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Filosofia Latino-Americana e o Conceito de Filosofia Segundo Fornet-Betancourt

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Apresentação

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Fonte: http://bit.ly/2LdZvn2.

A filosofia não nasce no ar, ela sempre surge a partir de contexto social, cultural, econômico e
político. A filosofia da América Latina, objeto do presente estudo, é pensada exatamente a
partir da situação de dependência e dominação, que todas as nações do continente latino
sofreram desde a conquista hispano-portuguesa. De acordo com a versão dos vencedores os
índios não tinham cultura, eram bárbaros, por consequência, não sabem pensar e são
inferiores aos europeus que, ao contrário eram homens superiores, civilizados, cultos e
virtuosos, o que justificava guerras contra os ameríndios se não quisessem a eles submeter-se.
E, assim, aconteceu que os europeus dizimaram cruelmente os índios (Estima-se que só no
México e Peru foram assassinados em torno de oito milhões de nativos) e colocaram a seu
serviço os sobreviventes, dominando-os e colonizando-os. Apesar de todos esses países
subjugados se tornarem independentes de Portugal e Espanha, a dominação e colonização
europeia e norte-americana continua até hoje.  Somos ainda países dependentes dos Estados
Unidos e da Europa, do ponto de vista não só da economia, mas também da cultura, produção
de saber e tecnologia e da política. Assim se os ameríndios não sabem pensar, explica-se a
opinião por toda parte espalhada de que não há filosofia propriamente dita na América Latina.

Contudo, o livro El pensamiento filosófico latinoamericano, de Caribe y "latino" [1300-2000] –


editado por Enrique Dussel, Eduardo Mendieta e Carmen Bohórquez, contando com a
participação de cerca de 200 filósofos especialistas da filosofia na América Latina – desmente
de modo cabal esse injusto preconceito. Nesse livro, se mostra que antes de 1500 (quando da
invasão europeia) havia pensamento filosófico na América Latina; nele aparece o pensamento
de seis culturas ameríndias originárias que, mesmo não possuindo discursos estruturados
como os dos modernos europeus e norte-americanos, é um discurso que lembra os
pensadores originários gregos como Parmênides e Heráclito. Além disso, aparecem centenas
de filósofos de todos os países do subcontinente latino, inclusive de latinos norte-americanos.
Nesse documento, fica claro que sempre houve filosofia nessas nações latinas, antes e depois
da conquista hispano-portuguesa, até hoje quando os filósofos buscam pensar criticamente
essa dominação e dependência norte-americana e europeia com vistas a uma filosofia positiva
de libertação.

Espero que você se surpreenda com o vigor e a riqueza dessa filosofia que é pensada não mais
a partir do olho do vencedor, mas com o olhar dos vencidos; não mais a partir da Totalidade
hegemônica, mas da exterioridade dos excluídos desse sistema-mundo vigente. Pensar a partir
da exterioridade é bem diferente de pensar desde a Totalidade. Nasce, assim, um novo modo
de pensar nossa realidade social, econômica, política e cultural: surge um novo modo de fazer
filosofia, próprio de quem se situa na periferia do sistema central dos Estados Unidos e Europa.
Mas aprendemos a fazer filosofia não só em diálogo com os outros, mas a partir da experiência
vivida e refletida sobre aquilo que é objeto do pensamento.

Em geral, tem-se como verdadeira a ideia de que há apenas um modo de se fazer filosofia que
é a greco-europeia. Mas, como você sabe, nenhuma proposição filosófica é inquestionável.
Assim, essa proposição há muito tempo vem sendo contestada. E é, sobretudo, na periferia da
Europa e dos Estados Unidos que se propõe outro conceito de filosofia. Ao entendimento
tradicional de que há apenas uma racionalidade ou um único logos e, portanto, a filosofia seria
monológica, os contestadores latino-americanos, ao contrário, defendem que há muitas
formas de racionalidade e haverá por consequência, vários tipos de filosofia fundamentados
cada um em culturas e racionalidades (logos) diferentes. Continua-se a dizer que a filosofia é
racional, mas insiste-se que há muitas formas de racionalidade e que a filosofia grega encana
apenas uma delas. Essas questões capitais para o entendimento do que seja o saber filosófico
serão o objeto de estudo e debate da presente aula.

