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Criminalidade no século XXI e a tríplice fronteira:

reflexões a partir de Coleman, Naim e Robinson*


MICAEL ALVINO DA SILVA**
MARCELINO TEIXEIRA LISBOA***

Resumo: A globalização do final do século XX caracterizou-se essencialmente por maior


circulação de bens e pessoas. Consequentemente, no início do século XXI uma série de
problemas de ordem internacional ganharam espaço na agenda política e acadêmica. Em um
mundo “desorganizado” pós-Guerra Fria, diversos analistas escreveram sobre a virada do
milênio e os problemas do novo século. Neste contexto e a partir de uma das regiões mais
problemáticas da América do Sul (a Tríplice Fronteira), este texto objetiva analisar três visões
sobre os problemas do novo século – Coleman, Naim e Robinson – publicadas no Brasil entre
2001 e 2006. Trata-se de análises distintas, mas que permitem dialogar com temas gerais e
cruciais para a compreensão da Tríplice Fronteira, acusada de favorecer o nexo crime
organizado-terrorismo internacional.
Palavras-chave: Relações Internacionais, Comércio Ilícito, Crimes Transnacionais.
Crime in the 21st Century and the Triple Frontier: reflections from Coleman, Naim and
Robinson
Abstract: Globalization at the end of the twentieth century was characterized essentially by the
increasing of flows of goods and people. Consequently, at the beginning of the 21st century a
series of international problems were gained space in the political and academic agenda. In a
disorganized world of the post-Cold War, several analysts wrote about the turn of the
millennium and the problems of the new century. In this context and from one of the most
problematics regions of South America (the Triple Frontier) this text aims to analyze three
views on these problems published in Brazil between 2001 and 2006. These are different
analyzes, but they allow us to dialogue with general and crucial subjects for the understanding
of the Triple Frontier, accused of favoring the nexus organized crime-international terrorism.
Keywords: International Relations, Illicit Trade, Triple Frontier, Transnational Crimes.

*
As discussões desse texto estão inseridas na pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa Tríplice
Fronteira e Relações Internacionais (GTF/UNILA).

**
MICAEL ALVINO DA SILVA é Doutor em História, docente da Universidade Federal da
Integração Latino-Americana e membro do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira e Relações
Internacionais (GTF/UNILA).

***
MARCELINO TEIXEIRA LISBOA é Doutor em Ciência Política, docente da
Universidade Federal da Integração Latino-Americana e membro do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira
e Relações Internacionais (GTF/UNILA).

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Introdução polícia internacional, nos pactos da lei”
(NAIM, 2006, p. 10); “o Século XXI
Na década de 1990 é possível encontrar
uma série de análises otimistas sobre o pertencerá aos criminosos
novo milênio. Nas Relações transnacionais” (ROBINSON, 2001, p.
Internacionais acreditou-se, num breve 19). Essas análises foram produzidas
período pós-Guerra Fria, que se iniciava naquele contexto de “encantamento”
um daqueles grandes momentos de paz com o complexo início do século XXI.
global. Os menos otimistas A diversidade de formação e atuação
preocupavam-se com as novidades que desses três autores não os impediu de, a
viriam do mundo desorganizado (no partir de pontos distintos, filosofar sobre
sentido de fim da Ordem Bipolar) em o novo objeto utilizando lentes de uma
face aos problemas que a globalização mesma coloração. Seus livros apontam
da economia (traduzida em abertura de as visões de contemporâneos sobre o
problema da criminalidade e do
mercados mundo afora) poderia
exacerbar. As boas perspectivas iniciais comércio ilícito. Visando analisar
foram aos poucos cedendo espaço para algumas das questões relacionadas a tal
temática, esse discute analisa as três
perspectivas mais sombrias e,
diferentes abordagens dos autores
finalmente, os atentados de 11 de
setembro de 2001 nos Estados Unidos citados acima – Coleman, Naim e
colocaram uma pá de cal sobre elas. Robinson – para um diálogo com
algumas questões amplas.
No limiar da terceira década do século
XXI, ao olhar para as produções Esse é um debate importante para
intelectuais sobre a virada do século, aqueles que se propõem a estudar um
não é difícil encontrar referências como: dos espaços mais representativos dessas
“o crime de colarinho branco é o maior análises: a Tríplice Fronteira entre
problema criminal de nossa época” Argentina, Brasil e Paraguai. Ao
analisar o contexto regional sul-
(COLEMAN, 2005, p. xi); o comércio
ilícito “simplesmente não foi uma americano, Arie Kacowicz (2015, p. 90)
prioridade do direito internacional, nos destaca que “é um consenso que a
pactos comerciais, no trabalho da Tríplice Fronteira é um notável exemplo
de circulação transnacional lícita e

