com.br/2012-nov-14/ministros-supremo-criticam-sistema-prisional-
brasileiro.
3
Disponível em: http://jota.info/recurso-extraordinario-580-252-mato-grosso-sul.
deste cenário, o que se tem a ocorrência, cada vez mais frequente, de
rebeliões.

Tal situação calamitosa macula não somente o mais basilar princípio da


ordem jurídica do Estado Democrático de Direito – a dignidade da pessoa
humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal – como diversos outros direitos
fundamentais, como a vedação de tortura e de tratamento desumano ou
degradante (artigo 5º, III, da CF); a proibição de sanções cruéis (artigo 5º,
XLVII, “e”, da CF); a garantia de respeito à integridade física e moral do preso
(artigo 5º, XLIX, da CF); e os direito sociais à saúde, educação, trabalho e
segurança (artigo 6º, da CF).

De giro vizinho, há de se mencionar que o mínimo existencial se


identifica com as condições materiais básicas indispensáveis para a vida digna.
Logo, o mínimo existencial está no núcleo essencial da própria ideia de
dignidade da pessoa humana. Não há dúvida de que integram o mínimo
existencial das pessoas presas aspectos como celas não superlotadas com
condições adequadas de higiene, segurança e salubridade, o acesso à água
potável, à alimentação decente, ao atendimento de saúde, à assistência
jurídica etc. E a denegação destes bens e serviços essenciais – realidade
inquestionável da maior parte dos estabelecimentos prisionais do país –
representa gravíssima afronta ao mínimo existencial.

De maneira inafastável tem-se que ser trazido à baila o fato que ficou
conhecido como o “massacre de Carandiru”, visto que este foi o maior exemplo
de violação aos direitos humanos, por parte do aqui acusado, dentro do
sistema carcerário brasileiro. Sobre isto, 111 (cento e onze) presos foram
mortos dentro da Casa de Detenção do Complexo do Carandiru após a invasão
dos soldados do Grupo de Ações Táticas Especiais. Ademais, de acordo com
relatos de soldados envolvidos na ação, não houve reação com armas de fogo
por parte dos detentos, no entanto, os policiais os alvejaram especialmente na
cabeça e no tórax.

Outrossim, há de se mencionar que, de acordo com o Conselho


Nacional de Justiça, a realidade do sistema carcerário brasileiro é precária,
especialmente porque a taxa de ocupação dos presídios do país é de 165,72%.
Ademais,
É válido ressaltar que, em 2015, e por meio do julgamento da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 347, o Supremo
Tribunal Federal considerou como se encontrando em um “estado de coisa
inconstitucional” o sistema carcerário brasileiro, tendo em vista se tratar de um
sistema violador das garantias fundamentais destinadas aos custodiados.

No entanto, e sabidamente, nenhuma mudança neste cenário se


verificou, haja vista que o cárcere brasileiro, até hoje, continua sendo marcado
pela transgressão dos direitos mais básicos dos encarcerados.

Em razão disto, requer a admissão da presente proemial acusatória, em


conformidade com a jurisprudência da Corte Interamericana, considerando que
os recursos internos não são eficazes para reparar a situação infringente das
normas jurídicas, visto que, embora a Suprema Corte brasileira tenha
entendido ser inconstitucional o sistema carcerário do Brasil, as penitenciárias
brasileiras continuam a ser um local de violação dos Direitos Fundamentais dos
detentos. Ademais, requer seja admitida esta denúncia, à luz do artigo 46, 2, c,
da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, uma vez que há demora
injustificada, a partir da decisão da ADPF 347, para a modificação, por parte do
ora denunciado, da realidade vivenciada pelos presos nos presídios do Brasil.

2. DOS FATOS

Aos dias 29 de julho de 2019, no Centro de Recuperação Regional de


Altamira (CRRALT), no munícipio de Altamira, Estado do Pará, uma rebelião de
presos, envolvendo integrantes dos grupos criminosos Comando Classe A e
Comando Vermelho, vitimou 62 detentos.
Sobre isto, passemos à análise da dinâmica dos fatos ocorridos:

Dos envolvidos

A rebelião ocorreu entre detentos integrantes de duas facções


assumidamente rivais, a saber: o Comando Vermelho (CV), localizado no bloco
B, e o Comando Classe A (CCA) situado no bloco A. Entre tais blocos, há um
galpão conhecido como anexo, que é usado pelos presos de ambos os blocos
em horários distintos.
O CCA trata-se da facção local que se aliou ao grupo paulista Primeiro
Comando da Capital (PCC), para comandar os presídios e o tráfico de drogas
no sul do Pará. Tal fato acabou gerando entre o Comando Classe A e o
Comando Vermelho uma rivalidade.

Dos momentos que antecederam a tragédia

Dois dias antes da rebelião, foi encontrada uma arma no presídio, e no


dia posterior, isto é, um dia antes do massacre ocorrer, tomou-se conhecimento
de um bilhete, entregue à parceira de um dos detentos, relevando que uma
rebelião estava prestes a ocorrer. No entanto, ignorados, arma e bilhete, o
nível de segurança e vigilância mantém-se o imutável, mesmo se tratando
de um complexo que abriga membros de duas facções declaradamente
rivais.