Desejamos a você ótimo aprendizado!

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Conteúdo

Conceito Tradicional de Filosofia

Seria verdadeira filosofia unicamente a filosofia tradicional greco-europeia? Mas o que dizer
do tradicional pensamento oriental de onde filósofos helenistas e neoplatônicos trouxeram
muitos elementos importantes para suas próprias filosofias? E o mesmo vale para o
pensamento africano que alguns dos filósofos gregos antigos frequentaram. E como fica a
questão do pensamento ameríndio originário? Todos esses pensamentos deveriam desistir de
ser chamados de filosofia. Por quê? Seriam apenas sabedorias? Tudo em filosofia é
questionável e, por isso você será chamado a se posicionar a respeito.

Há uma opinião generalizada de filósofos ocidentais que defendem categoricamente: no


sentido estrito, só o pensamento greco-europeu é filosofia; e, se falamos de filosofia do
Oriente, da África ou da América Latina, isso só é possível se o termo for tomado num sentido
amplo. Segundo essa concepção, só é considerada, no sentido estrito, filosofia a maneira grega
de refletir. Os modos diferentes de pensar das outras grandes culturas, contudo - embora
reconheçam que são pensamentos sérios e dignos de respeito e estudo – podem apenas ser
chamado de Sabedorias, mas nunca de Filosofia. Nesse sentido, o posicionamento claro de
Heidegger – no livro Que é isto, a Filosofia? - é bem sintomático:
A expressão por demais ouvida "filosofia ocidental europeia" é na verdade uma tautologia. Por
quê? A "filosofia" é grega em sua essência; grego significa aqui: a filosofia é no princípio tão
essencialmente grega que, em sua pretensão de desenvolver-se, captou primeira e
unicamente o mundo grego. [...] Dizer: a Filosofia é grega em sua essência não significa senão
que: o Ocidente e a Europa, e apenas eles, são, no que há de mais interior em seu curso
histórico, originariamente "filosóficos".

(HEIDDEGER, 1962, p. 33-34).

Não resta dúvida, só se pode aceitar como sendo verdadeira filosofia, segundo esses autores,
quando o pensamento for elaborado dentro dos parâmetros da filosofia da Grécia e Europa.
Mas, essa concepção da Filosofia, que não admite nenhum outro pensamento senão o greco-
europeu como sendo autêntica Filosofia, há muito está sendo questionada, sobretudo por ser
uma filosofia monológica, isto é, que admite um único logos (o logos tipicamente grego) para o
pensamento filosófico. Há para eles um único modo de fazer filosofia; não admitem que
possam haver outros tipos de racionalidade e que, assim, se pudesse fazer diferentes filosofias.

Questionadores do Conceito Tradicional

Mas, ultimamente, há muitos que contestam a posição que restringe o termo filosofia ao
pensamento dos europeus. Entre os questionadores desse logos monológico, encontram-se
muitos pensadores espalhados pelo mundo todo que defendem um logos plural e, assim, por
consequência, advogam a existência de muitas filosofias no sentido estrito da palavra.

Esse novo posicionamento começa a ter mais defensores, na América Latina, a partir da
década de 60, sobretudo por filósofos de língua espanhola. Entre o grande número de
pensadores latino-americanos que não só criticam a concepção de uma única maneira de se
fazer filosofia, mas que também propõem múltiplas racionalidades que podem fundar
diferentes filosofias, sugerimos analisar, como exemplo marcante, o pensamento do cubano
Raúl Fornet-Betancourt que, em lugar de uma única filosofia a partir de uma só cultura,
explora a possibilidade de diversas filosofias a partir de diferentes culturas. Tentemos, pois,
compreender esse pensamento que rejeita a concepção monológica de filosofia, propondo um
novo conceito que permita, ao lado da grega, o surgimento de diferentes pensamentos
filosóficos a partir de matrizes culturais múltiplas.

Proposta de Filosofia Intercultural na América Latina

Na realidade, Betancourt nos propõe uma filosofia intercultural, na América Latina. Ele
observa, entretanto, ser necessário que se entenda - antes de qualquer outro passo - em que
sentido são usados esses temos por ele – "filosofia", "intercultural" e "América Latina".
Comecemos, pois, por compreender, primeiro, as conotações dadas por ele à palavra
"filosofia".