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ilícita, abrangendo o ‘lado negro’ da configurar-se como problemas do
globalização em um contexto de século XXI.
integração regional”. Nossa análise é
guiada pelo seguinte questionamento: O crime de colarinho branco
como autores de matizes diversos, A passagem anterior de James Coleman
escrevendo na virada do milênio viam indica que no ranking dos piores crimes,
os problemas relacionados ao novo o primeiro seria o de colarinho branco.
século? A seleção dos temas da Por definição, um crime é cometido
discussão foi realizada considerando-se quando há uma violação da lei escrita.
a pertinência de suas problemáticas para Em uma revisão bibliográfica sobre o
futuros estudos sobre a Tríplice tema, Marco Cepik e Pedro Borba
Fronteira, enquanto que os autores e (2011, p. 376) concluíram que o crime
obras utilizados foram escolhidos por “pode ser diferenciado entre os delitos
serem referências nos temas aqui com motivação econômica (tráfico de
discutidos. drogas, por exemplo) e os que não a
possuem (estupro, por exemplo)”. Além
O texto desenvolve-se tendo como pano
disso, são discerníveis “entre crimes de
de fundo os problemas presentes na
dano direto (latrocínio, por exemplo) e
Tríplice Fronteira, mas não se trata de
de prejuízo difuso (contrabando, por
uma apresentação detalhada dos temas
exemplo)” (CEPIK e BORBA, 2011, p.
que envolvem essas questões na região
376).
tripartite. O foco da discussão é o
posicionamento dos autores e, sendo Os crimes de dano direto atingem
assim, as referências à Tríplice vítimas específicas, que são
Fronteira são os elos que ligam o objeto prejudicadas e recorrem à polícia/justiça
às abordagens conceituais e às para reparação. Os crimes de prejuízo
conclusões analíticas dos textos em difuso não prejudicam diretamente uma
questão. Também não é realizada uma pessoa física ou jurídica, mas a lei
abordagem ampla sobre as entende que ofendem moral ou
características da região, visto que esse economicamente a sociedade. Nesse
não é o objetivo central do trabalho. sentido, parece-nos apropriada uma
constatação que situou o crime
Desde o fim da Guerra Fria, quando o organizado “no campo dos crimes
comércio transnacional ganhou maior economicamente motivados e, em sua
espaço dentro da Tríplice Fronteira, ampla maioria, de prejuízo difuso”
passando pelo período dos atentados (CEPIK e BORBA, 2011, p. 376).
terroristas de setembro de 2001 nos
EUA, após os quais a região entrou na O crime de colarinho branco está
agenda da segurança internacional, incluído na categoria de crime
diversas problemáticas têm se organizado e em absoluto contraste com
apresentado no território que une a os delitos não motivados por questões
Argentina, o Brasil e o Paraguai. Esse econômicas. O termo surgiu pela
texto insere-se nessa discussão, primeira vez com a publicação de
realizando uma análise aproximativa ao Edward Sutherland, de um texto que se
tema e à sua ocorrência na Tríplice tornou um clássico da área da
Fronteira, no intuito de contribuir para o criminologia. Inovador para sua época
entendimento de como os crimes de (1949), argumentou pioneiramente que
colarinho branco, o comércio ilícito e os o crime é um aprendizado e não uma
crimes transnacionais podem patologia social (atribuído à pobreza) ou