Da rebelião

Às 07:00h da manhã do dia do fato, horário em que é realizado o café da


manhã, os integrantes do CCA saem do seu bloco e fazem dois agentes
penitenciários de reféns, indo logo em seguida em direção ao anexo, local onde
a parte mais cruel da rebelião acontece, tendo em vista que a investida dos
membros do Comando Classe A resultou em 16 (dezesseis) integrantes do CV
decapitados. Posteriormente homens do grupo CCA encurralam a facção rival
e atearam fogo no anexo, levando à morte outros 42 (quarenta e dois)
detentos.
Mais tarde, durante a transferência de alguns detentos envolvidos, mais
4 (quatro) pessoas foram mortas, o que veio a totalizar o assustador número de
62 (mortos). Tais dados fizeram dessa ocorrido a 2ª maior tragédia carcerária
do Estado brasileiro, ficando atrás apenas do conhecido mundialmente
Massacre do Carandiru.

Das condições do Centro de Recuperação Regional de Altamira


O presídio de Altamira tinha capacidade para 163 presos, no entanto, no
dia do massacre, o Centro de Recuperação contava com uma população
carcerária de 343 detentos. Sendo oportuno mencionar que no presídio
encontravam-se juntos presos provisórios e presos definitivos, sendo, inclusive,
26 dos mortos presos provisórios.
Outrossim, em 2018 o Centro de Recuperação de Altamira já havia
sido palco de uma rebelião que incendiou parte do presídio e deixou 7
(sete) vítimas. Ademais, o Conselho Nacional de Justiça classificou como
péssimas as condições do referido Centro.
De mais disto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) classificou como
péssimas as instalações de Altamira, além atestar a superlotação evidente do
Presídio, bem como o fato de que o quantitativo de agentes no CRRALT era
reduzido frente ao número de custodiados. Ademais, de acordo com o CNJ não
há no estabelecimento penal de Altamira biblioteca, enfermaria, gabinetes
odontológicos, oficinas de trabalho, salas de aula, e bloqueadores de celular.

Da responsabilidade do Denunciado
Diante de todo o exposto, o que se verifica é que o Estado Brasileiro,
alongando ainda mais o seu histórico de desrespeito aos direitos assegurados
aos presos, possibilitou que ocorresse o massacre presenciado dentro dos
muros do CRRALT. Razão pela qual o seu julgamento e consequente
responsabilização perante os Órgãos de Proteção dos Direitos Humanos, é
medida que se impõe.

3. DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao examinar o caso Menores


Detenidos, salientou que
O Estado, ao privar de liberdade uma pessoa, se coloca em uma
especial posição de garante de sua vida e integridade física. Ao
momento de deter um indivíduo, o Estado o introduz em uma
‘instituição total’, como é a prisão, na qual os diversos aspectos da
sua vida se submetem a uma regulação fixa e se produz um
distanciamento do seu entorno natural e social, um controle absoluto,
uma perda de intimidade, uma limitação do espaço vital e, sobretudo,
uma radical diminuição das possibilidades de autoproteção. Tudo isso
faz com que o ato de reclusão implique um compromisso específico e
material de proteger a dignidade humana do recluso enquanto esteja
sob custódia.

Durante séculos sombrios os Direitos Humanos não só eram


desrespeitos, mas sequer se tinha noções sobre eles. Hoje, depois de muita
luta e consolidação desses direitos, esse parece ser um passado distante, mas
esse cenário infelizmente não deixou de fazer parte da realidade brasileira,
sobretudo nos estabelecimentos prisionais.
A precariedade dos presídios brasileiros é um fato público e notório, apesar
disso, o Estado não promove mudanças efetivas que conduzam a resolução de
tal problema. Dessa maneira, essa situação não só criou raízes, mas também
produziu frutos e um desses frutos é justamente a rebelião narrada nos fatos
da presente peça acusatória.
O Pacto de San José da Costa Rica, resultado da ilustre Convenção
Americana de Direitos Humanos, prevê como dever dos Estados-Partes o de
zelar pelos direitos nele estabelecidos, bem como de garantir sua efetivação.
In verbis:
“Art. 1 Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os
direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a
toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por
motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer
outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou
qualquer outra condição social.”
A despeito do Brasil ser um Estado-Parte do referido pacto internacional,
e, portanto, se comprometer a proteger e garantir a prevalência desses direitos,
várias são as violações promovidas e/ou ignoradas pelo Estado brasileiro aos
direitos dessa natureza, no que tange ao Massacre de Altamira, podemos
destacar o direito à vida e o direito a integridade física.
3.1 Do Direito a vida
62 (sessenta e dois) foi o número de pessoas mortas dentro de uma
instituição prisional que o setor público administra ou que estavam sob sua
custódia apenas nesse caso em específico. Ora, é inquestionável que isso é,
no mínimo, indicador de que os direitos humanos não recebem por parte do
Estado brasileiro a devida proteção que ele, como já mencionado, se obrigou a
garantir.
Apesar da legislação em que possui dar ampla proteção a vida, o sistema
prisional brasileiro é falho e essas falhas, infelizmente, recaem sobre a vida
daqueles que ficam sob o poder do Estado enquanto cumprem suas penas ou
mesmo aguardam por elas.

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