Mas o que entende ele por filosofia? Apesar de ser "filosofia" um termo de etimologia grega,
diz ele:

... não vinculo a atividade humana, designada na Grécia com essa palavra, a nenhuma
exclusividade do espírito grego ou da cultura grega. Vejo antes que essa atividade, que na
Grécia recebeu esse nome, é uma potencialidade humana que pode ser, e de fato é, cultivada
em todas as culturas da humanidade. Filosofia se dá sempre, por isso, em uma pluralidade de
formas de pensar e de fazer. Não há, por tanto, razão alguma para tornar absoluta uma dessas
formas e propagá-la como a única válida. Quem faz isso, cai em uma posição etnocêntrica que
converte em centro do mundo o que, na realidade, não é mais que uma de suas regiões. Em
lugar de tornar absoluta uma forma local de filosofia, preferimos liberar a atividade (filosófica)
de toda definição definitiva a partir de uma só de suas origens culturais, e propor compreendê-
la como uma atividade que nasce em muitos lugares e que pode ter, por conseguinte, muitas
racionalidades.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 639).

A filosofia é plural e se faz a partir de um determinado contexto. A história da


institucionalização acadêmica da Filosofia, em que foi reduzida a uma disciplina entre outras
ou a um ramo dos conhecimentos acadêmicos, pode tornar não evidente o que propõe o
filósofo cubano. A filosofia acadêmica pode se tornar prisioneira dessas concepções e práxis
tradicionais que hegemonicamente tornam o filosofar um saber constituído e monológico,
modelar, que impede toda confrontação prático-teórica com a experiência contextual, pondo,
em seu lugar, a leitura de textos, que muitas vezes são vistos como escritos sagrados da
tradição (que não é outra senão a da Grécia ou da Europa). Aliás, essa ideia de fazer filosofia a
partir de um determinado contexto liberta-a de todo o peso da tradição opressora de uma
disciplina acadêmica e abre a possibilidade para uma multiplicidade de diferentes formas de
expressão.

Nessa concepção, a filosofia não é tanto estudo de textos, mas antes é um saber vivo e
reflexivo a partir do contexto. Não se concebe mais a filosofia como mera teoria, mas como
um saber da e sobre a realidade concreta. É, pois, um conhecimento articulado com os
processos históricos e contraditórios, tendo-se consciência de que há muitas interpretações e
que cada uma faz com que a realidade se apresente desta ou daquela forma.

... Trata-se de um saber de realidades o qual sabe intervir no curso da história, em nome
daquilo que se negou como realidade possível. Pois a esperança, as memórias reprimidas, a
utopia, são parte da realidade que podemos fazer.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 640).

Somos como você sabe poder-ser e o filósofo, como o artista, nega a realidade imediata para
propor novos modos de viver nossa existência.

Estudemos, agora, o sentido especifico do termo interculturalidade, usado pelo autor.


Certamente ele não quer reduzir esse conceito a sua dimensão estritamente racional, lógica ou
"filosófica", mas antes ao contexto prático de vida em que sempre há partilha da história e
existência com os outros.

Assim, pode-se perceber que o termo em estudo nos coloca diante de uma concepção
histórica de cultura, pois, no dizer de Fornet-Betancourt,
As culturas não caem do céu, mas vão crescendo em condições contextuais determinadas
como processos abertos em cujo princípio se encontra já o trato e o comércio com o outro –
seja com a natureza seja com as deusas ou deuses - e com os outros - seja com outra família
do mesmo povo ou seja com os povos vizinhos. As culturas são processos em fronteira. E essa
fronteira, como experiência básica de estar em contínuo trânsito, não é somente uma
fronteira que demarca o território próprio, que traça o limite entre o próprio e o alheio como
um limite que marcaria o fim do próprio e o começo do outro lado da fronteira. Não, essa
fronteira se produz no interior mesmo do que chamamos nossa própria cultura. O outro está
dentro e não fora de nossa cultura.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 640-641).