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pessoal (inferioridade moral). Ao Para a maioria das pessoas, os
analisar processos criminais envolvendo assaltantes, assassinos e traficantes
as 70 maiores empresas dos Estados que podem ser encontrados em uma
Unidos, concluiu que os homens rua escura da cidade são o cerne do
engravatados, literalmente os que problema criminal. Mas os danos
que tais criminosos causam são
usavam colarinho branco, também
minúsculos quando comparados
cometiam crimes sob motivação com os de criminosos respeitáveis,
econômica. que vestem colarinho branco e
trabalham nas organizações mais
Essa tese era contrária àquela vigente poderosas (COLEMAN, 2005, p.
até então e segundo a qual apenas os 1).
pobres e os moralmente inferiores
Apenas para ficar em um dos vários
cometiam crimes. Sutherland exemplos contemporâneos apresentados
explicitava em sua publicação uma pelo autor, mencionamos uma indústria
teoria para explicar o fenômeno, a partir (tabaco, farmacêutica, automobilística,
da hipótese da associação diferencial: entre outras), que oculta os perigos
um delito sempre terá espaço quando o apresentados por seus produtos. Tal
peso das definições favoráveis excede o potencial de crime difuso, mas
peso das definições desfavoráveis absolutamente danoso à sociedade, se
(SUTHERLAND, 2015). Essa
somado às ocultações de outras
abordagem, posteriormente, também foi indústrias levam os crimes comuns a
contestada em função de sua unidade de ocuparem um espaço bem menor do que
análise. Gilbert Geis (2016), em texto o que comumente a eles é atribuído.
que analisa o conceito de crime de
colarinho branco, destaca que os críticos O crime de colarinho branco não é
de Sutherland afirmavam que não era o recente e, pela definição apresentada
status do criminoso que deveria definir por Sutherland e adotada por Coleman,
esse tipo de crime, mas as aplica-se aos crimes cometidos por
características específicas da forma do executivos em nome de grandes
ato criminoso e o objeto envolvido no corporações. Para Coleman, é o maior
crime. O autor que é analisado nesse problema criminal do final do século
texto, James Coleman, alinha-se muito XX e início do XXI. Nas análises dos
mais à visão de Sutherland do que à de outros dois autores utilizados nesse
seus detratores. texto, Naim (2006) e Robinson (2001),
essa modalidade não recebeu a mesma
Coleman é um veterano professor da importância, pois os trabalhos
Universidade Politécnica do Estado da aproximam-se das abordagens com foco
Califórnia onde atua no Departamento nos crimes comuns possibilitados pelo
de Ciências Sociais. Em 1985, quando o crescente fluxo de mercadorias e
terrorismo ainda não era o principal pessoas.
assunto no âmbito das análises desde a Partindo da definição clássica de crime
academia americana, lançou o livro The
do colarinho branco e das considerações
Criminal Elite, publicado em português que apontamos até aqui, é possível
2005 com o título A Elite do Crime, no indagar se essa modalidade de crime
qual aborda a questão do crime de existe na Tríplice Fronteira. Por conta
colarinho branco. No início de sua da complexidade do tema e também da
análise diferencia e destaca o crime de própria característica dinâmica da
colarinho branco no final do século XX: região de fronteira entre Argentina.

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Brasil e Paraguai, uma resposta quanto isola um grupo no topo da
conclusiva, se for possível, depende de pirâmide do crime organizado. Nesse
uma investigação profunda. Contudo, é caso, o argumento da produção legal em
possível apontar hipóteses com base em solo paraguaio de uma quantidade
reflexões e análises realizadas. A muitas vezes superior ao consumo
primeira é a hipótese que dialoga com interno sugere que os executivos
as reflexões de Peter Andreas, segundo incidem no crime de colarinho branco.
o qual, na longa história do contrabando No entanto, essa questão fica em
nas Américas, esse fenômeno é mais segundo plano dentro das prioridades
visível do Norte para o Sul governamentais, mais voltadas a outras
(ANDREAS, 2015). Os executivos da questões, seja internamente ou do ponto
indústria de eletrônicos, informática ou de vista da cooperação internacional.
bebidas dos Estados Unidos para o
Paraguai nada importavam-se com o Ainda de mais fácil compreensão é a
tarefa de tratar o comércio ilícito de
fato de que o produto entraria em um
forma mais específica e considerar os
circuito ilícito ao ser contrabandeado do
crimes cometidos no âmbito da
Paraguai para o Brasil. Tampouco tinha
criminalidade comum, no máximo o
força o discurso de que os lucros do
crime organizado sem vinculação com
comércio poderiam parar nas mãos de
os homens de colarinho branco. É desse
apoiadores do terrorismo islâmico.
tema que tratam as outras duas visões
Nesse caso, só o vínculo das
do início do século XXI.
exportações com o comércio em Cidade
do Leste também não configuraria Comércio ilícito internacionalmente
necessariamente um crime de colarinho subestimado
branco.
O comércio ilícito está relacionado aos
Outra hipótese possível de ser explorada crimes de colarinho branco e à
dialoga com a indústria do tabaco no corrupção ou negligência de agentes do
Paraguai atual e com as conclusões de Estado (especialmente políticos). Soa
Pontell (2016), para o qual as tentativas um pouco ingênuo pensar que a
de controle dos crimes de colarinho expansão dos negócios e mercados e a
branco esbarram em muitas comercialização à margem da lei não
dificuldades. Uma delas é a relutância seja um processo estruturado, analisado
dos países onde o crime ocorre em e com possibilidades de ganhos reais às
permitir que órgãos internacionais corporações. Os crimes de colarinho
supervisionem processos que podem branco tornaram-se uma questão social
incidir em tal prática e outra é a pouca e política mais proeminente na primeira
atenção dada aos danos causados, se década do século XXI (GEIS, 2016),
comparada com a atenção dispendida a mesmo período em que o comércio
outros temas como o crime organizado ilícito transnacional tornou-se
ou crimes de guerra (PONTELL, 2016). crescentemente mais visível, em grande
Quando o principal produto de parte pela utilização de ferramentas
contrabando do país vizinho para o advindas das tecnologias da informação
Brasil passou a ser o cigarro, certamente (COMOLLI, 2018). Nas abordagens
pode-se inferir que possíveis indícios do que priorizam a agenda internacional
crime de colarinho branco também pós-Guerra Fria, contudo, há um foco
passaram a estar mais presentes. O maior nos problemas da abertura de
vultoso contrabando esconde não mercado, da globalização, do Estado
somente os males do produto em si fraco, entre outros, mas não ao

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comércio ilícito. Moisés Naim realiza vontade política necessária para o seu
essa discussão. enfrentamento.