O autor dá três razões, para entender assim a fronteira do próprio e do estranho de toda
cultura:

1. Porque a cultura vai crescendo com e desde o outro, pois a cultura é um processo aberto de
trato e contrato, de comércio com o outro;

2. Numa sociedade de conflitos e lutas entre pobres e ricos, homens e mulheres e outras,
aquilo que vai se cristalizando como "próprio", nesse processo de entrar e sair, não é
simplesmente nosso. Além disso, pode haver conflitos dentro de nossa própria cultura; e isso
ou porque o poder hegemônico tenta reduzir todas as culturas a uma única ou porque as
diversas culturas estão em conflito entre si para poder impor-se;

3. Porque, considerando a experiência da América Latina em que as múltiplas culturas querem


mostrar o que têm de próprio e dizer que, em sua nação, vive-se uma determinada cultura,
isso, na realidade, oculta o fato da ideologia que sacraliza nomes como nação argentina, nação
brasileira e outras; na verdade, há mais redução à unidade que unidade verdadeira, nas
chamadas culturas nacionais: em sua cara hegemônica, fazem silenciar o grito dos oprimidos.

Esse modo de interpretar nossa cultura, que herdamos como própria e sempre em relação
com outras, deve ser visto a partir de sua concepção histórica.

O decisivo, porém, é compreender que essa visão histórica do próprio nos ajuda a explicitar os
contextos de nossa região, as fronteiras de nossa localidade, isto é, não isolá-la e torná-la
absoluta como algo único e exclusivo.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 641).

Sempre se estende uma ponte até o outro lado, para nos incitar ao contato e diálogo com os
outros.

Por último, passemos a examinar como o autor entende o termo América Latina. Esse nome é
problemático, sobretudo quando ele é empregado com a pretensão de englobar, num único
conceito padrão, toda a diversidade política, religiosa e cultural de um subcontinente.

Primeiro, interpretar a América Latina como um subcontinente culturalmente mestiço, tomado


de modo universal, como certeza aplicável a toda a realidade cultural, política e religiosa do
subcontinente, como faz o poder hegemônico, não é válido; segundo, a América latina não é
só lugar de mestiçagem, mas também lugar de redução de todas as culturas à única
hegemônica: por isso, esses "reduzidos" devem também ter seu lugar; terceiro, entender a
América Latina a partir de suas culturas "reduzidas" é estudar a memória de seus povos e
assim permitir um lugar para todas as culturas, também para as das minorias. No dizer de
Betancourt,

Em resumo, guio-me pela visão (utópica) proposta por José Martí de uma América realmente
nossa, construída com a participação de todos e com espaço específico não só para visões
diferentes do mundo, mas também para a construção de mundos reais diversos: uma América
na qual todas as diferenças podem ter sua casa.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 642).

Após examinarmos em que sentido o filósofo cubano usa os três termos acima estudados,
podemos passar, agora, ao estudo das características da Filosofia intercultural na América
Latina.

Da Necessidade da Interculturalidade na América Latina

Se quisermos descobrir a América em toda sua diversidade e especificidade, temos que ver na
interculturalidade ou diálogo com as diversas culturas como uma tarefa urgente e necessária.
O filósofo cubano insiste na necessidade dessa tarefa de diálogo entre culturas,

Porque não há outra alternativa para cancelar os hábitos e consequências do colonialismo, e


deter desse modo a colonização da humanidade por parte da civilização hoje hegemônica.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 642).

A história da conquista e colonização da América Latina foi e continua sendo um processo


violento de destruição e opressão sistemática das diferenças culturais. Com a invasão europeia
se desmantela sua forma de vida social, religiosa e política. O diferente é "reduzido" ao
mesmo, à "única cultura válida"; o outro é um objeto colonizado e neutralizado: é submetido a
um processo de ocidentalização que o condena a ser marginal.

Quando o autor insiste na necessidade do diálogo intercultural, ele está dizendo que isso é um
imperativo ético que se torna claro nestas palavras:

Diante da catástrofe da opressão e da sujeição, do encobrimento e da exclusão das diferenças,


o diálogo intercultural, como alternativa para reparar a injustiça cometida e encaminhar a
história por caminhos de convivência solidária, apresenta, com efeito, a necessidade de uma
opção ética imperativa; uma opção que não podemos rechaçar sem nos fazer cúmplices do
sistema hegemônico vigente.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 643).