Naim é venezuelano, com formação Os argumentos de Sutherland e o estudo


acadêmica em economia, obtida nos de Coleman apresentados na seção
Estados Unidos. Atuou como ministro anterior podem ajudar a compreender a
de governo na Venezuela, como lacuna à qual Naim e Lallerstedt se
professor e atuou em diversos referem. Fora da esfera do tráfico de
organismos internacionais. É editor de drogas e do terrorismo, as ilegalidades
uma importante revista de política estão na base de uma pirâmide do crime
internacional, Foreign Policy, que organizado, como o contrabando, cujo
possui entre seus fundadores o topo é ocupado por grandes
reconhecido internacionalista americano corporações.
Samuel Huntington. A primeira edição
Ao fazer uma análise sobre o contexto
de seu livro, em inglês, foi publicada
do Hemisfério Ocidental, Peter Andreas
em 2005 com o nome Illicit: how
destacou que, se olharmos em
smugglers, traffickers and copycats are
perspectiva histórica, a fase do
hijacking the global economy e a versão
enfrentamento às drogas levado a termo
em português foi lançada no mesmo
pelo governo dos Estados Unidos é algo
ano, com o título Ilícito: o ataque da
mais recente no contexto os ilícitos
pirataria, da lavagem de dinheiro e
continentais. Até a década de 1970, o
do tráfico à economia global. Nessa
autor observou que o predomínio
obra, destaca que o comércio ilegal
absoluto era do contrabando norte-sul,
ganhou visibilidade na agenda
portanto dos Estados Unidos para a
internacional pós-Guerra Fria,
América Latina (ANDREAS, 2015, p.
especialmente com a atenção dada pelo
163).
governo dos Estados Unidos às drogas,
tendo sido pouco feito em relação a O mundo ocidental “obcecado pelo
outros ilícitos (NAIM, 2006). terror” mencionado por Naim poderia
ser o mesmo que historicamente esteve
Para reforçar seu argumento de que o implicado com diversas variações de
comércio ilícito, fora as drogas, não contrabando. Sem perceber, o próprio
recebia a atenção merecida, Naim autor se insere no conjunto dos
demonstrou uma visão bastante fatalista obcecados quando enfatiza um tema que
para o século XXI: “as redes de não pode ser ignorado pós 11 de
comerciantes de bens ilícitos sem pátria setembro: o nexo crime organizado-
estão mudando o mundo tanto quanto os terrorismo. Em tom fatídico e
terroristas – provavelmente mais”. E conclusivo, o autor inclui o comércio
concluiu: “Mas o mundo, obcecado pelo ilícito como uma das novas ameaças
terror, ainda não se deu conta” (NAIM, que “graças a novas tecnologias, novas
2006, p. 11). Karl Lallerstedt (2018) economias e novas políticas, adquiriu a
corrobora com a afirmação de Naim, capacidade de mudar o mundo” por
não se referindo às drogas, mas ao estar intrincada em redes de ilegalidade
terrorismo, ao afirmar que este produz que podem chegar até mesmo ao
incidentes mais visíveis, levando a uma terrorismo (NAIM, 2006, p. 251).
gama de respostas políticas
coordenadas, ao passo que o comércio Em outros pontos do texto também
ilícito permanece abaixo da superfície, podemos encontrar a sugestão do nexo
sem a capacidade de mobilizar a entre crime organizado e terrorismo.

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Novamente, há a ligação entre a visão Cooperação e Desenvolvimento
de Naim e de Lallerstedt, quando esse Econômico, o Paraguai, está entre um
último afirma que qualquer grupo de países que produzem cigarros
empreendimento requer dinheiro para legalmente dentro de sua jurisdição,
operar, mesmo quando tal atividade é o com o propósito único de exportar e
crime organizado ou o terrorismo, sendo vender ilegalmente em outra jurisdição,
que o fator motivador para o onde o produto não possui mercado
consequente comércio ilícito é a receita legítimo (OECD, 2016). A Tabacalera
que gera para as entidades envolvidas del Este, maior fabricante de cigarros do
(LALLERSTEDT, 2018). Considerando Paraguai, é uma empresa que faz parte
isso, em qualquer lugar do mundo onde do Grupo Cartes, de propriedade de
terroristas pudessem explorar a Horacio Cartes, ex-presidente do
possibilidade de obter ganhos com o Paraguai (2013-2018), fato que, no
comércio ilícito, o fariam para mínimo, põe em dúvida o papel das
contribuir à causa do terrorismo global. classes dirigentes e do próprio Estado
É a partir desse nexo que Louise ao tratar do comércio ilícito
Shelley e Sharon Melzer, por exemplo, (LALLERSTEDT, 2018).
analisam dois casos nos quais o lucro do
Além de abastecer o mercado brasileiro,
contrabando de cigarros serviria à causa
o produto paraguaio chega ilegalmente
terrorista. As autoras analisaram a
a outras regiões, tal como a América
organização R. J. Reynolds – atuação na
Central, onde o acesso é facilitado pela
Europa e Oriente Médio; e a célula do
Zona de Livre Comércio do distrito de
Hezbolah que atuou no contrabando
entre Michigan e Carolina do Norte. As Corazal, em Belize, que serve de hub
para distribuição de cigarros
fontes foram processos judiciais e as
contrabandeados também de outros
autoras exploram o nexo crime-
terrorismo, o qual afirmam ser ausente países (OECD, 2016). Assim, o
comércio de ilícitos vai muito além do
do debate em geral (SHELLEY e
nexo entre crime organizado e
MELZER, 2008).
terrorismo ou de passagem ilegal
Se considerarmos que na Tríplice através de fronteiras contíguas, mas
Fronteira, no início do século XXI, atinge patamares muito mais amplos,
havia uma grande comunidade oriunda principalmente ao atrelar uma produção
do Oriente Médio e um grande e lícita, que gera um comércio ilícito, em
indiscreto fluxo de ilícitos, a associação uma interação comercial que envolve os
entre uma coisa e outra seria apenas mais altos poderes do Estado.
uma questão de tempo. De acordo com A preponderância dos crimes
Arthur Bernardes do Amaral (2010), o transnacionais
tempo chegou no pós-11 de setembro e
somou-se ao esforço argentino por Dos autores analisados, talvez o livro
associar a região à ameaça terrorista que demonstre mais “encantamento”
internacional. com o século XXI seja A Globalização
do Crime, do jornalista Jeffrey
Outro ponto a ser destacado no caso da Robinson, que nasceu nos Estados
Tríplice Fronteira em relação ao Unidos em 1945 e vive desde os anos
comércio ilícito, tal como foi citado 1990 na Europa. É considerado um dos
anteriormente no caso dos crimes de principais autores da temática dos
colarinho branco, é a questão do tabaco. crimes financeiros, com 29 livros
Em relatório da Organização para escritos nessa área. O livro foi lançado

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originalmente em 1998 com o título The inesperados. O único requisito é a
Merger: How Organized Crime is geração de lucros, ou seja, a constatação
Taking Over the World, cuja tradução da teoria da associação diferencial de
literal seria algo como “A fusão: como Edwin Sutherland.
o crime organizado está dominando o
mundo”. A versão em português, A Portanto, pessoas comuns e/ou de classe
Globalização do Crime, foi lançada em média parecem – como afirmou Eric
2001. Hobsbawm – estar mais dispostas a
ignorar a legitimidade do Estado e
O livro não menciona o nexo crime cometer algum crime de natureza
organizado-terrorismo, focando-se econômica (HOBSBAWM, 2007). Essa
apenas no crime organizado, sem premissa foi observada por Moisés
mencionar aqueles do colarinho branco, Naim quando mencionou o caso de um
concluindo fatidicamente que o século pequeno empresário no México que
XXI pertencerá aos criminosos vislumbrou possibilidades de ganhos
transnacionais. Em suas conclusões altos com risco baixo (próximo de
pouco convincentes de que os crimes zero). Explorando a fronteira com os
transnacionais terão protagonismo no Estados Unidos, o dono de uma
século XXI, aponta Louise Shelley pequena transportadora permitia que
como uma acadêmica que corrobora seus motoristas usassem seus caminhões
com seu argumento e a atribui a para transportar drogas. Seu lucro
seguinte constatação: “[Ela] vê esse fato advinha unicamente do empréstimo que
como um aspecto definidor do século fazia aos motoristas para a aquisição da
XXI, do mesmo modo como o foram a droga a ser transportada em seus
Guerra Fria para o século XX e o caminhões – uma prática que seus
colonialismo para o século XIX” funcionários utilizariam com ou sem
(ROBINSON, 2001, p. 412). seu consentimento. É um exemplo de
negócio que “prospera na surdina sem
A visão de que o crime organizado que fossem afetados pelas guerras dos
estaria atuando em rede e contra os cartéis ou pelos bilhões de dólares que o
Estados desorganizados ou ineficientes governo americano e o mexicano
é muito simplista. O crime organizado é empregam para irromper esse
difuso, o que pode ser evidenciado, por comércio” (NAIM, 2006, p. 75).
exemplo, pelo fato de que o fim de No caso da Tríplice Fronteira,
Pablo Escobar não significou o fim do recentemente foi publicada uma análise
tráfico de drogas para os Estados que demonstra que o crime não era tão
Unidos. Outro caso é o das rígidas organizado no início dos anos 2000. O
estruturas das máfias italianas, que enfrentamento das autoridades de
sofreu um revés nos anos 1980 com a segurança e financeiras levou a um
mudança da legislação, mas que contrabando menos descarado. Como
somente consolidou resultados
consequência, o crime se organizou e de
duradouros de desmantelamento do
diversas formas passou a atuar. Os
crime organizado quando e onde houve produtos também mudaram daqueles
também o comprometimento de produzidos na China para o cigarro
investigadores especialistas, ação produzido no próprio Paraguai (SILVA
política e participação da comunidade
e COSTA, 2018).
local (VAN DIJK, 2011). Ao contrário
de uma visão maniqueísta, no cotidiano Portanto, ainda que o nome
o crime pode estar nos lugares mais “transnacional” seja pomposo, na