E esse diálogo necessário e ético tem que pautar-se pelos princípios da libertação e justiça,
pois não há reparação sem libertação. Esse contato justo com o outro exige que se
reconheçam esses povos como pessoas humanas com toda sua dignidade e seus direitos. Esse
diálogo intercultural se apresenta, segundo o autor, com duas dimensões de obrigações
normativas: a de reparar a culpa colonialista para com as vítimas e a de criar uma nova ordem,
agora justa, que colabore para sua libertação.

Por isso, é fundamental que os povos indígenas, africanos e também os mestiços e outros
excluídos da América entrem especificamente nesse diálogo intercultural, a fim de que se
processe uma real partilha de valores e cultura entre todos, tanto os opressores como os
oprimidos. E nós brancos, por não sermos indígenas, negros ou excluídos não podemos falar
do ponto de vista desses povos; é preciso ouvir deles mesmos os pontos fundamentais de sua
cultura. Só assim pode haver um real reconhecimento do outro em suas diferenças e o
estabelecimento de uma nova ordem solidária que valorize as diferenças e o que é próprio de
cada cultura. Só assim, percebendo a urgência do diálogo intercultural em que todos os
parceiros participam ativamente, se torna possível "corrigir as estruturas atuais de poder e
criar condições iguais para o desenvolvimento pleno de todas as culturas." (apud DUSSEL,
2002, p. 643).

Da Necessidade de Transformar a Filosofia na América Latina a Partir do Desafio do Diálogo


Intercultural

O autor propõe que, à medida que se estabelecerem relações novas e capazes de transformar
a atual realidade, nossa filosofia também deve qualificar-se a partir das exigências desse
intercâmbio cultural. Aliás, essa necessidade de relações interculturais para transformar as
estruturas políticas, religiosas e culturais de nossos países injustos deve afetar também a
filosofia, pois ela deve assumir-se como uma exigência ética de transformação. Isso deve
implicar a passagem da concepção da filosofia hegemônica e monocultural para um conceito
novo de filosofia, assentado na confrontação intercultural, cujas proposições estão sempre
expostas à crítica e ao contraste. Agora, no lugar de integrar o próprio de cada cultura no
movimento universal, urge integrar a diversidade de mundos culturais no próprio de cada
cultura.

Nesse sentido, é superado o conflito entre o universal e o particular, pois

os troncos próprios em cada cultura são universais concretos. Não há "particularidades" e


"universalidades", mas sim universalidades históricas. Dependerá, então, se essas
universalidades se capacitam para o encontro solidário ou não.

(FORNET-BETANCOURT, 1994, p. 35).

Cada cultura, por tanto, é uma universalidade temporal contingente que, para sua
sobrevivência, precisa do diálogo com as demais culturas. E a esse tronco, enquanto é uma
universalidade concreta de vida e pensamento, se constitui como a referência primeira para
filosofia dizer o próprio, a diferença e o particular. E ela o diz contrastando o próprio de sua
cultura com o próprio das outras, com as quais interage.

Necessidade de Reaprender a Filosofar

Mas para quem está habituado a fazer filosofia dentro da tradição hegemônica, é preciso
desenvolver um espírito forte de autocrítica, a fim de não continuar nas malhas do
pensamento hegemônico. É preciso aprender tudo de novo. É necessária uma nova atitude
filosófica, urge um metódico exercício de aprendizagem para abandonar os vícios do
pensamento monológico e passar a pensar a partir das múltiplas e diferentes racionalidades
encarnadas e concretizadas nas diversas culturas sobre as quais acontece o debate filósofo.

Dessa forma, estamos diante de um novo tipo de racionalidade filosófica. A filosofia também é
histórica, sempre nasce (também a grega) dentro de uma determinada cultura e, por isso,
como esta, deve nutrir-se do diálogo intercultural. Mas a filosofia que se enraíza numa cultura
determinada, corre vários riscos, entre os quais,

O perigo de ocultar a diferença cultural sob o manto opressor de uma universalidade


decretada monologicamente [...] A filosofia despede-se desse tipo de universalidade que o
Ocidente tem decretado, entendendo que essa universalidade responde, no fundo, a um
movimento de extrapolação de uma cultura regional. Por isso, a filosofia intercultural prefere
orientar-se na ideia reguladora de uma "universalidade" conseguida como pluri-versidade
crescente a partir da solidariedade. [...] terá necessariamente que ter pela frente a tarefa de
traçar de novo o mapamundi da Filosofia para que este não seja visto somente como um
território colonizado pelo Ocidente, senão que contemple realmente a variedade de tradições
que o compõe.

(FORNET-BETANCOURT, 1994, p. 38-39).

Mas é preciso não esquecer que nosso novo conceito de filosofia produz um pensamento
filosófico tão contingente quanto o das outras filosofias. Por isso, segundo Betancourt, ela é
sempre é apenas uma hipótese, uma proposição aberta à crítica de todos. Toda proposição
filosófica é sempre uma proposta criticável, que espera contestação a fim de poder se tornar
menos preconceituosa, menos particular, mais crítica e mais próxima da verdade. Pela mesma
razão, a nova filosofia deve ser radicalmente autocrítica, pois o que se exige de nós - nessa
passagem da filosofia de um único modo de racionalidade para uma filosofia que pressupõe
vários tipos de logos - é uma tarefa que o autor chama de "desfilosofar a filosofia". O que ele
entende por essa tarefa? O que ele propõe em concreto com isso?

"Des-filosofar" a Filosofia

"Des-filosfar" a filosofia, segundo ele, significa, primeiro, tirar a filosofia do cárcere da ainda
vigente tradição ocidental europeia. E isso acarreta não apenas o desfazer-se do pensamento
monológico europeu, mas também libertar a filosofia dos limites impostos pelas regras da
filosofia acadêmica, pois a institucionalização acadêmica fez com que a filosofia fosse reduzida
a uma disciplina.

E isso com o agravante de que, ao ser uma "disciplina", articulada em seus conteúdos a partir
da tradição hegemônica centro-europeia e integrada ademais com uma função específica aos
interesses das metas formativas do sistema da modernidade europeia e do capitalismo, a
filosofia como "disciplina" não só fica configurada desde a tradição do saber dominante, mas
também se sujeita à disciplina do sistema em geral. Como "disciplina", a filosofia tem que
observar as regras do jogo, as leis, de uma tradição científico-cultural assim como de todo um
sistema de educação, que está, por sua vez, ligado a um sistema social, político e econômico.
[...] Advogar por uma filosofia desdiciplinada é advogar por uma filosofia que, para seguir com
a metáfora do cárcere, se faz fora desse terreno onde ela está submetida à observância das
leis impostas pelo carcereiro.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 644).

Assim desfilosofar a filosofia, em segundo lugar, quer dizer romper com o preconceito de que
a filosofia seria uma herança da cultura ocidental, mostrando a incoerência da filosofia
monocultural; não existe uma filosofia abstrata e a-histórica: a própria filosofia greco-europeia
só foi possível a partir de sua cultura em contato com outras. Assim, deve-se reconhecer a
existência de muitas filosofias a partir das diferentes matrizes culturais.

No terceiro momento, na visão de Betancourt, há a tarefa de libertar a filosofia da

... tendência de ocupar-se consigo mesmo, com sua história, com seus textos; e ser só filosofia
da filosofia. Em qualquer cultura da filosofia – pois essa tendência não é privativa da tradição
hegemônica – haverá que trabalhar por uma filosofia que sabe que seu passado não consiste
só em textos, mas também na contextualidade e na história das quais esses textos são
produtos de reflexão e por isso sabe bem que é uma perversão de seu próprio passado reduzi-
lo a "bibliografia" para exercícios acadêmicos.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 644).

No quarto momento, nesse trabalho de desconstruir a filosofia, é preciso fazer ainda que a
filosofia se torne realmente presente nos espaços públicos das comunidades e culturas onde
ela atua.

Será, pois, uma filosofia que reflexione sobre os assuntos públicos e que saiba falar sobre eles
publicamente, contribuindo dessa maneira na formação de um espaço alternativo de opinião
pública.