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prática pode ser operado por pessoas Paraguai. Moisés Naim e Jeffrey
comuns a atravessarem uma fronteira e Robinson nos trouxeram para a
mesmo patrocinado por notáveis realidade do dia a dia e argumentaram
cidadãos de classe média. Um gerente, que, no início do século XXI, a batalha
vendedor, freteiro, motorista, cambista e contra criminosos (sem mencionar os de
o cliente de uma cidade brasileira que colarinho branco) parece estar perdida.
atuam no contrabando via Cidade do Naim escreveu no imediato pós-11 de
Leste tomam parte de uma organização setembro e considera o comércio ilícito
criminosa transnacional. Apenas um com potencial para financiar o
parâmetro possibilita essa associação: terrorismo internacional. Robinson
um ilícito cometido em um Estado que enquadrou sua análise do crime
teve início, foi planejado ou serviu de internacional na moldura da Guerra Fria
base a partir de outro Estado (GOMES, para compreender o crime organizado
2008). Há que se considerar ainda a como algo globalizado, rígido e
evolução dos sistemas informatizados ordenado.
de comunicação como um fator que
Para a compreensão da Tríplice
exerce grande influência nesse tema, Fronteira, as análises são
pois a cada passo da evolução da
particularmente úteis ao colocarem-nos
tecnologia da informação, emergem
em contato com o contexto e as visões
mudanças em toda a sociedade,
sobre o mundo, as áreas problemáticas e
podendo inclusive facilitar mudanças no
a criminalidade no contexto da
escopo, na eficácia e na escala de uma globalização. Corroboram com o
atividade criminosa (KAVANAGH,
argumento de que o crime organizado
2018). Esse fator torna o crime baseado no comércio ilícito (sem
transnacional, mesmo que fisicamente a mencionar a questão das drogas) possui
ação não atravesse uma fronteira, o que uma abrangência transnacional e é um
pode ocorrer em qualquer região grande problema em certas regiões
fronteiriça do mundo, assim como na como a Tríplice Fronteira. Certamente o
Tríplice Fronteira. problema é percebido de maneira
diferente pelos atores envolvidos. O
Considerações finais
Estado vê a situação como altamente
Tendo como pano de fundo os problemática, por exemplo, por conta da
problemas em torno da Tríplice evasão de tributos, do prejuízo difuso
Fronteira, no início desse texto causado à sociedade, entre outras
lançamos mão da seguinte questão: questões. Setores da indústria que ficam
como autores de matizes diversos, prejudicados pela concorrência tendem
escrevendo na virada do milênio viam a se organizar e, na medida das
os problemas relacionados ao novo possibilidade e prejuízos, contribuir de
século? Particularmente, destacamos alguma forma para coibir o fenômeno.
três argumentos dos autores: o crime de Executivos de indústrias que produzem
colarinho branco é o maior; o comércio os bens contrabandeados não têm com o
ilícito é relegado ao segundo plano; e os que se preocupar, assim como as
crimes transnacionais dominarão o pessoas que estão na base ou em
mundo. Apoiado na criminologia, James posição intermediária na pirâmide do
Coleman fez um convite à análise de crime organizado. Suas preocupações
questões mais profundas e nos levou a serão evidentes somente quando os
refletir sobre os atuais donos do capital prejuízos forem maior que os ganhos no
investido na indústria do Tabaco no resultado da atuação criminosa.

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Recebido em 2018-10-07
Publicado em 2019-03-12

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