(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 644)

O quinto momento de desfilosofar o pensamento filosófico trata de reconstruir a filosofia, a


partir do mundo, chamado pelo autor, "mundo da sabedoria popular", ampliando nossos
métodos e acervo de fontes com vistas à elaboração de novas interpretações sobre a realidade
e a vida. Isso significa abrir a filosofia para escutar também as tradições das culturas indígenas,
africanas e de todos os oprimidos ou excluídos. O filósofo deve aprender a escutar a palavra
dos próprios membros dessas culturas se quiser realmente pôr à prova o novo conceito de
filosofia latino-americana. Segundo o autor, devemos transformar esse pensamento filosófico,
a fim de tornar-se "uma filosofia que seja a casa em que todos os povos e culturas do
continente possam articular livremente sua memória e sua palavra de sujeitos viventes"
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 645)

Da Utilidade Prática de uma Filosofia Interculturalmente Transformada

Essa transformação da filosofia não é uma questão teórica para deleite de alguns de seus
profissionais, mas traz graves consequências – como já vimos anteriormente - para a atividade
filosófica que deve ser posta a serviço do bem social e cultural de pessoas humanas. Um
primeiro aspecto prático de uma filosofia transformada pelas relações interculturais consiste
em fazer ver que as diferenças culturais e suas formas de vida não ameaçam a humanidade.
Pelo contrário, o cultivo delas é a melhor forma de valorizar a vida e a existência: é uma práxis
cultural e política que sabe que essas diferenças só ameaçam a ordem hegemônica que
pretende vestir todos os homens com o mesmo uniforme. Assim, não devem ser extintas as
diferenças culturais, mas, pelo contrário, potencializadas a partir de si mesmas e do
intercâmbio entre elas.

Outro aspecto prático de uma filosofia interculturalmente transformada é o exercício, baseado


nas exigências da tolerância e pluralismo, que permite o direito de os povos dizerem não
apenas como percebem, de modo distinto, o mundo, mas principalmente que lhes permita
construírem o mundo desde suas diferentes visões. Por último, segundo o autor, essa filosofia
transformada pelas relações interculturais tem a utilidade prática de contribuir na busca de
alternativas concretas à globalização neoliberal (que é a globalização de uma forma particular
de vida, economia, cultura, democracia e outros modos de uniformização), alternativas que
podem criar uma sociedade baseada, não mais em relações de competição e dominação, mas
na solidariedade entre culturas que se comunicam sem perder o que cada uma tem de mais
próprio. Isso tudo faz parte do novo conceito de filosofia.

Finalizando...

Em conclusão, Fornet-Betancourt apresenta um novo conceito de Filosofia. Em lugar de uma


filosofia que defende um único logos, ele propõe múltiplas filosofias, a partir das diferentes
racionalidades enraizadas nas diversas matrizes culturais. Toda filosofia nasce a partir de uma
determinada cultura, inclusive a filosofia europeia. Mas se a filosofia pensa a partir de um
contexto cultural bem definido e a racionalidade de cada cultura está carregada de
preconceitos e não verdades, então ela só se constitui como verdadeiro pensamento filosófico
se houver o confronto intercultural. O diálogo entre as diversas culturas é essencial para tornar
nosso filosofar menos preconceituoso e arrogante, mais crítico, mais sensível e respeitoso em
relação às múltiplas formas de racionalidade e, talvez, mais próximo da verdade. E se esse
novo conceito de filosofia for aceito, então há filosofia na América Latina, na Europa, na Ásia
tanto quanto nos Estados Unidos e na Europa.

Bons estudos e até a próxima aula!

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Saiba Mais

Para ampliar seu conhecimento a respeito dos temas tratados nesta aula, veja abaixo a(s)
sugestão(ões) do professor:

Leia o texto Da inculturação à interculturalidade de Raúl Fornet-Betancourt, e procure


perceber as diferenças essenciais entre os conceitos de inculturação e interculturalidade.
Conheça também a coleção sobre História da África, e procure perceber até que ponto há
também um encobrimento não só da história do indígena, mas também do africano na
educação, o que contribui para o fenômeno da inculturação.

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Referências

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